9/24/2023

Na minha opinião: Os 10 melhores poetas do Brasil


OS 10 MELHORES POETAS BRASILEIROS

Castro Alves foi melhor porque levou a poesia a seu ponto máximo de perfeição. Sua importância, porém, não se restringe apenas à literatura. Foi melhor porque causticou a chaga moral deste país, tanto no verso quanto na tribuna. Nas palavras de Peregrino Júnior: "Castro Alves foi a voz mais eloquente e mais alta da nossa poesia de todos os tempos — e aquela que talou mais diretamente à sensibilidade do povo brasileiro — porque foi a grande voz generosa que cantou as três vocações históricas do Brasil: a vocação da Liberdade, a vocação da Justiça e a vocação da Democracia". POEMA PREFERIDO: “O Navio Negreiro”:



CASTRO ALVES

I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam, 
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas. 

II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ... 

III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 

IV
Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
E ri-se Satanás!...  

V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ... 

VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!




MANUEL BANDEIRA

Manuel Bandeira foi melhor porque, com seu lirismo bem pessoal, conseguiu externar magistralmente os grandes dilemas que marcam a existência humana. Nas palavras de Joel Silveira: "É o poeta que faz versos 'como quem chora', que faz versos 'como quem morre'". POEMA PREFERIDO: “Vou-me embora pra Pasárgada”:

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei 

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive 

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada 

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar 

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.



RAUL DE LEONI 

Raul de Leoni foi melhor porque como nenhum outro poeta conseguiu transformar versos em verdadeiros tratados de pura filosofia. Para Rodrigo Melo Franco de Andrade ele foi "o único poeta de emoção puramente filosófica"; para Múcio Leão, "Raul de Leoni é um espírito antigo numa sensibilidade contemporânea"; e, para Tristão de Ataíde, "Raul de Leoni foi assim talvez a voz maias autorizada de todo um estado de espírito coletivo, quando a nossa literatura parecia isolar-se inteiramente, tornar-se incomunicável à grande massa e a grande realidade brasileira." POEMA PREFERIDO: “Aos que sonham”: 

Não se pode sonhar impunemente
Um grande sonho pelo mundo afora,
Porque o veneno humano não demora
Em corrompê-lo na íntima semente... 

Olhando no alto a árvore excelente,
Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,
O Sonhador não vê, e até ignora
A cilada rasteira da Serpente. 

Queres sonhar? Defende-te em segredo,
E lembra, a cada instante e a cada dia,
O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
O Calvário do Filho de Maria
E a cicuta que Sócrates bebeu!



VINÍCIUS DE MORAES 

Vinícius de Moraes foi melhor porque foi capaz de expressar com seus versos o que há de mais sensível no coração humano. Seus poemas refletem ao mesmo tempo a arte, a beleza, o amor, a felicidade, a tristeza e toda gama de sentimento de que se imbui o homem e a mulher. Nas palavras de Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes “tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas), e, finalmente homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplendido cinismo dos modernos”. POEMA PREFERIDO: “Soneto de Fidelidade”:

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento. 

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento. 

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama 

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.



AUGUSTO DOS ANJOS

Augusto dos Anjos foi melhor porque conseguiu externar livremente suas angústias mais íntimas, utilizando para isto de uma linguagem que lhe era bem peculiar,  mesclando o mórbido com o científico, e de tal modo que foi único no seu modo de poetar. Nas palavras de Hildon Rocha: "Augusto dos Anjos foi um poeta único, aparte em sua geração. Não pertenceu a nenhuma escola literária daquelas que estavam tão em moda no seu tempo. Poetava a seu modo, a seu gosto, com uma forma que ninguém tinha explorado ainda, com um ritmo seu, unicamente seu. Não mercadejou a sua poesia, e não perdia tempo com assuntos fúteis. Nunca pôs o seu dom divino e a sua divina arte a serviço de interesses materiais." POEMA PREFERIDO: “Versos íntimos”:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável! 

Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera. 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Carlos Drummond de Andrade foi melhor porque conseguiu ser num só momento crítico, irônico, pessimista, sentimental, mesclando tudo isso num estilo próprio, fazendo uso da linguagem como verdadeiro objeto de arte. Nas palavras de Rodolfo Alonso: "Carlos Drummond de Andrade foi o primeiro a me fazer intuir que era possível ser ao mesmo tempo exigentemente moderno e honestamente nacional, sem demagogia nem retórica alguma, obscura e limpidamente sentimental e irônico, preciso e contagioso, tão apaixonado quanto distante, tão lúcido quanto devotadamente entregue ao essencial e à vivacidade de seu ambiente e de seu povo, não declamado mas embebido no próprio ser, ser tão legítimo que permite ser os outros sem deixar de ser o que se é, para ser o que se é. E, sobretudo, ser linguagem, ser linguagem encarnada e contagiosa, fraternal e exigente, estremecida e justíssima." POEMA PREFERIDO: "O caso do vestido":

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou.

Chorou no prato de carne,
bebeu, gritou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou,

dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só para lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.



CECÍLIA MEIRELES

Cecília Meireles foi melhor porque conseguiu reunir a emoção com recursos expressivos, criando um estilo próprio capaz de despertar os sentimentos mais nobres do coração humano. Nas palavras de João Ameal: "A poesia de Cecília Meireles dá-nos ao mesmo tempo a graça dos pequenos motivos em que o verbo se faz harmonia – e a tragédia dos grandes tormentos intelectuais em que o pensamento se dilacera e revolve. POEMA PREFERITO: “Retrato”:

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo. 

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra. 

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?



FAGUNDES VARELA 

Fagundes Varela foi melhor porque soube condensar nos seus versos os próprios sofrimentos, chorando e sentindo o fel que a vida lhe deu a provar. Nas palavras de Ronald de Carvalho: “Há em sua obra inspirações de toda ordem da alma e da natureza, da vida rústica e civilizada, da fantasia e da realidade, do mundo fictício e presente." POEMA PREFERIDO: “Cântico do Calvário”: 

Eras na vida a pomba predileta
 Que sobre um mar de angústias conduzia
 O ramo da esperança. — Eras a estrela
 Que entre as névoas do inverno cintilava
 Apontando o caminho ao pegureiro.
 Eras a messe de um dourado estio.
 Eras o idílio de um amor sublime.
 Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,
 O porvir de teu pai! — Ah! no entanto,
 Pomba, — varou-te a flecha do destino!
 Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
 Teto, caíste! — Crença, já não vives! 

 Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
 Legado acerbo da ventura extinta,
 Dúbios archotes que a tremer clareiam
 A lousa fria de um sonhar que é morto!
 Correi! Um dia vos verei mais belas
 Que os diamantes de Ofir e de Golgonda
 Fulgurar na coroa de martírios
 Que me circunda a fronte cismadora!
 São mortos para mim da noite os fachos,
 Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
 E à vossa luz caminharei nos ermos!
 Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa,
 Brando orvalho do céu! — Sede benditas!
 Oh! filho de minh’alma! Última rosa
 Que neste solo ingrato vicejava!
 Minha esperança amargamente doce!
 Quando as garças vierem do ocidente
 Buscando um novo clima onde pousarem,
 Não mais te embalarei sobre os joelhos,
 Nem de teus olhos no cerúleo brilho
 Acharei um consolo a meus tormentos!
 Não mais invocarei a musa errante
 Nesses retiros onde cada folha
 Era um polido espelho de esmeralda
 Que refletia os fugitivos quadros
 Dos suspirados tempos que se foram!
 Não mais perdido em vaporosas cismas
 Escutarei ao pôr do sol, nas serras,
 Vibrar a trompa sonorosa e leda
 Do caçador que aos lares se recolhe! 

 Não mais! A areia tem corrido, e o livro
 De minha infanda história está completo!
 Pouco tenho de ansiar! Um passo ainda
 E o fruto de meus dias, negro, podre,
 Do galho eivado rolará por terra!
 Ainda um treno, e o vendaval sem freio
 Ao soprar quebrará a última fibra
 Da lira infausta que nas mãos sustento!
 Tornei-me o eco das tristezas todas
 Que entre os homens achei! O lago escuro
 Onde ao clarão dos fogos da tormenta
 Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
 Por toda a parte em que arrastei meu manto
 Deixei um traço fundo de agonias!...

 Oh! quantas horas não gastei, sentado
 Sobre as costas bravias do Oceano,
 Esperando que a vida se esvaísse
 Como um floco de espuma, ou como o friso
 Que deixa n’água o lenho do barqueiro!
 Quantos momentos de loucura e febre
 Não consumi perdido nos desertos,
 Escutando os rumores das florestas,
 E procurando nessas vozes torvas
 Distinguir o meu cântico de morte!
 Quantas noites de angústias e delírios
 Não velei, entre as sombras espreitando
 A passagem veloz do gênio horrendo
 Que o mundo abate ao galopar infrene
 Do selvagem corcel? ... E tudo embalde!
 A vida parecia ardente e douda
 Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem,
 Tão puro ainda, ainda n’alvorada,
 Ave banhada em mares de esperança,
 Rosa em botão, crisálida entre luzes,
 Foste o escolhido na tremenda ceifa! 

 Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
 Senti bater teu hálito suave;
 Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
 Pulsar-te o coração divino ainda;
 Quando fitei teus olhos sossegados,
 Abismos de inocência e de candura,
 E baixo e a medo murmurei: meu filho!
 Meu filho! frase imensa, inexplicável,
 Grata como o chorar de Madalena
 Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras
 Senti rugir o vento incendiado
 Desse amor infinito que eterniza
 O consórcio dos orbes que se enredam
 Dos mistérios do ser na teia augusta!
 Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
 Que se expande em torrentes inefáveis
 Do seio imaculado de Maria!
 Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
 E de meu erro a punição cruenta
 Na mesma glória que elevou-me aos astros,
 Chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

 O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
 A voz mentida de rafeiros bardos,
 Torpe alegria que circunda os berços
 Quando a opulência doura-lhes as bordas,
 Não te saudaram ao sorrir primeiro,
 Clícia mimosa rebentada à sombra!
 Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
 Tiveste mais que os príncipes da terra!
 Templos, altares de afeição sem termos!
 Mundos de sentimento e de magia!
 Cantos ditados pelo próprio Deus!
 Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
 E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
 Trocariam a púrpura romana
 Por um verso, uma nota, um som apenas
 Dos fecundos poemas que inspiraste! 

 Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
 Do cantor infeliz lançaste à vida,
 Arco-íris de amor! Luz da aliança,
 Calma e fulgente em meio da tormenta!
 Do exílio escuro a cítara chorosa
 Surgiu de novo e às virações errantes
 Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo
 Ao pranto sucedeu. As férreas horas
 Em desejos alados se mudaram.
 Noites fugiam, madrugadas vinham,
 Mas sepultado num prazer profundo
 Não te deixava o berço descuidoso,
 Nem de teu rosto meu olhar tirava,
 Nem de outros sonhos que dos teus vivia! 

 Como eras lindo! Nas rosadas faces
Tinhas ainda o tépido vestígio
 Dos beijos divinais, — nos olhos langues
 Brilhava o brando raio que acendera
 A bênção do Senhor quando o deixaste!
 Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
 Filhos do éter e da luz, voavam,
 Riam-se alegres, das caçoilas níveas
 Celeste aroma te vertendo ao corpo!
 E eu dizia comigo: — teu destino
 Será mais belo que o cantar das fadas
 Que dançam no arrebol, — mais triunfante
 Que o sol nascente derribando ao nada
 Muralhas de negrume!... Irás tão alto
 Como o pássaro-rei do Novo Mundo! 

 Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se,
 E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
 Abrasou com seu facho ensanguentado
 Meus soberbos castelos. A desgraça
 Sentou-se em meu solar, e a soberana
 Dos sinistros impérios de além-mundo
 Com seu dedo real selou-te a fronte!
 Inda te vejo pelas noites minhas,
 Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
 Creio-te vivo, e morto te pranteio!... 

 Ouço o tanger monótono dos sinos,
 E cada vibração contar parece
 As ilusões que murcham-se contigo!
 Escuto em meio de confusas vozes,
 Cheias de frases pueris, estultas,
 O linho mortuário que retalham
 Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
 Saudades e perpétuas, — sinto o aroma
 Do incenso das igrejas, — ouço os cantos
 Dos ministros de Deus que me repetem
 Que não és mais da terra!... E choro embalde. 

 Mas não! Tu dormes no infinito seio
 Do Criador dos seres! Tu me falas
 Na voz dos ventos, no chorar das aves,
 Talvez das ondas no respiro flébil!
 Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
 No vulto solitário de uma estrela,
 E são teus raios que meu estro aquecem!
 Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
 Brilha e fulgura no azulado manto,
 Mas não te arrojes, lágrima da noite,
 Nas ondas nebulosas do ocidente!
 Brilha e fulgura! Quando a morte fria
 Sobre mim sacudir o pó das asas,
 Escada de Jacó serão teus raios
 Por onde asinha subirá minh’alma.



ÁLVARES DE AZEVEDO

Álvares de Azevedo foi melhor porque conseguiu expressar, mesmo no seu ultrarromantismo exacerbado, as grandes angústias que norteiam a vida humana. Nas palavras de Marlene de Castro Correia: "Muito da originalidade e vitalidade de Álvares de Azevedo deriva da valorização poética do cotidiano, da tematização do homem enquanto consciência dramatizada por dicotomias, da concepção e prática do discurso como lugar de embate entre registros emotivo-estéticos dissonantes, do uso de matizado e refinado humor." POEMA PREFERIDO: “Lembranças de morrer”: 

Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente. 

E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento. 

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro –
Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; 

Como um desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia. 

Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas! 

De meu pai... de meus únicos amigos,
Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam. 

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda! 

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores. 

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha Virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo! 

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida. 

–Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto! 

Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!

10º

GONÇALVES DIAS

Gonçalves Dias foi melhor, inimitável mesmo, porque em sua vasta produção, abrangeu a todos, sendo a primeira reação poética brasileira, vigorosa e brilhante. Nas palavras de Teófilo Dias: "Tem um estilo sóbrio e preciso; é um colorista primoroso. Os seus versos primam pela inspiração e pelo fino gosto, que revelam. Não há em língua portuguesa páginas tão ricas de boa linguagem como as dos Cantos, e principalmente dos Timbiras...” POEMA PREFERIDO: “Seus olhos”: 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir; 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir. 

São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,
Às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar. 

Assim lindo infante, que dorme tranquilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co’um véu. 

Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram sem causa
Um pranto sem dor. 

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia.
Com tanto pudor. 

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.


---
Por Iba Mendes, São Paulo, setembro de 2023.

9/20/2023

Na minha opinião: Os 10 melhores escritores do Brasil


OS 10 MELHORES ESCRITORES BRASILEIROS

1º - MACHADO DE ASSIS

Pela sua capacidade de penetrar a fundo na alma humana, expondo suas muitas mazelas e suas escassas virtudes; pela sua extrema habilidade de jogar com as palavras, e de tal forma que nada falta e nada sobra num texto; pela sua refinada ironia, com a qual converte um episódio jocoso numa crítica mordaz aos padrões estabelecidos; enfim, pela sua genialidade em transformar as banalidades humanas em profunda reflexão filosófica. LIVRO PREFERIDO: “Memórias Póstumas de Brás Cubas.”

 2º - LIMA BARRETO

Pela sua grande habilidade em expor as vísceras pútridas da sociedade brasileira, seus muitos preconceitos e seus inúmeros vícios; por sua maestria em transformar uma obra de ficção num evento preciso do nosso cotidiano desigual; pela maneira requintada com que tece críticas a nossa hipocrisia diária, sem medo de ferir suscetibilidades; enfim, por sua coragem de homem negro que não se deixou rebaixar diante da arrogância de um branco cheio de títulos. LIVRO PREFERIDO: “O Cemitério dos Vivos.” 

3º - GRACILIANO RAMOS

Pela sua extrema habilidade em transformar episódios típicos do nosso regionalismo em algo muito mais abrangente, atingindo a dimensão do universal; por sua capacidade de síntese com a qual a aborda o emaranhado das relações humanas nas suas diversas facetas; pelo rigor consciente com que empregou a linguagem para descrever comportamentos humanos específicos, como no caso da personagem Paulo Honório do romance “São Bernardo”; enfim, pela forma magistral com que tratou de temas psicológicos complexos, e de tal forma que nos prende do começo ao fim. LIVRO PREFERIDO: “São Bernardo”. 

4º - NELSON RODRIGUES

Pela sua maneira instigante com que tratou o cotidiano do brasileiro, mais precisamente o da classe média, apontando seus variados vícios e bizarrices, tais como a violência, a traição, o ciúme doentio, o incesto, a loucura, o suicídio etc.; pela sua maestria em criar frases e expressões lapidares, muitas das quais já de uso comum em nosso dia a dia; por sua coragem em dizer exatamente o que pensa, sem se preocupar com a crítica virulenta de seus desafetos; enfim, por sua destreza em tratar de maneira simples assuntos psicológicos complexos, rompendo com os limites da consciência humana e penetrando fundo seu subconsciente. LIVRO PREFERIDO: “Beijo no asfalto." 

5º - ALUÍSIO DE AZEVEDO

Por sua grande perícia de artífice da linguagem, com a qual descreve de maneira avivada os grandes dramas humanos de sua época, como é o caso da escravidão; por sua exímia capacidade em descrever com enorme poder de observação as relações interpessoais de suas personagens, algo bem evidenciado no romance “O Cortiço”; pela maneira magistral e precisa em descrever as paisagens rurais e os diversos ambientes das grandes cidades, especialmente o Rio de Janeiro; enfim, por seu realçado senso crítico com o qual escancara as mazelas sociais do seu tempo, revelando a natureza humana na sua faceta mais cruel e hipócrita. LIVRO PREFERIDO: “O Cortiço.” 

6º - JOSÉ LINS DO REGO

Pela maneira estimulante como ele conseguiu conciliar sua própria vida com sua obra, como se os personagens desta fossem aqueles mesmos que marcaram sua infância no Nordeste; pela maneira irrepreensível de interpretar os acontecimentos e de retratar os motivos humanos de que se compunha a sociedade de seu tempo; pela sua visão artística como descreve e entrelaça num só enredo as questões familiares, morais, econômicas e políticas; enfim, como bem expressou Otto Maria Carpeaux, deu aos seus personagens “o hálito da vida”. LIVRO PREFERIDO: “Menino de Engenho.” 

7º - GUIMARÃES ROSA

Pela maneira como conseguiu transformar a temática regionalista numa experiência  estética abrangente, conciliando a realidade com o transcendente e o regional com o universal; pela extrema habilidade em inovar a linguagem, criando sua “própria língua”, todavia de fácil compreensão; pela forma como abordou as questões do seu universo pessoal, especificamente as de sua Minas Gerais, ampliando-as para todo o resto do Brasil; enfim, por retratar o sertão com uma linguagem inovadora e capaz de ser entendida em todo o mundo. LIVRO PREFERIDO: “Sagarana”.

8º - JOSÉ DE ALENCAR

Por sua capacidade em interpretar cada escaninho geográfico e social do Brasil, mesclando as diferentes realidades dentro do mesmo objetivo da unidade nacional; por sua preocupação com a língua portuguesa e seu estilo, enfatizando a importância do falar brasileiro; por sua grande habilidade em criar uma gama variada de personagens, abrangendo todos os períodos de nossa história; enfim, por seu acentuado senso crítico, não poupando inclusive o próprio Imperador D. Pedro II. LIVRO PREFERIDO: “Senhora.” 

9º - MONTEIRO LOBATO

Pela sagacidade com que inovou a literatura infanto-juvenil, transformando-se no escritor mais lido e querido para este público; pela maneira como abordou grandes problemas que afetavam o Brasil da época, com destaque para a desigualdade social e o flagelo da saúde, algo bem evidenciado na personagem Jeca Tatu; por sua luta pessoal em prol da ampliação do hábito de leitura em nosso país, facilitando com isso o acesso ao livro, bem como por seu pioneirismo nos diferentes âmbitos editoriais; enfim, pelo seu empenho em traduzir importantes obras universais e por suas belíssimas adaptações literárias. LIVRO PREFERIDO: “Fábulas.” 

10 - CLARICE LISPECTOR

Pela maneira como explorou as camadas mais profundas da consciência humana, buscando nela o sentido de sua própria existência; pela forma metafísica com que imbuiu suas obras, não fugindo porém da realidade que a cercava; pela maestria com que penetrou no interior de suas personagens, levando a eles o seus próprios dilemas pessoais; enfim, por sua ousadia em extrapolar a normalidade do cotidiano, mostrando que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. LIVRO PREFERIDO: “Laços de Família”.


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Por Iba Mendes, em São Paulo, 20/09/2023.

9/16/2023

Seleção de Poemas (Poesia), de Raul de Leoni

 


SELEÇÃO DE POEMAS

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POEMAS DIVERSOS
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ODE A UM POETA MORTO

À memória de Olavo BiIac

 

Semeador de harmonia e de beleza

Que num glorioso túmulo repousas,

Tua alma foi um cântico diverso,

Cheio da eterna música das cousas:

Uma voz superior da Natureza

E uma ideia sonora do Universo!

 

Onde passaste, ao longo das estradas,

Linhas de imagens rútilas e vivas,

Em filigrana,

Foram tecendo, como o olhar das fadas,

Nas mais nobres e belas perspectivas,

O panorama dos ideais da Terra

E a ondulante paisagem da alma humana.

 

Toda a emoção, que anda nas cousas, fala,

Nos seus diversos tons e reflexos e cores,

Pela tua palavra irisada de opala,

Feita de radiações e finas tessituras:

Desde a vida sutil da borboleta

À alma leve das águas e das flores

À exaltação do Sol e ao sonho das criaturas:

Toda a sensualidade esparsa do Planeta.

 

Freme em tua arte o sangue de Dionisos,

Diluído nas virtudes apolíneas;

E do seu seio voluptuoso chovem

Alvas formas pagãs, ardentes frisos,

Baixos-relevos, camafeus, sanguíneas,

Numa palpitação de carne jovem.

 

Desfolhando um esplêndido destino,

A tua mão teve, por sentimento,

A sutileza platônica e a doçura

De um florentino do Renascimento,

Que, atormentado de ímpetos românticos,

Trabalhasse em esmalte do Piemonte,

Contendo no cinzel lascivo e fino

O sonho capitoso de Anacreonte

E o lirismo sensual do Cântico dos Cânticos.

 

Vieste de longe para longe. A tua

Alma encarnou-se em outras entidades,

Em outros povos, tempos e países,

E, deslumbrante, continua,

Plástica, móvel, irisada e nua,

A longa emigração pelas idades,

Deixando atrás de si seus frutos e raízes.

