10/01/2017

A Bruxa dos Marinhos (Conto), de Hugo de Carvalho Ramos


A Bruxa dos Marinhos

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Ao lado da estrada real e à sombra espessa duma gameleira centenária em cujos esgalhos finos cantava em épocas de sazão a passarada, e arquitetavam o ninho gentil os povis e tiês mimosos de papo fulvo e penugem azulejada das campinas, ficava a venda da bruxa dos Marinhos, assim como a nódoa minúscula e alvinitente duma rês branca, sobre o fundo verde-dourado da imensa malhada que eram aquelas paragens. Avultava ao longe, mal dobrassem o cotovelo brusco duma serrota de alourejada coma de capim-melado e moitas de murici cheiroso, na várzea aberta dos buritis virentes que espanejavam, à fresca das manhãs veranejas, a sua flavela esguia e revoluteante de folhas, toda arqueada e gemebunda aos afagos do vento.

Por ali passavam tropas mineiras d'além-Paranaíba – rijos tocadores palmilhando as alpercatas de couro cru pela extensão ardente e arenosa das estradas poentas, ladeadas às vezes de barrancos escarpados e esfarinhentos de pedra-canga, por cujas erosões, vincadas, medrava tenaz o catingueiro parasitário dos morrotes. Por ali passavam, barulhentos e ralhadores, de peregrinações distantes, após haver trilhado as rechãs esturradas d'argila vermelha e sapé bravio dos chapadões, onde apenas, a quebrar a uniformidade dos horizontes, apareciam de vez em vez, ao longo dos carris profundos deixados à passagem pela roda ferrada dos pesados carros de bois, a fruteira-de-lobo e os coqueiros de macaúba, como tênues, fugaces teias de sombra espalmadas sobre a crosta recozida do solo.

Cruzavam tropeiros da terra, gente sã e escorreita, incitando aos estalos ásperos dos relhos e piraís compridos de trança fina, o trote leve da burrada, que se detinha por momentos a retouçar a babugem das margens – guizalhentas as cabeçadas – com carregamento de cristal de rocha, surrões preciosos do bom fumo goiano, ou malotes ajoujados de sola sertaneja, para as divisas estaduanas do grande rio. E não raro, chiava um carro vilarejo dos fundões remotos, ao passo tardo e hierático dos bois patriarcais, nostálgico e lamuriento à distância, como uma dessas cigarras cinzentas de areia chirriando suas desditas no tronco rugoso duma lixeira dos cerrados, à hora do crepúsculo, pelas queimadas fumarentas e asfixiantes de agosto.

Em navegando pr'essas bandas, era certo os arrieiros desavisados virem dessedentar-se da agrura calcinadora do verão tropical ali aos Marinhos, com uma bochechada cheia da boa e rascante pinga da terra, quando, as mais das vezes, não a traziam eles já nos alforjes bem fornidos da garupeira, e lá não fossem senão atraídos e tentados pelos olhos langorosos e quebrantadores da bela cabocla – arteira e artificiosa em seus gestos provocativos à sensualidade dos rapagões – e inflamados mais pela cor de mate sadia e forte de suas carnes roliças e de formas adengadas, que inquietados da fama maligna de bruxedos e avezada a desnorteamentos de cristão, que possuía a luxuriosa habitadora daquele recanto.

Muitas vezes, chocalhando a guizalhada dos peitorais e cincerros sonoros da cabeçada de prata reluzente, em cujo cimo se firmava arfante e senhoril a loura boneca da guia, apontava o primeiro lote na dobra do caminho, levantando áureas nuvens de areia sutil e detritos e fagulhas delgadas de malacacheta rebrilhante. Aos berros roucos e muxoxos cuspilhados dos lábios secos, desviava o dianteiro a madrinha que se aprumara rumo do copiar da casa.

Era uma tropa que passava.

E torcendo rédeas braças antes, na sua besta de sela de estimação, os arreios niquelados faiscando de mil maneiras, à luz estuante do sol, e as bombachas folgadas, à moda gaúcha, de padrão azul listrado ou xadrez, o moço arrieiro que pr'essas estradas batidas tenteava a existência fretando cargas, e vivia a penar enredado nos embelecos traidores da comborgueira, afastava-se pressuroso do roteiro ordinário da comitiva. Ganhava distância; e, corridas as chilenas, metia a mula rosilha num garboso esquipado à marcha picada e vinha, riscando curto o bicho, esbarrar mesmo a dois passos da porta, espancando o ar quieto e morno do interior, onde uma ou outra mosca caseira voejava sonolenta e trôpega por sobre os coscoros duros do balcão, com um forte e sacudido:

– Ó de casa!

