9/14/2017

A defesa (Conto), de Olavo Bilac


A defesa

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Nesse tempo, já a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tinha uma população de duas mil e quinhentas almas.


Lançara Estácio de Sá os seus fundamentos em 1565, junto do Pão de Açúcar. Transferira-a Mem de Sá para o morro do Castelo, e foi daí que, pouco a pouco, a futura capital do Brasil começou descer, ganhando terreno, alargando-se cada vez mais, povoando-se. Os Tamoios e os franceses não lhe pouparam ataques. O primeiros, senhores antigos da costa, protestavam com armas na mão contra a gente branca, que assim tomava conta do seu território, expelindo-os dele. Os segundos viam bem que proveito resultaria para a França da ocupação dessas fertilíssimas terras, cuja posse já dava tanta glória e tanto lucro a Portugal. E a guarnição da cidade tinha resistido heroicamente a esses ataques. E até o seu fundador, Estácio de Sá, lhe dera o sangue e a vida, expirando em defesa dela, ferido do rosto por uma flecha.

Em 1710, era o Rio de Janeiro uma grande cidade, próspera e invejada. Em torno dela, a lavoura se desenvolvia. Dentro, desenvolvia-se o comércio. E sua população laboriosa e pacífica, avessa aos exercícios de guerra, vivia descuidada e feliz. A guarnição era pequena. Poucos soldados, mal armados, bastavam para manter o domínio da metrópole e a autoridade do Governador. Era governador Francisco de Castro Moraes, que já por várias vezes fizera sentir ao governo português a necessidade de prover a cidade de mais sérios recursos de defesa. Mas nada se fez nesse sentido. E quando se soube que uma flotilha francesa se aproximava do Rio de Janeiro, espalhou-se, pelo povo, um terror justificado. 

Não era falsa a notícia. Seis navios de guerra, comandados por Du Clerc, desembarcaram a 11 de setembro em Guaratiba uma força de mil soldados, que marcharam sem demora para o Rio de Janeiro. O governador, indeciso, perdia tempo. Nenhuma providência tinha sido tomada, e já no dia 18 a tropa francesa acampava no Engenho Novo, pronta a invadir cidade. Francisco de Castro chamou em socorro todas as povoações vizinhas. Mas ainda a sua tropa, em desordem, não se tinha movido do campo do Rosário, e já Du Clerc entrava, sem resistência. Todas as portas se fechavam. Toda a gente tremia, prevendo os horrores do saque e do morticínio. Parecia iminente a perda da gloriosa filha de Estácio de Sá. Ela que, tantas vezes, ameaçada de ruína, quando ainda fraca e pequena, pudera salvar-se, graças à bravura de seus governantes, — ia ser vergonhosamente tomada, sem uma gota de sangue, sem um protesto, por um pequeno destacamento de tropas francesas...

Pela cidade deserta, num silêncio absoluto, caminhavam os soldados de Du Clerc. O chefe, não querendo perder tempo em atacar as casas particulares, contava chegar à Alfândega sem achar quem lhe opusesse ao projeto.

E antevia a glória que para seu nome viria dessa conquista gloriosa de uma cidade rica, centro do poder português na América, — conquista levada a cabo sem perda da vida de um só de seus homens.

A expedição sabia que a guarnição portuguesa era pouca e sem recursos. Além disso, a rapidez das marchas não podia ter dado ao Governador o tempo necessário para armar e disciplinar paisanos. Mais ainda: Du Clerc imaginava que aquela população comercial e calma, preocupada apenas com os meios de ganhar dinheiro, estaria disposta a aceitar todo e qualquer domínio, contanto que lhe deixasse intacta a vida, preferindo tudo a arriscar-se aos azares de uma resistência que poderia ser duramente castigada.

Por isso, marchavam os franceses com confiança. E pareciam marchar por um cemitério, tal era a absoluta quietação das ruas que atravessavam.

Mas, quando chegaram à Rua Direita, uma alta grita de cólera e de incitamento ao combate atroou os ares. E viram, defendendo o caminho, uma multidão de moços que os esperava a pé firme. Não havia uma farda nas suas fileiras. Todas as fardas estavam ainda no campo do Rosário, cercando o Governador, que hesitava e vacilava, sem se resolver a cortar o passo aos invasores. Os que guardavam a rua Direita eram todos moços. Quantos? Quatrocentos ou quinhentos, se tanto. Desiguais nas armas como no vestuário, tinham-se reunido à pressa, ao caso. Cada um apanhara a primeira arma que encontrara à mão. Eram quase todos estudantes. Nunca se haviam batido, não tinham disciplina; mas sabiam que iam morrer, defendendo a sua cidade, e essa certeza de um fim glorioso lhes acendia na alma uma coragem suprema. Haviam sido unidos pela voz ardente de Gurgel do Amaral, um moço também, que resolvera salvar o Rio de Janeiro, quando os encarregados de sua guarda o abandonavam à sanha do estrangeiro. E ali estavam, para morrer, sem arredar pé. 

A expedição francesa parou, atônita, olhando a falange dos moços estudantes. E, antes que Du Clerc desse o sinal do ataque, já eles o atacavam, de surpresa, arrojando-se irrefletidamente. Possuíam apenas uma ou outra espingarda. Por isso mesmo, apressaram o ataque, que se fez à arma branca, com uma bravura louca a que os impelia o desespero. Os franceses mal puderam resistir ao primeiro choque. Aquela mocidade robusta e alucinada, a que o amor da Pátria dava forças sobre-humanas, combatia cega, delirante, sem cuidar de regras e leis de batalha. Os dois exércitos se misturaram; separaram-se de novo. Poucos minutos bastaram pra que, perdida a calma diante daquele assalto espantoso, vendo os seus caírem retalhados de golpes terríveis, a coluna de Du Clerc fugisse em debandada.

Então, acossados pelos estudantes vitoriosos, os invasores se encurralaram num trapiche, que havia na extremidade da rua. E, logo os vencedores estabeleceram em torno deles um sítio rigoroso.

Nesse momento, o Governador decidia-se a agir. Mas, quando chegou a sua tropa, já Du Clerc, assediado e impotente, pensava no meio de recorrer à generosidade do povo, para salvar a vida da sua gente. De fato, nessa mesma tarde, os franceses capitularam.
A mocidade do Rio de Janeiro salvara a cidade.

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