3/30/2023

Estória de Lobisomem (Conto), de Raimundo Nonato



Estória de Lobisomem 

O Cariri, o fértil vale que se deita ao pé da serra de Ibiapaba, é a terra proverbial das estórias de lobisomens. Ali não são poucas as pessoas que conhecem e repetem casos de arrepiar os cabelos, a respeito do terrível híbrido. 

É destes, o referido, certa noite, na Estrada de Ferro de Crato, pelo tocador de realejo, Clementino Araújo, um preto célebre por todos os lugares que se estendem nas imediações da serra do Camará e do Riacho do Sangue. 

Um meu velho compadre — narrava o sanfonista, deitado nas pedras da calçada, de papo para o ar, no meio da roda dos ouvintes — contou-me, certa vez, esta estória assustadora. 

De uma feita, dois comboieiros, muito conhecidos nas estradas e nos ranchos, chamados João Seleiro e Bartolomeu Alagamar, quando voltavam de uma viagem a Oeiras, no Piauí, não tendo conseguido alcançar uma morada, para o pouso, foram forçados a descansar os muares em plena mata, botando as cargas abaixo, numa escampada, onde havia bastante pastagem para as alimárias, e água perto, num pequeno córrego. 

Depois de tomadas as providências indispensáveis para a segurança do comboio, e de um ligeiro jantar de carne assada com farinha e rapadura, os dois tropeiros armaram as redes, debaixo de uma frondosa oiticica, e trataram de estirar os corpos, fatigados de longas caminhadas. 

Enfadados como se encontravam, pouco tiveram de conversar, pois logo pegaram no sono. 

Ao quebrar da barra, Bartolomeu pulou fora da rede, bem disposto, refeito pela dormida ao ar livre. Deu um giro pelo arredor, notando, pelo toque dos chocalhos, que os animais não estavam longe, e voltando para junto cargas, foi acordar o companheiro. Com admiração, porém, observou que a rede de João Seleiro estava vazia, com o lençol enrolado no punho. Observou, em volta, e como nada visse, imaginou que ele tivesse acordado antes já andasse tangendo os burros. Este pensamento logo foi afastado, pois Alagamar viu que os cabrestos estavam em cima dos cabeçotes das cangalhas, do mesmo modo que, ali, os botara ao anoitecer. Gritou então pelo João Seleiro  duas ou três vezes, mas só o eco respondeu à sua voz. 

Dai a pouco, dia claro, verificou que em redor da redor, havia pela areia um rasto achatado, que se dirigia para o lado oposto, penetrando no cerrado matagal. O Alagamar começou a ficar apreensivo diante do desaparecimento do companheiro de jornada, e pensou, em face daquele estranho indício, que por ali tivesse passado algum animal, que podia ser uma onça maçaroca, ou mesmo a pintada. 

Dessa ideia, também se dissuadiu, pois bem sabia que uma onça não poderia carregar um homem do corpo de João Seleiro. 

De qualquer modo, dominado por certo sentimento de pavor, pegou do punhal e do revólver, e saiu pela trilha, disposto ao que desse e viesse. Bateu a macega, revirou o mato, atravessou um riacho, cortou pelo canto do cerrado, o rasto sempre a reaparecer, aqui e ali, mais vivo e mais — apagado, conforme a resistência do terreno. O comboeiro ia perdendo a paciência, e o sol principiava a esquentar. Já devia ter andado mais de légua, naquela busca, atrás de um possível inimigo que presumia esconder-se por ali. 

Depois de virar pelos arredores de um baixio seco, encontrou, na sua frente, atirado por cima de um lajeado, todo coberto de sangue e terrivelmente mutilado, o corpo do companheiro de viagem. O tropeiro, ante o terrível quadro, ficou com a vista turvada, estático, sem nada compreender, com um entalo na garganta. Refeito, porém, do choque, chegou para junto do cadáver, apalpou-o e descobriu que o mesmo fora sangrado e que lhe tinham amputado ambas as mãos. O que, no entanto, o deixou ainda mais intrigado, foi não ter encontrado, em todo o rastejamento que fizera, o menor sinal de sangue, nem indício de que o corpo fosse arrastado, o que queria em dizer que aquilo  não fora trabalho de uma onça. E dali para diante, as pisadas mudavam de forma. Na areia fina do baixio, o que se via, claro, perceptível e nítido, era um rasto de homem, pé descalço e passadas largas. 

Bartolomeu Alagamar, apesar de se encontrar em plena luz do dia, sentiu que os cabelos se erguiam na cabeça. 

Estava trêmulo, dominado por um medo que quase o imobilizara. Mas a reação veio logo; o almocreve respirou forte, agitou os braços e sentiu o sangue ferver nas velas. Numa brusca decisão, meteu-se pela nova pista, não tardando em descobrir, ao longe, uma casa grande, os currais da fazenda, o engenho e, pelas imediações, as casas dos vaqueiros e dos moradores. Sem perder a marca das pisadas, o tropeiro notou que elas se encaminhavam para uma pequena choupana, muito distanciada das outras, fincada quase na orla do carrasco. 

