O "Cabeça de Ferro"
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Nesse ano de 1782, em Minas, no mesmo lugar em que assenta hoje a cidade de Diamantina, as autoridades de Portugal, monopolizando para a Coroa portuguesa o comércio dos diamantes, eram implacáveis no seu despotismo.
Entre os trabalhadores empregados na
extração, a miséria era grande. Quase todos os escravos sofriam fome, enquanto
pelas suas mãos passavam milhões de pedras, que valiam quantias assombrosas, e
iam enriquecer o tesouro português.
O trabalho era duro. Primeiro, era
preciso descobrir o trecho do rio, em cujo fundo se esperava achar a jazida.
Cavava-se ao lado dele um vale, forrado de tábuas unidas e calafetadas:
Cercava-se depois o rio: desviavam-se as suas águas para o vale. Então,
secava-se o leito assim descoberto. Quebravam-se as rochas que o forravam,
tirava-se a camada inútil de terras e areias: e via-se logo, sob a forma de um
cascalho feio e grosseiro, a preciosa mina, em que dormiam as grandes e rutilantes
pedras preciosas. Muitas vezes, o trabalho ficava perdido: não se encontravam
diamantes na porção explorada do rio, e era preciso recomeçar mais longe a
mesma dura tarefa.
Tratados com um rigor intolerável,
privados de tudo, sofrendo pela menor falta castigos horrorosos, trabalhando
sem cessar de sol a sol, os desgraçados entendiam-se com os contrabandistas, a
quem vendiam os diamantes que furtavam. As autoridades condenavam sem processo
os acusados desse crime. Os contrabandistas, que eram conhecidos pelo nome de
garimpeiros, eram perseguidos sem trégua pela tropa. Às vezes, desesperados,
acossados pela patrulha da metrópole, os garimpeiros organizavam guerrilhas e
resistiam. Corria o sangue de parte a parte.
Os escravos suspeitos eram condenados à
morte, sumariamente. Não se abriam devassas. Não se admitiam defesas. Bastava
uma simples denúncia. Alguns, amarrados a troncos de árvores, eram surrados até
morrer; outros acabavam crivados de balas; outros expiravam de fome, no fundo
de masmorras sem ar.
Em 1782, era Intendente dos Diamantes
José de Meirelles, homem cruel que conseguia ser ainda mais tirano do que os
seus antecessores. O povo dava-lhe o nome de Cabeça de Ferro. Violento, fez
pesar sobre Minas a sua maldade. Quem por esse tempo viajava pela região, que
ficava sob o domínio do Cabeça de Ferro, via, de espaço a espaço, corpos no
chão, varados de tiro de espingarda, cadáveres de enforcados oscilando nos
galhos das árvores. Eram as vítimas do Intendente.
Mas não eram somente os suspeitos do
crime de contrabando que sofriam o peso do seu ódio. Bastava ter pena do
sofrimento dos pobres escravos para ser considerado cúmplice deles. A cadeia do
arraial estava constantemente cheia de inocentes, cujo crime único era o ter
dado um pedaço de pão a um trabalhador faminto. O Cabeça de Ferro era
onipotente. Quem ousava contrariá-lo, se escapava da morte, era degredado para
a África, e deixava a família na miséria, porque todos os seus bens eram
confiscados para o Estado. E, quando o Intendente atravessava o povoado,
arrogante, de sobrecenho cerrado, seguido da multidão de seus guardas armados,
o terror corria as ruas. Portas e janelas fechavam-se. Nenhum olhar atrevia a
fitar o olhar do orgulhoso Senhor, que tinha nas mãos o destino de todo o povo.
Essa tirania já durava três anos,
quando, por ocasião de se celebrar uma festa religiosa no arraial, veio para
pregar o sermão, na Vila do Príncipe, um sacerdote modesto, — homem de rara
virtude, cuja palavra ardente estava sempre cheia de bênçãos para os humildes e
de maldições para os orgulhosos. Era o vigário Brandão. Ninguém imaginaria,
vendo-o pequenino, fraco, de olhos postos no chão, tão pobremente vestido que
causava dó, ser aquele o homem que nunca recearia dizer a Verdade, por terrível
que fosse, aos grandes da terra. O povo, quando o viu chegar, acolheu-se sob
sua proteção.
