6/06/2025

Afonso Arino por Olavo Bilac (Artigo), por Olavo Bilac


AFONSO ARINO POR OLAVO BILAC

Há poucos meses, em Belo Horizonte, falando a homens de letras de Minas, procurei evocar, em poucas linhas, numa reminiscência, a figura de Afonso Arinos, homem e artista:

Conheci-o, a princípio, em Ouro Preto, na austera Vila Rica; ali vivi com ele, no silêncio e na poeira dos arquivos; e ali comecei a admirar o profundo brasileirismo orgânico, que forrava o seu espírito. Conheci-o depois, e melhor na Europa, no tumulto de Paris, e em longas viagens, romarias a catedrais e a castelos, passeios por cidades e campos. Na Europa, Afonso Arinos era ainda mais brasileiro do que no Brasil. Alto, robusto, elegante, de uma estatura e um ar de gigante amável, em que se aluavam a energia e a graça, conservando no olhar e na alma o nosso céu e o nosso sol, ele era como uma das árvores das nossas matas, exilada nas frias terras do velho continente. Nos boulevards, nos salões, nos teatros, e ainda nas geladas galerias de Rambouillet e de Versalhes, onde erravam os espectros de Francisco I e Luís XIV, — Afonso Arinos mantinha, sob a polidez das suas maneiras de fidalgo, o andar firme, um pouco pesado, e o jeito reservado, um pouco tímido, e o falar comedido, um pouco hesitante, de um sertanejo forte, andeiro e cavaleiro, caçador e escoteiro, simples e ousado... Ainda hoje o vejo, e me vejo, claramente, num dia de fevereiro de 1909, quando visitamos juntos a Catedral de Chartres. Era duro o inverno. Quando chegamos à velhíssima cidade episcopal, caía neve. De pé, insensíveis às lufadas cortantes dos flocos brancos, quedamos na praça, admirando a maravilhosa fábrica do templo, a sua caprichosa ossatura de contrafortes e botaréus, diante da fachada, a um tempo leve e severa, com a graciosa majestade da primeira fase da arquitetura ogival: as três portas baixas sobrecarregadas de estátuas, a grande rosaça fulgurando em cores múltiplas, e as duas torres, uma lisa, a outra rendada, esguias e longas, preces de pedra num surto para o céu... Dentro, na misteriosa cripta, na ressoante nave, nas capelas cheias de sombra, passamos duas horas, esmagados pela grandeza da catedral anciã de sete séculos, em que vivem, numa vida muda, mais de dez mil pinturas e esculturas, entes de sonho e terror, santos, apóstolos, bispos, anjos, demônios, animais e monstros fabulosos, grifos, dragões e quimeras. Ao cabo da longa conversação, em que nos haviam preocupado tantos aspectos da história e da arte do Cristianismo, houve um momento, em que, por não sei que vaga associação de ideias, Afonso entrou a dizer-me episódios de uma das suas recentes caçadas no Distrito Diamantino, nas cercanias do Serro. Estávamos no centro do cruzeiro, entre o coro e as naves colaterais. Do ponto em que estávamos, o nosso olhar abrangia um trecho fantástico da sombria floresta de pedra: as colunas, em duas filas, rodeavam-nos, como esbeltos estipes de palmeiras, misturando em cima, na abobada, as suas palmas em leques, entre lianas, entre folhas e flores, lódão e vinha, hera e nenúfar. E milagre da palavra... A voz de Afonso animava-se, exaltava-se e sacudia a catedral. Dizia os atalhos, as escarpas, os voltados, a mata, e os relinchos dos cavalos, e os estampidos dos tiros, e a alegria dos caçadores, e as cantigas dos camaradas, e o sol mineiro... E a floresta gótica transformava-se em floresta natural: a pedra negra verdecia, a abóbada frondejava e sussurrava, a treva alagava-se de luz ofuscante, e um verão brasileiro incendiava o inverno europeu. Já não estávamos em Chartres: estávamos no Brasil...

Fica bem esta evocação no limiar do volume, em que se enfeixam as conferências de Afonso Arinos sobre histórias e lendas do Brasil. Estas conferências, e a lição, que ele professou, em Belo Horizonte, em 1915, sobre “A Unidade da Pátria”, são digno remate de uma obra literária, que foi perfeita pela consciência e pela beleza com que foi concebida e executada.

Quando, enfeitiçado pela palavra ardente do meu companheiro, vi o teto da catedral de Chartres mudar-se em cúpula de brenha tropical, era porque ele, nas suas peregrinações pelo velho mundo, levava consigo, num ambiente próprio, como a sua verdadeira atmosfera moral, a paisagem da terra que amava. E ninguém mais do que ele sentiu e definiu o influxo da visão natal: a alma da paisagem, para onde quer que andemos longe, nos segue de perto e acompanha, e chama-se a saudade; ela nos soa aos ouvidos em misteriosas melodias, onde flutuam, com o refrão de velhas canções, ladridos de vento no coqueiral, gorjeios de pássaros familiares; ela se debruça, à calada da noite, sobre os nossos leitos, para murmurar-nos as suas confidências em forma de recordações do passado, e acender no nosso ânimo as esperanças do porvir...

