9/19/2017

Um drama íntimo (Conto), de Sebastião de Magalhães Lima


Um drama íntimo

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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La vie en effet n'est qu'une idée sans valeur, une page blanche, qu'otan n'y a pas écrit ces mots: — J'ai souffert, c'est à dire, j'ai vécu.
Baron de Feuchtersleben

I

Como Amélia era formosa! que bondade a sua! que terna expressão a do seu rosto angélico; e, que sentimento! que grandeza d'alma!...

Como não eram radiosos aqueles sonhos da loura criança, que à noite ia segredar à brisa os seus amores sentidos, em infantil rubor!...

Oh!... e que meiguice não era a sua, espalhando tão docemente o aroma de seus argênteos cabelos à viração perfumada da tarde, e despertando, ao longe, os ecos da solidão com o brando dedilhar da sua harpa portentosa!...

Fantasma cruel, que, por tanto tempo, me alimentaste o porvir grandioso das minhas aspirações efêmeras! Sombra implacável de um destino falaz! Efígie derradeira de uma quimera inútil! Espectro medonho da medonha existência! Mulher! anjo! demônio! tudo enfim!...

Porém, não!... renasça uma crença, ao menos! reviva a fé, em nossos corações! dissipem-se as negruras da vida, e surja a aurora boreal de um futuro certo, e de uma verdade eterna!...

Nestes termos apaixonados falava o venerando presbítero, Francisco de Castro, ao seu afetuoso amigo, Alberto de Carvalhal, quando um raio furtivo do sol, penetrando de soslaio por entre a coma dos pinheirais, que se erguiam altivos lá no cume das montanhas, os veio despertar do inebriante gozo e suavíssimo prazer, em que, desde longas horas, se haviam esquecido dois amigos desditosos, profundamente adormecidos nos braços de uma saudade infinda.

O pescador deixara a choupana, que lhe era consolação extrema nas horas de aflitivos transes e doloroso penar, para ir estender a rede na praia mais próxima!

Ao longe ouvia-se a voz rouquenha e estridula do gondoleiro, acordando aos ecos da sua alma o doce nome da amante ditosa, que, em terra, por ele velava, dia e noite.

O astro do dia, erguendo-se fantasticamente das salsas, escamosas ondas em que parecera mergulhado, havia desfeito as obscuras brumas, que lhe empanavam o brilho, espargindo sua luz etérea pelo espaço infinito.

Tudo rejuvenescia, ao seu hálito benfazejo!

A planta, modesta e grata, elevava para o céu a corola de feiticeiro encanto, gotejando compassadamente a ambrosia celeste de suas elegantes pétalas, matizadas d'ouro e prata.

Rejubilava o passarinho no ramo frondente, pipitando a medo um eterno canto de amor e saudade.

A abelha, com a cabeça esmaltada de pedras e diamantes, as asas variegadas como o íris, encetava sua laboriosa tarefa, sorvendo diligentemente o suco da nectária, que junto lhe acenava.

Neste comenos, Francisco de Castro enlaçou seu braço direito pelo corpo do idolatrado amigo, convidando-o fraternalmente a retirar-se para casa.

— Vamos, meu bom amigo, — dizia ele, — recolhamo-nos ao meu humilde presbitério, e lá lhe contarei então, mais desafogadamente, os lances da minha existência, se a tibieza do meu espírito tanto mo permitir, e, antes disso, não afrouxar.

II

Francisco de Castro era natural de Aveiro. Filho de pais indigentes, e de baixa condição, a sua juventude deslizara, naturalmente, por entre o vegetar monótono daquela cidade, sem outro incentivo que não fosse a salutar influência de algum parente mais próximo, ou o conselho leal e franco de algum amigo íntimo.

Chegado, porém, que foi à idade da razão, os seus sentimentos abriram-se-lhe em sensações suaves num porvir radiante, e despertaram nele um prurido irresistível de ir em cata de melhores horizontes por esse mundo além.

