6/05/2024

O caso de James Joyce (Ensaio), por João Gaspar Simões

 

O CASO DE JAMES JOYCE

Por: JOÃO GASPAR SIMÕES
Revista do Brasil (1941)

Acaba de morrer na Suíça um escritor mais conhecido do que lido, mais discutido do que admirado, mais estudado do que apreciado. É um caso novo na história literária. Conquanto não se possa dizer que a sua personalidade fosse mais importante do que a sua obra, a verdade é que aquela avulta mais do que esta. Pelo menos discute-se mais o que ela pretendeu realizar do que aquilo que de fato realizou. Por quê? Era este escritor crítico ou doutrinaria, esteticista ou filosofo da arte? Não. Que eu saiba nenhumas páginas doutrinárias deixou publicadas. Salvo num passo ou outro dos seus romances, nunca se referia, como critico, aos problemas estéticos. Como explicar então que a sua personalidade tenha sido mais discutida do que a sua obra?

James Joyce — eis o escritor de quem falo. Nome universal! Onde quere que se fale de romance moderno, James Joyce aparecerá. Todavia poucos leitores o terão lido. Poucos, pelo menos, o terão lido completamente, não obstante o número reduzido das obras que deixou. Escreveu, ao todo, cinco ou seis volumes, um dos quais de fama universal. Refiro-me ao famoso Ulisses, o menos lido de todos... De fato, este grosso volume de perto de oitocentas páginas goza mais de fama que de proveito. Não admira: a sua leitura exige um esforço de aplicação penosíssimo. Trata-se de uma dessas obras a que é de uso chamar-se "difíceis".

Levantemos uma pontinha do véu. Quando se trata de fama — vibrante despertador da opinião pública — há que contar com um certo número de reações classicamente consideradas os passos da fama. Ora o escândalo continua a ser um  dos seus passos obrigatórios. Em literatura o escândalo é meio caminho para a glória. Vale mais fazer escândalo do que ter talento. James Joyce, além do talento que tinha, começou por fazer escândalo.

É sabido que o primeiro livro deste escritor — Dubliners — não chegou a sair de casa do editor. Quando ia ser lançado no mercado, um desconhecido entrou na casa editora, comprou a edição e mandou-a queimar no pátio da livraria. Um só exemplar se salvou, que o desconhecido deixou de presente a James Joyce. Mais tarde, quando a revista Little Review, dos Estados Unidos da América do Norte, começou a publicação do famoso Ulisses, a polícia interveio e a revista foi suspensa por quatro meses. Passava-se isto em 1918. Só em 1922 aparecia em Paris a primeira edição desta obra, proibida na Inglaterra e na América do Norte.

Que mais seria preciso para celebrizar James Joyce? Ei-lo desde logo um dos mais conhecidos escritores do mundo. Insisto: um dos mais conhecidos, não um dos mais lidos.

Há uma classe de obras literárias de fácil identificação: refiro-me àquelas em que as intenções do escritor sobrelevam ao temperamento. Sem termos lido uma página do Ulisses qualquer de nós pode fazer imediatamente uma ideia do gênero de obra que ele é. Trata-se de um romance que se define pela qualidade e natureza da técnica. Estudar o Ulisses é estudar-lhe a técnica. Eis por que não é difícil concebermos esta obra intelectualmente muito antes de a termos lido. Apoiados nas informações da crítica, seguiremos com relativa facilidade — talvez com mais facilidade que através da própria leitura — o plano e intenções da obra. E logo veremos que em Ulisses o plano e as intenções são o mais importante. Eis o que debalde tentaremos fazer para uma daquelas obras em que o temperamento sobreleva as intenções. Por melhor que nos resumam criticamente Os Possessos, de Dostoievski, de nada nos servirá. É necessário ler os romances de Dostoievski para realmente os conhecermos. As intenções do autor fundem-se com a obra — são a própria obra. A técnica é invisível: está no romance como. o vigamento nos edifícios.

Aqui está por que a leitura da obra de Joyce foi suprimida pela leitura da crítica. O que na construção havia de engenhoso tornou-se patente aos leitores e dispensou-os de ler Ulisses. Isto no que diz respeito ao Ulisses. Mas as outras obras de Joyce foram ofuscadas por esta. E como muitos daqueles que se arrojaram à leitura do Ulisses ficaram desiludidos, os demais romances de Joyce nunca chegaram a conhecer a popularidade do seu nome. Sim: é preciso não ter medo de dizer que o rei vai nu. Muitos dos que julgaram ir encontrar no Ulisses grandes novidades, geniais revelações, viram-se apenas perante um formidável exercício de virtuosismo literário.