O tangedor de tropas, meio cauteloso, foi se aproximando, ouvido atento ao menor ruído, como caçador que não quer perder o tiro. No terreiro, sondou tudo, e no oitão da choça, meteu o rosto por um frechal, para logo retirá-lo, lívido, deformado pelo pânico. O que vira, deixara-o aparvalhado: numa esteira estendida no copiar estava dormindo, de boca aberta, ressonando alto como um bicho, um homem todo sujo de sangue, nu da cintura para cima, de cara inchada e amarela que nem flor de algodão. 

Por junto, espalhados no chão, estavam as pequenas falanges, os ossos roídos das mãos do tropeiro João Seleiro. Ali mesmo, sem acordar o monstro, Bartolomeu Alagamar pespegou-lhe um tiro bem no meio da testas.

3/19/2023

Inocente! (Conto), de Nenê Maccagi


INOCENTE!

A razão por que todos os homens incautos enlouqueciam de amor por aquela menina, prematuramente, expandida em esplêndida mulher, vinha da sua grande doçura e da morbosa sedução de seus movimentos, ondulantes, misteriosos, involuntariamente lascivos.

Disputadíssima na sociedade, a nenhum dos que a rodeavam deu preferência, e isto mais ascendeu a cobiça dos homens.

Julgavam-na fria, insensível e má sem pensar que no coração ninguém manda, que não se é obrigada a amar um homem só porque este seja inteligente ou rico... é necessário que ele seja o homem esperado, o que, durante anos e anos, constituiu o nosso "ideal".

Com Fernanda de Castro se deu isso: esperava o homem amado, aquele que devia vir: daí o seu altivo desprezo aos que cobiçosamente a requestavam. 

Todavia chegou a ser noiva, um pouco por piedade, um pouco por orgulho, de um primo que a amava desde criança.

Mas Fernanda era uma mulher franca e sincera: sentia que não amava o primo, gostando apenas dele. E assim encheu-se de coragem um dia e delicadamente fez-lhe ver que não o faria feliz. O rapaz, compreendendo, desfez o compromisso de noivado e, desesperado com aquela recusa que lhe aniquilava a vida, partiu para o extremo norte, nunca mais dando notícias de si a pessoa alguma.

A jovem sentiu-se aliviada daquele "pequeno sacrifício", como dia o chamava, e partiu para o recife, em visita a uns parentes. 

Foi ali que, já desiludida de encontrar o seu "ideal", indo a uma exposição de pintura, numa troca de olhares fatal, sentiu dominar-lhe o peito uma dessas paixões que destroem como um vendaval, estraçalhando a vontade e a razão, mais poderosa que as leis humanas, mais forte do que a morte.

Feitas as apresentações, pela sua grande inteligência, pelos seus beijos de fogo, pelo veneno imponderável que exalava seu corpo flexível, o Dr. Ruben Moreno, distinto médico espanhol, viu-se completamente cativado pela sedutora brasileirinha e não tardou a unir seu destino ao dela, num casamento deslumbrante que marcou época no Rio de Janeiro. 

Grande sensação trouxera a Fernanda o casamento e, mulher bondosa e inteligente, cumulou de carinho e felicidade o ente a quem se entregara de corpo e alma, adorando-o, ora em grave silêncio, ora em verdadeiro arroubo infantil.

Plena a sua felicidade, porém efêmera, como sempre soe acontecer.

Quando, na fusão completa do seu amor, na compreensão absoluta da vida sexual, a natureza lhe anunciara um filho e esse filho, lourinho e bonitinho, lhe nascera numa risonha manhã de abril, desmoronara-se, como um grande bloco de pedra a cair num abismo, a felicidade que ela julgara conservar toda a vida. 

Mês e meio após o nascimento da criança, quando, recostada nos travesseiros, dia a amamentava, fixando-a bem, ficou um instante atordoada, perplexa: tomou o bebezinho que chorava, virou-o, ergueu-o, abriu-lhe os olhos, limpando-os do pranto, estudando-lhe as feiçãozinhas delicadas ainda não bastante delineadas... Santo Deus! por um desses caprichos cruéis da natureza, a que a ciência chama de "impregnação afetiva", seu filho saíra exatamente parecido com o noivo desprezado! A mesma cor de olhos, o mesmo talho exótico da boca, a mesma linha do nariz!

Repentino choro nervoso sacudiu-a toda e os seus longos cabelos castanhos, desprendendo-se dos grampos que os seguravam, espalharam-se pela cama, cintilantes, dourados pelos raios solares que entravam pela janela.

Era então por isso que seu marido, num desprezo brutal e grosseiro, a abandonara aos cuidados da enfermeira e da governante, dela não se ocupando mais!

Para que esse castigo tremendo? Oh! antes houvesse morrido no parto, em vez de sofrer tanto nele! 

