Sultão
(Copiado do natural)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
I
Ao cair da tarde, o Tomé da Eira entrava em casa, cansado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no campo.
— Meus pecados, boa tarde! — dizia ele para a mulher, com um sorriso a afetar seriedade.
Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a bênção.
— Deus te abençoe.
— Pai, olhe que o “Sultão”... ia a dizer o pequeno.
— Bem sei! atalhava logo o Tomé. — O “Sultão” é um maroto e tu és outro.
E enquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bela navalha de "meia-lua", que lhe custara um pinto havia bons quinze anos, e abria a gaveta do pão, o Tomé punha-se a fazer de interesseiro consigo mesmo, resmungando alto pra que a mulher o ouvisse:
— É que por este caminho não tenho um dia descansado... Nem uma hora...
Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.
—...Pois vamos já que já era tempo... Porque pra mim há de chegar... A modos que vou já cansando...
Mas o Tomé não era homem que dissesse estas coisas de coração. Pareciam-lhe longos, intermináveis, os aborrecidos Domingos que passava sem ir campos fora, madrugador como um melro.
— Uma aquela como outra qualquer! dizia o bom do Tomé encolhendo os ombros, como quem está desgostoso com um gênio assim.
Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua cabrada, e veio sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito à vontade.
Costume velho do Tomé: — mal se sentava, mastigando o “bocado”, dizia logo para o filho:
— Ouves, Manuel? Bota cá fora o “Sultão”.
O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de contente, dizendo cá da rua:
— “Sultão”! Sai cá pra fora, “Sultão”!
No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura retangular da porta baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpétua, num movimento moroso de pálpebras pestanudas...
E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas pernas delgadas, a olhar o Tomé que o chamava, — um grande riso de alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu “Sultão”.
Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em arreliar o Tomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de quadrúpede de boa raça, alguém lhe poderia ler no olhar, mole e impassível, o frio, gelado desprezo a que parecia votar o dono...
Mas era àquilo mesmo que o bom do lavrador achava graça. E punha-se então a falar muito sério, entre resignado e cortês, para o pequeno e desdenhoso jumento — o pão e o queijo esquecidos numa das mãos, na outra a navalha de “meia-lua”:
— Então, “Sultão”, não vens?
— Não! parecia responder-lhe o animal. E abstrato, continuava a envolvê-lo no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia daquela imobilidade de estátua, apenas de quando em quando uma pequenina patada na soleira, zap!
— Zangado, “Sultão”? perguntava o lavrador. — De mal comigo?
E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir à vontade... — que não fosse vê-lo o “Sultão”... Metia entre dentes um pedacito de queijo, logo uma côdea de pão, e fazendo umas grandes rugas na testa, de quem começa a zangar-se, voltava-se então muito sério:
— Ficas aí, “Sultão”? Já não és meu amigo?
O jerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que fazendo-se humilde...
— Então se és, anda daí. Olha... — E mostrava um pedacito de pão. — Pra ti se vieres...
O “Sultão” dava três passos, e ficava fora do cortelho. E por se vingar, o Tomé carregava o semblante numa seriedade muito pesada, e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, afirmando que já lhe não dava o pão. E desfechando-lhe enfim a ameaça de o vender a um cigano, entrava a tratá-lo por senhor — “sôr” “Sultão”...
Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas baixas, pescoço caído, a modo de arrependido, parece que pedindo perdão da arrelia.
Nervoso, sapateando, o Tomé voltava a cara para a outra banda, a rir como um perdido.
— Diabo do jerico! diabo do ratão! Capaz é ele de fazer rir as pedras, o mariola! — E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na goela.
No entanto, o “Sultão” ia avançando, muito ronceiro, até que tocava com o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Tomé sacudia-o:
— Sai-te pra lá! dizia ele muito amuado, sem se voltar. — Cuidas talvez que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vai-te!
Mas como que irrefletidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. “Sultão” lançava um olhar oblíquo, entre sorrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço superior, a tremer, e roubava-lho da mão.
Pazes feitas! Era então rir a perder, numas casquinadas agudas, muito estrídulas.
— Credo, homem! dizia de cima, da janela, a Sra. Josefa. — Até pareces doido!
— Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono? perguntava o Tomé, nuns grandes gestos. — Vamos que eu lhe não queria dar da merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem! agora brinque.
Era precisamente o que o Tomé queria: — ver o “Sultão” a brincar.