É tempo de recuperarmos o perdido. James Joyce, esse famoso escritor que se dizia ter tentado a mais ousada das empresas: descer à terra para da terra arrancar viva a vida, qual outro Orfeu descendo aos infernos para deles arrancar Eurídice, não desceu tal à terra: ficou no labirinto da sua inteligência, quedou embriagado pelos recursos infinitos do seu talento. literário. Entre os escritores do nosso século, James Joyce há de vir a ser considerado um dos mais literários, um dos mais intelectuais, um dos mais clássicos.

Façamos um inventário da sua obra. De 1907 a 1941 publicou James Joyce cinco volumes. Só dois deles são, porém, de grandes proporções. O seu Portrait of te Artist as a Youing Man levou dez anos a escrever. Trinta e quatro anos para escrever portanto quatro obras. Que laboriosa tarefa! Sim: James Joyce é antes de mais nada um escritor laborioso.

O seu estilo é batido e rebatido: todos os seus elos são limados! O futuro dirá se o estilo não é a maior virtude da sua obra hoje tão gabada pelas suas audácias técnicas. De fato, James Joyce é sobretudo um estilista... mas um estilista sem originalidade apreciável, em que pese aos seus admiradores. Quero crer que uma das maiores torturas de James Joyce deve ter sido a vã pesquisa de uma originalidade natural. Foi por lhe faltar originalidade natural que James Joyce se consagrou ao virtuosismo.

Não parece isto paradoxal? Pois não é o contrário que se depreende da leitura dos estudos dos seus críticos? Por mim, antes de o ter lido, imaginava-o ávido de fundos contatos com a realidade viva, com o vulcão psicológico, com os sentimentos nativos, com a vida candente e tumultuosa. Era grande o meu erro. James Joyce não era nada disso. Fechado dentro de si mesmo, Joyce consagrara-se inteiramente a uma tarefa bizantina: colecionara estados de consciência como quem coleciona cacos arqueológicos.

James Joyce foi discípulo dos jesuítas. A casuística é um dos seus fortes. As doutrinas da Igreja absorveram-no. Aristóteles foi o seu mestre de estética. Ao contato com a escolástica, as faculdades intelectivas de Joyce desenvolveram-se num sentido abstrativo, deixem-me dizer assim. Note-se, no entanto, que a capacidade dialética não se lhe desenvolveu. Não há romances menos discursivos e dialéticos que os de Joyce. Recriar o mundo in mente — eis um propósito que nunca o tentou. Os seus romances são tudo quanto há de menos microcosmos. Pelo contrário: são fragmentários, dispersivos, verdadeiras colecções de imagens estáticas. Dir-se-á que Joyce retalha a realidade, trá-la a si, guarda-a no álcool da inteligência, e só depois a devolve à escrita. Isto explica o que nos seus romances há de nítido, de recortado, de retalhado, a par de não sei quê de frio, de estereotipado, de embalsamado, vamos.

Romance é progresso, tempo, antes de mais nada. Não o romance de James Joyce. Posto que Ulisses pretenda ser um romance temporal — decorre entre as oito horas da manhã e as três da madrugada do dia seguinte — o certo é que não há tempo nesta obra: tempo real, entenda-se. Para sugerir o fluir das horas, recorreu Joyce a artifícios tais como a sobreposição de pormenores em momentos diferentes no espaço e idênticos no tempo. Por exemplo: o caso das nuvens vistas simultaneamente por Dédalos e Bloom em ocasiões que no romance não coincidem.

A arte é uma réplica da realidade projetada num plano ideal. É aí, nesse plano ideal, que envelhecem as personagens de romance. Mas para que as vejamos envelhecer é preciso que as sintamos trituradas pelo tempo. Nos romances em que as personagens envelhecem o tempo passa. As personagens de Joyce nunca envelhecem. Os seus romances são fragmentos imóveis da vida. Joyce escolhe de preferência ações de curta duração. Ulisses, como vimos, decorre em vinte e quatro horas; A Portrait of te Artist as a Young Man, como o título o diz, é um retrato de uma adolescência. Não dura mais do que isso; as suas novelas de Dubliners são momentos da vida das personagens: duram horas apenas. Ora a réplica da vida realizada no plano ideal do romance deve ser animada de um movimento contínuo. Não devemos ser postos em presença de episódios fraccionados da existência das personagens, mas sim diante do próprio fluir dessas existências. Os romances caminham como progressões geométricas. Para passar de uma quantidade a outra é necessário adicionar-lhe a quantidade anterior. Em vez de uma exposição de parcelas, o romance é uma adição dessas mesmas parcelas.