O vigário viu os arredores do povoado
cobertos de cadáveres sem sepultura; viu as casas dos suspeitos incendiadas por
ordem do Intendente; viu a cadeia cheia de infelizes, que gemiam sob o peso dos
ferros, vítimas quase todos de acusações infundadas; e, com palavras duras, que
o amor da justiça inspirava, intimou o Cabeça de Ferro a respeitar as leis da
Humanidade. O Intendente sorriu. E a sua crueldade aumentou.
Chegou o dia da festa.
A igreja, cheia de povo, resplandecia de
luzes. Quando o vigário ia falar, entrou o Intendente; seguia-o a sua guarda: e
o implacável tirano, arrogante, caminhava de olhos erguidos, dominando com a
sua presença temerosa a multidão que tremia.
O vigário começou a falar. A sua voz
clara e colérica tinha uma majestade divina. Falou dos magistrados que apenas
para oprimir os pequenos e os pobres sabiam usar do poder que a vontade de Deus
lhe confiara.
O seu olhar não se afastava do ponto em
que estava o Intendente, e o seu gesto, dirigido para ele, apontava-o como o
causador da desgraça das famílias condenadas à orfandade e à fome; lançava-lhe
em rosto o assassinato frio de tantos inocentes; condenava-o a vagar sozinho na
terra, fadado a uma velhice de angústias e de remorsos, para pagar a sua
desumanidade: e descrevia, ao vivo, o sofrimento dos que jaziam no fundo de
masmorras escuras, dormindo sobre a lama, gemendo de sede, com os corpos
chagados pela pressão das cadeias de ferro...
O povo todo, imóvel de assombro, diante
de tamanha audácia, escutava em silêncio. O Cabeça de Ferro, com as faces
acesas de cólera, tremia na sua cadeira. Levantou-se, cruzou os braços, e
encarou o pregador.
Durante minutos, que pareciam séculos,
esses dois homens — um, todo poderoso, temido, rico, arrumado, cercado de
tropa, representando a autoridade despótica de El Rey — e o outro, fraco,
pobre, sem armas, sem soldados, tendo apenas por si a Verdade, — longamente se
fitaram em silêncio. Foi o homem poderoso que cedeu.
O Intendente baixou os olhos, com todo o
corpo abalado de um tremor convulsivo. O povo murmurava. E o padre, sem tirar
os olhos do criminoso, clamava:
— Ministro de Satanás! Como aferrolhas
míseros inocentes nesse horrível calabouço, quando o seu crime só foi terem
tirado da terra os tesouros que a Providência ali ocultou, para que igualmente
a todos os homens servissem? Um dia, a inocência clamará contra ti, no tribunal
divino, longe das paixões do mundo: e a maldição de Deus pesará sobre a tua
cabeça!
Houve um movimento geral na multidão.
Viram todos que o Intendente, de cabeça baixa, trêmulo e abatido, se
encaminhava para a porta da Igreja. Seguiam-no os soldados da sua guarda: e o
povo abria alas para deixar passar, humilhado com um réu, aquele que, havia
pouco, passara sobranceiro como um deus.
Houve ainda quem temesse que, ao sair
dali, o Cabeça-de-Ferro fosse preparar a sua vingança contra o atrevido que o
injuriara, cobrindo de opróbrio e de vergonha.
Mas, no dia seguinte, soube-se no
arraial, com alívio, que todos os que estavam presos injustamente tinham sido
postos em liberdade; que os cadáveres que jaziam nos arredores sem sepultura,
servindo de pasto aos corvos, tinham sido enterrados; e que a sorte dos
criminosos, nos calabouços, tinha sido suavizada. E, de então por adiante, todo
o povo respirou, vendo o Intendente reconciliado com a justiça e com a
humanidade.
Porque, quando o amor do Bem e da
Verdade palpitam na voz humilde de um justo, essa voz, por si só, é bastante
para iluminar e purificar a alma endurecida de um tirano...
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