8/24/2024

“Nebulosas (Seleção de Poemas), de Narcisa Amália

 



NARCISA AMÁLIA
"Nebulosas”
(Seleção de Poemas)
 


POR QUE SOU FORTE
(A Ezequiel Freire)

Dirás que é falso. Não. É certo. Desço
Ao fundo d'alma toda vez que hesito...
Cada vez que uma lágrima ou que um grito
Trai-me a angústia — ao sentir que desfaleço...
E toda assombro, toda amor, confesso,
O limiar desse país bendito
Cruzo: — aguardam-me as festas do infinito!

O horror da vida, deslumbrada, esqueço!
É que há dentro vales, céus, alturas,
Que o olhar do mundo não macula, a terna
Lua, flores, queridas criaturas,
E soa em cada moita, em cada gruta,
A sinfonia da paixão eterna!...
— E eis-me de novo forte para a luta.

 

A ROSA

Que impia mão te ceifou no ardor da sesta
Rosa de amor, rosa purpúrea e bela?
ALMEIDA GARRETT

Um dia em que perdida nas trevas da existência
Sem risos festivais, sem crenças de futuro,
Tentava do passado entrar no templo escuro,
Fitando a torva aurora de minha adolescência.

Volvi meu passo incerto à solidão do campo,
Lá onde não penetra o estrepitar do mundo;
Lá onde doura a luz o báratro profundo,
E a pálida lanterna acende o pirilampo.

E vi airosa erguer-se, por sobre a mole alfombra,
De uma roseira agreste a mais brilhante filha!
De púrpura e perfumes — a ignota maravilha,
Sentindo-se formosa, fugia à meiga sombra!

Ai, louca! Procurando o sol que abrasa tudo
Gazil se desatava à beira do caminho;
E o sol, ébrio de amor, no férvido carinho
Crestava-lhe o matiz do colo de veludo!

A flor dizia exausta à viração perdida:
“Ah! minha doce amiga abranda o ardor do raio!
Não vês? Jovem e bela eu sinto que desmaio
E em breve rolarei no solo já sem vida!

Ao casto peito uni a abelha em mil delírios
Sedenta de esplendor, vaidosa de meu brilho;
E agora embalde invejo o viço do junquilho,
E agora embalde imploro a candidez dos lírios!

Só me resta morrer! Ditosa a borboleta
Que agita as áureas asas e paira sobre a fonte;
Na onda perfumosa embebe a linda fronte
E goza almo frescor na balsa predileta!”

E a viração passou. E a flor abandonada
Ao sol tentou velar a face amortecida;
Mas do cálix gentil a pétala ressequida
Sobre a espiral de olores rolou no pó da estrada!

Assim da juventude se rasga o flóreo véu
E do talento a estátua no pedestal vacila;
Assim da mente esvai-se a ideia que cintila
E apenas resta ao crente — extremo asilo — o céu!

 

ASPIRAÇÃO
(A uma menina)

Folga e ri no começo da existência
Borboleta gentil!
 GONÇALVES DIAS

Os lampejos azuis de teus olhos
Fazem n'alma brotar a esperança;
Dão venturas, ó meiga criança,
 — Flor celeste no mundo entre abrolhos! —

Ora pendes a fronte na cisma,
Fatigada dos jogos, contente,
E mil sonhos, formosa inocente,
Fantasias às cores do prisma;

Ora voas ligeira entre clícias
Sacudindo fulgores, anjinho;
E o favônio te envia um carinho,
E as estrelas te ofertam blandícias!...

Mas se prende dos fúlgidos cílios
Alva pérola que a face te rora,
De teus lábios, na fala sonora,
Chovem, rolam sublimes idílios!

De tua boca na rubra granada
Caem santos mil beijos felizes!
Tuas asas de lindos matizes,
Ah! não rasgues do vício na estrada!

 

RECORDAÇÃO

Lembras-te ainda, Adelaide,
De nossa infância querida?
Daquele tempo ditoso,
Daquele sol tão formoso
Que dava encantos à vida?

Eu era como a florinha
Desabrochando medrosa;
Tu, alva cecém do vale,
Entreabrias em teu caule
Da aurora à luz d'ouro e rosa.