Com este intuito, pois, deixou o nosso provinciano a terra da infância, antecipadamente recomendado, e sobejamente abonado por um comendador, seu padrinho, com destino para os portos do Brasil.

Que saudades se lhe não avivaram na mente, ao ver-se longe da pátria e dos seus! que pavor não afrontou com o rugir da procela, e horrores do naufrágio no alto mar! ele, que jamais havia ultrapassado os estreitos limites da sua terra natal! mas também, com que deleite, com que profunda emoção, não mirava ele, por noites calmosas, o manto do firmamento azul, majestosamente recamado de estrelas, que se lhe desenhavam por cima da sua fronte! e o sereno marulhar das vagas, quebrando-se de mansinho no dorso da frágil embarcação! e aquele contínuo acastelar de nuvens, debuxando tão ridentes e fantásticas figuras por sobre a vastidão dos mares!...

Como ele sonhava, então!... Como se deixava arrastar tão docemente pelos mundos etéreos de ignota fantasia, julgando ter já encontrado o almejado tesouro que ao longe lhe sorria! regressando rico e feliz ao solo natalício, e vendo já os seus, agrupados em torno de si, beijando-o alegremente! E, contudo, como foi diversa a realidade!...

Francisco de Castro desembarcara no Rio de Janeiro a 30 de março de 1849. Procurando saber imediatamente onde era a rua Direita, aí se dirigiu, sem mais delonga, aos srs. Costa Pereira & Cia., ricos proprietários de uma casa comercial, e correspondentes de seu padrinho naquela cidade.

Tanto que foram entregues as cartas, que devidamente o recomendavam, apareceu um caixeiro convidando-o a entrar, e, apertando-lhe fraternalmente a mão, como sinal evidente de futura e benévola camaradagem.

Daqui foi o nosso provinciano levado à presença de um dos donos do estabelecimento, que o interrogou minuciosamente acerca da sua vida passada, animando-o amigavelmente a entrar no escabroso labutar daquele labirinto comercial, e acolhendo-o para logo em sua casa, consoante a praxe de há muito estabelecida naquele país.

Eis aqui, pois, como Francisco de Castro se iniciou na vida ativa do comércio, desejoso, sem dúvida, de trabalhar, quanto o comportassem as suas forças, e esforçando-se o mais possível por granjear, dentro de pouco, os meios de subsistência necessários para prover decentemente às necessidades de sua família, que tanto o havia mister.

A fortuna foi-lhe, porém, adversa. Caiu, quando menos o julgava, e caiu, para nunca mais se levantar.

Repugnava lhe à sua índole, em extremo ardente, o ver-se um dia inteiro acorrentado a um balcão, não mirando a outro horizonte, que não fosse o cediço positivismo do — Deve — e Há de haver.

Cansado já daquele pandemônio tumultuoso de gelo e de cifras, intentava uma ou outra vez espairecer os olhos lassos de fadiga e sensaboria, levantando um olhar modesto e casto para uma casa fronteira, em cuja janela voejava brandamente uma andorinha gentil.

Foi isto mais que suficiente para ele ser despedido, ao cabo de alguns meses, da residência, onde tão familiarmente havia sido acolhido, logo após a sua chegada.

Assim vagueou incerto, por alguns meses, benquisto por uns, odiado por outros, sustentando, a cada passo, uma luta ingente e dolorosa consigo próprio; e regressando, mais tarde, à pátria com o vivo remorso de nada haver contribuído para o bem estar de seus pais, e de ter ido, além disso, semear a desordem e a confusão no seio de uma família estranha.

Por isso, minguado de recursos, apenas chegou a Portugal, Francisco de Castro, não contando mais de trinta anos de idade, resolveu-se a tomar ordens, expiando, com o sacrifício de seus derradeiros dias, uma mocidade, no parecer de muitos, estouvada e febril, que jamais pudera olvidar.

Estava ele, um dia, meditando deliciosamente, à sombra de anoso cedro, recolhendo, na sua debilitada imaginação, as sombras longínquas desta tragédia estupenda, que se passa entre Deus, o homem e o universo, quando um desconhecido, eventualmente, se acercou daqueles sítios!