Ao tropel, acudiam dos paióis e alpendres onde modorravam suas mazelas e a preguiça meridiana, os rafeiros varados da vigilância, leprentos, coberto o fio do lombo de quistos bichosos, orelhas tronchas em pé, investindo firmes e às alertas com os latidos ferozes. Molecotes, crias da casa, chegavam ao limiar, longas tereas de cipó ou embira na mão pronta; enxotavam às pancadas rápidas e atiradas ao acaso a cainçalha assanhadiça, que arisca e irrequieta se furtava para os lados, para de novo arremeter, esquelética e reincidente; té que, corridos às vergastas, encafuavam todos pelo vão estreito das cercas de nó-de-porco e sucupira das tranqueiras, onde se postavam rosário de horas farejando e ganindo ao léu, ventas ao ar – tresandando rabugem – ou a peluça crespa, enrodilhando-se, enroscando-se, a ver se apanhavam a raiz da cauda apinhada de larvas, arrepiados e ameaçadores.

Descerram-se os tampos da janela de batentes de cabiúna, onde signos de Salomão e marcas de gado se assinalavam a carvão e ferro em brasa; assomava o rosto amorenado e redondo da benzilhona, abertos os lábios úmidos e rubros num sorriso discreto e enigmático de acolhimento, convidando o forasteiro a apear-se ao amparo da soalhada: Que sim, que ia mesmo braba nesses chapadões, dizia persuasiva, meneando a cabecita sestrosa, onde duas tranças fartas, luzidias, se bipartiam de meio a meio.

Desengonçado no arção da sela mineira, o pé esticado num único estribo, na posição habitual de descanso, titubeava o moço arrieiro; olhava no alto o céu sempre azulíneo e ofuscante de luz, cerrava um canto d'olho, mão alçada, a atenuar a crueza dos raios solares, e embrulhava uma escusa tola, dando tempo à própria incerteza, perplexo na execução dum ato que se lhe afigurava de importância suma:

– O sol assim parece que vai descambando, dona, duas horas pelo menos; – a mula rosilha vinha sentida dos rins; no segundo e quinto lotes vários burros pisados no espinhaço, pelo atrasamento da carga; os dobros dos da frente, mal divididos desde a saída do pouso, não ajeitavam bem e iam dando um trabalhão pelo caminho, dissera-lhe o dianteiro ao topá-lo ali atrás. Confiança, lá isso tinha na sua gente e sabia que tudo seria bem cuidado e remediado no pouso, à hora da descarga; mas – e voltava ao assunto primitivo – a rosilha não ia bem, sentida dos rins, o que o punha preocupado, tanto mais que o macho mascarado, trazido à escoteira, sempre à mão, para atalhar tropeços e incômodos de montar na necessidade lombo chucro de animal ruim ou passarinheiro, aguara dos cascos na subida da serra do Corumbá...

E engrolava escusas néscias, cuidados falsos com coisas que lhe não diziam o mínimo respeito – obrigação exclusiva dos camaradas – desajeitado, tímido, como que arrependido já da íntima fraqueza, e tivesse vergonha e acanhamento de mais uma vez render o seu preito submisso à cabocla.

Ela sorria sempre, o encarnado vivo do lábio inferior acentuando-se sob a alvura dos dentinhos espontados à faca, com aquele mesmo sorriso que lhe fazia as tristezas nos pousos distantes, quando, ferindo magoado as cordas gemebundas da viola, recostado no punho móvel da tipóia macia de algodão ou de imbé, relembrava em quadras toscas, improvisadas ao acaso – algumas de imagens coloridas e nítidas – esses mesmos beiços polpudos, seios sublevados e as faces carnudas da sensual moradora daquele cochicholo da estrada real – desespero de quantos boiadeiros brônzeos e ricaços em trânsito nessas plagas, que se iam sertão em fora ruminando, desaforados e impotentes, quizílias e secretas maldições contra as feitiçarias e quebrantos em que os traziam envotados o riso e olhar felinos da terrível ensalmadora.