Nosso céu não tinha nuvens:
Nem uma aurora fulgia,
Nem uma ondina rolava,
Nem uma aragem passava
Que não desse uma alegria!

Tu me contavas teus sonhos.
De pureza imaculada;
Eflúvios de poesia,
Trenos de maga harmonia.
Eras sibila inspirada!

E à nossos seres repletos
Desse amor que não fenece,
(Como sorria a existência!
Quanto voto de inocência
Levava ao céu nossa prece!

Hoje que apenas cintila
Ao longe a estrela da vida,
Venho triste recordar-te
Esse passado, abraçar-te,
Minh'Adelaide querida!

 

VISÃO
(A Helena Fischer)

Esperança... é o símbolo do futuro,
à caminho incessante para o saber,
para a riqueza, para o céu.
JÁCOME DE CAMPOS

Um noite em que a febre da vigília
Escaldava-me o crânio e a fantasia,
Das regiões da luz e da harmonia
Eu vi baixar uma gentil visão;
Tinha na fronte ebúrnea, em vez de pâmpanos,
Grinalda de virgíneas tuberosas,
E trazia nas alvas mãos mimosas
O sagrado penhor da redenção.

E perguntei: — Quem és, arcanjo fúlgido,
Que vens iluminar-me a noite escura?
Quem és, tu que derramas a frescura
No pudibundo cálice da flor?
Serás acaso a ondina teutônica
Envolta das espumas no sudário?
Serás um raio vindo do Calvário
Para trazer-me vida e crença, e amor?

“Vida... Não tentes, querubim empírico,
Reanimar a flama extinta hoje!
Sinto que o círio da razão me foge
Da treva eterna no assombroso mar!
Crença... Embalde a pedi com longas lágrimas!
Embalde aclama meu sofrer profundo,
(Como clamava Goethe moribundo
 — Luz! às sombras silentes de Weimar!...

Amor... Límpido aljofar que das pálpebras
De Cristo rola fecundando o solo!
Amor... Suave bálsamo, consolo
Que implora a humanidade ao pé da cruz!..
Oh! sim, aponta-me miragem cândida
Que mostra ao crente o paraíso aberto;
 — Estrela d'Israel, que do deserto
Aos braços da Vitória nos conduz...

Mas quem és, tu que vens erguer do pélago
A aurora funeral de meu futuro?
Fala! Quem és, que um ósculo tão puro
Depões em minha fronte de mulher?!...
— Sou a Esperança, disse; em minha túnica
Brilha serena a lágrima do aflito;
Tenho um sólio no seio do infinito,
E banha-me o clarão do roscicler!

Abre-me o coração pleno de angústias,
(Conforto encontrarás em meu regaço;
Criarei para ti mundos no espaço
Onde segrede de amor aura sutil!
Onde em lagos azuis de areias áureas
S’embalem redivivas tuas crenças,
E à meiga sombra das lianas densas
Vibres cismando às notas do arrabil”

— Curvo-me, ó anjo, a teu assento plácido:
Já nem me punge tanto sofrimento!
Sinto em meu peito o divinal alento
Que verte n’alma teu cerúleo olhar!
.A meus olhos se rasga atro sendálio,
Fito o incerto porvir mais calma e forte:
Já tenho forças p'ra lutar com a sorte
E voto a minha lira em teu altar!”

 

AGONIA

Je meurs, et sur ma tombe où lentement j’arrive,
Nul ne viendra verser des pleurs
GILBERT

Como vergam as lindas açucenas.
As pétalas alvejantes
Quando voam do sul as brumas frias;
Quando rola o trovão nas serranas
Com os raios coruscantes;

Como a rola das selvas, trespassada
De mortífera seta
Despedida por bárbaro selvagem,
Que a débil fronte inclina e cai à margem
Da lagoa dileta;

Como a estrela gentil de um céu risonho,
Luzindo aos pés de Deus;
Que pouco à pouco triste empalidece,
E cada vez mais pálida falece
Envolta em negros véus,

Como a gota de mel que entorna a aurora
Na trêmula folhagem,
E brilha, e fulge ao prisma de mil cores;
Que depois desaparece aos esplendores
Da dourada voragem;

Assim foram-se as rosas de meu peito
Sem os rocios de outono.
Vejo apenas a palma do martírio
Convidando-me a ir à luz do círio
Dormir o eterno sono.