E com estas lembranças e esperanças o espírito da pátria dava ao espírito do pensador sobressaltos e, às vezes, desesperações. Na “Unidade da Pátria”, que foi de fato o primeiro grito de alarme e o primeiro gesto fecundo da campanha de regeneração em que estamos empenhados, Afonso Arinos resumiu, com precisão cruel, os males que nos adoecem e envergonham: a dispersão dos bons esforços; o desamparo do povo do interior, dócil e resignado, roído de epidemias e de impostos; a falta do ensino; a desorganização administrativa; a incompetência econômica; a insuficiência, e muitas vezes os criminosos desvios da justiça; a ignorância petulante e egoísta dos que governam este imenso território, em que ainda não existe nação.

Mas o amor e a força do artista achavam remédio para o desânimo e salvação para a descrença: a sua alma ancorava-se na alma popular, e banhava-se na verdadeira fonte da energia dos povos, — as tradições, as lendas, a boa poesia, em que se espelham as virtudes da gente simples, seiva, sangue, fluido nervoso, que conservam a sua pureza e o seu vigor, enquanto a doença assola o organismo social, e bastam para sarar, no momento dado, todas as devastações.

Este livro é o efeito desta crença. Afonso Arinos nunca descreu da grandeza moral do Brasil. Conhecendo o seu povo, ele sabia que ele é o verdadeiro operário da sua nação. O valor e a bondade do povo hão de anular a fraqueza e a maldade dos que o exploram; e um dia os fracos e os maus desaparecerão, e os fortes e os bons, saídos da massa anônima, já livre e Instruída, serão os definitivos governadores.

Edouard Schurè, no prefácio da sua “Histoire du Lied”, escreveu estas linhas admiráveis: “O povo, muito tempo desprezado, sonha e canta, e tem a sua poesia e o seu ideal; opera-se nele um grande e surdo trabalho. Muitas vezes, este trabalho instintivo passa-se para a literatura, e os verdadeiros autores da obra ficam desconhecidos. Os homens da imprensa e das classes cultas não percebem isto; mas a imaginação popular continua a agitar se, subterrânea, múltipla, criadora, incessante, como a vegetação do coral, que lentamente se levanta do fundo do mar em ramificações infinitas, acabando por abrolhar em ilhas encantadoras que deslumbram os navegadores.”

Palavras que sempre devem ser meditadas por nós, homens de pensamento e de palavra. Os poetas, quando jovens pensam, no inocente orgulho da sua mocidade, e no natural engano do seu talento, que são eles que dão ao povo ideias e sentimentos; e ignoram que são apenas instrumentos de uma força estranha, que os inspira e exalta, emanações insensíveis da sua terra, eflúvios invisíveis da sua gente. O tempo e a reflexão, que dão modéstia, esfriam esse entusiasmo. Depois de certa idade, sabemos que os melhores poemas são os que nascem sem artifício, independentes do uso das métricas e dos léxicos, — os que saem do seio da natureza, frescos e límpidos, como a água salta das rochas. São os poemas melhores, e os mais duradouros. Os nossos livros, concebidos e dados à luz na ansiedade e na tortura, viverão menos do que esses contos singelos, essas lendas infantis, essas trovas ingênuas, que o povo ideou e criou, sem esforço, em sorrisos, entre o amanho da terra e a contemplação do céu.

Afonso Arinos conheceu bem, de perto, esse claro e eterno manancial da nossa poesia. Viajadorda nossa terra, familiar do sertão e dos sertanejos, ele teve o dom de tratar os homens de alma simples, sabendo falar-lhes e sabendo ouvi-los, e enternecendo-se com o seu sonho rústico.

Este enternecimento perfumou a sua vida, e adoçou a sua morte. 

Olavo Bilac, 1917.
Adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

6/04/2025

O moço velho (Conto), de Iba Mendes


O MOÇO VELHO 

Conta-se que certo moço, no esplendor de sua juventude e já enfastiado de sua mocidade, nutria de compulsiva inveja dos anciões de avançada idade. Seu grande sonho de felicidade não era amar e ser amado, nem ser rico e conhecido por todos. Acreditava sinceramente que sua grande fortuna consistia em alcançar a velhice, e se deliciava com essas fantasias.

Em consequência disso, nunca era visto entre os de sua idade ou fazendo aquilo que normalmente fazem os jovens. Ao contrário, gostava de frequentar os lugares próprios para os velhos e se divertir junto com eles nos salões de festas, nos bancos das praças e em outros ambientes próprios da ancianidade.

Com o decorrer dos anos, esse seu surpreendente apreço pelo senil, levou-o a adquirir hábitos que se tornaram bizarros aos olhos de quase toda a cidade, e inaceitáveis para os mais íntimos. Passou a vestir-se à maneira dos idosos, a andar de bengala e um tanto giboso como eles; deixou a barba crescer e começou a se interessar por filosofia e músicas antigas.

Alguns acreditavam que tinha perdido o juízo e que por isso deveria ser mandado ao manicômio.

— Já que gosta tanto de velho, que vá para o asilo — diziam os mais sarcásticos.

