10/22/2017

A Guerra (Conto), de Alberto Braga


A Guerra
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha do Eusébio moleiro, e da margem oposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio Anselmo.
Eram dois velhotes viúvos, de bons sessenta anos, e amigos desde crianças. Para contradição do anexim popular, estes dois moleiros queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo ofício.
Parece que o rio, naquele sítio, era até mais pitoresco! Por detrás das azenhas descia a infesta de uma cerrada deveza de carvalhos e sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os machos carregados com os taleigos da fornada. Mesmo à ourela havia alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As águas caídas nos açudes, vinham costeando uma gandara, escondiam-se em meio de um canavial, e surgiam depois mais límpidas até às rodas do moinho, que as marulhavam e batiam constantemente.
No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se a miúdo, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas do outono principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a falar de um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois dizia o Eusébio:
— Anselmo, fala mais alto, que te não ouço.
— O que é? — perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.
O Eusébio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:
— Não te entendo.
Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos anos que os tinha quase surdos de todo. Pobres velhos!
O Eusébio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois anos, como um castelo! Ainda o dia vinha longe, já ele estava a trabalhar, que era um regalo a gente vê-lo.
— Lida como um mouro! — diziam os conhecidos.
E se havia esfolhada, ou espadelada, quem lá não faltava era ele.
O pai, que, em outros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, à boca da noite:
— Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os fregueses.
— Estava arranjado! — respondia o moço a rir. — Vocemecê já deu o que tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!
Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha mais fregueses a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a brincadeira.
E o velhote do pai, quando alguém lhe contava as diabruras do filho, parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.
O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ela Margarida, e era formosa, daquela formosura campesinha, sem artifício, jovial e expansiva. Em dotes do coração — que é a principal beleza! — nem as mais virtuosas a excediam.
Desde pequenina foi Margarida criada com Simão. Se não ficasse mal estabelecer agora paralelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que os dois se queriam e estimavam como Paulo e Virgínia.
Quando os quinze anos de Margarida, que era mais nova dois do que Simão, vieram pôr termo aos brinquedos de infância, então principiou ele a olhá-la com aquele respeito com que se olha para uma irmã mais velha.
Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes acrisolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no generoso coração do rapaz.
Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor, fingia-se contrariada, carregava o sobrolho e mudava de conversa. Destas esquivanças repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do moleiro.
— Margarida — dizia-lhe ele de uma vez — se não quiseres casar comigo, hei de morrer solteiro.
— Não te faltam mulheres, Simão.
— E se te vejo ser de outro — protestava o rapaz com as lágrimas nos olhos — não sei que faça, que me não mate.
E Margarida era tão cruel, que assim desprezasse o seu amigo e companheiro de infância?!
Nós veremos já até onde vai a dedicação de uma mulher.
***
Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e de D. Miguel.
Quando às aldeias chegavam notícias aterradoras, as mães estremeciam ao contemplar os filhos afadigados na lavoura.
— De mortos nem a conta se sabe! — diziam os mensageiros. Vai por aí a fim do mundo!
— Jesus, Senhor! E então diz que é guerra de irmão contra irmão!
Valha-nos Deus!
De uma vez, oito soldados e um furriel pararam à porta da azenha do Eusébio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados aflitivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram o filho, ainda tentou abraçá-lo; mas — coitadinho! — como já lhe custava a andar, quando chegou à porta, ia o rapaz a subir a encosta.
Aos gritos da vizinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha. Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um grito agonizante e caiu desfalecida nos braços do pai.
As águas tinham engrossado com as últimas chuvas, e os dois velhos, quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas criancinhas!
Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobressaltada com o tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma batalha a pequena distância.
Quando a tropa ali passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a espingarda ao ombro, a mochila às costas e a chorar! Ao passar rente das casas ia saudando os conhecidos, e dizia às raparigas que pedissem a Deus por ele.
Saiu do povoado sem ter visto o pai nem Margarida. Levava o coração retalhado!
Assim que a filha do Anselmo o soube, quis logo ir ter aonde pudesse falar-lhe.
— Isso, Deus te livre! — disse-lhe do lado uma vizinha. — Se lá vais, lá ficas! E, de mais a mais, teres de falar com soldados! credo!
— Lá isso — atalhou a moça — também o Simão é soldado, tia Joaquina!
Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulâncias dos mortos e feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros com as pernas partidas, quase todos moribundos!
Nunca se tinha visto uma coisa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se os clamores da gente que se aglomerava para os ver. Destacavam-se algumas frases das ambulâncias:
— Ai! minha pobre mãe!
— Ai! meus ricos filhos!
E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.
Alguém dentre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulância:
— Meu… pai! Marga… rida! Eu morro!
E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça sobre o peito, e descair um braço fora do carro.
Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavalos insofridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava aflita. O retinir das molas da carreta, rodando nas lajens irregulares de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se mais de um carro, pegou no braço que bamboleava, estendido fora da ambulância, à mercê dos solavancos, reparou atentamente num anel que o morto levava, e principiou a gritar:
— O Simão! Morreu! morreu!
E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.
Quando um vizinho entrou na azenha do Eusébio, para lhe dar a notícia da morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a rezar, com os olhos postos num crucifixo, e um rosário entre os dedos.
— Reze-lhe por alma! — disse o vizinho a chorar.
O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou espantado:
— O que é? — e aplicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido correspondente.
— Morreu! — gritou-lhe o outro.
O Eusébio empalideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no vizinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente à cabeceira da cama, e tirou detrás uma espingarda.
— Isso para que é, tio Eusébio? — perguntou-lhe o outro ao ouvido.
— Vou matá-los! — respondeu o moleiro com uma voz convulsa. — Vou matá-los!
Mas quando ia, com a espingarda ao ombro, a transpor a soleira da porta, cambaleou, e caiu fulminado para a outra banda…
Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou aflito a casa, a esbofar, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!…
***
Ainda conheci, há muitos anos, o pai de Margarida.
Era por uma formosa manhã de abril.
O velho estava fora da azenha, sentado em uma cadeira de entrevado, com os pés estendidos a uma réstia de sol. Em volta dele, chilreavam os passarinhos na ramaria frondente do arvoredo.
Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Eusébio; e, depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça para o rio, e perguntava baixo, de si para si:
— E a Margarida?!…
E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as águas do rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!

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