 

AMOR DE VIOLETA

As violetas são os serenos pensamentos que
“o mistério e a solidão despertam na alma.
verdejante da esplêndida primavera.
LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR

Esquiva ao lábios lúbricos
Da louca borboleta,
Na sombra da campina olente, formosíssima
Vivia a violeta.

Mas uma virgem cândida
Um dia ante ela passa,
Evai colher mais longe uma faceira hortênsia
Que à loura trança enlaça.

“Ai! geme a flor ignota:
Se pela cor brilhante
Que tinge a linda rosa, a tinta melancólica
Trocasse um só instante;

Como sentira, ébria
De amor, de mágoa enleio,
Do coração virgíneo as pulsações precipites,
Unida ao casto seio!”

Doudeja à criança pálida
Na relva perfumosa,
E a meiga violeta ao pé mimoso e célere
Esmaga caprichosa.

Curvando a fronte exânime
Soluça a flor singela:
“Ah! Como sou feliz! Perfumo a planta ebúrnea
Da minha virgem bela!...”

 

O BAILE

Esta fingida alegria,
Esta ventura que mente,
Que será delas ao romper do dia?...
GONÇALVES DIAS

A noite desce lenta e cheia de magia;
A multidão febril do templo da alegria,
Invade as vastas salas,
O mármore, o cristal, a sede e os esplendores,
Do manacá despertam os mágicos olores,
À languidez das falas.

Ao rutilar das luzes as dálias desfalecem.
Roçando o pó as veste das virgens s'enegrecem,
Enturva-se a brancura,
O ar vacila tépido... a música divina
Semelha o suspirar de uma harpa peregrina.
É a hora da loucura!

Pela janela aberta por onde o baile entorna
No éter transparente a vaga tíbia e morna
Do hálito ruidoso,
Da vida as amarguras espreitam convulsivas
OO leve esvoaçar das frases fugitivas.
O estremecer do gozo!...

E tudo se inebria: o lampejar de um riso
Acende n'alma a luz gentil do paraíso,
Arranca a jura ardente!
E mariposa incauta, em súbita vertigem,
Arroja-se a mulher crestando o seio virgem
Na pira incandescente!

Aqui, na nitidez de um colo, a coma escura
S’espraia em mil anéis, enlaça a fronte pura
Auréola de rosas;
Da valsa ao giro insano, volita pelo espaço
Do cinto estreito, aéreo, o delicado laço,
As gases vaporosas.

Ali na meiga sombra indiferente a tudo,
Imerso em doce cisma um colo de veludo
Ondula deslumbrante:
Que fogo oculto, ignoto, em suas fibras vaza
Vivido ardor que faz tremer-lhe à nívea asa
De garça agonizante?

Além, meus olhos tímidos contemplam com tristeza
As pernas da mulher, dessa — ave de beleza —
Calcadas sem piedade!...
Esparsas pelo solo as laceradas rendas...
As flores já sem viço... abandonadas lendas
Da louca mocidade!

A festa chega ao termo; a harmonia expira;
A luz na convulsão final langue se estira
Pelo salão deserto;
Há pouco — o doudejar da multidão festante,
Agora — o empalidecer da chama vacilante,
Ao rosicler incerto!

Depois — a razão fria contando instantes ledos
De castos devaneios, de juramentos tredos
Ouvidos sem receio.
Num corpo languescido o espírito agitado.
E a febre da vigília ao doloroso estado
Ligando vago anseio...

A vida é isto: hoje cruel grilhão de ferro;
Talvez douro amanhã, mas sempre a dor, o erro,
Aniquilando o gênio!
Passado — áureo friso num mar de indiferença;
Presente — eterna farsa universal, suspensa
Do mundo no proscênio!

 

VOTO
(A minha mãe)

Ide ao menos de amor meu pobres cantos
No dia festival em que ela chorar,
com ela suspirar nos doces prantos!
ÁLVARES DE AZEVEDO

A viração que brinca docemente
No leque das palmeiras,
Traga à tu’alma inspiração sagradas,
Delícias feiticeiras.