Odiou, então, a criança. Desejou-lhe até a morte. Mas veio-lhe o remorso, gritou-lhe nas entranhas o amor materno e, recolhendo-se à sua grande dor, entregou-se toda à criação daquele inocente que, sem saber, lhe viera amargar para sempre a vida.

Sofria verdadeira tortura com o desprezo do  esposo. Almoçava e jantava sozinha e, se o procurava, era repelida com rudeza.

Começou então a desanimar, a sentir uma desagradável sensação de depressão hipocondríaca e a convencer-se da inutilidade de qualquer esforço no sentido de readquirir o amor dele. 

Quando, tempos depois, a criança apanhou um forte resfriado, foi necessário que o pai viesse vê-la, pois estava passando mal.

E a verdade repulsiva e asquerosa do seu desprezo, ela a teve numa frase grosseira que se desprendeu da boca do marido enquanto ele examinava a criança enferma.

— Oxalá morra, este filho do adultério!

— Como? O que dizes? 

— Digo-te que és mais desprezível do que eu julgava. Conservares o fruto do teu amor culpado, para me veres sofrer, dia por dia, hora por hora... és nojenta e vil. Repara como ele é parecido com o teu amante! Tudo! Todos os traços! E eu só vi teu primo em retrato. Mas outro dia, abrindo uma de tuas gavetas, achei uma carta dele para ti, num tal exagero, de lamentos de amor fracassado que me deu asco! Se tu não o amasses não conservarias aquela carta! Imagino as recentes como devem ser, agora que ele já te possuiu!

— Oh, meu amor, não me ofendas assim! Ouve! Eu só amo a ti! Tenho-te guardado absoluta fidelidade, pois és tudo o que tenho na vida! Eu sou inocente! Não me condenes! Não tenho culpa dessa semelhança tão extraordinária de meu pobre filhinho com uma pessoa da qual não sei há dois anos! Essa carta, conservo-a porque prometi a meu primo, na hora em que partia para sempre, que a guardaria como uma lembrança do seu amor puro e desgraçado. Escuta-me... 

 — Mentes! Nunca mais acreditarei em ti! E eu que te amava tanto! Como tiveste coragem de trair-me. a mim que sempre te tratei com o maior carinho? Parva! Então não podias ver que Deus castiga os criminosos? Vamos, se queres ainda que te olhe, dá essa criança a alguém. Não posso vê-la. Odeio-a! Odeio-a! 

— Tu não tens coração. És egoísta e mau. Neste momento em que se decide o nosso destino, em que te deixo de amar. porque agora quem me dá asco és tu, repito-te que esse menino é teu filho legítimo. Tu bem o sabes. O teu ciúme canalha é que te leva ao extremo de repudiá-lo e ofender-me no que tenho de mais sagrado, que é a minha honra. Mas não faz mal. Seja o que Deus quiser. Porém te digo que jamais abandonarei meu filhinho. Acima de tudo eu sou mãe. Tu não podes compreender o que seja essa palavra sublime!

— Fica-te com ele, criatura infernal! Mas ambos me pagareis! Eu saberei vingar-me!

E saiu, batendo estrondosamente a porta.

***

Seis meses se passaram. Fernanda era apenas uma sombra do que fora. Cada dia mais pálida, mais fina, mais silenciosa, ia perdendo lentamente a existência física. Noites inteiras passava sem dormir remoendo tristes pensamentos ou olhando o filho que, robusto, sadio, dormia a seu lado. 

Já há muito tempo não conseguia chorar, pelo que se convencera de que ia enlouquecer. Fraca, cansada, com palpitações violentas, sentia uma pressão desagradável ao longo da coluna vertebral e vertigens constantes tornavam-na irritadiça e ás vezes desagradável para com as pessoas que a rodeavam. 

Parecia-lhe ter um chapéu apertado na cabeça e sua vista enfraquecia a ponto de não lhe permitir costurar as roupinhas do filho. Zuniam-lhe os ouvidos, tremia de frio e tinha formigamentos e câimbras.

Fora o abalo moral fortíssimo, a fraqueza das funções físicas que a haviam abalado assim.

Ia morrendo aos poucos, não pela neurastenia (que a neurastenia se cura), mas pela  dose mínima de arsênico que alguém diariamente punha na sua escassa comida...

Percebera isso logo depois que rompera com o marido. Porém preferia morrer a queixar-se. Tinha a certeza da sua inocência e isto lhe bastava.

Doía-lhe, porém, deixar o filho em mãos estranhas. Mas que fazer? Uma peritonite aguda levou-lhe o filho, após vinte dias de sofrimento.

E ela ficou só no quarto, num arranque brutal de dor, sem lágrimas, sem palavras. Tremia-lhe, porém, o pobre corpo desgraçado e começou a passar os dias embalando o bercinho onde dormia a criancinha; e no seu delírio sorria debilmente ao ver a figura do bebezinho a estender-lhe os braços...

*** 

— Estou vingado! Agora basta de arsênico. Lavei a minha honra sem alarde, gozando e sofrendo ao mesmo tempo com a tortura dela. E não consigo esquecê-la. Amo-a ainda! Ah! se o "outro" não a houvesse possuído!