Era Alberto de Carvalhal!

Movido pela profunda tristeza, que subitamente acometera Francisco de Castro, e pela curiosidade irrequieta de querer sondar os arcanos daquela alma formosa, que bem se deixava entrever na sua fronte generosa e ampla, e naquele seu vulto insinuante e nobre, já curvado ao peso de uma paixão prematura, e de um destino atroz, que lhe secara a seiva da vida, e lhe emurchecera as flores mais ridentes da sua primavera; Alberto aproximou-se do lugar, onde o presbítero se sentara, e prorrompeu nos termos seguintes:

— Não sei se, da minha parte, haveria indiscrição, em vir quebrar-lhe este momento de gozo inefável e plácida meditação, acordando-o à triste realidade da vida?! Confio, porém, no perdão da sua generosidade.

— Bem pelo contrário, meu caro. Um amigo é sempre bem-vindo, e, se uma ou outra vez nos apraz a solidão, é certo que a sua continuação nos causaria insuportável tédio. Precisamos de uma urna depositaria dos nossos segredos; do mesmo modo que a planta carece do orvalho para vicejar e crescer. Sente-se aqui ao meu lado, e assista comigo ao mais pavoroso de todos os espetáculos que só a natureza nos sabe prodigalizar, e que a maioria dos homens, no meio de seu estúpido orgulho, olham indiferentes.

Travada, assim, a intimidade entre estes dois corações, que à primeira vista pareciam entender-se bem; fácil lhe foi, a Alberto de Carvalhal, que Francisco de Castro lhe narrasse circunstanciadamente os tristes episódios de alguns dos seus dias passados.

Com este alvitre pois, enlaçados pela mútua simpatia, aqueles dois amigos encaminharam-se para casa, onde, depois de terem almoçado jubilosamente, Francisco de Castro, coadjuvado pelo atencioso ardor do seu companheiro, encetou o drama da sua vida com as palavras, que vão ler-se no seguinte capitulo.

III

Foi por uma tarde serena de abril. Eu, criança ainda, dos meus 13 anos, divagava, triste e solitário pela margem graciosa do meu límpido Vouga, contemplando aquele espetáculo de místico enlevo, aquela hora de profundos arroubos e de gostosa melancolia, em que o Criador mais parece falar diretamente ao coração do homem, — quando, inopinadamente, me pareceu ouvir, a poucos passos do lugar onde me encontrara, o estalido rápido e seco de um instrumento metálico. Em poucos minutos galguei um comoro, que me separava daquele sítio desastroso, encontrando-me face a face com dois personagens, que, muito intencionalmente, tinham escolhido o silêncio daquela hora para ali virem bater-se num duelo de morte. Quis dissuadi-los de semelhante propósito: nada consegui.

Travou-se uma luta feroz, e, dentro de pouco tempo, um dos adversários jazia por terra, coberto de pó, e revolvendo-se cruelmente no sangue de suas próprias feridas. Ainda experimentei, uma e muitas vezes, levantar o moribundo, e conduzi-lo à primeira guarida, que se me deparasse oportunamente. Tudo foi baldado, porém.

O outro adversário, apenas viu o contendor prostrado, e sem forças, abandonou o campo, e fugiu. Que fazer, em tal conjuntura? Eu, só, ali, sem uma pessoa única, que pudesse velar por ele. Nem sequer uma gota d'água para o refrigerar momentaneamente!!

Felizmente, meia hora não era passada, quando, ao clamor da minha voz, acorreu aquele lugar um trabalhador, que, casualmente, se recolhia a casa. Em poucas palavras, contei-lhe o sucedido, convidando-o a que velasse pelo ferido, enquanto eu, açodado, correria à cidade a dar parte do acontecido.

E assim foi com efeito. Dei-me pressa em correr à vizinha povoação. Em vinte minutos estava de volta com dois valentes companheiros para logo o conduzirmos a um lugar seguro, como a urgência do caso no-lo ordenava.