A flor gazil que expande-se contente
Na gleba matizada,
Inveja-te a tranquila e leda vida,
Dos filhos sempre amada.

Só teus olhos roreje délio pranto
De mística ternura;
Como silfos de luz cerquem-te gozos,
Enlace-te a ventura!

Os filhos todos submissos junquem
De rosas tua estrada;
E curvem-se os espinhos sob os passos
Da Mãe idolatrada!

Tais são as orações que aos céus envia
A tua pobre filha;
E Deus acolhe o incenso, embora emane
De branca maravilha!

 

NEBULOSAS

On done le nom de Nébuleuses à des taches
blanchâtres que l’on voit çà et là, dans toutes
les parties du ciel.
DELAUNAY

No seio majestoso do infinito,
 — Alvos cisnes do mar da imensidade, —
Flutuam tênues sombras fugitivas
Que a multidão supõe densas caligens,
E a ciência reduz a grupos validos;
Vejo-as surgir à noite, entre os planetas,
Como visões gentis à flux dos sonhos;
E as esferas que curvam-se trementes
Sobre elas desfolhando flores d'ouro,
Roubam-me instantes ao sofrer recôndito!

Costumei-me a sondar-lhe os mistérios
Desde que um dia a flâmula da ideia
Livre, ao sopro do gênio, abriu-me o templo
Em que fulgura a inspiração em ondas;
A seguir-lhes no espaço as longas clâmides
Orladas de incendidos meteoros;
E quando da procela o tredo arcanjo
Desdobra n’amplidão as negras asas,
Meu ser pelo teísmo desvairado
Da loucura debruça-se no pélago!

Sim! São elas a mais gentil feitura
Que das mãos do Senhor há resvalado!
Sim! De seus seios na dourada urna,
A piedosa lágrima dos anjos,
Ligeira se converte em astro esplêndido!
No momento em que o mártir do calvário
A cabeça pendeu no infame lenho,
A voz do Criador, em santo arrojo,
No macio frouxel de seus fulgores
Ao céu arrebatou-lhe o calmo espírito!

Mesmo o sol que nas orlas do oriente
Livre campeia e sobre nós desata
A chuva de mil raios luminosos,
Nos lírios siderais de seu regaço
Repousa a fronte e despe a rubra túnica!
No constante volver dos vagos eixos,
(Os orbes em parábolas se encurvam
Bebendo alento no seu manso brilho!
E o tapiz movediço do universo
Mais belo ondeia com seus prantos fúlgidos!

E quantos infelizes não olvidam
|O horóscopo fatal de horrenda sorte,
Se no correr das auras vespertinas
Seus seres vão pousar-lhes sobre à coma,
Que as madeixas enastram do crepúsculo!
Quanta rosa de amor não abre o cálix
Ao bafejo inefável das quimeras
No coração temente da donzela,
Que, da lua ao clarão dourando as cismas,
Lhes segue os rastros na cerúlea abóbada?

Um dia no meu peito o desalento
Cravou sangrenta garra; trevas densas
Nublaram-me o horizonte, onde brilhava
A matutina estrela do futuro.
Da descrença senti os frios ósculos;
Mas no horror do abandono alçando os olhos
(Com tímida oração ao céu piedoso,
Eu vi que elas, do chão do firmamento,
Brotavam em lucíferos corimbos
Enlaçando-me o busto em raios mórbidos!

Oh! Amei-as então! Sobre a corrente
De seus brandos, notívagos lampejos,
“Audaz librei-me nas azuis esferas;
Inclinei-me, de flamas circundada
Sobre o abismo do mundo torvo e lúgubre!
Ergui-me ainda mais da poesia
Desvendei as lagunas encantadas,
E prelibei delícias indizíveis
Do sentimento nas caudais sagradas
Ao clarão divinal do sol da glória!

Quando desci mais tarde, deslumbrada
De tanta luz e inspiração, ao vale
Que pelo espaço abandonei sorrindo,
E senti calcinar-me as débeis plantas
Do deserto as areias ardentíssimas;
(Ao fugir das sendaes que estende a noite
Sobre o leito da terra adormecida,
Fitei chorando a aurora que surgia!
E — ave de amor — a solidão dos ermos
Povoei de gorjetas melancólicos!...