Monologando assim, subia o Dr. Moreno a ladeira de um subúrbio carioca, a fim de atender o chamado de um amigo enfermo. 

— É cedo ainda, disse. Eles só me esperam ás seis horas. Estou de barba crescida. Nunca me barbeei fora de casa. Vou experimentar agora.

E entrou, assobiando, na barbearia. Solícito, o barbeiro começou a barbeá-lo. Distraído, o Dr. Moreno pegou uns jornais velhos que estavam numa cadeira, ao lado e pôs-se a lê-los.

Eram uns jornais do Amazonas, que datavam de 1931.

Abriu-os com preguiça. Seus olhos correram sem interesse pelos problemas da madeira e da borracha, quando de repente se fixaram numa pequena noticia: "Manaus, 17. Foi ontem assassinado a tiros de revólver, nesta cidade, o engenheiro Dr. Fernando Pinheiro, que há pouco tempo voltara do Alto Acre, onde permaneceu cerca de um ano, a serviço do governo. Matou-o o conhecido larápio "Tinoquinho", com o intuito de roubá-lo. O famigerado gatuno já se  acha recolhido ao xadrez.” 

Teve força de vontade suficiente para permitir que o barbeiro acabasse o serviço.

Depois tomou um táxi, mandando o chauffeur tocá-lo a toda a velocidade para o Rio.

A inocência de sua esposa estava comprovada, pois o ex-noivo morrera antes dela casar e a criança nascera treze meses após o casamento... 

A noite, gélida e sem estrelas, mais lhe angustiava o coração, aquele pobre coração que ainda vibrava de amor e que desejava desafogar junto da vítima inocente as lágrimas que por tanto tempo havia retido em seu âmago torturado.

Subiu célere as escadas e chegou ao quarto da esposa, no qual reinava completa escuridão.

— Quem e? — disse uma voz estranhamente velada.

— Eu, Fernanda... 

— Ah! chegaste a tempo... eu tinha tanto medo de morrer sem te falar primeiro... Deus ouviu a minha súplica... eu queria te dizer que sou inocente e que sabia do arsênico... mas foi tanta a minha dor que eu nem tentei reagir... nem sei como tiveste coragem... deverias der consumado o ato mais depressa... assim tão devagar doeu mais à alma do que ao corpo... 

— Fernanda, perdoa-me! A calúnia que levantei de ti é das que não se perdoam. Mas eu te amava tanto! E sofri como um desesperado ao pensar que me havias traído! Noites e noites passei em claro! Mas não foi só a ti que envenenei. Eu também me viciei na cocaína. Eu também estou condenado! Fernanda, Fernanda, perdoa-me! Foi por amor que te envenenei! Ouve-me, dize-me que me perdoas, que ainda seremos felizes como dantes! Pronuncia essa palavra consoladora, a fim de que eu possa acender a luz, para ver-te, para contemplar-te, para orvalhar-te o resto com as minhas lágrimas que queimam como o fogo! Fernanda... 

Esperou alguns minutos, numa ansiedade indescritível. Ouviu, num leve cicio, a palavra "perdoo" debilmente balbuciada. Depois, longo silêncio. Depois, nada!

Como um autômato, acendeu a luz e caiu, chorando, sobre a cama da esposa.

Com a bela cabeleira espalhada pelo lençol, transparente como uma figura irreal de porcelana. Fernanda jazia morta sobre os travesseiros, as mãos cruzadas sobre o peito, como se rezasse o salmo do perdão...


---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2023)

3/11/2023

Briga das pastoras (Conto), de Mário de Andrade


BRIGA DAS PASTORAS

Chegáramos à sobremesa daquele meu primeiro almoço no engenho e embora eu não tivesse a menor intimidade com ninguém dali, já estava perfeitamente a gosto entre aquela gente nordestinamente boa, impulsivamente generosa, limpa de segundos pensamentos. E eu me pus falando entusiasmado nos estudos que vinha fazendo sobre o folclore daquelas zonas, o que já ouvira e colhera, a beleza daquelas melodias populares, os bailados, e a esperança que punha naquela região que ainda não conhecia. Todos me escutavam muito leais, talvez um pouco longínquos, sem compreender muito bem que uma pessoa desse tanto valor às cantorias do povo. Mas concordando com efusão, se sentindo satisfeitamente envaidecidos daquela riqueza nova de sua terra, a que nunca tinham atentado bem.

Foi quando, estávamos nas vésperas do Natal, da “Festa” como dizem por lá, sem poder supor a possibilidade de uma rata, lhes contei que ainda não vira nenhum pastoril, perguntando se não sabiam da realização de nenhum por ali.

— Tem o da Maria Cuncau, estourou sem malícia o Astrogildo, o filho mais moço, nos seus treze anos simpáticos e atarracados, de ótimo exemplar “cabeça chata”.

