“Vilela não lhe respondeu; tinha as feições
decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo
não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita
morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver,
estirou-o morto no chão.”
Machado de
Assis – A Cartomante
Com os olhos acesos de ódio, Vilela mirava os dois cadáveres como se quisesse trazê-los de volta à vida apenas para ter o prazer de matá-los mais uma vez. Andando de um lado para o outro, ainda com o revólver em punho, cogitava mentalmente mil planos para se safar daquele hediondo crime. De repente correu até o canapé onde jazia o corpo de Rita, e ali ficou em pé, imóvel, durante alguns minutos. Desperto daquele lúgubre letargo, abaixou-se para junto do cadáver da mulher e o arrastou para onde se encontrava o corpo de seu amante, colocando-os um junto do outro. Fixou novamente o olhar para os dois mortos, levou as mãos à cabeça e, por um breve instante, foi tomado de um indescritível desespero, deixando-se cair no chão lavado em sangue. Logo, porém, recuperou o máximo que pôde da sua natural lucidez, foi até o quarto e vestiu uma calça às carreiras, voltou e desceu correndo os degraus da casa, quando observou ao longe a figura de um cocheiro com o seu tílburi. Gritou duas vezes para que este se aproximasse, incumbindo-o para que o conduzisse até a antiga Rua dos Barbonos. O pobre homem, entretanto, desculpou-se dizendo que infelizmente não podia levá-lo naquele instante, pois que aguardava um tal senhor chamado Camilo, que ali entrara e que ele muito provavelmente deveria conhecê-lo.
— Oh, sim,
deveras, conheço-o, mas ele mo pediu para que o dispensasse; irá depois
diretamente para o Cemitério São João Batista.
O cocheiro do
tílburi ia perguntar se havia morrido alguém, todavia, notando as feições
decompostas do outro, teve um leve tremor nervoso, aproximou depressa o
cavalo, estalou o chicote e partiu a trote.
À proporção
que o carro se ia afastando, Vilela entrou a conjecturar mil hipóteses da
esfera jurídica acerca do crime que acabara de praticar, e aventou para si que a melhor
alternativa seria legitimar perante os juízes a defesa de sua honra. Tinha
ótimos contatos com outras bancas de advocacia e conhecia os melhores advogados;
ademais, desde que abriu seu escritório sempre mantivera boas relações com a
alta magistratura do Rio de Janeiro, da qual se incluíam os nobres membros da Suprema Corte.
O tempo parecia espaçado, e ele queria chegar o mais depressa à casa onde supunha que se encontravam os pérfidos amantes. Dona Plácida, a comprovinciana e cúmplice de Rita no seu namoro com o Camilo, era sua antiga conhecida, e já de antanho sabia que o seu ponto fraco era um só: o dinheiro. Oferecer-lhe-ia uns dois contos de réis e ela se poria por inteira à sua disposição, para testemunhar em favor de sua causa perante os tribunais de justiça.
O tempo parecia espaçado, e ele queria chegar o mais depressa à casa onde supunha que se encontravam os pérfidos amantes. Dona Plácida, a comprovinciana e cúmplice de Rita no seu namoro com o Camilo, era sua antiga conhecida, e já de antanho sabia que o seu ponto fraco era um só: o dinheiro. Oferecer-lhe-ia uns dois contos de réis e ela se poria por inteira à sua disposição, para testemunhar em favor de sua causa perante os tribunais de justiça.
Ao fim de
quinze minutos, quando já se aproximava da Rua da Guarda Velha, o tílburi parou
bruscamente quase atingindo um menino de três ou quatro anos, que dobrava a
esquina desesperado atrás do seu brinquedo. Vilela, que até então estava imerso
num turbilhão confuso de pensamentos, saltou num pulo do carro, no mesmo
instante em que uma das rodas desprendeu-se do seu eixo fazendo o veículo bater
com toda a força na parede de um estabelecimento de secos e molhados. Com o tombo o cocheiro foi arremessado para
longe, porém escapara ileso do acidente. Este ergueu-se resmungando um dito
feio e lamentando mais o tamanho do prejuízo do que a extensão do desastre. O
passageiro, vendo o desespero do pobre homem, e muito ansioso por se esvair o
mais depressa possível daquele lugar, meteu sem demora a mão no bolso, tirou
duas notas de duzentos mil-réis e entregou-as ao condutor, que lhe sorriu como
se tivesse ganhado na loteria.