Assim nasceram os meus tristes versos,
Que do mundo falaz fogem às pompas!
Não dormem eles sob os áureos tetos
Das térreas potestades, que falecem
De morbidez nos flácidos triclínios!
Cortando as brumas glaciais do inverno
Adejam nas estâncias consteladas!...
Onde elas pairam; e à luz da liberdade
Devassando os mistérios do infinito,
Vão no sólio de Deus rolar exânimes!...


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

6/05/2024

O caso de James Joyce (Ensaio), por João Gaspar Simões

 

O CASO DE JAMES JOYCE

Por: JOÃO GASPAR SIMÕES
Revista do Brasil (1941)

Acaba de morrer na Suíça um escritor mais conhecido do que lido, mais discutido do que admirado, mais estudado do que apreciado. É um caso novo na história literária. Conquanto não se possa dizer que a sua personalidade fosse mais importante do que a sua obra, a verdade é que aquela avulta mais do que esta. Pelo menos discute-se mais o que ela pretendeu realizar do que aquilo que de fato realizou. Por quê? Era este escritor crítico ou doutrinaria, esteticista ou filosofo da arte? Não. Que eu saiba nenhumas páginas doutrinárias deixou publicadas. Salvo num passo ou outro dos seus romances, nunca se referia, como critico, aos problemas estéticos. Como explicar então que a sua personalidade tenha sido mais discutida do que a sua obra?

James Joyce — eis o escritor de quem falo. Nome universal! Onde quere que se fale de romance moderno, James Joyce aparecerá. Todavia poucos leitores o terão lido. Poucos, pelo menos, o terão lido completamente, não obstante o número reduzido das obras que deixou. Escreveu, ao todo, cinco ou seis volumes, um dos quais de fama universal. Refiro-me ao famoso Ulisses, o menos lido de todos... De fato, este grosso volume de perto de oitocentas páginas goza mais de fama que de proveito. Não admira: a sua leitura exige um esforço de aplicação penosíssimo. Trata-se de uma dessas obras a que é de uso chamar-se "difíceis".

Levantemos uma pontinha do véu. Quando se trata de fama — vibrante despertador da opinião pública — há que contar com um certo número de reações classicamente consideradas os passos da fama. Ora o escândalo continua a ser um  dos seus passos obrigatórios. Em literatura o escândalo é meio caminho para a glória. Vale mais fazer escândalo do que ter talento. James Joyce, além do talento que tinha, começou por fazer escândalo.

É sabido que o primeiro livro deste escritor — Dubliners — não chegou a sair de casa do editor. Quando ia ser lançado no mercado, um desconhecido entrou na casa editora, comprou a edição e mandou-a queimar no pátio da livraria. Um só exemplar se salvou, que o desconhecido deixou de presente a James Joyce. Mais tarde, quando a revista Little Review, dos Estados Unidos da América do Norte, começou a publicação do famoso Ulisses, a polícia interveio e a revista foi suspensa por quatro meses. Passava-se isto em 1918. Só em 1922 aparecia em Paris a primeira edição desta obra, proibida na Inglaterra e na América do Norte.

Que mais seria preciso para celebrizar James Joyce? Ei-lo desde logo um dos mais conhecidos escritores do mundo. Insisto: um dos mais conhecidos, não um dos mais lidos.

Há uma classe de obras literárias de fácil identificação: refiro-me àquelas em que as intenções do escritor sobrelevam ao temperamento. Sem termos lido uma página do Ulisses qualquer de nós pode fazer imediatamente uma ideia do gênero de obra que ele é. Trata-se de um romance que se define pela qualidade e natureza da técnica. Estudar o Ulisses é estudar-lhe a técnica. Eis por que não é difícil concebermos esta obra intelectualmente muito antes de a termos lido. Apoiados nas informações da crítica, seguiremos com relativa facilidade — talvez com mais facilidade que através da própria leitura — o plano e intenções da obra. E logo veremos que em Ulisses o plano e as intenções são o mais importante. Eis o que debalde tentaremos fazer para uma daquelas obras em que o temperamento sobreleva as intenções. Por melhor que nos resumam criticamente Os Possessos, de Dostoievski, de nada nos servirá. É necessário ler os romances de Dostoievski para realmente os conhecermos. As intenções do autor fundem-se com a obra — são a própria obra. A técnica é invisível: está no romance como. o vigamento nos edifícios.