...Nada, com efeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do lavrador, e melhor o indenizasse daquelas fainas laboriosas que lhe consumiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob sóis causticantes e chuvas torrenciais.
Por isso, era de ver como ele ria, com uma boa vontade deliciosa, das “partidas” e “diabruras” do “Sultão”! Às vezes, o pequeno jumento, ferido não sei por que vespa invisível, despedia sem mais nem menos numa carreira aberta, focinho entre as pernas dianteiras, agitando a cauda, por aquela rua fora. Rompia de toda a banda num alarido o rancho pacífico das galinhas, que já no ar andavam como doidas, cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Acudia gente aos postigos, às portas, às janelas, a ver a polvorosa; e súbito se inundava a rua de rapazes, rotos, descalços, alguns quase nus, correndo atrás do burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o — como se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a própria rua... E um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre todos voava o “Sultão”, apupado, perseguido, aclamado, na malta espavorida dos inimigos...
— “Sultão”! eh lá! “Sultão”!
Súbito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de volta dele postava-se a rapaziada, mas num alor de nova fuga, não lhe desse na bolha atacá-los... E abriam alas de repente, quando ele, tomado de novo acesso, voava para as bandas do dono, que por se não deixar atropelar investia com o “Sultão” de braços abertos, o que era, já se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas estrídulas, os rogos para que pusesse tréguas, as súplicas para que se acomodasse, recuando o lavrador até ao último degrau da escada, onde se deixava cair, — derrotado!
— Pra lá, “Sultão”! pra lá! fazia então o Tomé, opondo-lhe os pés, desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para trás, a rir como um perdido.
Então o pequeno jumento estacava, ofegante. Mas prestes rompia a girândola dos coices, em que era exímio, sacudindo muito as patas, cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Tomé solícito dava aos rapazes o aviso de se arredarem — “porque era doido, aquele demônio”!...
Outras vezes, parece que variando de táctica, entrava de seguir muito cauteloso, num ronceirismo pérfido, como um borrego ou como um cão, certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após os saltos do costume, respondendo com uma ameaça de pinotes à surpresa da viandante.
— Dê, tia Luísa! bata nesse maroto! fazia de lá o Tomé, com ares de zangado. E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma verdasca: — “Sultão”! venha já p'r'aqui! intimava.
E se encontrava um cão? Se encontrava um cão, ia logo direito a ele, muito devagar, cauda caída, orelhas murchas, num cumprimento humilde de focinho. O cão regougava, desconfiado, entreabrindo a dentuça, preparando a sua dentada. Não dava o “Sultão” sinais de medo, e humilde prosseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um passo, espertando da sua indolência passiva; e de espinha arqueada ganhava o terreno perdido — fitando impassível o cão... O bruto formava então o salto, regougando forte, o pelo eriçado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de um pulo o “Sultão”, evitando-o, até que por compaixão lhe dava um pequenino coice, “mais feitio que outra coisa”, pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido:
— Eh! valente! gritava-lhe então o Tomé.
E com duas palmadas na anca, espantava-o enfim para o cortelho, dizendo ao correr a caravelha:
— Não há dinheiro que te pague, assim me Deus salve!
E comido o caldo-verde da ceia, nunca o Tomé da Eira ia para a cama sem primeiro descer a ver o “Sultão”, — de candeia na mão esquerda, e na direita, contra o sovaco, a bela quarta do grão, acogulada.
Muitas vezes acontecia esquecer-se o Tomé a vê-lo comer, de candeia atenta, encostado à manjedoura, sorrindo: e, de cima, a Sra. Josefa tinha de intervir então, gritando-lhe pelas frinchas do sobrado:
— Tomé, vê se te vens deitar, meu pasmado! olha que são horas.
E piamente, como fanático, achava verossímil a lenda da burra que falou, — história que uma tarde, passando, o abade lhe contara. Tanto que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, estranhou com certo desgosto que o “Sultão” lhe não respondesse:
— Boas noites!
***
Mas o demônio, que sempre as arma, armou-lha também um dia! Foi ao cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro. Ficou parvo! Pôs-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e além de enorme — gelada...
— Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua. — Ó Josefa!
A mulher assomou à janela, sobressaltada.
— Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?!
— Que te roubaram o quê? fez a Sra. Josefa, muito atônita.
— O burro, o “Sultão”! Vem cá ver que mo roubaram!
E como ao tempo acudira já o Manuel, em camisa, descalço, romperam todos três na gritaria, defronte do cortelho vazio:
— À d'el-rei! À d'el-rei! À d'el-rei!