Quantos aos próprios velhos, as opiniões entre estes divergiam. Havia aqueles que viam os gestos do moço como um exemplo inspirador de veneração e respeito, e que, por seus próprios méritos, mereciam ser louvados e imitados por todos os outros de sua idade; a maioria, no entanto, seguia pelo mesmo bojo da multidão, que o tomava como estúpido e alienado.

O tempo, entretanto, mostrou que o excêntrico modo de agir do mancebo não indicava qualquer sinal de demência ou alienação. Em vez disso, tornavam-no cada vez mais gentil e benevolente, especialmente para os de mais idade, e de tal modo que conquistou a simpatia e o respeito de todos eles.

Mas esse mesmo tempo, como bem disse outro bom velho, é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. E foi assim que envelheceu o nosso jovem ancião.

Aos setenta anos, sentia-se cansado e saudoso dos velhos anos que não podiam voltar mais. A velhice o havia surpreendido e agora amava a juventude como nunca havia amado antes. Amava e desejava o que não podia ter.

Com o avançar da idade, ficou desgostoso e passou a imitar os moços, a querer ser novamente jovem; fez a barba e tentou, em vão, livrar-se da bengala. Esforçava-se para mostrar que podia fazer as mesmas proezas dos velhos tempos, e muitas vezes teve de ser amparado em praça pública ante os escárnios dos mancebos e das donzelas. Agora, alardeava aos quatro ventos que odiava a velhice e maldizia as cãs embranquecidas. Sofria assim o ridículo de sua própria decrepitude mental e física.

***

Em certo dia, quando o sol já descansava por trás das grandes árvores do ocaso, sozinho, a olhar para o ar, com a cabeça entre as mãos, ele ruminava seus remorsos de velho, a vida que poderia ter sido... De repente viu aproximar um moço. Este chegou-se a ele e sentou-se ao seu lado. Conversaram largamente. Ao despedirem-se, o idoso ergueu-se e o abraçou tão fortemente que parecia sentir nele a sua própria alma: eterna e jovem.

 

6/03/2025

O passageiro (Conto), de Iba Mendes


O PASSAGEIRO

Entrou no ônibus pensando na vida. Sentou-se no único banco vazio que encontrou, e ali permaneceu introspectivo e imergido em si mesmo, como se quisesse desvendar sua própria alma submersa em melancolia e desespero. Não reparou sequer nas curvas insinuantes de uma aprazível morena que estacionou bem à sua frente e que ria às golfadas ao celular.

Um sentimento de culpa dominava-lhe a mente. Queria voltar atrás para fazer tudo diferente... Se pudesse regredir no tempo, certamente não incorreria naquele mesmo erro.

Por que a vida era assim tão injusta para consigo? Tanta gente ruim e de má índole que vivia fartamente e sem grandes dificuldades na vida, algumas das quais até felizes e esbanjando uma saúde de ferro! E ele ali chafurdado na lama, sem sossego, sem paz de espírito, desenganado da vida e de tudo.

Por alguns instantes esforçou-se por não pensar em nada, ficando totalmente absorto. Fechou os olhos e tentou, em vão, toscanejar um cochilo leve. Logo, porém, sua mente despertou tomada por um turbilhão de pensamentos desconexos, e caiu em si que não podia fingir nem fugir à sua dura realidade.

De repente, começou outra vez a pensar na vida que poderia ter sido, e sentiu uma intensa vontade de lutar e vencer, uma força misteriosa que se imergia de dentro de si sem qualquer razão. Talvez ainda houvesse esperança, pensou. Não conseguia, porém, conceber mentalmente uma maneira que se lhe fizesse libertar daqueles terríveis grilhões. Tinha as chaves, mas não via porta alguma para abrir. Neste momento, quem o olhasse com algum interesse ou compaixão, talvez notasse um vestígio de lágrima a formar em suas retinas cintilantes.

Sentiu então uma inexplicável vontade de conversar sobre qualquer assunto e com qualquer pessoa. Queria ter alguém próximo, o pai, um irmão, amigos, enfim, uma pessoa que verdadeiramente o compreendesse e com quem pudesse desagasalhar o espírito e abrir todo o coração. Ali, porém, no vai-e-vem daquele veículo barulhento, era como se estivesse caminhando sozinho num ermo deserto, desamparado por Deus e por todos.

Enquanto isso, o ônibus percorre o itinerário que se lhe incumbe fazer, parando ali para descida de uns, detendo-se acolá para subida de outros, e assim prosseguindo para seu destino... Em seu interior vozes animadas mesclam-se com silêncios mórbidos e sufocados, como se no mesmo ambiente se dançasse uma valsa e se chorasse um defunto. E ele, alheio a tudo aquilo, voltava sua mente ao passado, e culpava-se; deslocava-a para o futuro, e se redimia numa ilusória esperança. E assim tão disperso da realidade externa e de todos, não se deu conta de onde estava. Foi quando percebeu que havia passado do ponto em que deveria desembarcar. Levantou-se num salto e acionou com toda ligeireza a campainha. Desceu apressadamente e seguiu a passos largos pela Rua da Consolação...