Sem saber, porém, o nome do indivíduo, nem tão pouco a sua procedência, julguei prudente entregá-lo ao cuidado de um desgraçado, mas honrado agricultor, que, de bom grado, o acolheu no seio de sua família, dispensando-lhe todo o desvelo e solicitude, que soe sempre encontrar-se no tugúrio do pobre.

O ferimento não fora mortal. O cirurgião assistente, apenas decorrido o primeiro mês, para logo o declarara livre de perigo, concedendo-lhe igualmente a liberdade de dar alguns passeios pelos campos e divisas mais próximas, com o intuito de tornar mais rápida a sua convalescença.

Pouco tempo depois, instaurou-se um processo para proceder a uma averiguação rigorosa sobre aquele fato lamentável. No dia aprazado para esse fim fui obrigado a comparecer na audiência, como testemunha ocular, que, infelizmente, houvera sido.

E fui pontual, nesse dia, aparecendo, sem dificuldade no tribunal, onde pouco depois teria de julgar-se um crime de há muito reprovado pela moral, e pelo direito. Estava impoluta a minha consciência, não me arguindo de coisa alguma, a não ser o ter eu envidado todos os meus esforços, posto que inúteis, para salvar um desgraçado.

Por isso, quando me chegou a vez de falar, contei singela e lealmente o que me fora lícito ver e presenciar. O juiz figurara-se-me satisfeito com o meu depoimento. A minha má sina, porém, já então me começava a perseguir.

Após alguns momentos de silêncio, e geral expectação, o réu começou a narrar circunstanciadamente tudo o que lhe houvera sucedido; vindo eu, finalmente, ao conhecimento de que ele era um mancebo natural de Lisboa, descendente de preclara estirpe, a quem uma paixão violenta, e uma rivalidade sem limites haviam arruinado física e moralmente.

Estavam as coisas neste ponto, quando seus olhos, por acaso, se fixaram na minha humilde pessoa. Parecera-me encontrar naquele olhar o quer que era de satânico e sinistro, que me horrorizou até à medula dos ossos. E, de feito, não me iludi.

Alguns instantes depois, aquele individuo, para quem eu fora o anjo custódio num momento de suprema desventura, apontava-me ao público como um dos principais cúmplices naquele crime; e asseverando até abertamente ter sido o meu desejo imediato o assassiná-lo para lhe roubar o pouco que consigo trouxera, se, porventura, um transeunte não tivesse ido em seu auxílio, arrancando-o às minhas mãos.

Desta vez a minha indignação tocou o seu zênite. Os olhos chispavam-me fogo; o coração, afogueado em cólera, batia-me apressado e violento. Quis falar, mas não pude. A voz prendera-se-me na garganta. Alcei os olhos para o céu, e caí, subitamente acometido por dolorosa síncope. O que depois disto se passou, nem eu o sei, meu amigo.

Quando, no dia imediato, descerrei as pálpebras amortecidas ao astro do dia, encontrei-me isolado, numa alcova escura e úmida, com uma estreita gelosia apenas, no vão da parede, por onde se coava, a custo, um tênue raio de luz.

Por informações colhidas posteriormente, concluí ser aquele o cárcere, que, logo após o julgamento, me fora predestinado para justa expiação do meu delito. Apelei para a ação da divina Providência, e sofri resignado o peso da minha cruz.

Lembrei-me, então, de minha pobre e santa mãe, ralada de desgosto, de meu excelente pai, de meus pequeninos e inocentes irmãos, enfim, de tudo o que me era caro neste mundo, e chorei... chorei... muito...

Neste ponto, o venerando apostolo de Cristo, não pôde, por mais tempo, sufocar a sinceridade de seu coração. Levantou-se do escabelo, em que se havia sentado, com dois fios de grossas lágrimas a deslizarem-lhe brandamente pelas faces macilentas; e, de súbito, alçou a adufa da janela, como se peso enorme lhe afrontasse a vista. Alberto acompanhou-o naquele movimento convulsivo, auxiliando-o de boa mente a volver as negras páginas do livro fatal da sua vida. Depois, sentaram-se novamente, e Francisco de Castro, fortificado pelas ternas consolações de um amigo sincero e bom, continuou, mais alentado, a sua história até ali encetada.