Até que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, pôs na peugada do burro, mais dos larápios, os cabos que compareceram.
Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adiante, e desfechando ao peito abatido do Tomé a negra e vazia palavra:
— Nada!...
II
Dois anos depois. Tarde de Agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se numa sombra igual, e embaciavam ainda o poente as suaves, brandas pulverizações doiradas da última luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam imóveis num fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de laranja. Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do azul. Num deslado, sob os castanheiros próximos, surgiam os telhados da aldeia, a torre branca da igreja, as paredes caiadas da escola.
A vasta eira comum, levemente acidentada, apresentava àquela hora o aspecto tranquilo e de paz de uma grande oficina em repouso. Poucas “medas”, iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando muito, e estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das “parvas” ou ao sopé das “medas” altas, entre os utensílios da trilha e a criançada estrídula que brincava, os da lavoura descansavam — vermelhos da soalheira intensa de todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa, peito nu, arregaçados os braços musculosos, numa prostração regalada de matilha que enfim tem a sua hora de sossego, após um dia de caçada. Parecem prostrados da fadiga os próprios malhos, os trilhos, as pás, os “baleios” que levaram todo o santo dia varrendo o chão em volta das “parvas”. E aqui e ali, dando uma sensação agradável de fartura, perfilam-se os altos sacos no meio das rasas, extravasando de grão. Além, gente em mangas de camisa, ao redor de um grande montão de palha triturada, vai “limpando” — visto que sopra um “ventinho”. E sente-se sobre as pás a chuva do grão, ao mesmo tempo que a palha, voando, faz monte da outra banda, e os “baleios”, em mãos de mulheres, não cessam de arrebanhar o grão, varrendo em roda num afã... Em certo ponto, carros vazios; um além, de altíssimas “angarelas”, vai-se enchendo de palha; enquanto outros, atulhados de sacos, em rimas entre as cancelas mais baixas, estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados pelos bois gigantes.
Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pelo. E lá vão encosta abaixo, roçando pelos troncos ásperos dos castanheiros a enorme corpulência, fartar o largo bandulho à serena água das ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciáveis no meio da água em que se atolam, submissa...
Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em coro. Acabara de ensacar-se o último grão da farta colheita do Tomé da Eira.
— Colheita rica, sim senhor! vinham dizer-lhe os vizinhos. — A primeira da aldeia!
— Qual? isso sim! vão vocês ver a tulha. Muita palha, é que vocês hão de dizer, muita palha e pouco grão...
E muito azafamado, sem prosápias de maioral nem jeitos de soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, o Tomé ia e vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as últimas tarefas.
— Aí vai um saco, ó tu! É para as “rabeiras”. Que não fique nem um grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não fique por aí alguma coisa esquecida: essas pás, esses “baleios”, tudo isso. Margarida! ó Margarida! que é da tua rasa? Deixa! se vai no carro está bem.
E era como um doido a meter-se no serviço de todos, muito expedito, loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não deixassem agora dormir...
— Vamos lá! vamos lá! As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por aí alguma, que eu depois te ensinarei, ouviste? — Que faz aí no chão esse “rasouro”, ó coisa? — Olha para o que estás a fazer, tu: esses sacos que fiquem bem atados.
O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de “aguilhada” no ar, se era preciso mais alguma coisa.
— Não, podes ir. Ouves? lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te.
Ouves, Francisco? Não piques os bois, a carrada é valente. A passo, deixa ir os animais a passo. Vai-te.
Como o carro chiava, levantou a voz para dizer:
— Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não ouves? Os bois para o lameiro.
Mas o Francisco apontou dois sacos que ficavam: — “seria preciso vir por eles?”
— Não vale apena, lá irão.
E depois, para aquela gente, observou que bem sabia ele quem os levava, aqueles dois sacos...
— Com mil demônios! Apostar que vocês não adivinham?
“Eles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois sacos, olhem agora!”
— O “Sultão”, sabem? o “Sultão”! Esse é que os levava. E digo-vos então que valia o dobro a colheita, assim me Deus salve!
Alguns riram da lembrança. “Tinha graça que a cisma do animal não lhe passava nem à mão de Deus Padre!”
— A modos que isso é já mania, ó Sr. Tomé?
Nisto, porém, o lavrador soltou um “oh!” de surpresa. Voltaram-se todos — “que era?” Na estrada que a eira dominava, um homem ia passando, a cavalo.