 

Foste o Homem de sempre, no prestígio

De poeta sensualista, atravessando as eras,

Por toda parte encontro o teu vestígio:

Um dia, na Índia védica, sonhando

No limiar das eternas primaveras,

– As mãos cheias de rosas e ametistas –

Fazes oblatas líricas e votos

Aos poderosos gênios avatares

E escreves os teus poemas animistas

Na folha dos nelumbos e dos lótus,

Na flor sonâmbula dos nenúfares...

E os teus versos, nos quais um grande sonho abranges,

Vão descendo a cantar na corrente do Ganges.

 

Depois, pastor na Argólida ou no Epiro,

Vivendo entre os rebanhos, em retiro,

Ao luar, sobre as montanhas, passo a passo

Vais contando as estrelas pelo espaço,

E a sonata sutil da tua avena

Tem o sabor do favo das abelhas

E a melodia simples e serena

Da alma dócil e errante das ovelhas.

 

Mais tarde, na Tessália, entre as selvas e os rios,

Companheiro dos sátiros vadios,

Modulas o teu canto surpreendente,

E vais buscar o som das tuas rimas

No intermezzo das fontes, ao nascente,

Na canção das águas frescas,

Na orquestração nostálgica dos ventos,

No tropel dos centauros truculentos,

Nas gargalhadas faunescas,

Na púrpura radiante das vindimas.

 

Mal doura o sol a folha das videiras

E ouves o ruído das primeiras frautas,

Sais a espreitar, horas e horas,

Sobre a areia de prata das ribeiras,

As oréades trêfegas e incautas,

De braços entrelaçados,

Urdindo a teia de ouro das auroras,

Na fantasmagoria dos bailados.

 

Reapareces, depois de vidas tantas,

Com o mesmo coração sonoro e imenso,

Dentro das cortes bíblicas e cantas,

Na harpa esguia e ritual, entre espirais de incenso,

As vitórias dos reis e as searas benditas,

As lendas do Jordão e o olhar das moabitas.

 

Voltas ainda à Grécia, onde pertences

Ao povo e és o poeta da cidade.

Honras a velha raça dos rapsodos;

A tua voz tem a sublimidade

Do perfume dos parques atenienses;

E é uma expressão da pátria e o evangelho de todos.

Trazes mirtos e pâmpanos na fronte;

Entoas hinos a Febus

E bailas, com Anacreonte,

No arabesco da ronda dos éfebos.

 

Depois, em Mitilene, és o único homem

Nessa ilha extravagante das mulheres.

Lá os epitalâmios que proferes,

Entre ruídos de crótalos e taças,

Sobem no ar e se consomem;

Despertam nossos desejos,

E consegues possuir para os teus beijos

A própria Safo numa noite – e passas.

 

Vais a Roma, no vértice do Império,

Onde a predileção do César te conforta.

Dão-te em Tíbure estâncias e domínios;

Vais a Capri na corte de Tibério;

Instalas teu palácio no Aventino;

Tens eunucos etíopes à porta

E liteiras de estofo damasquino.

És a alma delirante dos triclínios;

Exortas os circenses sobre vícios;

Cantas no banho azul das cortesãs cesáreas;

És íntimo nos tálamos patrícios,

Onde os teus versos sacros e profanos

São guardados nas urnas legendárias

Em custosos papiros africanos.

 

Mais tarde, já na idade alexandrina,

De novo, a terra helênica conquistas,

E, poeta irônico e brando,

No tom fresco e loução dos idilistas,

Passas cantando

As canções que Teócrito te ensina.

 

Revejo-te, depois, indiferentemente,

Em Córdoba, em Bagdá, quase em segredo,

No teu destino ideal de citaredo:

Cantor do califado, entre os tesouros

Do Islamismo e os mistérios do Oriente.

Dormes no harém real e vais às guerras.

Continuando de seres, entre os mouros,

O mesmo de outro tempo em outras terras.

 

Na Germânia feudal encontras nas distâncias,

Um bando de harmonias que comunguem

Com o teu coração de poeta heleno.

Murmura-te no ouvido, em ressonâncias,

A legenda pagã dos “Niebelungen”.

És todo o amor das castelãs do Reno

E a tua voz de “minnesinger” se ergue

Ora veemente e funda, ora em trêmulos suaves:

Com “Tannhäuser” visita “Venusberg”

E canta nos castelos dos margraves.

 

Mais adiante,

Renasces na Florença azul da “Senhoria”.

Florença eleva na canção dos sinos

A sua alma de Vênus e Maria.

É um sonho de amor nos Apeninos.

A cidade das flores e dos poetas,

Das paixões elegantes e discretas,

Das fontes, dos jardins e das duquesas,

Das obras-primas e das sutilezas.

É todo um povo amável que se anima

E que a amar e a sorrir, da alvorada ao sol posto,

Faz da Vida uma obra-prima

De sensibilidade e de bom gosto...

 

Há guirlandas votivas,

De acantos e de louros pelas ruas!

O Grande Pã voltou! As formas vivas

Da Grécia, emergem, fúlgidas e nuas!

Nas casas senhoriais e nas vilas burguesas,

Toda a gente, animada de surpresas,

Aprende o homérico idioma,

Entretém-se de Erasmo e de Bocácio.

De humanistas e letrados,

E dos últimos mármores achados

Sob a poeira católica de Roma.

 

Nos belvederes do Arno andam as grandes damas:

Smeralda, Lucrezia, Simonetta,

Entre rosas, sorrisos e epigramas...

Botticelli olha o céu azul violeta;

Lê-se Platão nos templos: e eu te vejo,

Sereno e lindo,

Diante do “Ponte-Vecchio”, num cortejo,

Dizendo aos príncipes sonetos de ouro

E Lourenço de Médicis te ouvindo!

 

Compões ainda com teu gênio afoito,

Na forma antiga que se cristaliza,

Certos versos do século dezoito,

Quando Watteau pintava, em plena primavera,

O “Embarque” para Citera

E Rousseau escrevia a Nova Heloísa.

 

Poeta cosmopolita, alma moderna,

Com Leconte e Banville, em Paris de setenta,

Buscas nas viagens teus motivos de arte,

Fazes o inverno em Nice e o verão em Lucerna

E a tua sombra cíclica se ostenta

Nos salões de Matilde Bonaparte.

 

***

 

Na amplitude geral do teu abraço:

– Fora do Tempo e do Espaço,

Na Humanidade e no Mundo –

Vejo-te sempre presente

Onde há um homem que sente

Que a vida é um sentimento esplêndido e profundo!

As almas como a tua a quem n’as fite

Transmitem a emoção da vida soberana.

 

Seja onde for se pode compreendê-las,

Porque, sem fim, sem pátria e sem limite,

Têm no conceito eterno da alma humana

A universalidade das estrelas.

Se a Humanidade fosse feita delas,

Na dúvida em que não cabe

E em que se estreita,

Talvez não fosse mais feliz, quem sabe?

– Mas seria mais bela e mais perfeita...

 

Dignificaste a Espécie, na nobreza

Das grandes sensações de Harmonia e Beleza;

Disseste a Glória de viver, e, agora,

O teu eco a cantar pelos tempos em fora,

Dirá aos homens que o melhor destino,

Que o sentido da Vida e o seu arcano,

É a imensa aspiração de ser divino,

No supremo prazer de ser humano!

 

 

 

PÓRTICO

 

Alma de origem ática, pagã,

Nascida sob aquele firmamento

Que azulou as divinas epopeias,

Sou irmão de Epicuro e de Renan,

Tenho o prazer sutil do pensamento

E a serena elegância das ideias...

 

Há no meu ser crepúsculos e auroras,

Todas as seleções do gênio ariano,

E a minha sombra amável e macia

Passa na fuga universal das horas,

Colhendo as flores do destino humano

Nos jardins atenienses da Ironia...

 

Meu pensamento livre, que se achega

De ideologias claras e espontâneas,

É uma suavíssima cidade grega,

Cuja memória

É uma visão esplêndida na história

Das civilizações mediterrâneas.

 

Cidade da Ironia e da Beleza,

Fica na dobra azul de um golfo pensativo,

Entre cintas de praias cristalinas,

Rasgando iluminuras de colinas,

Com a graça ornamental de um cromo vivo:

Banham-na antigas águas delirantes,

Azuis, caleidoscópicas, amenas,

Onde se espelha, em refrações distantes,

O vulto panorâmico de Atenas...

 

Entre os deuses e Sócrates assoma

E envolve na amplitude do seu gênio

Toda a grandeza grega a que remonto;

Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,

Das cidades ilustres do Tirreno

Ao mistério das ilhas do Helesponto...

 

Cidade de virtudes indulgentes,

Filha da Natureza e da Razão,

– Já eivada da luxúria oriental, –

Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,

Confia na verdade da Ilusão

E vive na volúpia e na sabedoria,

Brincando com as ideias e com as formas...

 

No passado pensara muito e, até,

Tentara penetrar o mundo das essências,

Sofrera muito nessa luta inútil,

Mas, por fim, foi perdendo a íntima fé

No pensamento, e agora pensa ainda,

Numa serenidade indiferente,

Mas se conforta muito mais, talvez,

Na alegria das belas aparências,

Que na contemplação das ideias eternas.

 

Cidade amável em que a vida passa,

Desmanchando um colar de reticências:

Tem a alma irônica das decadências

E as cristalizações de um fim de raça...

 

Conserva na memória dos sentidos

A expressão das origens seculares,

E entre os seus habitantes há milhares

Descendentes dos deuses esquecidos;

Que os demais todos têm, inda bem vivo,

Na nobre geometria do seu crânio

O mais puro perfil dólico-louro...

 

Os deuses da cidade já morreram...

Mas, amando-os ainda, alegremente,

Ela os tem no desejo e na lembrança;

E foi a ela (é grande o seu destino!)

Que Julião, o Apóstata, expirando,

Mandou a sua última esperança.

Pela boca de Amniano Marcelino...

 

Cidade de harmonias deliciosas

Em que, sorrindo à ronda dos destinos,

Os homens são humanos e divinos

E as mulheres são frescas como as rosas...

 

Jardins de perspectivas encantadas

– Hermas de faunos nas encruzilhadas –

Abrem ao ouro do sol leques de esguias

Alamedas: efebos, poetas, sábios

Cruzam-nas, dialogando, suavemente,

Sobre a mais meiga das filosofias,

Fímbrias de taças lésbias entre os lábios

E emoções dionisíacas nos olhos...

 

Como são luminosos seus jardins

De alegres coloridos musicais!

No florido beiral dos tanques, debruados

De rosas e aloés e anêmonas e mirtos,

Bebem pombas branquíssimas e castas,

E finamente límpidas e trêmulas

Irisadas, joviais e transparentes,

As águas aromáticas, sorrindo,

Tombam da boca austera dos tritões,

Garganteando furtivos ritornelos...

 

Dentro a moldura em fogo das auroras,

Pelas praias de opala e de ouro, antigas,

Na maciez das areias, em coréias,

Bailam rondas sadias e sonoras

De adolescentes e de raparigas,

Copiando o friso das Panatenéias...

 

Na orla do mar, seguindo a curva ondeante

Do velho cais esguio e deslumbrante,

Quando o horizonte e o céu, em lusco-fusco

Somem na porcelana dos ocasos,

Silhuetas fugitivas

De lindas cortesãs de Agrigento e de Chipre,

Como a sonhar, olham, perdidamente,

A volta das trirremes e das naves,

Que lhes trazem o espírito do Oriente,

Em pedrarias, lendas e perfumes...