Eis o que Joyce não toma em conta. Os seus romances são compostos de parcelas autônomas, pois o romancista era dominado por dois movimentos opostos. Por um lado uma intelectualização extrema, por outro uma extrema acuidade visual. Se era certo abstrair a realidade do real, condensando-a em quadros intelectualizados, também era verdade ver o real com aguda penetração. Daqui ser incapaz de se desprender de todo do real e ao mesmo tempo sentir-se impotente para realizar esse real longe dele. Isto faz com que os seus romances sejam sucessões de quadros imóveis: instantâneos desconexos. Aliás, Joyce, de acordo com as concepções estéticas de Aristóteles, parecia defender o princípio de uma arte estática. No seu Portrait, faz dizer a Stefen Dedalus: "...a emoção trágica é estática. Ou antes a emoção dramática é estática. Os sentimentos excitados por uma arte impura são cinéticos, desejo e repulsão. O desejo incita-nos à posse, incita-nos a mover-nos para alguma coisa; a repulsão incita-nos ao abandono, incita-nos a afastar-nos de alguma coisa. As artes que sugerem estes sentimentos, pornográficas ou climáticas, não são, portanto, artes puras. A emoção estética é por conseguinte estática. O espirito queda-se paralisado para além de todo o desejo, de toda a repulsão." Eis aqui uma autêntica concepção clássica da arte.

Em que consiste então a originalidade de Joyce? Numa nova expressão da realidade? Numa mais profunda visão do homem? Numa mais complexa explicitação psicológica? Não. A originalidade de Joyce está na técnica dos seus romances: principalmente na do Ulisses. Joyce alterou a estética clássica do romance. Em vez de uma progressão no tempo, para ele, o romance é uma análise em sobreposições imóveis. Aquilo que no Ulisses pode parecer movimento, não é mais que uma série de instantâneos de um mundo em marcha. Quão longe nós estamos da visão ao retardador de Marcel Proust! Para Proust, sim, existia o tempo; a realidade oferecia-se-lhe agitada por um movimento ininterrupto. Não para Joyce. Joyce não vê ao retardador, antes opera como os fotógrafos nas suas fotomontagens, os quais vão colando uns sobre outros pormenores estáticos de diferentes fotografias. Eis por que a obra de Proust é essencialmente cinematográfica, enquanto que a de Joyce é eminentemente fotográfica: radiográfica, antes, visto que incide mais sobre o intimo da vida que sobre o seu exterior.

Que errada a ideia que muita gente tem de James Joyce! Escritor dinâmico? Escritor de fundas incidências no fluir do tempo? Não. Exatamente o contrário. Joyce é um escritor que procura o lado estático da realidade: é um escritor que imobiliza a vida. Por isso mesmo poderemos considerar A Portrait of te Artist as a Young Man como a sua obra mais perfeita — como a verdadeira medida do seu gênio clássico. Ulisses, quanto a mim, é uma aventura falhada. Só como aventura merece atenção!


Lisboa, 31 de janeiro de 1941. 

3/21/2024

Chapeuzinho Vermelho (Conto), de Figueiredo Pimentel



 CHAPEUZINHO VERMELHO

Existia na capital de um país distante, uma meninazinha muito galante, muito linda.

Chamava-se Albertina, mas toda gente a conhecia por Naná. Sua avó estimava-a imensamente.

Esta boa avozinha, não sabendo mais o que inventar para alegrá-la, deu-lhe um chapeuzinho de veludo vermelho.

A pequenita ficou satisfeitíssima com seu novo chapéu, a ponto de não querer usar outro, e, como andasse constantemente com aquele, quando a viam aproximar-se, tão bonitinha, chamavam-lhe Chapeuzinho Vermelho.

Sua mãe e avó moravam a meia légua de distância uma da outra, e entre as duas habitações havia uma floresta.

Uma manhã, a mamãe disse para Naná:

- “Tua avozinha está doente e não pode vir ver-me. Eu também não posso ir lá. Assim, vai tu levar-lhe um bolo e uma garrafa de vinho. Toma cuidado: não quebres a garrafa, nem te divirtas em correr pela floresta. Segue sossegada pelo caminho, e volta depressa.”

- “Sim”, respondeu Chapeuzinho Vermelho. “Obedecê-la-ei, mamãe.”

Vestiu-se com aventalzinho muito limpo, colocou a garrafa numa cestinha, e seguiu contente.