IV

O desgraçado havia ensandecido. Por isso, reconhecida a verdade do fato, me concederam a liberdade, e me restituíram ao seio da família. Ainda assim, não havia furtar-me aos olhares perscrutadores e cobiçosos daquela gente hipócrita e ridícula da terra.

Foi, pois, com este intento que meu padrinho, Francisco Marques, homem solteiro e de grandes haveres, se resolveu a persuadir minha mãe, a fim de me deixar embarcar para o Brasil, pretextando ser aquele o único meio, não só de me subtrair às línguas viperinas, que, a cada passo, intentavam empeçonhar o santuário da minha reputação, até ali intacta, senão também o caminho mais seguro para alcançar no futuro uma posição certa e definida.

Daí a dois meses já eu estava no Rio de Janeiro como caixeiro de uma casa comercial.

A ingênua hospitalidade, e natural lhaneza, com que ali me trataram, deixara-me de todo cativo daquela santa e boa gente. Fora-me, porém, impossível contrariar a minha natureza, já de si sobejamente expansiva e juvenil, escravizando-a a tão árduo e difícil mister.

Todavia, a despeito das mil e quase insuperáveis contrariedades, que então se me atulharam no horizonte da minha vida social, estava intimamente convencido, ainda assim, que a foice do tempo, roçando ao de leve por sobre os sonhos e ilusões da minha mocidade, faria de mim um bom negociante, e um verdadeiro autômato das minhas necessidades, sempre crescentes de dia para dia, se um motivo inopinado não viesse, por uma vez, cercear o nó fatal de todas as minhas aspirações no porvir.

E foi o caso:

Na rua Direita, onde eu residia, havia dois anos, habitava quase vis-à-vis de nossa casa, um diplomata de grande nomeada naquele tempo, muito afeiçoado a meus patrões, com quem nutria também algumas relações comerciais.

Descendente de ilustres avoengos, este personagem, pelos seus ademanes e ações, afigurara-se-me, desde a primeira vez que o vi, um senhor feudal da idade-média, no entranhável rancor e ódio feroz, com que olhara sempre os que lhe eram inferiores em categoria e nascimento; ou, por outra, esse bando de mecânicos, que por aí tropeça a cada canto, espécie de bestas de carga, — segundo ele — úteis, apenas, para ludibrio dos grandes e descrédito da sociedade.

Já vê, pois, o meu amigo, quão longe estaria eu de simpatizar com aquele homem, sinceramente estulto e fátuo, que receava macular as insígnias do seu brasão hereditário, apertando a mão impoluta de um pobre, mas honrado plebeu. E, no entretanto, a minha má estrela parecia caprichar em me ter escolhido, um monstro daquela casta, para meu implacável algoz.

Do seu primeiro matrimônio, que ele concebera apenas obtida a elevada posição de embaixador estrangeiro junto à corte brasileira, houve ele tão somente uma filha, em quem debalde procurou imprimir o cunho dos seus depravados sentimentos. Amélia era o seu nome.

Inebriado pela sedução de seu olhar magnético, e lisonjeado pela magia de celestial encanto que me sorria ao longe por entre o anil da minha primavera; eu, átomo insignificante, ousei, um dia, alçar a minha fronte obscura para aquele astro de divina poesia. Contemplei-o, por longas horas, num êxtase de inefável ventura, e reconheci, ao fim, a grandeza e imensidade daquele coração, para quem não fora indiferente o meu olhar receoso e temerário.

Porém, entre mim e aquela mulher existia um abismo incomensurável; um inferno medonho nos separava. Ela era rica, e nobre; eu era pobre, e plebeu.