Percebi logo que houvera um desarranjo no ambiente. À senhora dona Ismália, mãe do Astrogildo, e por sinal que linda senhora de corpo antigo, olhara inquieta o filho, e logo disfarçara, me respondendo com firmeza exagerada:

— Esses brinquedos já estão muito sem interesse por aqui… (As duas moças trocavam olhares maliciosos lá no fundo da mesa, e Carlos, a esperança da família, com a liberdade de seus vinte e dois anos, olhava a mãe com um riso sem ruído, espalhado no rosto). Ela porém continuava firme: pastoril fica muito dispendioso, só as famílias é que faziam… antigamente. Hoje não fazem mais.

Percebi tudo. A tal de Maria Cuncau certamente não era “família” e não podia entrar na conversa. Eu mesmo, com a maior naturalidade, fui desviando a prosa, falando em bumba meu boi, cocos, € outros assuntos que me vinham agora apenas um pouco encurtados pela preocupação de disfarçar. Mas o senhor do engenho, com o seu admirável, tão nobre quanto antidiluviano cavanhaque, até ali impassível à indiscrição do menino, se atravessou na minha fala, confirmando que eu deveria estar perfeitamente à vontade no engenho, que os meus estudos haviam naturalmente de me prender noites fora de casa, escutando os “coqueiros”, que eu agisse com toda a liberdade, o Carlos havia de me acompanhar. Tudo sussurrado com lentidão e uma solicitude suavíssima que me comoveu: Mas agora, com exceção do velho, o mal-estar se tornara geral. A alusão era sensível e eu mesmo estava quase estarrecido, se posso me exprimir assim. Por certo que a Maria Cuncau era pessoa de importância naquela família, não podia imaginar o que, mas garantidamente não seria apenas alguma mulher perdida, que causasse desarranjo tamanho naquele ambiente.

Mas foi deslizantemente lógico todos se levantarem pois que o almoço acabara, e eu senti dever uma carícia à senhora dona Ismália, que não podia mais evitar um certo abatimento naquele seu mutismo de olhos baixos. Creio que fui bastante convincente, no tom filial que pus na voz pra lhe elogiar os maravilhosos pitus, porque ela me sorriu, e nasceu entre nós um desejo de acarinhar, bem que senti. Não havia dúvida: Maria Cuncau devia ser uma tara daquela família, e eu me amaldiçoava de ter falado em pastoris. Mas era impossível um carinho entre mim e a dona da casa, apenas conhecidos de três horas; e enquanto o Carlos ia ver se os cavalos estavam prontos para o nosso passeio aos partidos de cana, fiquei dizendo coisas meio ingênuas, meio filiais à senhora dona Ismália, jurando no íntimo que não iria ao Pastoril da Maria Cuncau. E como num momento as duas moças, ajudando a criadinha a tirar a mesa, se acharam ausentes, não resisti mais, beijei a mão da senhora dona Ismália. E fugi para o terraço, lhe facilitando esconder as duas lágrimas de uma infelicidade que eu não tinha mais direito de imaginar qual.

O senhor do engenho examinava os arreios do meu cavalo. Lhe fiz um aceno de alegria e lá partimos, no arranco dos animais fortes, eu, o Carlos, e mais o Astrogildo num petiço atarracado e alegre que nem ele. A mocidade vence fácil os mal-estares. O Astrogildo estava felicíssimo, no orgulho vitorioso de ensinar o homem do sul, mostrando o que era boi, o que era carnaúba; e das próprias palavras do mano, Carlos tirava assunto pra mais verdadeiros esclarecimentos, Maria Cuncau ficara pra trás, totalmente esquecida.

Foram três dias admiráveis, passeios, noites atravessadas até quase o “nascer da bela aurora”, como dizia a toada, na conversa e na escuta dos cantadores da zona, até que chegou o dia da Festa. E logo a imagem da Maria Cuncau, cuidadosamente escondida aqueles dias, se impôs violentamente ao meu desejo. Eu tinha que ir ver o Pastoril de Maria Cuncau. O diabo era o Carlos que não me largava, e embora já estivéssemos amigos íntimos e eu sabedor de todas as suas aventuras na zona e farras no Recife, não tinha coragem de tocar no assunto nem meios pra me desvencilhar do rapaz. Nas minhas conversas com os empregados € cantadores bem que me viera uma vontadinha de perguntar quem era essa Maria Cuncau, mas si eu me prometera não ir ao Pastoril da Maria Cuncau! por que perguntar!… Tinha certeza que ela não me interessava mais, até que com a chegada da Festa, ela se impusera como uma necessidade fatal. Bem que me sentia ridículo, mas não podia comigo.

Foi o próprio Carlos quem tocou no assunto. Delineando o nosso programa da noite, com a maior naturalidade deste mundo, me falou que depois do Bumba que viria dançar de-tardinha na frente da casa-grande, daríamos um giro pelas rodas de coco, fazendo hora pra irmos ver o Pastoril da Maria Cuncau. Olhei-o e ele estava simples, como se não houvesse nada. Mas havia. Então falei com minha autoridade de mais velho:

— Olhe, Carlos, eu não desejava ir a esse pastoril. Me sinto muito grato à sua gente que está me tratando como não se trata um filho, e faço questão de não desagradar a… a ninguém.