Enquanto um
grupo de curiosos se aglomerava ao redor do tílburi numa confusão de passos e
vozes, Vilela deixou o local rapidamente e seguiu caminhando pela calçada da
mesma rua. Um anúncio exibido em frente à Tipografia Nacional, próximo à
Secretaria do Império, convidava os passantes para a apresentação de uma ópera
lírica francesa, baseada na peça Hamlet
de William Shakespeare. Lembrou-se então ele das palavras do criminoso Cláudio,
o rei que assassinou o próprio irmão: “Está podre o meu crime; o céu já o
sente.” Neste momento um súbito e dolorido remorso pousou como um corvo negro
na sua consciência, picando-o por dentro com o bico da culpa, e grasnando bem
alto “assassino!... assassino!... Então entrou a recompor mentalmente toda a
cena do crime; viu a mulher ajoelhada diante de si a implorar perdão e a
suplicar com lágrimas de sangue para que a deixasse viver; contemplou o amigo
aterrorizado a olhar o cadáver ensanguentado da amante, e até parecia ouvir o
estrondo dos tiros que lhe dera bem no meio da testa. Tudo isso, entretanto,
passou rápido pela sua mente. Logo, porém, um sentimento de humilhação
apoderou-se dele com toda a força e então redobrou-se de ânimo para persistir
no seu intento de provar que só cometera o crime para defender sua honra.
Estava na Lei, era assim que deveria ser...
Antes de
dobrar a esquina, reparou ao lado, à direita, um sobrado com duas janelas
grandes, em cuja porta ele observou com certo interesse um pequeno cartaz de
madeira pendurado na porta com os seguintes dizeres: “Dá consultas de
magnetismo com sonambulismo e cartomante. Adivinha tudo o que os consultantes
desejam saber”.
Desde moço
Vilela sempre tivera certa inclinação pelos mistérios de que falou Horácio a
Hamlet. Toda sua crença, contudo, tinha por fundamento o simples temor do
incógnito, do secreto, do incompreensível... Quando por alguma razão se via
diante de um aparente mistério, calava-se apenas por superstição; no âmago, o
que ele não queria era provocar a fortuna. Agora, ali sozinho, em frente aquela
casa toda imersa numa penumbra de segredos, sentia como que arrastado pelo ímã
daquela enigmática sibila. De repente retrocedeu alguns passos e foi caminhando
em direção à misteriosa casa. Ao aproximar-se da calçada hesitou, mas já era
tarde: uma das janelas abriu-se e apareceu a cabeça de uma mulher:
— A porta está
aberta, pode subir!
Mais que depressa
enfiou-se ele pelo corredor e subiu a escada. A mulher já o aguardava à porta:
— Entre,
entre!
Vilela entrou
assustado e olhando para um lado e outro, como que querendo antecipar a
decifração de algum enigma.
— Sente-se
aqui, disse-lhe a profetisa puxando uma cadeira e observando atentamente as
mangas de sua camisa salpicadas de sangue.
Feito isso,
dirigiu-se até uma velha cômoda de mogno, puxou dali um lenço vermelho e foi
ligeira sentar-se à mesa do lado oposto em que ele estava. Sem tirar os grandes
olhos dele, ela abriu a gaveta e puxou um baralho de treze cartas enxovalhadas,
que eram as mesmas com as quais se havia utilizado para dar consulta a Rita e a
Camilo. À medida que as espalhava sobre a mesa, balbuciava palavras
incompreensíveis, que o outro traduzia mentalmente como sendo a sentença fatal
do seu destino.
— É a primeira
vez que vem a minha casa, não é?
Vilela
confirmou que sim com a cabeça.
— Vejamos... As cartas
revelam que o senhor está vivendo um terrível drama, correto?
Ele respondeu afirmativamente
e acrescentou quase chorando:
— Sim, minha
senhora, um terrível drama!
— As cartas
dizem ainda que o senhor teve uma grande perda... Dizem elas a verdade?
— Dizem sim,
minha senhora, uma perda irreparável.
Neste momento,
Vilela, que tinha as mãos estendidas sobre a mesa, estremeceu quando a outra as
apertou firmemente entre as suas.
— Não há nada
a temer, meu rapaz... O senhor fez o que acreditava ser justo... Agora precisa
dar cabo ao que começou...
A essas
palavras da adivinha, um súbito relâmpago atravessou as sombras do espírito do
homem, que num profundo desespero saiu correndo da presença dela sem ao menos
perguntar-lhe pelo preço da consulta.
Na rua ele
continuou correndo ainda durante uns cinco minutos, quando parou esbaforido ao
ver um tílburi estacionado em frente a uma chapelaria. O cocheiro, ouvindo-o
chamar ao longe, gritou:
— Para onde
vamos, patrão?
Nem aproximou
o carro, Vilela correu até ele, meteu-se lépido lá dentro e mandou tocar a todo
o galope.
Daí a vinte
minutos chegava ele em casa. Apeou-se apressado, subiu correndo os seis degraus
de pedra, empurrou a porta com toda a força e entrou ofegante. Já dentro correu
até a escrivaninha, abriu a gaveta e tirou de lá a mesma arma com que
matara a Rita e a Camilo. Em seguida caminhou apressadamente até a saleta onde
estavam os dois cadáveres ensanguentados, arrastou os corpos para os lados e
meteu-se no meio deles, sentando-se sobre uma poça de sangue coagulado. Não
quis pensar em mais nada: enfiou o cano do revólver na boca e disparou.
Impactante. Lindo.
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