 

Então, ondulam no ar diáfano e fluente

Suavidades idílicas, acordes

De avenas, cornamusas e ocarinas

Que vêm de longe, da alma branca dos pastores,

Trazidas pelos ventos transmontanos

E espiritualizadas em surdinas...

 

Terra que ouviu Platão antigamente...

Seu povo espiritual, lírico e generoso,

Que sorri para o mundo e para os seus segredos,

Não ouve mais o oráculo de Elêusis,

Mas ama ainda, quase ingenuamente,

A saudade gloriosa dos seus deuses,

Nas canções ancestrais dos citaredos

E nos epitalâmios do nascente...

 

Seus filhos amam todas as ideias,

Na obra dos sábios e nas epopeias;

Nas formas límpidas e nas obscuras,

Procurando nas cousas entendê-las

– Fugas de sentimento e sutileza –

E as entendem na própria natureza,

Ouvindo Homero no rumor das ondas,

Lendo Platão no brilho das estrelas...

 

Seus poetas, homens fortes e serenos,

Fazem uma arte régia, aguda e fina

Com a doçura dos últimos helenos

Estilizada em ênfase latina...

 

E os velhos da cidade, suaves poentes

De radiantes retores e sofistas,

Passam, olhando as cousas e as criaturas,

Com piedosos sorrisos indulgentes,

Em que longas renúncias otimistas

Se vão abrindo, entre ironias puras,

Sobre todos os sonhos do Universo...

 

Revendo-se num século submerso,

Meu pensamento, sempre muito humano,

É uma cidade grega decadente,

Do tempo de Luciano,

Que, gloriosa e serena,

Sorrindo da palavra nazarena,

Foi desaparecendo lentamente,

No mais suave crepúsculo das cousas...

 

 

FLORENÇA

 

Manhã de outono...

Través a gaze fluida da neblina,

Teu panorama, trêmulo, hesitante,

Se vai furtivamente desenhando,

Na alva doçura de uma renda fina...

 

Do florido balcão de San Miniato,

Como num cosmorama imaginário,

Vejo aos poucos despir-se o teu cenário,

Dentro de um sereníssimo aparato...

Em tons de madrepérola cambiante,

Ao reflexo de um íris fugidio,

Sob o ar transparente e o céu macio,

Abre-se em luz a concha colorida

Do vale do Arno...

 

Longe onde a névoa azul se dilui sobre as linhas

Amáveis das colinas,

Em caprichosas curvas serpentinas

De oliveiras em flor, de olmeiros e de vinhas,

De pinheiros reais e amendoeiras tranquilas,

Fiésole, bucólica e galante

Mostra, numa expressão fresca de tintas,

O esmalte senhorial das suas vilas

E o cromo pastoril das suas quintas,

Dentro dos bosques do Decameron...

 

Surgem zimbórios em mosaico, perfis duros

De arrogantes palácios gibelinos,

Silhuetas de basílicas votivas,

Torres mortas e suaves perspectivas

E o coleio longínquo dos teus muros,

Recortando a moldura azul dos Apeninos...

 

Teus sinos cantam num prelúdio lento

A elegia das horas imortais;

É a canção do teu próprio sentimento

Na voz sonâmbula das catedrais...

 

E é, então, que transponho as tuas portas

E ouvindo as tuas ruínas pensativas

Sinto-me em corpo e espírito em Florença:

A mais humana das cidades vivas,

A mais divina das cidades mortas!...

 

Florença, ó meu retiro espiritual!

Suave vinheta do meu pensamento!

Sempre te amei com o mesmo afeto humano

Dês que tu eras a comuna guelfa

Idealista, rebelde e sanguinária,

Até o dia

Em que tua alma, flor litúrgica e sombria

Do espírito cristão,

Fugindo do “Jardim das Escrituras”,

Foi, para ver a luz de outras alturas,

Sentar-se no “Banquete de Platão”!

 

Nobre e amável Florença!

Doce filha de Cristo e de Epicuro!

Flor de Volúpia e de Sabedoria!

Na tua alma de Vênus e Maria

Há uma estranha harmonia ambígua, indescritível:

A castidade melancólica dos lírios

E a graça afrodisíaca das rosas;

A mansuetude ingênua de Fra Angélico!

E a alegria picante de Bocácio!

Amo-te assim, indefinida e vária!

Casta e viciosa – gótica e pagã,

Harmoniosa entre a Acrópole e o Calvário.

 

Ó Pátria sereníssima

Das formas puras, das ideias claras;

Das igrejas, das fontes, dos jardins;

Dos mosaicos, das rendas, dos brocados;

Dos coloristas límpidos e meigos;

Das almas furta-cor e da graça perversa;

Da discreta estesia dos requintes;

Dos vícios raros, das perversões elegantes;

Dos venenos sutis e dos punhais lascivos;

Deliciosa no crime e na virtude,

Onde a existência foi uma bela atitude

De sensibilidade e de bom gosto

E passou pela História, assim, na ronda viva

Meditativa e brilhante

De uma “Fête Galante”!...

 

***

 

Trago-te a minha gratidão latina

Porque foi no teu seio que se fez

Toda a ressurreição da Vida luminosa:

Ó Florença! Florença!

A mais humana das cidades vivas!

A mais divina das cidades mortas!...

 

 

MAQUIAVÉLICO

 

Há horas em que minha alma sente e pensa,

Num tempo nobre que não mais se avista,

Encarnada num príncipe humanista,

Sob o Lírio Vermelho de Florença.

 

Vejo-a, então, nessa histórica presença,

Harmoniosa e sutil, sensual e egoísta,

Filha do idealismo epicurista,

Formada na moral da Renascença.

 

Sinto-a, assim, flor amável do Helenismo,

Virtuose – restaurando os velhos mapas

Do gênio antigo, entre exegeta e artista.

 

E ao mesmo tempo, por diletantismo,

Intrigando a política dos papas,

Com a perfídia elegante de um sofista...

 

 

NOTURNO

 

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,

Sob a lenda encantada do luar...

 

Os pinheiros pensavam cousas longas,

Nas alturas dormentes e desertas...

O aroma nupcial dos jasmins delirantes,

Diluindo um cheiro acre de resinas,

Espiritualizava e adormecia

O ar meigo e silencioso...

A ronda dos espíritos noturnos,

Em medrosos rumores,

Gemia entre os ciprestes e os loureiros...

Na penumbra dos bosques, o luar

Entreabria clareiras encantadas,

Prateando o verde-malva das latadas

E as doces perspectivas do pomar...

 

As nascentes sonhavam, em surdina,

Numa tonalidade cristalina,

Monótonos murmurinhos,

Gorgolejos de águas frescas...

 

Sobre a areia de prata dos caminhos,

A sombra espiritual dos eucaliptos,

Bulindo ao sopro tímido da aragem,

Projetava ao luar desenhos indecisos

Ágeis bailados leves de arabescos,

Farândolas de sombras fugitivas...

 

E das perdidas curvas das estradas,

De paragens distantes

Como fantasmas de serenatas,

Ressonâncias sonâmbulas traziam

A longa, a pungentíssima saudade

De cavatinas e mandolinatas...

 

Lembro-me bem, quando em quando,

Entre as sebes escondidas,

Um insidioso grilo impertinente,

Roendo um som estridente,

Arranhava o silêncio...

 

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,

Sob a lenda encantada do luar...

Eu era bem criança e, já possuindo

A sensibilidade evocadora

De um poeta de símbolos profundos,

Solitário e comovido,

No minarete do solar paterno,

Com os pequeninos olhos deslumbrados,

Passei a noite inteira, o olhar perdido,

No azul sonoro, o azul profundo, o azul eterno

Dos eternos espaços constelados...

 

Era a primeira vez que eu contemplava o mundo,

Que eu via face a face o mistério profundo

Da fantasmagoria universal

No prodígio da noite silenciosa.

 

Era a primeira vez...

E foi aí, talvez,

Que começou a história atormentada

Da minha alma, curiosa dos abismos,

Inquieta da existência e doente do Além...

Filha da maldição do Arcanjo rebelado...

 

Sim, que foi nessa noite, não me engano,

– Noite que nunca mais esquecerei –

Que – a alma ainda em crisálida, – velando

No minarete do solar paterno,

Diante da noite azul – eu senti e pensei

O meu primeiro sofrimento humano

E o meu primeiro pensamento eterno...

 

Como fora do Tempo e além do Espaço,

Ser sem princípio, espírito sem fim,

Sofria toda a humanidade em mim,

Nessa contemplação imponderável!

 

Já nem ouvia o trêmulo compasso

Das horas que fugiam pela noite,

Que os olhos soltos pela imensidade,

Numa melancolia deslumbrada,

Imaginando cousas nunca ditas,

Todo eu me eterizava e me perdia

Na ideia das esferas infinitas,

Na lenda universal das distâncias eternas...

 

No parque antigo, a noite era afetuosa e mansa,

Sob a lenda encantada do luar...

 

Foi nessa noite antiga

Que se desencantou para a vertigem

A suave virgindade do meu ser!

 

Já a lua transmontava as cordilheiras...

Cães ladravam ao longe, em sobressalto;

No pátio das mansões, na granja das herdades,

O cântico dos galos estalava,

Desoladoramente pelos ares,

Acordando as distâncias esquecidas...

 

E, então, num silencioso desencanto,

Eu fui adormecendo lentamente,

Enquanto

Pela fria fluidez azul do espaço eterno

Em reticências trêmulas, sorria

A ironia longínqua das estrelas...

 

 

HISTÓRIA DE UMA ALMA


I

ADOLESCÊNCIA

 

Eu era uma alma fácil e macia,

Claro e sereno espelho matinal

Que a paisagem das cousas refletia,

Com a lucidez cantante do cristal.

 

Tendo os instintos por filosofia,

Era um ser mansamente natural,

Em cuja meiga ingenuidade havia

Uma alegre intuição universal.

 

Entretinham-me as ricas tessituras

Das lendas de ouro, cheias de horizontes

E de imaginações maravilhosas.

 

E eu passava entre as cousas e as criaturas,

Simples como a água lírica das fontes

E puro como o espírito das rosas...

 

 

II

MEFISTO

 

Espírito flexível e elegante,

Ágil, lascivo, plástico, difuso,

Entre as cousas humanas me conduzo

Como um destro ginasta diletante.

 

Comigo mesmo, cínico e confuso,

Minha vida é um sofisma espiralante;

Teço lógicas trêfegas e abuso

Do equilíbrio da Dúvida flutuante.

 

Bailarino dos círculos viciosos,

Faço jogos sutis de ideias no ar

Entre saltos brilhantes e mortais,

 

Com a mesma petulância singular

Dos grandes acrobatas audaciosos

E dos malabaristas de punhais...

 

III

CONFUSÃO

 

Alma estranha esta que abrigo,

Esta que o Acaso me deu,

Tem tantas almas consigo,

Que eu nem sei bem quem sou eu.

 

Jamais na Vida consigo

Ter de mim o que é só meu;

Para supremo castigo,

Eu sou meu próprio Proteu.

 

De instante a instante, a me olhar,

Sinto, num pesar profundo,

A alma a mudar... a mudar...

 

Parece que estão, assim,

Todas as almas do Mundo,

Lutando dentro de mim...

 

IV

SERENIDADE

 

Feriram-te, alma simples e iludida.

Sobre os teus lábios dóceis a desgraça

Aos poucos esvaziou a sua taça

E sofreste sem trégua e sem guarida.