Aqui está por que a leitura da obra de Joyce foi suprimida pela leitura da crítica. O que na construção havia de engenhoso tornou-se patente aos leitores e dispensou-os de ler Ulisses. Isto no que diz respeito ao Ulisses. Mas as outras obras de Joyce foram ofuscadas por esta. E como muitos daqueles que se arrojaram à leitura do Ulisses ficaram desiludidos, os demais romances de Joyce nunca chegaram a conhecer a popularidade do seu nome. Sim: é preciso não ter medo de dizer que o rei vai nu. Muitos dos que julgaram ir encontrar no Ulisses grandes novidades, geniais revelações, viram-se apenas perante um formidável exercício de virtuosismo literário.

É tempo de recuperarmos o perdido. James Joyce, esse famoso escritor que se dizia ter tentado a mais ousada das empresas: descer à terra para da terra arrancar viva a vida, qual outro Orfeu descendo aos infernos para deles arrancar Eurídice, não desceu tal à terra: ficou no labirinto da sua inteligência, quedou embriagado pelos recursos infinitos do seu talento. literário. Entre os escritores do nosso século, James Joyce há de vir a ser considerado um dos mais literários, um dos mais intelectuais, um dos mais clássicos.

Façamos um inventário da sua obra. De 1907 a 1941 publicou James Joyce cinco volumes. Só dois deles são, porém, de grandes proporções. O seu Portrait of te Artist as a Youing Man levou dez anos a escrever. Trinta e quatro anos para escrever portanto quatro obras. Que laboriosa tarefa! Sim: James Joyce é antes de mais nada um escritor laborioso.

O seu estilo é batido e rebatido: todos os seus elos são limados! O futuro dirá se o estilo não é a maior virtude da sua obra hoje tão gabada pelas suas audácias técnicas. De fato, James Joyce é sobretudo um estilista... mas um estilista sem originalidade apreciável, em que pese aos seus admiradores. Quero crer que uma das maiores torturas de James Joyce deve ter sido a vã pesquisa de uma originalidade natural. Foi por lhe faltar originalidade natural que James Joyce se consagrou ao virtuosismo.

Não parece isto paradoxal? Pois não é o contrário que se depreende da leitura dos estudos dos seus críticos? Por mim, antes de o ter lido, imaginava-o ávido de fundos contatos com a realidade viva, com o vulcão psicológico, com os sentimentos nativos, com a vida candente e tumultuosa. Era grande o meu erro. James Joyce não era nada disso. Fechado dentro de si mesmo, Joyce consagrara-se inteiramente a uma tarefa bizantina: colecionara estados de consciência como quem coleciona cacos arqueológicos.

James Joyce foi discípulo dos jesuítas. A casuística é um dos seus fortes. As doutrinas da Igreja absorveram-no. Aristóteles foi o seu mestre de estética. Ao contato com a escolástica, as faculdades intelectivas de Joyce desenvolveram-se num sentido abstrativo, deixem-me dizer assim. Note-se, no entanto, que a capacidade dialética não se lhe desenvolveu. Não há romances menos discursivos e dialéticos que os de Joyce. Recriar o mundo in mente — eis um propósito que nunca o tentou. Os seus romances são tudo quanto há de menos microcosmos. Pelo contrário: são fragmentários, dispersivos, verdadeiras colecções de imagens estáticas. Dir-se-á que Joyce retalha a realidade, trá-la a si, guarda-a no álcool da inteligência, e só depois a devolve à escrita. Isto explica o que nos seus romances há de nítido, de recortado, de retalhado, a par de não sei quê de frio, de estereotipado, de embalsamado, vamos.

Romance é progresso, tempo, antes de mais nada. Não o romance de James Joyce. Posto que Ulisses pretenda ser um romance temporal — decorre entre as oito horas da manhã e as três da madrugada do dia seguinte — o certo é que não há tempo nesta obra: tempo real, entenda-se. Para sugerir o fluir das horas, recorreu Joyce a artifícios tais como a sobreposição de pormenores em momentos diferentes no espaço e idênticos no tempo. Por exemplo: o caso das nuvens vistas simultaneamente por Dédalos e Bloom em ocasiões que no romance não coincidem.