Desobedecendo a mãe entrou num outro caminho para colher flores, quando a pareceu um lobo.

A menina não conhecia os lobos, e olhou para aquele sem receio algum.

- “Bom dia, pequeno Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo.

- “Bom dia, senhor”, respondeu Naná, delicadamente.

- “Onde vai tão cedo?”

- “Vou à casa da minha avó, que está doente.”

- “E leva-lhe alguma coisa?”

- “Sim um bolo e uma garrafa de vinho que mamãe mandou.”

- “Diga-me, minha interessante menina: onde mora sua avó? Quero ir vê-la também.”

- “Mora à beira da floresta, não muito longe daqui. Ao lado da casinha há árvores muito grandes e no jardim laranjeiras.”

- “Ah! tu é que és uma laranjinha muito apetitosa”, disse o lobo consigo mesmo, e acrescentou algo:

“Olha que lindas árvores e que lindos passarinhos! É na verdade um belo divertimento a gente passear na floresta, onde se encontram tão boas plantas medicinais.”

- “Sem dúvida alguma o senhor é médico”, replicou Albertina, “pois conhece as plantas medicinais.

Talvez pudesse indicar-me alguma, que fizessem bem à vovó.”

- “Perfeitamente, minha filha: aqui tem várias... esta, essas, aquel’outra...”

Mas todas as plantas que o lobo ia indicando eram venenosas.

A inocente criança, entretanto, colheu-as para levá-las à sua vovó.

- “Adeus, meu gentil Chapeuzinho Vermelho, estimei muito encontrar-me com você. Vou deixá-la, pesaroso, pois tenho que ir depressa ver alguns doentes.”

Assim falando, correu ràpidamente para a casa da velha, enquanto Naná se divertia colhendo as plantas que ele indicara.

Chegando à residência da velha senhora, achou a porta fechada e bateu.

A avó não podendo levantar-se da cama, falou:

- “Quem bate?”

- “É o pequeno Chapeuzinho Vermelho”, respondeu o lobo, mudando de voz, “mamãe mandou-lhe um bolo e uma garrafa de vinho.”

- “Entre minha netinha. A chave está aí em baixo da porta.”

O lobo encaminhou-se para a cama da doente.

Aí, engoliu-a de uma só vez, e, vestindo as roupas da velha, esperou deitado no leito.

Um instante depois chegou Albertina, que ficou admirada por ver a porta escancarada, sabendo o cuidado de sua avó.

O lobo tinha colocado uma touca na cabeça; apenas se percebia um pouco da sua cara.

Mas assim mesmo, o que se via era horroroso.

- “Ah, avozinha”, disse o pequeno Chapeuzinho Vermelho, “para que é que a senhora tem orelhas tão grandes?”

- “Para melhor te ouvir, minha neta.”

- “Para que tem braços tão compridos?”

- “Para melhor te abraçar, minha neta.”

- “Para que tem uma boca tão grande e dentes tão compridos?”

- “Para te comer...”

Dizendo isso, o lobo avançou para a desgraçada menina, e engoliu-a.

Achando-se plenamente satisfeito, adormeceu, e durante o sono ressonava terrivelmente.

Um caçador, passando por acaso perto da casinha, e ouvindo esse ruído extraordinário, disse:

- “A velhinha está talvez com um pesadelo. Quem sabe mesmo se não está mal? Vou ver se posso servir para alguma coisa.”

Entrou e descobriu o lobo estendido na cama.

- “Olé! Você por aqui! Há quanto tempo o procuro!”

Armou a espingarda, mas lembrou-se:

- “Não vejo a dona da casa, e bem pode ser que ele a tenha engolido viva.”

Então, com a sua faca de caça, abriu habilmente a barriga do lobo.

Apareceu Chapeuzinho Vermelho, que saltou no chão, exclamando:

- “Ah! que lugar terrível em que eu estava encerrada!”

A avó saiu também, muito satisfeita por tornar a ver o dia.

A fera continuava a dormir profundamente.

O caçador meteu-lhe duas pedras na barriga, e em seguida coseu a pele, ocultando-se depois com a avó e a neta.

Quando o lobo acordou, devorado por uma sede ardente, dirigiu-se para o tanque.

Enquanto caminhava ouviu as pedras batendo lá dentro, e ficou pasmado, sem saber o que era.

Chegando ao tanque, arrastado pelo peso das pedras, afogou-se.

Naná desde esse dia, vendo quanto é mau uma filha ser desobediente, prometeu nunca mais deixar de seguir as recomendações de sua mãe, e sempre cumpriu a promessa.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.