Era, sem dúvida, uma atitude dolorosa, aquela, em que inesperadamente nos colocara um caso fortuito, e meramente instintivo. Todavia, não desanimei, e cedi maquinalmente aos impulsos poderosos do meu destino, alentado apenas por uma esperança vaga e indecisa, que me adejava furtiva e longínqua por sobre a orla do meu horizonte.

Ao tempo em que primeiramente a conheci, Amélia não contava mais de 18 anos de idade, ostentando então toda a formosura e transparência de seu elevado espírito, num rosto profundamente sereno e angélico, onde cintilavam, como esmeraldas, dois olhos verde-negros e sedutores, que me deixaram deveras cativo e enleado.

Quando, pela primeira vez, fitei a gentileza daquela imagem radiante, daquele corpo donairoso e alabastrino, daquela mãozinha tão delicada e quase impalpável, daquele pesinho de sílfide, daqueles cabelos, pretos como azeviche, ondulando naturalmente por sobre os seus ombros de cisne, à mercê da branda e tépida viração do crepúsculo; senti-me enlevado em místicas harmonias; convulso, não pude suster o voo da minha fantasia. Crera-me até arrastado no mimo da flor, e na melodia do rouxinol, a um novo mundo; julgara entrever um paraíso, nessa exuberância de seiva imaginativa, que produziu em mim um misto de sentimentos indizíveis e misteriosos.

Dir-se-ia uma visão oceânica!

Amélia, para quem a minha presença fora de todo indiferente, no princípio, começou por me corresponder, daí a um mês, com um amor apaixonado, e tão verdadeiro como era o meu. E, em verdade, tudo nos corria auspicioso e prometedor. Quase nos havíamos esquecido deste mundo, com as suas paixões e ódios ruins, para nos extasiarmos perante o desabrochar daquela ventura celestial, cujo ambiente nos envolvia num deleite imperceptível.

Porém, tudo tinha de acabar irremediavelmente; e foi exatamente, quando menos o esperávamos, que o sopro terrível da realidade nos veio dissipar, num momento, todas as doces ilusões daquele imenso amor, que nos absorvia, desfolhando-nos, impassível, todos os sonhos que nos alimentavam o ideal da nossa juventude esperançosa e meiga.

O diplomata, tendo sido competentemente avisado desta nossa mútua afeição, não só me ameaçou logo com toda a casta de doestos e convícios, como também o participou imediatamente aos meus patrões, que me despediram, nesse mesmo dia, com uma desculpa ridícula e alvar.

Amélia, essa, coitada! teve de lutar, e lutar muito, para arcar com os instintos ferinos de seu pai, a quem prestes ocorreu a ideia nefasta de sacrificar aquela vítima inocente a um interesse sórdido e vil. Aquele miserável concebera a satânica inspiração de vender sua filha a um milionário devasso, que, anteriormente, lhe havia manifestado o desejo de casar um único filho que possuía com o doce objeto dos meus sonhos sobre a terra,

Por maiores que fossem as imprecações daquele anjo celeste, alegando a impossibilidade de uma tal união com um homem, que mal conhecia, e cuja desventura seria infalível no futuro, não houve, contudo, resistir-lhe. A resolução, uma vez tomada, tinha de seguir o seu curso violento, ainda através dos mais insuperáveis obstáculos.

E, de feito, assim sucedeu!

Um mês depois, Amélia, aos olhos do mundo, era legítima esposa do tal milionário. Seu pai havia atingido o auge de glória e contentamento, julgando ter encontrado a máxima felicidade para sua filha. Era, porém, grande a ilusão. E muito calejado, por certo, deveria de estar aquele homem no vício, para não resistir ao remorso da sua consciência, e não conhecer toda a vastidão da sua perfídia e do seu crime.

Mas esqueçamos esse homem hipócrita e embusteiro, se tanto nos for possível, de que anda tão colmada esta nossa sociedade, e voltemos a rematar a nossa história com os últimos episódios de meus desgraçados dias.