Remoía desculpas o moço arrieiro, desacoitado do cocuruto o chapelão de abas largas. Ela insistia, maneirosa e hospitaleira, vencendo a fragilidade dos escrúpulos do cabra. E retinindo nos cachorros de ferro batido os grossos rosetões, rendilhados em crivo, do par de esporas, entrava ele sala adentro, abancava-se a um dos tamboretes de tauxias amarelas e couro curtido de mateiro, onde ficava a prosear, arrotando pabulagens de mestiço pernóstico e chupitando a miúdo goladas fartas dum pipote velho de aguardente, que um menino ia medindo e vendendo a meia pataca o quartilho, ou entretido com a lábia e ademanes da dona dengosa e impudica, num derriço palerma, à espera do café costumeiro.

No copiar à banda ou sob a copa da gameleira, mastigava o freio pachorrenta e encilhada a mula estradeirona, aos cochilos cabeceantes, perturbada às vezes pelo zumbido tenuíssimo dos miruins do campo e ferretoadas agoniantes das pardacentas e achatadas mutucas sugadeiras; e estrada afora, a sumir na estiva do rego além, ou cá no cotovelo da serrota, ia a toada argentina das cabeçadas das madrinhas da tropa, na branda e ligeira cadência da marcha, demorando em espiras largas no ar, e enchendo e abalando de vibrações quérulas os ecos sucessivos das quebradas longínquas, apressurada de mais a mais pelo relho dos peões dos lotes a passar, que bem sabiam o patrão ali enrabichado, presa duma suçuarana de nova espécie, e o pouso longe, légua além, de boas aguadas e encosto seguro para os animais solertes e avezados a sumiço.

Às vezes, nos dias festivos dessa transparência deslumbradora que é característico invariável do estio goiano, topava ele ali gente de fora e a companhia de forasteiros que se deixava a bebericar era animada. Ficava então horas a fio alheado, conversando com a roda nos assuntos do ofício, o olhar devassando pelos corredores o interior varrido e asseado da casa, que findava num terreiro capinado e limpo, aquém do quintal ensombrado, onde pendiam, em festões engrinaldados, os limoeiros azedos, o laranjal pejado, cuja grimpa era de momento a momento assaltada por densas revoadas de guaxos e joões-congos de peito amarelo e acerado bico, perfuradores dos frutos sumarentos, que se punham a merendar álacres, numa orquestra alada de vivos e azoinantes galreios.

Ele reparava enublado tudo aquilo; deixava-se esquecido a sacolejar no fundo da tigelinha de café aromático, sarapintada de azul, os últimos resíduos do açúcar em dissolução; anotava lá embaixo, na estrada ampla e areenta, barrada a orla do rasteiro capim-gengibre, o passo acelerado e tilintante do derradeiro lote, instigado pelo culatreiro empoeirado e suarento, a desaparecer no cotovelo verdejante da serrota, rumo dos arranchamentos, onde já folgariam os tocadores passados; e, pesaroso, recordava que era também tempo de se lhes ir juntar. Despediase impulsivo da bela cabocla – a quem só veria meses depois, talvez um ano, talvez nunca mais – saltava desembaraçado na rosilha desperta em sobressalto ao abrigo da gameleira, e partia direito, sem voltar a cabeça sequer, naquele mesmo esquipado à marcha picada da chegada, o arreame niquelado todo cintilante ao sol...

Ao pouso arribava à boquinha da noite, feita a descarga, raspada, curada e amilhada a tropa já no encosto costumeiro da aba do morro, esfregadas a sabuco, afofadas e atalhadas as cangalhas pisadoras, a janta desempoleirada do gancho da mariquita aberta sobre o brasido, ao voejar imperceptível dos primeiros enxames de muriçocas e pernilongos saídos dos charcos de juncais e angola das baixadas alagadiças, quando nas restingas de mato da beira dos córregos e capões, começavam a sua terna elegia as jaós merencórias do sertão; e longe, nas várzeas tenras onde o jaraguá altaneiro campeava eternamente viçoso, nos descampados limpos, semeados aqui, além, de palmeiras incipientes de indaiá abertas em leque à flor da terra, piava aguda, lamentando-se da ausência da companheira predileta, a perdiz solitária das campinas, a lançar alarmas estrídulos aos ecos despertados das quebradas remotas, duma coloração pôr-de-sol verde-negro sombria, e reavivando extintos pruridos de caça aos ouvidos tensos dos velhos perdigueiros – nédios e bocejadores ao calor do borralho – que acompanhassem a comitiva.