Ele fez um gesto rápido de impaciência:

— Não há nada! isso é bobagem de mamãe!… Maria Cuncau parece que… Depois ninguém precisa saber de nada, nós voltamos todos os dias tarde da noite, não voltamos?… Vamos só ver, quem sabe si lhe interessa… Maria Cuncau é uma velha já, mora atrás da “rua”, num mocambo, coitada…

E veio a noitinha com todas as suas maravilhas do Nordeste. Era uma noite imensa, muito seca e morna, lenta, com aquele vaguíssimo ar de tristeza das noites nordestinas. O bumba meu boi, propositalmente encurtado pra não prender muito a gente da casa-grande, terminara lá pela meia-noite. A senhora dona Ismália se recolhera mais as filhas e a raiva do Astrogildo que teimava em nos acompanhar. O dono da casa desde muito que dormia, indiferente àquelas troças em que, como lhe escapara numa conversa, se divertira bem na mocidade, Retirado o grande lampião do

terraço, estávamos sós, Carlos e eu. E a imensa noite. O pessoal do engenho se espalhara. Os ruídos musicais se alastravam no ar imóvel. Já desaparecera nalguma volta longe do caminho, o rancho do Boi que demandava a rua, onde ia dançar de novo o seu bailado até o raiar do dia. Um “chama” roncava longíssimo, talvez nalgum engenho vizinho, nalguma roda de coco. As luzes se acendiam espalhadas como estrelas, eram os moradores chegando em suas casas pobres. E de repente, lá para os lados do açude onde o massapê jazia enterrado mais de dois metros no areião, desde a última cheia, depois de uns ritmos debulhados de ganzá, uma voz quente e aberta, subira noite em fora, iniciando um coco bom de sapatear.

Olê, rosêra,
Murchaste a rosa!...

Era sublime de grandeza. A melancolia da toada, viva e ardente, mas guardando um significado íntimo, misterioso, quase trágico de desolação, casava bem com a meiga tristeza da noite.

Olê, rosêra,
Murchaste a rosa!...

E as risadas feriam o ar, os gritos, o coco pegara logo animadíssimo, aquela gente dançava, sapateava na dança, alegríssima,  coro ganhava amplidão no entusiasmo, as estrelas rutilavam quase sonoras, o ar morno era quase sensual, tecido de cheiros profundos. E era estranhíssimo. Tudo cantava, Cristo nascia em Belém, se namorava, se ria, se dançava, a noite boa, o tempo farto, o ano bom de inverno, vibrava uma alegria enorme, uma alegria sonora, mas em que havia um quê de intensamente triste. E um solista espevitado, com uma voz lancinante, própria de aboiador, fuzilava sozinho, dilacerando o coro, vencendo os ares, dominando a noite:

Vô m'imbora, vô m'imbora
Pá Paraíba do Norte!...
E o coro, em sua humanidade mais serena:

Olê, rosêra,
Murchaste a rosa!...

Nós caminhávamos em silêncio, buscando o Pastoril e Maria Cuncau. Minha decisão já se tornara muito firme pra que eu sentisse qualquer espécie de remorso, havia de ver a Maria Cuncau. E assim liberto, eu me entregava apenas, com delícias inesquecíveis, ao mistério, à grandeza, às contradições insolúveis daquela noite imensa, ao mesmo tempo alegre e triste, era sublime, E o próprio Carlos, mais acostumado e bem mais insensível, estava calado. Marchávamos rápido, entregues ao fascínio daquela noite da Festa.

A rua estava iluminada e muita gente se agrupava lá, junto a casa de alguém mais importante, onde o rancho do boi bailava, já em plena representação outra vez. Entre duas casas, Carlos me puxando pelo braço, me fez descer por um caminhinho cego, tortuoso, que num aclive forte, logo imaginei que daria nalgum riacho. Com efeito, num minuto de descida brusca, já mais acostumados à escuridão da noite sem lua, pulávamos por umas pedras que suavemente desfiavam uma cantilena de água pobre. Era agora uma subida ainda mais escura, entre árvores copadas, junto às quais se erguiam como sustos, uns mocambos fechados. Um homem passou por nós. E logo, pouco além, surgiu por trás dum dos mocambos, uma luz forte de lampião batendo nos chapéus e cabeleiras de homens e mulheres apinhados juntos a uma porta. Era o mocambo de Maria Cuncau.

