10/23/2017

As Arrecadas da Caseira (Conto), de Alberto Braga


As Arrecadas da Caseira
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Reza a Folhinha que é a 26 de fevereiro o dia de São Torquato — santo guerreiro, que recebeu na face esquerda um golpe de alfanje maometano, em guerra de cristandade; — mas a grande romaria tinha sempre lugar aí pelo meado de junho.
Fica a ermida situada em vasta esplanada, no alto de uma colina.
Logo ao romper d'alvorada, pelos atalhos da encosta vinha subindo a turbamulta dos romeiros foliões. Há cinco anos, como estava um dia de muito sol e de grande calor, era bonito ver o rancho dos lavradores, que vinham abrigados debaixo dos enormes guarda-sóis de paninho escarlate. Aquilo é por luxo! Olha quem! Eles que andam todo o santo dia do trabalho, no meio dos campos, a sachar, a lavrar, a podar, expostos à torreira, tem lá medo do calor! Pois assim que chega um dia de festa, fingem-se mimosos e abrem então os seus guarda-sóis. Outros que são mais francos, nem sequer os abrem; qual! metem-nos debaixo do braço assim como quem abrange um molho de varetas de baleia com paninho encarnado, e lá partem alegres para a romaria.
No lugar do arraial havia arcos de buxo com flores, flutuavam as bandeiras no topo dos mastros, estalavam no ar os foguetes de três respostas; e, de quando em quando, para que a folia não arrefecesse nos ânimos, rebentava um morteiro, que atroava por todas aquelas serranias. Então, via-se uma revoada de passarinhos, que fugiam para longe, espavoridos pelo estrondo!
Por detrás da ermida ficava uma alameda, e era da alameda que se gozava um panorama delicioso.
Ainda me parece que estou a ver de aqui os excelentes campos de milho já maduro, as searas do trigo douradas do sol, e em alguns campos, como o trigo viera temporão, e já tinha havido a sega, aparecia apenas a resteva; dos ramos dos olmeiros, pendiam as vides d'enforcado, e, aquém e além, em alguma herdade de proprietário abastado, destacava-se da ramaria escura dos castanhais as folhas de um verde tenro e alegre das latadas. Ao fundo, pelo córrego abaixo, seguia uma levada que ia mover ali perto as rodas de uma azenha.
No arraial alvejavam as tendas de lona, onde se vendia o vinho verde e o savel frito. Era ali que estava a grande animação!
— Beba um quartilho, tio José — oferecia um freguês.
— Pois venha de lá.
E então a peixeira, com os braços arremangados e farruscados da fritura, servia um coparrão de vinho espumante.
— Vai outro?
— Nada — acudia o tio José, enxugando os beiços às costas da mão — nada; eu quero beber, mas a modos. Se um homem lhe bebe demais, como o outro que diz acaba por beber o juízo.
Como havia missa cantada e sermão, ouvia-se cá fora a música do coro e o canto arrastado e nasal dos padres. Os devotos entravam e saiam constantemente. De uma vez, à porta lateral da sacristia que deitava para o adro, apareceu o sacristão vestido de batina escarlate com sobrepeliz franjada de rendas, a agitar o turíbulo de prata para atear mais o fogo do incenso! Não faltava nada!
Em meio daquele poviléu houve um movimento extraordinário! Os romeiros que estavam ao longe a admirar os músicos do palanque, acudiram também a ver o que se passava! Havia apertões, recuadas, empuxões e gritaria. Formaram-se de repente duas alas de povo, para abrir uma passagem respeitosa; e, nisto, a berlinda da senhora morgada, que era a juíza da festa, apareceu então, tirada por dois cavalos possantes, com criados de libré, chapéus de tope e agaloados, rodando vagarosamente em direção à porta da capela. Nesse momento solene subiu ao ar uma girândola triunfante!
***
Quem nunca faltava à romaria de São Torquato era a tia Custódia da Moita, que lá ia sempre com o homem e o netinho. Ninguém havia por aqueles arredores mais estimado e benquisto. A simpatia que eles inspiravam vinha de serem muito amigos do próximo, tementes a Deus e ao mesmo tempo serem muito felizes!
Ora façam uma ideia do que eles sofreriam! Tinham tido uma única filha, bonita moça, amiga dos pais; mas como era muito amorável e não pudesse ouvir chorar ninguém que não acudisse logo a consolar, deixou-se levar pelas lamúrias de um fidalgote de Braga e…
A inocência, a bem dizer, se não é de todo cega, trata o amor de lhe vendar os olhos!
No fidalgo — são baldas certas! — ao cabo de um mês de apaixonados amorios, nunca mais ninguém lhe tornou a pôr a vista em cima. A desgraçada rapariga não teve mão em si, e confessou tudo à mãe. A velhinha chorava, que era uma dor de coração ouvi-la.
— Vocemecê anda doente? — perguntavam-lhe as vizinhas.