 ***

Ali passei eu duma feita pelo arroxear suave de melancólica tarde de fins de verão, quando nos tabuleiros elevados e descampos mal desabrochava ainda a humilde flor-de-maio das campinas, rumo sul e da primeira estação da estrada de ferro, então aos barrancos do Paranaíba, pronta a transpor esse natural obstáculo das divisas estaduanas, e galgar sertão adentro, conquistando, transformando e aniquilando tipos, costumes e aspectos, na marcha arrasadora do progresso, da civilização.

A vivenda lá continuava ao sopé da estrada, e à sombra da mesma centenária gameleira. Não mais porém, em rumorosas manhãs de estio, ao guizalhar festivo das tropadas passantes, se via o freteiro abandonar pressuroso o roteiro batido para vir ali, sedento, matar pesares e saudades da ausência prolongada.

Escalavradas eram as paredes do emboço alvacento, a mostrar, como alastrações de lepra, escorrimentos profundos nos adobes esborcinados, a desmanchar-se, lodosos e amolecidos, nas chuvadas de invernia. Um limo viscoso e esverdeado, gotejado pelo estilicídio dos beirais desconjuntos e a cair, sobrepunha-se em camada fina, rente ao chão, no rodapé de oca barrosa. Pelas fendas do lajedo, na linha do oitão, vegetavam as beldroegas tímidas, o capinzal de raiz e gramíneas próprias dos taperões há muito deixados.

Ao lado, no desvio, assoberbava o assa-peixe tristonho, agitadas as franças cá e lá pela arribada atônita duma aluvião de pintassilgos, coleiros e patativas apanhadas a petiscar pelos pedúnculos cacheados e floridos; embaixo, como lagartas esverdinhadas, rastejava a praga da tiririca miúda, os provisórios de caroços espinhentos, o fedegoso bravo, as malícias garranchentas e irredutíveis, a apegar-se, como carrapicho, à canela do desastrado animal aventurado na vereda. Para o fundo, no quintalejo maltratado e sujo, mirravam as laranjeiras sob as ervas daninhas; e como provasse uma fruta temporã que um galho peco oferecia, achei-a azeda, amarga quase, como uma punição.

Cercas e paióis, tranqueiras e currais desmantelados, atravancados de imundícies e monturos, donde, como serpes, saíam emaranhamentos compridos de touças de cabaceira e buchas-de-paulista, emergindo dependurados, como brincos colossais, os seus frutos balofos e aquosos – estralejando com estrépito sob os pés as cabaças que a estação sazonara – tão ocos, tão vazios, como o interior bolorento daquele mesmo casebre, a desfazer-se em ruínas, como uma enorme maldição, sob o matagal.

Entretanto, no verde perene de que se revestira o sítio, havia algo de anormal e trágico, misto vago de íntimo terror e inexplicável aperto, a gerar arrepios de pavor aos que, como eu, se detivessem a contemplar, àquela hora do anoitecer, o estranho aspecto da tapera, batida a cumeeira de telha-vã dos últimos clarões crepusculares...

Ao condutor – um tipo robusto e acaboclado de nortense, lábios finos e olhos profundamente rasgados de índio – que tão inquieto e impaciente se mostrava à aproximação da noite com a nossa demora ali, indaguei, curioso do descaso e feição lutulenta daqueles ermos.

Ele – viagem andante viera narrando a íntima satisfação e gozo violento de que se sentia noutras eras invadido em se aproximando dessas bandas – olhou-me em silêncio de alto a baixo, como que avaliando se estava a zombar; esteve algum tempo considerando, incrédulo da presumida ignorância, fez depois uma visagem supersticiosa de esconjuro, e o índice afuzilado – cor de tisne – designou um marco carunchento, que as enxurradas tinham aluído, meio oculto em macegas de são-caetano.

– Uma cruz...

– Aqui, patrão, pela passagem das últimas boiadas, encontraram-se e acabaram a botes de faca, dois cabras da terra, ambos desempenados e amigos, aos quais desnortearam as mandingas da bruxa: filhos do mesmo pai, filhos da mesma mãe...

Quedou-se mão no queixo, a olhar estarrecido. No céu, lacrimejava já a estrela boieira. Um acauã grazinou mato adentro, espreitando agoureiro.

Benzeu-se, e ferrando esporas, afastou-se cabisbaixo, a trote rápido.

– E a bruxa? – disse alcançando-o.

– Ah, sim, a bruxa... Essa, decerto, levou-a o cuca num pé-de-vento, à hora da meia-noite, pela sexta-feira do quarto minguante...

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