Chegamos, e logo aquela gente pobre se arredou, dando lugar para os dois ricos. Num relance me arrependi de ter vindo. Era a coisa mais miserável, mais  desagradável que jamais vira em minha vida. Uma salinha pequeníssima, com as paredes arrimadas em mulheres e crianças que eram fantasmas de miséria, de onde fugia um calor de forno, com um cheiro repulsivo de sujeira e desgraça. Dessa desgraça horrível, humanamente desmoralizadora, de seres que nem sequer se imaginam desgraçados mais. Cruzavam-se no teto uns cordões de bandeirolas de papel de embrulho, que se ajuntavam no fundo da saleta, caindo por detrás da lapinha mais tosca, mais ridícula que nunca supus. Apenas sobre uma mesa, com três velinhas na frente grudadas com seu próprio sebo na madeira sem toalha, um caixão de querosene, pintado no fundo com uns morros muito verdes e um céu azul-claro cheio de estrelas cor-de-rosa, abrigava as figurinhas santas do presépio, minúsculas, do mais barato bricabraque imaginável.

O pastoril já estava em meio ou findava, não sei. Dançando e cantando, aliás com a sempre segura musicalidade nordestina, eram nove mulheres, de vária idade, em dois cordões, o cordão azul e o encarnado da tradição, com mais a Diana ao centro. O que cantavam, o que diziam não sei, com suas toadas sonolentas, de visível importação urbana, em que a horas tantas julguei perceber até uma marchinha carioca de carnaval.

Mas eu estava completamente desnorteado por aquela visão de miséria degradada, perseguido de remorsos, cruzado

de pensamentos tristes, saudoso da noite fora. E arrependido. Tanto mais que a nossa aparição ali, trouxera o pânico entre as mulheres. Se antes já trejeitavam sem gosto, no monótono cumprimento de um dever, agora que duas pessoas “direitas” estavam ali, seus gestos, suas danças, se desmanchavam na mais repulsiva estupidez. Todas seminuas com uns vestidos quase trapos, que tinham sido de festas e bailes muito antigos, e com a grande faixa azul ou encarnada atravessando do ombro à cintura, braços nus, os colos magros desnudados, em que a faixa colorida apertava a abertura dos seios murchos. Mais que a Diana central, rapariguinha bem tratada e nova, quem chamava a atenção era a primeira figura do cordão azul. Seu vestido fora rico há vinte anos atrás, todo inteirinho de lantejoulas

brilhantes, que ofuscavam contrastando com os outros vestidos opacos em suas sedinhas ralas. Essa a Maria Cuncau, dona do pastoril e do mocambo.

Fora, isto eu soube depois, a moça mais linda da Mata, filha de um morador que voltara do sul casado com uma italiana, Dera em nada (e aqui meu informante se atrapalhou um bocado) porque um senhor de engenho, naquele tempo ainda não era senhor de engenho não, a perdera. Tinha havido facadas, o pai, o João Cuncau morrera na prisão, ela fora mulher-dama de celebridade no Recife, depois viera pra aquela miséria de velhice em sua terra, onde pelo menos, de vez em quando, às escondidas, o senhor de engenho, dinheiro não mandava não, que também já tinha pouco pra educar os filhos, mas enfim sempre mandava algum carneiro pra ela vender ou comer.

Maria Cuncau, assim que nos vira, empalidecera muito sob o vermelho das faces, obtido com tinta de papel de seda. Mas logo se recobrara, erguera o rosto, sacudindo pra trás a violenta cabeleira agrisalhada, ainda voluptuosa, e nos olhava com desafio. Rebolava agora com mais cuidado, fazendo um esforço infinito pra desencantar do fundo da memória, as graças antigas que a tinham celebrizado em moça. E era sórdido. Não se podia siquer supor a sua beleza falada, não ficara nada. A não ser aquele vestido de lantejoulas rutilantes, que pendiam, num ruidinho escarninho, enquanto Maria Cuncau malhava os ossos curtos, frágil, baixinha, olhos rubescentes de alcoolizada, naquele reboleio de pastora.

Quando dei tento de mim, é que a coisa acabara, com uns fracos aplausos em torno e as risadas altas dos homens. As pastoras se dispersavam na sala, algumas vinham se esconder no sereno, passando por nós de olhos baixos, encabuladíssimas. Carlos, bastante inconsciente, examinava sempre os manejos da Diana moça, na sua feroz animalidade de rapaz. Mas eu lhe tocava já no braço, queria partir, me livrar daquele ambiente sem nenhum interesse folelórico, e que me repugnava pela sordidez. Maria Cuncau, que fingindo conversar com as mulheres da sala,

enxugava muito a cara, nos olhando de soslaio, adivinhou minha intenção. Se dirigiu francamente pra nós e convidou, meio apressada mas sem nenhuma timidez, com decisão:

— Os senhores não querem adorar a lapinha!…

Decerto era nisso que todas aquelas mulheres pensavam porque num segundo vi todas as pastoras me olhando na sala e as que estavam de fora se chegando à janelinha pra me examinar, Percebi logo a finalidade do convite, quando cheguei junto da lapinha, enquanto o Carlos se atrasava um pouco, tirando um naco desajeitado de conversa com a Diana. Os outros assistentes também desfilavam junto ao presépio, parece que rezavam alguma coisa, e alguns deixavam escorregar qualquer níquel num pires colocado bem na frente do Menino-Deus. Fingi contemplar

com muito respeito a lapinha, mas na verdade estava discutindo dentro comigo quanto daria. Já não fora pouco o que o rancho do Boi me levara, e aliás as pessoas da casa-grande estavam sempre me censurando pelo muito que eu dava aos meus cantadores. Puxei a carteira, decidido a deixar uns vinte mil-réis no pires. Seria uma fortuna entre aqueles níqueis magriços em que dominava uma única rodela mais volumosa de cruzado. Porém, se ansiava por sair dali, estava também muito comovido com toda aquela miséria, miséria de tudo. A Maria Cuncau então me dava uma piedade tão pesada, que já me seria difícil especificar bem si era comiseração si era horror.