V

Apenas sair daquela primeira e última casa, em que me fora lícito entrar no Rio de Janeiro, nunca mais consegui empregar-me em parte alguma. A minha reputação estava de todo perdida e manchada. Como valer-lhe? de onde haver recursos, para voltar à pátria? Em tal caso, o único refúgio seria, talvez, mendigar de porta em porta um mesquinho ceitil, com que pudesse matar a fome que me devorava as entranhas; mas, como o havia de fazer, eu, um homem robusto e apto para trabalhar? quem ousaria acreditar-me, naquelas circunstâncias? e qual seria o meu denodo para arcar peito a peito com a indignação da sociedade, arrojando-me às faces os meus erros, e passadas loucuras?!...

Todas estas interrogações dirigia a mim próprio, apertando, por vezes, entre as mãos convulsas, as minhas faces afogueadas em cólera e súbito desalento. Procurei repousar o meu corpo abrasado, e não pude. Experimentei distrair-me, e tudo cri impossível. Que fazer, pois? Apelar para a ação da divina Providência; isso seria, além de demasiada temeridade, um puro lazzaronismo. Enfim, nem sei como possa descrever-lhe aquele momento de suprema angústia, e fatal desesperança?! Só lhe direi que em poucas horas me senti envelhecer, como se já tivesse cinquenta anos de idade.

Oxalá Deus me tivesse chamado a si naquele intervalo de pungente dor e luta tenaz!...

Entretanto, a incredulidade ia-se apossando do meu debilitado espírito, e o cinismo não tardaria, decerto, a vir fazer-lhe companhia; quando senti um clarão de luz banhar-me a furto a minha existência falaz.

Nesse instante, tinha eu recebido um bilhete, concebido nos seguintes termos:

— Meu caro Francisco. — Espero-te hoje, sem falta, às 11 horas da noite, junto de minha casa. Sempre a mesma — Amélia.

Esperei, pois, por essa hora, caminhando, lentamente, para o lugar aprazado. Incitava-me uma curiosidade espantosa, e um desejo violento de poder dizer um derradeiro adeus aquela perola da minha alma.

Apenas soaram 11 horas nos relógios da cidade, de súbito Amélia, surgiu a uma das janelas da casa, acenando-me cautelosamente para que me aproximasse sem receio. Acerquei-me, portanto, daquele lugar; porém, oh! meu Deus!... o que vi eu?!... nem quero que tal coisa me lembre! Amélia, tão formosa outrora, como estava mudada!... As rosas das faces tinham-se-lhe secado profundamente; os olhos encovados, e sem brilho; as pálpebras apenas se volviam mórbidas, e sem significação. Tudo denunciava terrível cataclismo, ruína inevitável!

— Mandei-te chamar, Francisco, porque me custava desprender deste mundo, sem me despedir do único amigo que ainda possuo na terra. Perante o despotismo da força foi cega a minha humilhação, como sabes. Obedecendo a meu pai, julguei cumprir um dever filial, e nada mais. Ao menos ninguém ousará taxar-me de ingrata, nem de insubordinada, creio eu. Agora, consumou-se tudo. A vingança está prestes. Deus, decerto, não me poderá recusar a bem-aventurança de uma outra vida. Os anjos esperam-me no céu, meu amigo, e só lá então poderei encontrar a verdadeira felicidade. Lembra-te sempre da tua Amélia, meu caro, e não percas jamais a esperança da nossa união ante o trono do Altíssimo. Também imagino bem quantas privações terás passado, meu bom amigo. Não julgues, por acaso, que tenha esquecido a tua dedicação e infortúnio, no meio do fausto e esplendor em que vivo. Não; pelo contrário. Desculpa, se antes te não mandei chamar; mas só hoje me foi possível levantar as algemas de meus pulsos. Agora... adeus... sinto... passos... preciso retirar-me... Lembra-te sempre de mim... Não me esqueças... por quem és... Toma lá... recebe, agora, a última lembrança... da tua querida... E adeus... adeus...

Amélia retirou-se logo, para dentro, cerrando vagarosamente a janela, como para evitar que alguém a pudesse ver e ouvir. Eu, afastei-me imediatamente daquele lugar, sufocado, sem poder articular nem mais uma palavra. Por pouco se me não esvaíram os sentidos.