 

Entretanto, à surpresa de quem passa,

Ainda e sempre, conservas para a Vida,

A flor de um idealismo, a ingênua graça

De uma grande inocência distraída.

 

A concha azul envolta na cilada

Das algas más, ferida entre os rochedos,

Rolou nas convulsões do mar profundo;

 

Mas inda assim, poluída e atormentada,

Ocultando puríssimos segredos,

Guarda o sonho das pérolas no fundo.

 


FELICIDADE


I

Sombra do nosso Sonho ousado e vão!

De infinitas imagens irradias

E, na dança da tua projeção,

Quanto mais cresces, mais te distancias...

 

A alma te vê à luz da posição

Em que fica entre as cousas e entre os dias:

És sombra e, refletindo-te, varias,

Como todas as sombras, pelo chão...

 

O Homem não te atingiu na vida instável

Porque te embaraçou na filigrana

De um ideal metafísico e divino;

 

E te busca na selva impraticável,

Ó Bela Adormecida da alma humana!

Trevo de quatro folhas do Destino!...


II

Basta saberes que és feliz, e então

Já o serás na verdade muito menos:

Na árvore amarga da meditação,

A sombra é triste e os frutos têm venenos.

 

Se és feliz e o não sabes, tens na mão

O maior bem entre os mais bens terrenos

E chegaste à suprema aspiração,

Que deslumbra os filósofos serenos.

 

Felicidade... Sombra que só vejo,

Longe do Pensamento e do Desejo,

Surdinando harmonias e sorrindo,

 

Nessa tranquilidade distraída,

Que as almas simples sentem pela Vida,

Sem mesmo perceber que estão sentindo...

 

 

 

CREPUSCULAR

 

Poente no meu jardim... O olhar profundo

Alongo sobre as árvores vazias,

Essas em cujo espírito infecundo

Soluçam silenciosas agonias.

 

Assim estéreis, mansas e sombrias,

Sugerem à emoção com que as circundo

Todas as dolorosas utopias

De todos os filósofos do mundo.

 

Sugerem... Seus destinos são vizinhos:

Ambas, não dando frutos, abrem ninhos

Ao viandante exânime que as olhe.

 

Ninhos, onde vencidas de fadiga,

A alma ingênua dos pássaros se abriga

E a tristeza dos homens se recolhe...

 

 

HISTÓRIA ANTIGA

 

No meu grande otimismo de inocente,

Eu nunca soube por que foi... um dia,

Ela me olhou indiferentemente,

Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

 

Desde então, transformou-se, de repente,

A nossa intimidade correntia

Em saudações de simples cortesia

E a vida foi andando para a frente...

 

Nunca mais nos falamos... vai distante...

Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante

Em que seu mudo olhar no meu repousa,

 

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,

Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,

Mas que é tarde demais para dizê-la... 

 

 

ARTISTA

 

Por um destino acima do teu Ser,

Tens que buscar nas cousas inconscientes

Um sentido harmonioso, o alto prazer

Que se esconde entre as formas aparentes.

 

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder

Nem n’o pões na tua alma, nem n’o sentes,

Ao sonho de outras almas diferentes...

 

Vives humilde e inda ao morrer ignoras

O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)

Mas não faz mal, meu bômbix inocente:

 

Fia na primavera, entre as amoras,

A tua seda de ouro, que nem usas

Mas que faz tanto bem a tanta gente...

 

 

INGRATIDÃO

 

Nunca mais me esqueci!... Eu era criança

E em meu velho quintal, ao sol-nascente,

Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,

Uma linda amendoeira adolescente.

 

Era a mais rútila e íntima esperança...

Cresceu... cresceu... e, aos poucos, suavemente,

Pendeu os ramos sobre um muro em frente

E foi frutificar na vizinhança...

 

Daí por diante, pela vida inteira,

Todas as grandes árvores que em minhas

Terras, num sonho esplêndido semeio,

 

Como aquela magnífica amendoeira,

Eflorescem nas chácaras vizinhas

E vão dar frutos no pomar alheio...

 

 

 

 

 

TORRE MORTA DO OCASO

 

Esguia torre ascética, esquecida

Na bruma de um crepúsculo profundo!

És, no mais triste símbolo do mundo,

A renúncia tristíssima da Vida!

 

Tua existência é um pensamento fundo

Levantado na pedra adormecida:

Bem sentes quanto é inútil e infecundo

O esforço na vertigem da subida!...

 

Como és profética de longe... quando

Na moldura do poente de ouro e rosa,

Interpretando todos os destinos,

 

Vais por todos os ventos espalhando

Tua filosofia dolorosa,

Na balada sonâmbula dos sinos!...

 

 

MELANCOLIA

 

Poente!

Estas horas que estão passando, surdamente,

Nunca mais voltarão no tempo imaginário:

No jardim solitário,

Estão-se desfolhando, ingloriamente,

Tantas rosas divinas, a sonhar;

Rosas que poderiam debruar

Leitos de fadas, em guirlandas luminosas,

Emoldurar cabeças de poetas

E que jamais florescerão ante os meus olhos...

Por que, então,

Deixá-las, numa morte inútil e secreta

Esfolharem-se, assim anônimas e virgens,

Na sombra do jardim

Sobre a tarde serena?!...

Ah! se eu fosse colhê-las para mim!...

 

Não vale a pena!

 

***

 

Poente!

Estas horas que estão passando surdamente

Nunca mais voltarão no tempo imaginário!

Na sombra do meu ser profundo e solitário

Tantas ideias límpidas, bailando,

Estão dizendo cousas infinitas...

Ideias que seriam minha história,

Minha imortalidade, minha glória,

E que por certo eu nunca mais encontrarei...

Por que, então,

Vê-las morrer, assim, sem voz, sem serem ditas?!...

Ah! se eu as animasse em palavras eternas,

De uma vida magnífica e serena!...

 

Não vale a pena!

 

 

E O POETA FALOU...

 

Afinal, tudo que há de mais nobre e mais puro

Neste mundo de sombras e aparências

Fui eu quem revelou ou concebeu...

 

Fui a primeira luz neste planeta obscuro!

Fui a suprema voz de todas as consciências!

Fui o mais alto intérprete de Deus!

 

Dei alma à Natureza indiferente,

Inteligência às cousas, sentimentos

Às forças cegas e automáticas do Cosmos!...

 

Acompanhei e dirigi os povos

Na sua eterna migração para o Poente;

Levantei os primeiros monumentos

E os primeiros impérios milenários:

Teci as grandes lendas tutelares,

Despertei na memória das criaturas

A sua antiga tradição divina,

Criando as religiões, as fábulas, os mitos

Para iludir a dor universal;

Abri os horizontes infinitos;

Bebi o néctar das primeiras taças;

Plasmei os altos símbolos humanos;

Sutilizei o instinto e imaginei o amor;

Fui a força ideal das civilizações!

O gênio transfigurador da História!

O espírito anônimo dos séculos!

E, harmonioso, profético, profundo,

Passei humanizando as cousas pelo mundo,

Para divinizar os homens sobre a Terra!

 

 

SÁTIRA

 

Também nós, seres raros, de divinas

Intenções e humaníssimas virtudes,

Levando os nossos sonhos para a frente,

– Com a nossa íntima luz desconhecida –

Vamos fazendo cotidianamente,

Pelo mundo das almas pequeninas,

Nossas “Viagens de Gulliver” na Vida.

 

Lilliput... em farândolas grotescas

Os anõezinhos trêfegos, daninhos,

Diabólicos fantoches hilariantes,

Formigando nas estradas,

Bailando pelos caminhos,

Imaginam ridículas ciladas,

Insidiosas e inúteis emboscadas,

Ao passo distraído e imenso dos gigantes...

 

Eles passam... seu vulto enche os espaços,

E toda Lilliput alvoroçada,

– Simples despeitos de anão –

Erguendo em gestos maus todos os braços,

Deita impropérios, maldições, ameaças,

Mas eles vão e vêm e vêm e vão,

Num desprezo triunfal,

Com essa tolerância azul das grandes raças,

Tão ironicamente e mansamente,

Que os coitados pigmeus, não lhes tocando

Sequer o calcanhar, contentam-se, afinal,

Com pisar-lhes a sombra indiferente...

 

A calúnia do anão, pisar as sombras!...

 

“Por que será, então, que tudo é tão pequeno

Nessa cidadezinha universal?!

As paisagens, as almas, o ideal,

As figuras, a vida, os sentimentos?!”

 

E, assim pensando, com piedade e com doçura,

Os gigantes, de espírito sereno,

Vão passando, sorrindo, e repassando

Por essa humanidade em miniatura...

 

Sim, porque é mesmo assim e sempre foi assim:

Quem vai pelo mistério das estradas,

Rumo ao país dos deuses e das fadas,

Por mais que evite ou que lute,

Tem de sempre passar por Lilliput,

Nessas “Viagens de Gulliver” da Vida...

 

 

A HORA CINZENTA

 

Desce um longo poente de elegia

Sobre as mansas paisagens resignadas;

Uma humaníssima melancolia

Embalsama as distâncias desoladas...

 

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria

Abençoa a alma ingênua das estradas;

Andam surdinas de anjos e de fadas,

Na penumbra nostálgica, macia...

 

Espiritualidades comoventes

Sobem da terra triste, em reticência,

Pela tarde sonâmbula, imprecisa...

 

Os sentidos se esfumam, a alma é essência

E entre fugas de sombras transcendentes,

O Pensamento se volatiliza...

 

 

PRUDÊNCIA

 

Não aprofundes nunca, nem pesquises

O segredo das almas que procuras:

Elas guardam surpresas infelizes

A quem lhes desce às convulsões obscuras.

 

Contenta-te com amá-las, se as bendizes,

Se te parecem límpidas e puras,

Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,

Há sempre um gosto amargo nas raízes...

 

Trata-as assim, como se fossem rosas,

Mas não despertes o sabor selvagem

Que lhes dorme nas pétalas tranquilas,

 

Lembra-te dessas flores venenosas!

As abelhas cortejam de passagem,

Mas não ousam prová-las nem feri-las...

 

 

AOS QUE SONHAM

 

Não se pode sonhar impunemente

Um grande sonho pelo mundo afora,

Porque o veneno humano não demora

Em corrompê-lo na íntima semente...

 

Olhando no alto a árvore excelente,

Que os frutos de ouro esplêndidos enflora,

O Sonhador não vê, e até ignora

A cilada rasteira da Serpente.

 

Queres sonhar? Defende-te em segredo,

E lembra, a cada instante e a cada dia,

O que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,

O Calvário do Filho de Maria

E a cicuta que Sócrates bebeu!

 

 

PUDOR

 

Quando fores sentindo que o fulgor

Do teu Ser se corrompe e a adolescência

Do teu gênio desmaia e perde a cor,

Entre penumbras em deliquescência,

 

Faze a tua sagrada penitência,

Fecha-te num silêncio superior,

Mas não mostres a tua decadência

Ao mundo que assistiu teu esplendor!

 

Foge de tudo para o teu nadir!

Poupa ao prazer dos homens o teu drama!

Que é mesmo triste para os olhos ver

 

E assistir, sobre o mesmo panorama,

A alegoria matinal subir

E a ronda dos crepúsculos descer...

 

 

UNIDADE

 

Deitando os olhos sobre a perspectiva

Das cousas, surpreendo em cada qual

Uma simples imagem fugitiva

Da infinita harmonia universal,

 

Uma revelação vaga e parcial

De tudo existe em cada cousa viva:

Na corrente do Bem ou na do Mal

Tudo tem uma vida evocativa.