Sinto é maltratar os meus leitores. Este conto que no princípio parecia preparar algum drama forte, e já está se tornando apenas uma esperança de dramazinho miserável, vai acabar em plena mesquinharia. Quando puxei a carteira, decidido a dar vinte mil-réis, a piedade roncou forte, tirei com decisão a única nota de cinquenta que me restava da noite e pus no pires. Todos viram muito bem que era uma nota, e eu já me voltava pra partir, encontrando o olho de censura que o Carlos me enviava. O mal foi um mulatinho esperto, não sei si sabia ler ou conhecia dinheiro, que estava junto de mim, me devorando os gestos, extasiado. Não pôde se conter, casquinou uma risada estrídula de comoção assombrada, e apenas conseguiu ainda agarrar com a mão fechada a enorme palavra-feia que esteve pra soltar, gritou:

— Pó… cincoentão!

Foi um silêncio de morte. Eu estava desapontadíssimo, ninguém me via, ninguém se movia, as pastoras todas estateladas, com os olhos fixos no pires. Carlos continuava parado, esquecido. da Diana que também não o via mais, olhava o pires. E ele sacudia de leve o rosto para os lados, me censurando.

— Vamos, Carlos.

E nos dirigimos para a porta da saída. Mas nisto, aquela pastora do cordão encarnado que estava mais próxima da lapinha, num pincho agílimo (devia estar inteiramente desvairada pois lhe seria impossível fugir), abrindo caminho no círculo apertado, alcançou o pires, agarrou a nota, enquanto as outras moedinhas rolavam no chão de terra socada. Mas Maria Cuncau fora tão rápida como a outra, encontrara de peito com a fugitiva, foi um baque surdo, e a luta muda, odienta, cheia de guinchos entre as duas pastoras enfurecidas. Nós nos voltáramos aturdidos com o caso e a multidão devorava a briga das pastoras, também pasma, incapaz de socorrer ninguém. E aqueles braços se batiam, se agarravam, se entrelaçavam numa briga chué, entre bufidos selvagens, até que Maria Cuncau, mordendo de fazer sangue o punho da outra, lhe agarrou a nota, enfiou-a fundo no seio, por baixo da faixa azul apertada. A outra agora chorava, entre borbotões de insultos horríveis.

— É da lapinha! que Maria Cuncau grunhia, se encostando na mesa, esfalfada, É da lapinha!

Os homens já se riam outra vez com caçoadas ofensivas, e as pastoras se ajuntando, faziam dois grupos em torno das briguentas, consolando, buscando consertar as coisas.

Partimos apressados, sem nenhuma vontade ainda de rir nem conversar, descendo por entre as árvores, com dificuldade, desacostumados à escureza da noite. Já estávamos quase no fim da descida, quando um ruído arrastado de animal em disparada, cresceu por trás de nós. Nem bem eu me voltara que duas mãos frias me agarraram pela mão, pelo braço, me puxavam, era Maria Cuncau. Baixinha, magríssima, naquele esbulho grotesco de luz das lantejoulas, cabeça que era um ninho de cabelos desgrenhados…

— Moço! ôh moço!… me deixa alguma nota pra mim também, aquela é da lapinha!… eu preciso mais! aquela é da lapinha, moço!

.Aí, Carlos perdeu a paciência, Agarrou Maria Cuncau com aspereza, maltratando com vontade, procurando me libertar dela:

— Deixe de ser sem-vergonha, Maria Cuncau! Vocês repartem o dinheiro, que história é essa de dinheiro pra lapinha! largue o homem, Maria Cuncau!

— Moço! me dá uma nota pra… me largue, seu Carlos!

E agora se estabelecia uma verdadeira luta entre ela e o Carlos fortíssimo, que facilmente me desvencilhara dela.

— Carlos, não maltrate essa coitada…

— Coitada não! me largue, seu Carlos, eu mordo!…

— Vá embora, Maria Cuncau!

— Olha, esta é pra…

— Não! não dê mais não! faço questão que…

Porém Maria Cuncau já arrancara o dinheiro da minha mão e num salto pra trás se distanciara de nós, olhando a nota. Teve um risinho de desprezo:

— Vôte! só mais vinte!…

E então se aprumou com orgulho, enquanto alisava de novo no corpo o vestido desalinhado. Olhou bem fria o meu companheiro:

— Dê lembrança a seu pai.

Desatou a correr para o mocambo.