— Não ando lá muito boa, não.
— Vá ter com o cirurgião, tia Custódia.
— A doença que eu tenho, filha — opunha ela — são paixões d'alma, e não se curam na botica!
Decorridos alguns meses, a rapariga expirou, depois de ter deixado no colo da mãe uma criança recém-nascida.
Ora vejam! Desgraças que acontecem!
Vai para três anos que o mês de dezembro foi para este pobre país um mês de calamidades! Ainda toda a gente se recorda com mágoa daqueles dias e noites tempestuosas, em que a chuva caia copiosa e torrencial, levantando os rios do seu leito, alagando os campos e destruindo as sementeiras! Na manhã seguinte a uma dessas noites terríveis, doía o coração a quem fosse pelas aldeias e visse tantos estragos do temporal. Uns riachos, que no verão parecem uma fita d'água, que serve apenas de bebedouro ao gado, tomaram tais proporções, era tão forte a sua corrente, que levavam adiante de si as rodas dos moinhos, os telheiros, as árvores, o gado, tudo! Era uma desolação completa! à porta dos currais ficavam os pastores toda a noite de guarda com receio de que as enxurradas lhes levassem os bois e os rebanhos. De dia, encontravam-se os lavradores à entrada dos campos, a contemplarem pesarosos tamanhas ruínas; e alguns, com os braços cruzados, meneando tristemente a cabeça, exclamavam, abatidos pelo infortúnio:
— Ora aí está tanto trabalho perdido!…
Depois da chuva e das trovoadas vinham então as lufadas aspérrimas do norte. Parecia mesmo que era castigo! A ventania varejava impetuosamente nos ramos nus do arvoredo; e, se algum sobreiro mais valente, que se tinha arraigado mais à terra, tentava resistir, soprava de rijo um pé de vento, arrancava-o, como se lhe metesse pela raiz uma pá de ferro e… derribava-o! Imagine-se o que sucederia às árvores mais tenras!
A tia Custódia da Moita trazia arrendada a quinta de um proprietário do Porto. Assim que chegava o mês das colheitas, a Custódia ou o marido vestiam-se com o fato domingueiro e iam à cidade pagar a renda. E que se não dilatassem muito tempo: quando não, era logo uma carta do senhorio ameaçando-os de os pôr fora. Morava ele na Reboleira, uma casa de aparência ordinária, com uma escada muito íngreme, suja e pouco alumiada. Os caseiros encontravam-o sempre a passear ao longo da sala, que deitava para o rio, com as mãos enfiadas nos bolsos de um casacão de saragoça já velho e remendado. Até a Custódia dizia às vizinhas:
— Tão rico, o Sr. Torres, e anda que nem um pobre de pedir!
O Torres era um celibatário, egoísta, magro, esguio, nariz adunco, olhos pequeninos e vivos como os de uma ave de rapina!
Depois da invernia, a primeira vez que se chegou o mês da renda é que era ver o Torres!
Entrou a tia Custódia, levando o netinho pela mão. Expôs ao senhorio a sua desgraça, pedindo-lhe que por essa vez lhe perdoasse ou diminuísse a renda.
— Adeus, minhas encomendas! — exclamava o avarento — De cantigas não como eu! Se vocemecê não quiser, não falta por lá quem me amanhe as terras.
Para encurtar razões, a pobre mulherzinha sacou da algibeira um embrulho, e entregou-o ao Torres. Eram dois pares de arrecadas e um grilhão de ouro.
— Só o cordão, meu senhor, — dizia a caseira — tem quatro moedas!
O Torres observou o ouro, sopesou-o na mão; e, fechando-o em uma gaveta, disse:
— Pois bem! Quando me trouxer a renda, levará o penhor. Adeus! até ao verão.
Depois que a Custódia saiu, um vizinho tendeiro dizia contristado:
— A pobre de Cristo até ia a chorar; e o rapazinho de ver chorar a avó, chorava também! Aquele Torres, diabos o carreguem, é assim…
E mostrava a mão fechada, explicando:
— Um unhas de fome!
***
No ano seguinte não apareceu na romaria de São Torquato a tia Custódia da Moita. Coitada! Como não queria confessar ao marido que tinha empenhado as arrecadas e o grilhão, fingiu-se doente, e não houve forças humanas que a tirassem de casa sem o seu ouro.
— Não que o seu homem — pensava a tia Custódia — se tal soubesse, e Jesus! era capaz de ir ter com o senhorio e fazer alguma desordem.
— O meu Joaquim? — acrescentava ela. — Boa! Tem sessenta e cinco anos; mas aquilo para armar uma bulha parece um rapaz!…
***
Post-scriptum.
Agora veja-se o bom e o bonito!
Há poucos meses os jornais do Porto prantearam a morte do Sr. Torres, capitalista abastado, filantropo e respeitado por todos os conhecidos.
Esqueceu a confirmação das vítimas, a quem ele emprestava a 28 por cento!
Oh! mas era boa pessoa e caritativa, que até deixou o retrato à ordem do
Terço e duzentos mil reis para missas de doze vinténs pela sua alma!…

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