 

Nada é inútil; dos homens aos insetos

Vão-se estendendo todos os aspectos

Que a ideia da existência pode ter;

 

E o que deslumbra o olhar é perceber

Em todos esses seres incompletos,

A completa noção de um mesmo ser...

 

 

LEGENDA DOS DIAS

 

O Homem desperta e sai cada alvorada

Para o acaso das cousas... e, à saída,

Leva uma crença vaga, indefinida,

De achar o Ideal n’alguma encruzilhada...

 

As horas morrem sobre as horas... Nada!

E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida

Volta, pensando: “Se o Ideal da Vida

Não veio hoje, virá na outra jornada...”

 

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,

Mais ele avança, mais distante é o fim,

Mais se afasta o horizonte pela esfera;

 

E a Vida passa... efêmera e vazia:

Um adiamento eterno que se espera,

Numa eterna esperança que se adia...

 

 

INSTINTO

 

Glória ao Instinto, a lógica fatal

Das cousas, lei eterna da criação,

Mais sábia que o ascetismo de Pascal,

Mais bela do que o sonho de Platão!

 

Pura sabedoria natural

Que move os seres pelo coração,

Dentro da formidável ilusão,

Da fantasmagoria universal!

 

És a minha verdade, e a ti entrego,

Ao teu sereno fatalismo cego

A minha linda e trágica inocência!

 

Ó soberano intérprete de tudo,

Invencível Édipo, eterno e mudo

De todas as esfinges da Existência!...

 

 

PLATÔNICO...

 

As ideias são seres superiores,

– Almas recônditas de sensitivas –

Cheias de intimidades fugitivas,

De escrúpulos, melindres e pudores.

 

Por onde andares e por onde fores,

Cuidado com essas flores pensativas,

Que têm pólen, perfume, órgãos e cores

E sofrem mais que as outras cousas vivas.

 

Colhe-as na solidão... são obras-primas,

Que vieram de outros tempos e outros climas

Para os jardins de tua alma que transponho,

 

Para com elas teceres, na subida,

A coroa votiva do teu Sonho

E a legenda imperial da tua Vida.

 

 

IMAGINAÇÃO

 

Scherazada do espírito, que rendas

Num fio ideal de verossimilhança

O Símbolo e a Ilusão, únicas prendas

Que nos vieram dos deuses como herança!

 

Transformando em alambras nossas tendas,

Na tua voz o nosso olhar alcança

As Mil e uma Noites da Esperança

E a esfera azul dos sonhos e das lendas!

 

Quando o despeito da Realidade

Nos fere, és quem de novo nos persuade,

Com teu consolo que nem sempre engana.

 

Porque, na tua esplêndida eloquência,

És o sexto sentido da Existência

E a memória divina da alma humana!

 

 

SINCERIDADE

 

Homem que pensas e que dizes o que pensas!

Se queres que entre os homens e entre as cousas

Tuas ideias vivam pelo mundo

Crê bem nelas primeiro, sofre-as bem,

Faze com que elas vivam na tua alma,

Na mais sincera intimidade do teu Ser!

 

Há ideias que na vida cultivamos,

Pela volúpia inútil de pensar,

Pela simples beleza, pela graça

Floral, pelo prazer que elas nos dão...

Por esse estado de ilusão chinesa

Em que nos adormecem a consciência:

Aquarelas efêmeras do espírito,

Paisagens meigas da imaginação,

Ideias lindas que não criam nada!

 

Elas passam, radiantes, coloridas,

Na flutuação superficial do Pensamento;

Sim, são plantas aquáticas, nelumbos

De ouro equatorial, ninféias encantadas

Pela prata dos luares sedativos,

Leves vegetações de tintas luminosas,

Sonhos das águas trêmulas que passam

– Raízes a boiar no espelho das correntes, –

Com músicas de cores pelas plumas,

Vaidades femininas pelas palmas,

Mas sem um grão de vida, sem um fruto,

Nessa esterilidade deslumbrante...

 

As ideias que criam, as ideias

Vivas que elevam religiões e impérios,

Gênios e heróis e mártires e santos;

As ideias orgânicas e eternas

Que dão nomes aos séculos, destinos

Às raças, glória aos homens, força à Vida,

Que nutrem almas e orientam povos,

Fecundam gerações e geram deuses

E que semeiam civilizações,

Essas terão que vir da nossa fonte humana,

Deitando profundíssimas raízes

No generoso espírito em que nasçam:

Terão que ser humanas, quer dizer,

Ser a nossa energia e a nossa fé,

Ser sementes recônditas, ser dores,

Sentimentos, paixões e quase instintos.

Ser vozes dos abismos transcendentes

Da consciência profunda... ser nós mesmos...

Porque as árvores mais fecundas são aquelas

Que mais fundas estão nas entranhas do solo

E mais fazem sofrer o coração da Terra...

 

 

ÁRVORE DE NATAL

 

Tarde! Estou muito triste, triste, assim

De uma tristeza imóvel e vazia...

E uma ronda de crianças esfuzia

Na aquarela chinesa do jardim...

 

Aos poucos a farândola leviana

Chega-se a mim, cerca-me ousadamente:

Inquietas larvazinhas de alma humana,

Misteriosos destinos em semente,

Vêm parar a meus pés depois – meigas violetas,

Sob a sombra de uma árvore doente.

 

Não tenho nada para dar-lhes, sou

Como um pinheiro contemplativo,

Cujos ramos dolentes não têm frutos

Que há muito um vento cruel os arrancou...

 

Mas elas pedem qualquer cousa e eu me comovo.

Eu tenho tanta pena das crianças!

Elas são todo o mundo a começar de novo

Para as mesmas incertas caminhadas,

Para o mistério das encruzilhadas;

São toda a Humanidade que renasce,

Ingênua, simples e maravilhada,

Como a primeira vez que apareceu.

 

E, então (isso é dos santos e dos sábios)

Penduro na tristeza dos meus lábios

Cousas alegres que não são minhas;

Fábulas mansas, contos de fadas,

Histórias de anjos e rainhas

E uma porção de cousas encantadas,

Que vou distribuindo pelo bando...

 

E à tarde que se vai lentamente apagando,

Na aquarela chinesa do jardim,

Semeando alegrias e esperanças –

Minha tristeza é assim uma piedosa e linda

Árvore de Natal entre as crianças...

 

 

FORÇA MALDITA

 

Eras fraco e feliz, sem meditar,

E na tua consciência vaga e obscura,

A vida, sob um luar de iluminura,

Era um conto de fadas para o olhar.

 

Um dia, um rude e pérfido avatar

Vestiu-te de uma força ingrata e impura

E sonhaste a ciclópica aventura

De o espírito das cousas penetrar.

 

Mas, ah! homem ingênuo, desde quando

Deste o primeiro passo da escalada,

Foste, como um tristíssimo Sansão,

 

Na fúria da tua obra desgraçada,

Estremecendo, aluindo, derrubando

As colunas do Templo da Ilusão!...

 

 

VIVENDO...

 

Nós, incautos e efêmeros passantes,

Vaidosas sombras desorientadas,

Sem mesmo olhar o rumo das passadas,

– Vamos andando para fins distantes...

 

Então, sutis, envolvem-nos ciladas

De pequenos acasos inconstantes,

Que vão desviando, a todos os instantes,

A linha leviana das estradas...

 

Um dia, todo o fim a que chegamos,

Vem de um nada fortuito, entretecido

Nas surpresas das horas em que vamos...

 

Para adiante! ó ingênuos peregrinos!

Foi sempre por um passo distraído

Que começaram todos os destinos...

 

 

CANÇÃO DE TODOS

 

Duas almas deves ter...

É um conselho dos mais sábios;

Uma, no fundo do Ser,

Outra, boiando nos lábios!

 

Uma, para os circunstantes,

Solta nas palavras nuas

Que inutilmente proferes,

Entre sorrisos e acenos:

A alma volúvel das ruas,

Que a gente mostra aos passantes,

Larga nas mãos das mulheres,

Agita nos torvelinhos,

Distribui pelos caminhos

E gasta, sem mais nem menos,

Nas estradas erradias,

Pelas horas, pelos dias...

 

Alma anônima e usual,

Longe do Bem e do Mal,

Que não é má nem é boa,

Mas, simplesmente, ilusória,

Ágil, sutil, diluída,

Moeda falsa da Vida,

Que vale só porque soa,

Que compra os homens e a glória

E a vaidade que reboa:

Alma que se enche e transborda,

Que não tem porquê nem quando,

Que não pensa e nem recorda,

Não ama, não crê, não sente,

Mas vai vivendo e passando

No turbilhão da torrente,

Través intricadas teias,

Sem prazeres e sem mágoas,

Fugitiva como as águas

Ingrata como as areias.

 

Alma que passa entre ápodos

Ou entre abraços, sorrindo;

Que vem e vai, vai e vem,

Que tu emprestas a todos,

Mas não pertence a ninguém.

 

Salamandra furta-cor,

Que muda ao menor rumor

Das folhas pelas devesas;

Alma que nunca se exprime,

Que é uma caixa de surpresas

Nas mãos dos homens prudentes;

Alma que é talvez um crime,

Mas que é uma grande defesa.

 

A outra alma, pérola rara,

Dentro da concha tranquila,

Profunda, eterna e tão cara

Que poucos podem possuí-la,

É alma que nas entranhas

Da tua Vida murmura

Quando paras e repousas.

A que assiste das Montanhas

As livres desenvolturas

Do panorama das cousas

Para melhor conhecê-las.

Essa que olha as criaturas,

Sem jamais comprometê-las,

Entre perdões e doçuras,

Num pudor silencioso,

Com o mesmo olhar generoso,

Com que contempla as estrelas

E assiste o sonho das flores...

 

Alma que é apenas tua,

Que não te trai nem te engana,

Que nunca se desvirtua,

Que é a voz do mundo em surdina,

Que é a semente divina

Da tua têmpera humana.

 

Alma que só se descobre

No mundo contemplativo,

Para uma lágrima nobre,

Para um heroísmo afetivo,

Nas íntimas confidências

De verdade e de beleza:

Milagre da natureza,

Transcorrendo em reticências

Num sonho límpido e honesto,

De idealidade suprema,

Ora, aflorando num gesto,

Ora, subindo num poema.

 

Fonte do Sonho, jazida

Que se esconde aos garimpeiros,

Guardando, em fundos esteiros,

O ouro da tua Vida.

 

Alma de santo e pastor,

De herói, de mártir e de homem;

A redenção interior

Das forças que te consomem,

A legenda e o pedestal

Da aspiração infinita

Que se aprofunda e se agita

No teu ser universal.

 

Alma profunda e sombria,

Que ao fechar-se cada dia,

Sob o silêncio fecundo

Das horas graves e calmas,

Te ensina a filosofia

Que descobriu pelo mundo,

Que aprendeu nas outras almas.

 

Duas almas tão diversas

Como o poente das auroras:

Uma, que passa nas horas;

Outra, que fica no tempo.

 

 

SUPERSTIÇÃO?

 

As almas, como as flores, no lugar

Em que viveram deixam, longamente,

Sua íntima essência errando no ar,

Numa vaga fluidez reminiscente...

 

Vede essas velhas casas que, a passar

Pelos olhos do tempo indiferente,

Foram o sereníssimo ambiente

De alguma longa história familiar!...

