10/22/2017

Bretan (Conto), de Ana de Castro Osório


Bretan
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Certamente a mais ninguém acontece ter como eu um medo atroz, um respeito fetichista, pelo correio.
Um comboio que passa, com a sua cabeleira ao vento; os seus gritos agudos, o seu tam-tam monótono, não me traz à ideia a alegria descuidosa dos que partem para recriadas viagens, não! Eu penso que naquela caixinha, estreita como um esquife, vai amortalhado muito coração, vai muita lágrima alastrada em tinta, levar a todos os cantos do mundo a mágoa que a fez sangrar.
Muita alegria diz também aquela pequena chapa com sete letras a pátio... Diz certamente; mas não a alegria sã e completa dos felizes que não têm ausentes! Quanta saudade de mãe amargurada, que ao deitar a sua carta na caixa sentirá a mesma impressão dilacerante de lançar com ela o coração!... Quanto conselho de pai, martelado a soluços!... Quanto desespero de namorada confiando ao acaso das viagens o seu pobre amor feito em frangalhos!... Quanta tristeza numa frase em que se pergunta pelo anjinho, que se viu nascer e que longe cresce e se faz sábio, sem que os nossos olhos o envolvam de carícias!... Quanto beijo dado no vácuo; quantos braços estendidos a pedir socorro, caindo inertes sem ter que abraçar! Quanta mentira, quanto desespero, quanta saudade!... Tudo isto passa pelo meu espírito anuviado, dando-me a gélida impressão de temor!
Até os pobres carteiros, cuja miséria reclama espórtula, têm um modo autoritário de bater às nossas portas. Queiras ou não queiras, aí te vai a carta de pátio que faz refluir todo o sangue ao coração, a frase crua que despedaça amizades, o rendilhado fementido de um afeto que sentimos morto.
Sobre uma carta encontrada, toda uma vida se pode refazer; desenhar justamente um caráter; ter quase palpável, diante dos nossos olhos, a figura sorridente ou lacrimosa, entusiasta ou fria, resignada ou inquieta, que ao papel confiou as suas impressões. Mas nenhuma como esta, que uma piedade estranha roubou à bruta indiferença de um pai, dá a flagrância de uma alma.
Por delicadíssima oferta de quem sente a vida como eu a sinto e compreende como eu compreendo a amargura dos que sofrem, ela me chegou às mãos, tal qual a vou copiar:
— “(Bretagne) le 8 Fevrier 1892.
Je rèponds a ta lettre reçu le 2 Fevrier nous sommes en très bonne santé nous désirons que toi il en soit de même. Nous avons reçu avec beaucoup de plaisir les details de ta situation soit sur le passée comme sur le prèsent. Je s'ai que tu n'est pas en peine pour diriger tous les travaux comme ils se font en France. Pour faire la cuisine tu n'est pas noice l'on doit être content d'avoir un aussi bon cuisinier que toi surtout pour lapin et lievre. Avec 3 jambons et du lard tu en a là pour prépare beaucoup des liévres.
Je pense que tu dois boire du vin j'ai entendu dire qu'on recolté du vin très renommé. Je suis très satisfaite que tu ai fait toutes ces emplettes car elles sont bien utiles. Mais maintenant que tu as toustes vètements nécessaires, puis qu'il y a beau coup du gibier cela doit servir pour une bonne parti de ta nourriture alors une personne seule avec le gage que tu gagne si j'etais a ta place il me semble que je tacherai moyen de mettre un peu d'argent de côté car si plutard tu en avant besoin tu aurai là ce qu'il te faudrai car l'argent ne nuie jamais, je ne pense pas. Cher père de te fâche quoique je te donne ce petit conseil mais tu s'ai l'argent est bien utile sans cela ou ne peut rien faire. Comme tu me dis que tu as acheté une couverture de laine dans ta prochaine lettre tu me dira si tu a un appartement ou tu fait ta cuisine et si tu couche dans un lit tu me l'expliquera. Tu connais donc le roi du Portugal? ce serait un grand honneur pour toi si Sa Magésté venait chasser avec toi ainsi que tu me le dit mais je crois que tu ma dit cela pour me faire rire mais peut être il n'y a pas beaucoup des chasseurs en Portugal. Fait-on la chasse aux macreuses comme ici toi qui aime tant cette chasse lá tu n'en parle pas. Comme tu me parle de la mer vois-tu la Mer Méditerranée ou l'Ocean Atlantiquê? Tu me dira aussi