A arte é uma réplica da realidade projetada num plano ideal. É aí, nesse plano ideal, que envelhecem as personagens de romance. Mas para que as vejamos envelhecer é preciso que as sintamos trituradas pelo tempo. Nos romances em que as personagens envelhecem o tempo passa. As personagens de Joyce nunca envelhecem. Os seus romances são fragmentos imóveis da vida. Joyce escolhe de preferência ações de curta duração. Ulisses, como vimos, decorre em vinte e quatro horas; A Portrait of te Artist as a Young Man, como o título o diz, é um retrato de uma adolescência. Não dura mais do que isso; as suas novelas de Dubliners são momentos da vida das personagens: duram horas apenas. Ora a réplica da vida realizada no plano ideal do romance deve ser animada de um movimento contínuo. Não devemos ser postos em presença de episódios fraccionados da existência das personagens, mas sim diante do próprio fluir dessas existências. Os romances caminham como progressões geométricas. Para passar de uma quantidade a outra é necessário adicionar-lhe a quantidade anterior. Em vez de uma exposição de parcelas, o romance é uma adição dessas mesmas parcelas.

Eis o que Joyce não toma em conta. Os seus romances são compostos de parcelas autônomas, pois o romancista era dominado por dois movimentos opostos. Por um lado uma intelectualização extrema, por outro uma extrema acuidade visual. Se era certo abstrair a realidade do real, condensando-a em quadros intelectualizados, também era verdade ver o real com aguda penetração. Daqui ser incapaz de se desprender de todo do real e ao mesmo tempo sentir-se impotente para realizar esse real longe dele. Isto faz com que os seus romances sejam sucessões de quadros imóveis: instantâneos desconexos. Aliás, Joyce, de acordo com as concepções estéticas de Aristóteles, parecia defender o princípio de uma arte estática. No seu Portrait, faz dizer a Stefen Dedalus: "...a emoção trágica é estática. Ou antes a emoção dramática é estática. Os sentimentos excitados por uma arte impura são cinéticos, desejo e repulsão. O desejo incita-nos à posse, incita-nos a mover-nos para alguma coisa; a repulsão incita-nos ao abandono, incita-nos a afastar-nos de alguma coisa. As artes que sugerem estes sentimentos, pornográficas ou climáticas, não são, portanto, artes puras. A emoção estética é por conseguinte estática. O espirito queda-se paralisado para além de todo o desejo, de toda a repulsão." Eis aqui uma autêntica concepção clássica da arte.

Em que consiste então a originalidade de Joyce? Numa nova expressão da realidade? Numa mais profunda visão do homem? Numa mais complexa explicitação psicológica? Não. A originalidade de Joyce está na técnica dos seus romances: principalmente na do Ulisses. Joyce alterou a estética clássica do romance. Em vez de uma progressão no tempo, para ele, o romance é uma análise em sobreposições imóveis. Aquilo que no Ulisses pode parecer movimento, não é mais que uma série de instantâneos de um mundo em marcha. Quão longe nós estamos da visão ao retardador de Marcel Proust! Para Proust, sim, existia o tempo; a realidade oferecia-se-lhe agitada por um movimento ininterrupto. Não para Joyce. Joyce não vê ao retardador, antes opera como os fotógrafos nas suas fotomontagens, os quais vão colando uns sobre outros pormenores estáticos de diferentes fotografias. Eis por que a obra de Proust é essencialmente cinematográfica, enquanto que a de Joyce é eminentemente fotográfica: radiográfica, antes, visto que incide mais sobre o intimo da vida que sobre o seu exterior.

Que errada a ideia que muita gente tem de James Joyce! Escritor dinâmico? Escritor de fundas incidências no fluir do tempo? Não. Exatamente o contrário. Joyce é um escritor que procura o lado estático da realidade: é um escritor que imobiliza a vida. Por isso mesmo poderemos considerar A Portrait of te Artist as a Young Man como a sua obra mais perfeita — como a verdadeira medida do seu gênio clássico. Ulisses, quanto a mim, é uma aventura falhada. Só como aventura merece atenção!


Lisboa, 31 de janeiro de 1941.