Apanhei o pacote que Amélia me pedira para aceitar, como um penhor de reminiscência das nossas horas venturosas. Abri-o, e encontrei um maço de notas do Banco, que subiam a um valor nada vulgar. Emudeci, e ajoelhei automaticamente, levantando as mãos aos céus, num ato de piedosa contrição. Volvi, depois, a casa, ansioso por dar largas à sinceridade das minhas lágrimas, longo tempo represadas, e ao brado da minha consciência generosa.

Daí a um mês estava eu no alto mar, em regresso para Portugal.

Alguns dias, porém, antes de partir, tinha, por acaso, encontrado Amélia, pelo braço de seu respeitável marido, que me lançou um olhar torvo e sinistro. Foi também a primeira vez que o vi, e, valha a verdade, poucas ou nenhumas impressões me deixou. Apenas me recordo ser ele um homem de estatura elevada, muito magro, tendo um espesso e elegante bigode a cobrir-lhe os lábios, naturalmente grossos e rudes. De nada mais me recordo. Hoje, se o visse, estou intimamente convencido, que me seria impossível conhecê-lo.

Mas, como lhe dizia, desembarquei no Porto a 2 de julho de 1852. Aí mesmo consegui a minha entrada no seminário episcopal da cidade, donde saí, cinco anos mais tarde, já com ordens sacras.

A despeito de todos os despotismos e ameaças, Amélia continuou a escrever-me todos os paquetes, até que chegou um dia em que deixei de receber notícias suas. Foi isto, cinco meses depois da minha chegada a este país. Soube, finalmente, por carta de um caixeiro da casa comercial, onde eu estivera, que ela havia sucumbido a uma tísica pulmonar, acompanhada de doloroso sofrimento e pranto acerbo.

O diplomata, ainda hoje me consagra um ódio feroz, atribuindo à minha pessoa toda a origem dos seus males e desgraças. Enquanto a seu genro, nem sei o que lhe terá sucedido. Disse-me alguém, há poucos dias, que ele viera fixar a sua residência em Portugal. De certeza, porém, nada posso afirmar-lhe.

Em conclusão, o que bem lhe posso asseverar é que, apesar da grande aversão com que aquele homem ainda hoje me olha, talvez, eu, pelo contrário, nunca lhe desejei senão o seu bem e completa felicidade. Pois, em verdade, bastava ver nele o marido de Amélia, para não poder resistir a um profundo respeito e sincera veneração.

— E que faria hoje a esse homem se, por acaso, o encontrasse? — interrompeu finalmente Alberto de Carvalhal.

— Perdoar-lhe-ia, como expressamente mo ordenam os preceitos de Cristo.

— Ora até que enfim! sou feliz, meu amigo. Deus seja louvado! — exclamou Alberto, caindo aos pés do padre Francisco de Castro, que debalde procurou sustê-lo em seus braços.

Quem era pois Alberto de Carvalhal, já o leitor, de sobejo, o terá imaginado. E a razão por que ele sempre se conservara silencioso, no decurso da triste narrativa do padre Francisco de Castro, fácil nos será supor também, por isso mesmo que ele não fazia mais do que ouvir, em parte, a sua própria história, e chorar nos seus próprios infortúnios.


EPÍLOGO

Dois anos depois Alberto era monge beneditino. Ao cilício do penitente juntara ele as lágrimas de um pecador contrito.

O padre Francisco de Castro, ao receber esta nova, que lhe era de tanto prazer e consolação, deu-se pressa em ir abraçar o seu amigo, e, por longo tempo esquecidos, permaneceram nos braços um do outro, extasiados da mútua ventura e jubiloso alvoroço.

A felicidade os acompanhe! Que a glória do Eterno lhes alente o espírito por entre as lágrimas e abrolhos deste mundo, e que a certeza de um beatifico porvir os inicie na prática das grandes virtudes!...

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