Há no seu gênio obscuro, misteriosas

Influências humanas, insensíveis

Contágios de alma que não percebemos,

Frias fatalidades traiçoeiras

Adormecidas no silêncio antigo...

 

Exalam do segredo das entranhas

Forças sutis e sugestões estranhas

Que nos descem ao fundo dos sentidos

E se vão infiltrando, lentamente,

Na alma dos visitantes distraídos...

Ao lhes transpormos as sombrias portas,

Nunca sabemos o que nos espera

Nesses tristes jardins de sombras mortas

– Fantasmas de uma antiga primavera...

 

Dentro tudo morreu... mas, presa a um fio

Intangível,

Uma vida fantástica, invisível,

Vive em essência no ar sonâmbulo e vazio...

 

As almas, como as flores, no lugar

Em que viveram deixam, longamente,

A sua exalação errando no ar,

Numa vaga fluidez reminiscente...

 

 

A ALMA DAS COUSAS SOMOS NÓS...

 

Dentro do eterno giro universal

Das cousas, tudo vai e volta à alma da gente,

Mas, se nesse vaivém tudo parece igual

Nada mais, na verdade,

Nunca mais se repete exatamente...

 

Sim, as cousas são sempre as mesmas na corrente

Que no-las leva e traz, num círculo fatal;

O que varia é o espírito que as sente

Que é imperceptivelmente desigual,

Que sempre as vive diferentemente,

E, assim, a vida é sempre inédita, afinal...

 

Estado de alma em fuga pelas horas,

Tons esquivos e trêmulos, nuanças

Suscetíveis, sutis, que fogem no Íris

Da sensibilidade furta-cor...

E a nossa alma é a expressão fugitiva das cousas

E a vida somos nós, que sempre somos outros!...

Homem inquieto e vão que não repousas!

Pára e escuta:

 

Se as cousas têm espírito, nós somos

Esse espírito efêmero das cousas,

Volúvel e diverso,

Variando, instante a instante, intimamente,

E eternamente,

Dentro da indiferença do Universo!...

 

 

PARA A VERTIGEM!

 

Alma, em teu delirante desalinho,

Crês que te moves espontaneamente,

Quando és na Vida um simples rodamoinho,

Formado dos encontros da torrente!

 

Moves-te porque ficas no caminho

Por onde as cousas passam, diariamente:

Não é o Moinho que anda, é a água corrente

Que faz, passando, circular o Moinho...

 

Por isso, deves sempre conservar-te

Nas confluências do Mundo errante e vário,

Entre forças que vêm de toda parte.

 

Do contrário, serás, no isolamento,

A espiral, cujo giro imaginário

É apenas a Ilusão do Movimento!...

 

 

DO MEU EVANGELHO

 

Para possuíres a filosofia

Das cousas, como um cético risonho,

Cheio de uma bondade comovida,

É preciso que tenhas algum dia

Escapado da Vida para o sonho

E voltado do sonho para a vida.

 

***

 

Procura o espaço livre e as macias alfombras

E vive sem pensar! Basta que o Sentimento

Te una à Vida e a renove, quando em quando...

As ideias enganam como as sombras,

São as sombras das cousas flutuando

No espelho móvel do teu pensamento!...

 

Pratica os teus sentidos nobremente

Na sensação das cousas belas e harmoniosas,

E, assim, educarás melhor uma alma linda,

Parecida com tudo que sentires!

 

***

 

Por que este desespero de que falas?

Se não crês bem nas cousas, nem descrês,

Ama-as embora, porque o teu prazer

Lhes dará a mais viva das verdades!

Não é preciso crer nas cousas, basta amá-las.

Sendo que amar é muito mais que crer...

 

***

 

Cada alma, sem sentir e sem querer,

Fia através dos dias, urde, tece

O seu destino – a inextricável teia!

Vive, faz e desfaz, passa e se esquece...

Mas os frutos que colhe em sua messe

São bem filhos dos germens que semeia...

 

***

 

A alma da gente muda tanto nesta vida,

Na sua história escrita sobre a areia,

Que um dia, ao recordar-se de si mesma,

Numa hora esquecida,

Já nem se reconhece mais e sente,

Estranhamente,

Que tudo aquilo que ela está lembrando,

São as recordações de uma alma alheia!...

 

***

 

Teu horóscopo está em ti, seja onde for

– Sem que o saibas e o pesquises –

Na sombra do teu ser mais íntimo e interior,

Como, presos ao solo áspero e bruto,

Estão bem dentro da alma das sementes,

Na natureza eterna das raízes,

O gosto original de cada fruto

E o perfume sutil de cada flor...


***

 

Escuta: Pelo bem que tu fizeres,

Espera todo o mal que não farias!

Essa é a mais triste das filosofias

Que aprendi entre os homens e as mulheres!

 

***

 

Queres saber minha história?

Não n’a tenho na memória...

Não tem fim, não teve fundo:

É a lenda da Humanidade,

É a própria história do Mundo!...

 

 

GAIA CIÊNCIA

 

Ator e espectador do drama humano,

– Homem, Filho do Bem, Filho do Mal –

Sei de tudo, desci ao fundo amargo

Das ideias, das cousas, das criaturas,

E, dentro da tragédia universal,

Fui anjo, fui réptil e vôo largo

Das águias suspendi pelas alturas

Eternas das ideias infinitas.

 

Sofri as leis humanas e divinas...

Pensei, senti, vivi profundamente

Todas as grandes realidades vivas

E encontrei as verdades cristalinas

Do universo visível e aparente

No coração das horas fugitivas...

 

Nada escapou à minha penetrante

Impressão da Existência. Vivi tudo!...

E tudo que eu vivi, do claro ao misterioso,

Foi destilado na palheta latejante

E passou pelo filtro íntimo e mudo

De um alto pensamento generoso.

 

Despindo as formas leves e vaidosas,

Rasgando as superfícies ilusórias,

A minha alma alongou suas raízes

Insinuantes, sutis, silenciosas

Pelas intimidades infelizes

De tudo quanto viu dentro da Vida.

 

E cresceu, floresceu, sorvendo gota a gota

Essa seiva de fel, ácida e ingrata

Que há no fundo sombrio das Verdades

E dentro dos seus frutos coloridos,

Que um meigo vento lírico desata,

Ainda há vivos venenos diluídos,

Que o puro azul dos céus serenos ameniza.

 

Sei de tudo! Conheço a vida a fundo!

Sei o que quer dizer uma existência humana!...

O meu sereno ser já não se engana

Com cousa alguma dentro deste mundo!

 

Entretanto, não sei... cada manhã que nasce,

Cheia de virgindade e adolescência,

Eu saio para a Vida,

Levando uma alma nova e um sorriso na face,

Sentindo, vagamente, que esse dia

É o meu primeiro dia de existência...

 

 

EXORTAÇÃO

 

Sê na Vida a expressão límpida e exata

Do teu temperamento, homem prudente;

Como a árvore espontânea que retrata

Todas as qualidades da semente!

 

O que te infelicita é sempre a ingrata

Aspiração de uma alma diferente,

É meditares tua forma inata,

Querendo transformá-la, de repente!

 

Deixa-te ser!... e vive distraído

Do enigma eterno sobre que repousas,

Sem nunca interpretar o seu sentido!

 

E terás, de harmonia com tua alma,

Essa felicidade ingênua e calma,

Que é a tendência recôndita das cousas!...

 

 

EGOCENTRISMO

 

Tudo que te disserem sobre a Vida,

Sobre o destino humano, que flutua,

Ouve e medita bem, mas continua

Com a mesma alma liberta e distraída!

 

Interpreta a existência com a medida

Do teu Ser! (a verdade é uma obra tua!)

Porque em cada alma o Mundo se insinua,

Numa nova Ilusão desconhecida.

 

Vai pelos próprios passos, num assomo

De quem procura por si próprio o fundo

Da eterna sensação que as cousas têm!

 

Existe, em suma, por ti mesmo, como

Se antes da tua sombra sobre o Mundo

Não houvera existido mais ninguém!...

 

 

SABEDORIA

 

Tu que vives e passas, sem saber

O que é a vida nem porque é, que ignoras

Todos os fins e que, pensando, choras

Sobre o mistério do teu próprio Ser,

Não sofras mais à espera das auroras

Da suprema verdade a aparecer:

A verdade das cousas é o prazer

Que elas nos possam dar à flor das horas...

 

Essa outra que desejas, se ela existe,

Deve ser muito fria e quase triste,

Sem a graça encantada da incerteza...

 

Vê que a Vida afinal, – sombras, vaidades, –

É bela, é louca e bela, e que a Beleza

É a mais generosa das verdades...

 

 

...ET OMNIA VANITAS...

 

... E vive assim... Como filosofia

O Prazer, como glórias e esperanças

Uma vida espontânea e correntia

E um gesto irônico ao que não alcanças!

 

Seja a vida um punhado de horas mansas,

Numa felicidade fugidia:

A piedosa ilusão de cada dia

E o bailado de sombras das lembranças.

 

Ama as cousas inúteis! Sonha! A Vida...

Viste que a Vida é uma aparência vaga

E todo o imenso sonho que semeias,

 

Uma legenda de ouro, distraída,

Que a ironia das águas lê e apaga,

Na memória volúvel das areias!...

 

 

IRONIA!

 

Ironia! Ironia!

Minha consolação! Minha filosofia!

Imponderável máscara discreta

Dessa infinita dúvida secreta,

Que é a tragédia recôndita do ser!

Muita gente não te há de compreender

E dirá que és renúncia e covardia!

Ironia! Ironia!

És a minha atitude comovida:

O amor-próprio do Espírito, sorrindo!

O pudor da Razão diante da Vida!

 

 

A ÚLTIMA CANÇÃO DO HOMEM...

 

Rei da Criação, por mim mesmo aclamado,

Quis, vencendo o Destino, ser o Rei

De todo esse Universo ilimitado

Das ideias que nunca alcançarei...

 

Inteligência... esse anjo rebelado

Tombou sem ter sabido a eterna lei:

Pensei demais e, agora, apenas sei

Que tudo que eu pensei estava errado...

 

De tudo, então, ficou somente em mim

O pavor tenebroso de pensar,

Porque as ideias nunca tinham fim...

 

Que mais resta da fúria malograda?

Um bailado de frases a cantar...

A vaidade das formas... e mais nada...

 

 

DIÁLOGO FINAL

 

– Como são lindos os teus grandes versos!

Que colorido humano! que profundo

Sentido e que harmonia generosa

Encerram, nos seus símbolos diversos!...

 

– Sim, mas para fazê-los fui ao fundo

Das cousas, nessa Via-Dolorosa

Do pensamento, que no fim é sempre triste.

Sofri muito entre os seres infelizes...

Tu não sabes de nada... tu não viste...

 

– Não, nunca imaginei o que me dizes...

Mas teus versos me fazem tanto bem,

São tão belos! de formas tão luxuosas!...

 

– É isso mesmo!... É a beleza irônica que vem

Da amargura invisível das raízes,

Para dar a vaidade efêmera das rosas...

 

 

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POEMAS INACABADOS
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CRISTIANISMO

 

Sonho um cristianismo singular

Cheio de amor divino e de prazer humano;

O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,

A beatitude com mais luz e com mais ar...

 

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,

Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano,

Num misticismo lírico, a sonhar

Na orla florida e azul de um lago italiano...

 

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,

Sem a pureza melancólica dos lírios,

Temperado na graça natural...

 

Cristianismo de bom-humor, que não existe,

Onde a Tristeza fosse um pecado venial,

Onde a Virtude não precisasse ser triste...