— Vocês não querem ver, ó rapazes?! perguntou o lavrador, fazendo-se pálido. — Aquele burro, hein? se não é o “Sultão” é o diabo por ele...
Recordaram: — “estrela malhada na testa, a mão direita branca”...
— É ele, com um milhão de diabos! não há que ver! E aquele é o ladrão!
E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas da camisa, arrancou, de um abanão, o cabo de uma “espalhadoura” e botou a fugir direito à estrada.
Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido:
— Que o mata! gritavam todas. — Ai que o mata! Acudam! Ai a desgraça! Nem a alma lhe deixa! Acudam!
Os homens deitaram a correr atrás dele, afluía gente de todas as bandas da eira, os cães ladravam.
— Então, Sr. Tomé? olhe que se perde, Sr. Tomé! diziam-lhe, já agarrados a ele. — Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem, Sr. Tomé, largue vossemecê o cabo!
— Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costelas, mais a vocês, se me não largam! Arreda!
E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a ele mais ao cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por instantes.
— Vê, Sr. Tomé?!
“Não via nada, não queria ver coisa nenhuma! Arreda!” E num rompante de ira, abrindo brecha com um “sarilho”, de um pulo saltou à estrada, aos tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.
— Abaixo! intimou. — Você é um ladrão!
— Um quê?
— Um ladrão! É meu esse burro! Hei de matá-lo aqui, seu patife! Deixem-me! larguem-me! Há de aí ficar estendido, como um cão!
E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão esquerda, e na direita o minacíssimo cacete, berrava que o deixassem, que ia tudo raso — “com seiscentos milhões de diabos!”
Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos.
— Já lhe disse que você é um ladrão!
— Ladrão será você! — tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos cerrados. — E não mo diga outra vez, que o racho!
Aflitas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a capelinha próxima, rogando o socorro da Virgem. O lavrador entrava de tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito branca bordejava-lhe os cantos da boca. Pela camisa rota, via-se-lhe já um pedaço de ombro. Tinham, enfim, conseguido arrancar-lhe o cacete, mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquelas cabeças em desordem.
Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se desculpava: — “tinha-o comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que o burro era roubado...”
— Vê, Sr. Tomé? acudiram logo uns poucos. — O homem não tem culpa. — E gritavam-lhe aos ouvidos: — Não tem culpa! Comprou o animal na boa fé. Vês — aí está!
— Mente! objetava incrédulo o Tomé, cada vez mais irado. — Mente!
— Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.
— Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Tomé.
De modo que para o convencerem, foi preciso afinal levá-lo quase à má cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Ele então, abrindo os braços como se fosse para nadar, sossegou um pouco, amainou, — prometeu levar aquilo com paciência, às boas. Chegou quase a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das camarinhas. — “Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam?”
Chegou-se por fim a um acordo. “Sim, senhores, acomodava-se, mas punha uma condição: largasse ele o burro, e o burro é que havia de resolver...”
— Serve-lhe o contrato?
— Qual contrato?
— Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro às soltas. Depois, é pra onde ele for. Se o burro larga pra trás, lá p'r'as bandas donde você vem... Você donde vem?
— Dos Casais.
— Pois aí está. Se o burro tomar para os Casais, o burro fica seu...
— E tomando direito à aldeia, é do Sr. Tomé, — concluíram alguns do grupo, conciliadores.
— Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.
Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia história que o burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe custara tirá-lo de casa.
— Olhe que vai para os Casais! Digo-lhe então que vai para os Casais... — afirmou.
— Melhor pra você. Mas nós veremos pra onde vai. Você está pelo dito? — quis saber o Tomé.
— Sim senhor, estou! Pois que dúvida tem que estou? disse-lhe o outro num rompante. Olhe: uma, duas, três; às três largo-lhe a arreata.
Ia já a abrir a boca para dizer — “uma!”
— Alto! fez o Tomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei de fazer duas festas ao animal.
E pôs-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um pouco a fitá-lo de frente, “para que o animal o conhecesse.”
— “Sultão”! gritou-lhe de repente. Eh! “Sultão”!
O burro estremeceu... Dir-se-ia que no fundo da sua memória, a lembrança porventura adormecida daquele nome despertara subitamente...
— Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se pra ali. Isso. Nem é para os Casais nem para o lugar. Assim. Eh! Eh!
E afastou-se para o lado, aguardando.
Uma ansiedade dominava naquele momento os do grupo; o Tomé pôs-se a roer as unhas, nervoso...
— Então você por que espera? perguntou.
Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:
— À uma!...
O Tomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar de esguelha, e entre os dentes ferrados o polegar da mão direita...
—...às duas!
— Ih! c'um raio!... dizia baixo o Tomé.
E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.
—...às três!
Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e gargalhadas! O Tomé vencera: corriam todos a abraçá-lo, afirmando que o caso era para foguetes.
— Viva o Sr. Tomé! Viva o “Sultão”! Aquilo é que é burro!
— Aquilo é que é amigo, hão de vocês dizer! — emendava o Tomé a rir. Tenho-os com dois pés, que não valem metade...
— Oh! Sr. Tomé! protestavam alguns.
— Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que não é com vocês.
E ria, ria como um perdido, enquanto, estrada fora, o “Sultão” corria que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao fundo, na poeirada imensa da estrada, como que nimbado num resplendor de apoteose. E na peugada do burro, esbaforido e como doido, seguia agora o lavrador, após o fraternal abraço, pregado no dos Casais...
Quando o Tomé chegou a casa, ofegante, a suar, cheio de gestos e de palavras entrecortadas de riso, já o “Sultão”, relinchando, pateava à porta do antigo cortelho, numa grande impaciência, um “rap-rap” contínuo na soleira.
— Venham ver! Venham cá ver! berrava o Tomé para a vizinhança. Ó Antônio! Ó compadre! Ó Maria Engrácia!
Às janelas assomava gente, perguntando se era fogo.
— Qual fogo, nem qual carapuça! É o “Sultão”, mas é! Este inimigo! Ó Josefa! Josefa! cá temos o burro, este demônio. Assoma.
Ora imaginem agora os senhores, se podem, a efusão do lavrador. Abraços? E até beijos. Aquilo era um tesouro perdido que reaparecia enfim. A mulher, do alto da escada, benzia-se, perguntando se o seu homem teria endoidecido...
— Palavra de rei, “Sultão”, palavra de rei! Anda daí pelos sacos. São só dois. Ó Josefa! Ouves? pra cá esse garrafão que está ao pé da arca, avia-te. A caneca também, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior.
E atirando as mãos ambas para a albarda, montou muito regalado, de um pulo.
— Ah!
A senhora Josefa assomava, ajoujada com o enorme garrafão.
— Anda, mulher, põe aqui diante de mim. Avia-te.
Ia a boa da senhora Josefa arriscar uma observação, um conselho, qualquer coisa de tomo...
— Adeus, minhas encomendas! Não me fanfes, mulher, não me fanfes. Põe aqui, que mando eu, avia-te. Assim. Está bem.
— Nome do Padre...
— Então que lhe queres? Deu-me agora p'r'aqui!
— Nome do Padre, nome do Filho...
— A caneca! Venha de lá agora a caneca!
—...nome do Espírito Santo!
— Passa bem, ó mulher, — concluiu às gargalhadas, entre as gargalhadas dos demais. — Ouves? Quando o Manuel vier dos ninhos, esse maroto, manda-mo às eiras. A trote, “Sultão”! Eh! valente!
E lá parte, veloz como uma seta. Já de longe volta-se do repente:
— Josefa! ó Josefa! nesse alguidar do meio umas sopas de vinho para os “Sultão”, ouviste? No do meio. O grande é muito grande, e esse pequeno não presta. Ouves? mas quer-se coisa que farte, bem entendido.
E de novo despediu como uma flecha, abraçado ao garrafão. Arreata para a direita, arreata para a esquerda, pernas a dar a dar, ele lá vai numa corrida, sumido numa onda de poeira, até chegar às primeiras “medas”.
— Vinho, rapaziada! Ó Maria do Carmo, toma lá uma pinga, mulher! Lá por andarmos de mal há 15 anos isso acabou-se!
E o Tomé atravessou a eira sempre a cavalo no “Sultão”, caneca de vinho para a direita, caneca de vinho para a esquerda.
Meia hora depois regressava, o “Sultão” pela arreata, o Manuel no meio dos sacos, e adiante do Manuel o belo garrafão — sem pinga...
Pelo caminho, a todos o Tomé contava a história, a rir como um perdido, num ah! ah! de gargalhadas sonoras, muito íntimas.
— Colheita rica, sim senhores, um colheitão!
E parando à porta, ainda a mulher se benzia do alto da escada, mexendo e remexendo o alguidar de barro:
— Nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo.
...Ao mesmo tempo que o Tomé, abrindo os braços, respondia reclamando as sopas:
— Amém!
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