 

 

DECADÊNCIA

 

Afinal, é o costume de viver

Que nos faz ir vivendo para a frente.

Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente

O hábito melancólico de ser...

 

Vai-se vivendo... é o vício de viver...

E se esse vício dá qualquer prazer à gente,

Como todo prazer vicioso é triste e doente,

Porque o Vício é a doença do Prazer...

 

Vai-se vivendo... vive-se demais,

E um dia chega em que tudo que somos

É apenas a saudade do que fomos...

 

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos

Que somos sombras, que já não somos mais nada

Do que os sobreviventes de nós mesmos!...

 

 

ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS...”

 

Almas desoladoramente frias

De uma aridez tristíssima de areia,

Nelas não vingam essas suaves poesias

Que a alma das cousas, ao passar, semeia...

 

Desesperadamente estéreis e sombrias

Onde passam (triste aura que as rodeia!)

Deixam uma atmosfera amarga, cheia

De desencantos e melancolias...

 

Nessa árida rudeza de rochedo,

Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada,

Sua própria virtude mete medo...

 

Como são tristes essas vidas sem amor,

Essas sombras que nunca amaram nada,

Essas almas que nunca deram flor...

 

 

AO MENOS UMA VEZ EM TODA A VIDA

 

Ao menos uma vez em toda a vida

A Verdade passou pela alma de cada homem...

Passou muito alto, muito vaga, muito longe,

Como os fantasmas, que mal chegam, somem,

Passou em sombra, num reflexo fugidio,

Foi a sombra de um vôo refletida

No espelho da água trêmula de um rio...

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade!

 

Passou uma só vez em toda a vida

E sempre dessa vez a alma dos homens

Estava distraída,

E não reconheceu na sombra desse vôo

A ave ideal que planava no alto azul...

Quando volveu os olhos para a altura

Ela já ia desaparecendo...

 

Dela nada ficou no olhar triste dos homens,

Nem a lembrança de seu vulto incerto...

Passou uma só vez em toda a vida!

Sombra de um vôo na água trêmula: Verdade!

E esse vôo,

Que nunca mais voltou no mesmo céu deserto,

Nem ao menos deixou a sombra dentro d’água...

 

 

DE UM FANTASMA

 

Na minha vida fluida de fantasma

Sou tão leve que quase nem me sinto,

Nem há nada mais leve nem tão leve.

Sou mais leve do que a euforia de um anjo,

Mais leve do que a sombra de uma sombra

Refletida no espelho da Ilusão.

 

Nenhuma brutal lei do Universo sensível

Atua e pesa e nem de longe influi

Sobre o meu ser vago, difuso, esquivo

E no éter sereníssimo flutuo

Com a doce sutileza imponderável

De uma essência ideal que se volatiliza...

 

Passo através das cousas mais sensíveis

E as cousas que atravesso nem me sentem,

Porque na minha plástica sutil

Tenho a delicadeza transcendente

Da luz, que flui través os corpos transparentes,

Sou quase imaterial como uma ideia...

 

E da matéria cósmica que tem

Tantos e variadíssimos estados

Eu sou o estado-alma, quer dizer

O último estado rarefeito, o estado ideal:

Alma, o estado divino da matéria!...

 

 

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POEMAS INÉDITOS
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CIGANOS

 

Lá vêm os saltimbancos, às dezenas

Levantando a poeira das estradas,

Vêm gemendo bizarras cantilenas,

No tumulto das danças agitadas.

 

Vêm num rancho faminto e libertino,

Almas estranhas, seres erradios,

Que têm na Vida um único destino,

O Destino das aves e dos rios.

 

Ir mundo a mundo é o único programa,

A disciplina única do bando;

O cigano não crê, erra, não ama,

Se sofre, a sua dor chora cantando.

 

Nunca pararam desde que nasceram.

São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?

Eles mesmos não sabem; esqueceram

A sua antiga pátria originária...

 

Quando passam, aldeias, vilarinhos

Maldizem suas almas indefesas,

E a alegria que espalham nos caminhos

É talvez um excesso de tristezas...

 

Quando acampam de noite, é no relento

Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;

Seu teto é o vácuo azul do Firmamento.

Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.

 

Às vezes, em vigílias ambulantes,

A noite em fora, entre canções dálmatas,

Vão seguindo ao Luar, vão delirantes,

Alados no langor das serenatas.

 

Gemem guslas e vibram castanholas,

E este rumor de errantes cavatinas

Lembra cousas das terras espanholas,

Nas saudades das terras levantinas.

 

E, então, seus vultos tredos envolvidos

Em vestes rotas, sórdidas, imundas,

Vão passando por ermos esquecidos,

Como um grupo de sombras vagabundas.

 

Lá vêm os saltimbancos, às dezenas,

Levantando a poeira das estradas,

Vêm gemendo bizarras cantilenas,

No tumulto das danças agitadas.

 

Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!

Todos o temem como horrível gente,

Mas ele na existência aventureira,

Ri-se do medo alheio, indiferente.

 

E, livres como o Vento e a Luz volante,

Sob a aparência de Infelicidade,

Realizam, na sua vida errante,

O poema da eterna Liberdade.

 

 

DESCONFIANDO

 

Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,

Atento tu me escutas quando falo;

Bem antes que te exponha o meu desejo

Já pronto estás correndo a executá-lo.

 

Achas em tudo um venturoso ensejo

De servir-me de servo e de vassalo;

Perdoa-me a verdade num gracejo.

Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

 

Mas não penses que estólido eu te creia

Como um Pátroclo abnegado, não

De todos os excessos se receia...

 

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;

Odeias-me que eu sei, mas, histrião,

Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...

 

 

CALA A BOCA, MEMÓRIA!

 

Cala a boca, Memória! Basta, basta!

O que o Tempo te disse não me digas.

Que pareces até minha madrasta

Quando me vens cantar tuas cantigas.

 

Tua voz me faz mal e me vergasta,

E a chorar, muitas vezes, tu me obrigas.

Piedade, Memória leonoclasta,

Não despertes, assim, dores antigas.

 

Vai, recolhe-te à tua soledade,

E que o teu braço nunca mais me leve

À sepultura da Felicidade!

 

Segue um conselho meu, de ora em diante:

Junto a quem está de luto não se deve

Falar de quem morreu, a todo instante...

 

 

MAIO. SOL DE SAINT-LOUP

 

Maio. Sol de Saint-Loup. Declina o dia.

Eu e Silêncio – os dois – o olhar profundo,

Numa contemplação erma e sombria

Neste recanto inédito do mundo...

 

Lá embaixo, a fímbria azul dos montes quietos,

Pesa-me ao olhar, em trêmulos recortes.

Como nas sugestões das águas-fortes,

A beleza parada dos aspectos...

 

É bem a Suíça clássica que avisto,

Calma, brumal, profundamente calma,

Sem o menor espasmo do imprevisto

Na branca anestesia de sua alma...

 

Tudo na mesma estática atitude...

Montando as serranias, pelos flancos,

Em igual sucessão, sóbrios, marmóreos,

Destaco, ao longe, austeramente brancos

Os vultos varonis dos sanatórios...

 

SÍNTESE

 

Somos, na vida, a síntese apurada

De tudo o que viveu antes de nós;

Sou a compendiação cristalizada

 

Da história milenar dos meus avós.

Em mim, austeramente, continua

Uma raça de velho itinerário,

E eu conservo, no fundo da alma nua,

O cunho do destino hereditário.

 

Quem me vê!... E eu condenso mil essências,

– Sedimentos de idades e de idades –

Na verdade incisiva das tendências,

Nos meus impulsos e capacidades.

 

Restos de dias mortos e resíduos

De gerações e tempos indistintos

São a razão de ser dos indivíduos,

O segredo latente dos instintos.

 

Cada atitude, cada gesto dado

Que o nosso íntimo espírito acomete

É um momento da raça renovado,

É um minuto ancestral que se repete.

 

Nós, desde o homem que pensa à planta e à lesma,

Somos uma sequência enorme e vasta,

Uma força remota que se gasta

Na sucessão contínua de si mesma.

 

E é por isso que eu sinto e nós sentimos,

Em momentos recônditos extremos,

A saudade de cousas que não vimos

E o orgulho de tudo o que não temos.

 

Ser novo é um paradoxo inconsistente

Que só vive nos nossos pensamentos;

O que há de novo é o aspecto diferente

Lastreado dos mesmos fundamentos.

 

A Evolução!... E, com ela, melhoramos

Mas a Alma melhorando se enfraquece,

Tal como a gota d’água que desfiamos,

Que quanto mais se apura, mais decresce.

 

Sim! que o destino em seu maior conceito,

Na agitação dinâmica do Ser,

É ir lutando para ser perfeito

E ser perfeito e desaparecer...

 

 

SEI DE TUDO O QUE EXISTE PELO MUNDO

 

Sei de tudo o que existe pelo mundo,

A forma, o modo, o espírito e os destinos.

Sei da vida das almas e aprofundo

O mistério dos seres pequeninos.

 

Sei da ciência do Espaço, sei o fundo

Da terra e os grandes mundos submarinos,

Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo

Que há entre os passos humanos e os divinos.

 

Sei de todas as cousas, a teoria

Do universo e as longínquas perspectivas

Que emergem da expressão das cousas vivas.

 

Sei de tudo e – oh! tristíssima ironia! –

Pelo caminho eterno por que vou,

Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...

 

 

TRANSUBSTANCIAÇÃO

 

Esta carne em que existo há de tornar-se um dia,

Em húmus germinal, em seiva fecundante,

Decompondo-se em Pó, há de ser a energia

De vidas que sobre ela hão de viver adiante...

 

Será fonte, Princípio, a tábida apatia

De um movimento novo, intérmino e constante,

Sua ruína será a feraz embriogenia

De outros tipos de Vida, instante para instante.

 

Há de um horto florir por sobre o seu passado:

Borboletas iriais e anêmonas olentes,

Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado...

 

E, assim, irei buscando a Perfeição perdida,

Vivendo na Emoção de seres diferentes,

Que a Morte é a transição da Vida para a Vida...

 

 

ARGILA

 

Nascemos um para o outro, dessa argila

De que são feitas as criaturas raras;

Tens legendas pagãs nas carnes claras

E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

 

Às belezas heróicas te comparas

E em mim a luz olímpica cintila,

Gritam em nós todas as nobres taras

Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

 

É tanta a glória que nos encaminha

Em nosso amor de seleção, profundo,

Que (ouço de longe o oráculo de Elêusis),

 

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,

O nosso amor conceberia um mundo,

E do teu ventre nasceriam deuses...

 

 

DUAS HISTÓRIAS

 

– Era um dia um pastor ingênuo...

– Sim, todos os pastores são ingênuos...

– Que numa noite azul quis contar as estrelas

– Quantas foram por fim as estrelas contadas?

– Não! Ele compreendeu a inocente loucura

Não continuou na conta...

Viu que em torno de cada estrela contada

Surgiam mais de mil que nunca tinha visto...

Foi quem primeiro soube neste mundo

Que a conta das estrelas não tem conta...

 

– Pois foi um dia um sábio muito triste...

– Todos os sábios são muito tristes...

Quis contar as verdades do Universo

Quantas são as verdades que contou?

– Não! Ele compreendeu a inocente loucura,

Foi quem primeiro soube neste mundo

Que quem ver e contar as verdades

Apenas faz buscar verdades – não faz mais

Do que multiplicar as dúvidas que tem.

---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.