si tu parle Français ou Portugais. Tache moyen de conserver ta bonne place et du commerce ne m'en parle pas car c'est le commerce qui nous a occasionné tous nos grands malheurs. J'ai a te dire qu'il y a appeine un an que j'ai commencé un petit jardin dans la cour du cellier je vai t'en donner un aperçu a partir du portail jusqu'au 1.er figuier j'ai fait une palissade, lá j'ai planté 3 rangs d'arbres fruitiers, j'ai fait un petit chemin qui fait le tour des arbres, et j'ai fait des anglaises, lá j'ai planté tout éspeces de fleurs ce serait trop long pour te dire tous les noms des fleurs que j'ai planté, tout cet été qui s'ai les fleurs que j'ai eu pour porter à l'Eglise. J'y ai mis aussi des fraisiers, des grosselliers, des souches pour faire grimper en un mot rien n'y manque que d'avoir un puits. Comme je ne sort jamais pour aller en promenade je vai passer beaucoup des moments a voir mes plants les arroser lui enlever les mauvaises herbes et cela me distrait beaucoup. Depuis le mois de Novembre mon jardin est plein de violettes. Le climat du Portugal doit être plus chaud qu'ici il ne doit sans doute pas tombé de neige, mais pour nous il fait un hiver pluvieuse nous n'avons seulement pas eu le vent du nord nous voyons la neige sur les montagnes mais il ne fait pas froid. Si tu ne peux pas ecrire pour la fin des mois jusqu'au mois d'Avril ou Mai c'est trop loin tu peux ecrire vers le millieu de Mars le plustard. J'ai donnè des nouvelles a ma Tante e mon Cousin. Ton ami Gilbert vient a la maison de temps en temps il nous demande toujours de tes nouvelles car il t'aime bien mais Gilbert a été bien éprouvé comme nous, tu peux penser comme il est desolé il y a plus d'un an qu'il a pérdu sa pauvre fille.
Je termine ma lettre cher père en t'embrassant du fond du cœur ma mère et moi.
Ta fille — Celeste 
 ***
Com os seus erros de ortografia e a sua completa ignorância de gramática, com a maneira simples, natural e humana de dizer o que sente, é a mais delicada, a mais doce, a mais sentida nota que uma obscura alma de rapariga tem feito ressoar no meu coração.
Como ela se desvanece, primeiro, com os talentos culinários do Cher Père. Depois vem o seu instinto econômico de petite mére, a dar tão bons conselhos ao pai de má cabeça — que parece ele foi...
O espanto da pobre rapariga, o orgulho que sorri entre dúvidas, de que, ele conheça Sa Magesté!... Perdida num cantinho da Bretanha, na sua grande França republicana, essa ideia será para ela qualquer coisa de grandioso e vago como os radiosos contos de princesas e fadas de que a sua infância foi entretecida.
Nem tu sabes, touquinha branca de asas engomadas, como o sol do pequenino país onde teu pai refaz a sua fortuna desbaratada, engrandece os humildes e banaliza os grandes!
Ignorante Gaud de olhos cor da flor do linho, pondo com grande esforço de memória a pena nos dentes, a consultar a sabedoria da escola: vois tu la Mer Mediterranée ou l'Océan Atlantiquê?
O grande Atlântico, minha querida! — a vastidão do mar que deu ao insignificante país, que mal te lembras de ver no mapa, a vastidão dos continentes novos!...
Vem depois o horror ao comércio, como um rebate de incêndio... Compreendo o teu medo, o teu grande desgosto, pobresita! Estou a ver a tua casa muito arranjadinha, com o “leito à moda da cidade”, os teus fatos ricos a fazer inveja,— a bela herdeira que tu eras, a chamar pretendentes!... E de um instante para o outro, tudo desfeito, como um sonho de criança! Sim tremer, tremer das más cabeças, no comércio. Le pauvre cher Père!...
Vem aligeirar a carta a linda descrição do jardim, que ficou o seu luxo, a consolação dos dias tristes passados com a velha mãe a lembrar o ausente — fugitivo, criminoso talvez?!...
O adorável perfume, tão fresco das suas árvores de fruto!... E os ramos de flores tão variadas que seria longo enumerar, como na sua melancólica igreja devem dizer bem, no altar de Nossa Senhora! Mas o poço que falta lhe faz, à paciente jardineira!
Parece que toda a carta ficou impregnada desse aroma honesto de violetas, que desde novembro enchem o paraíso da voluntária reclusa.
A vaga impressão de sol que lhe sugere o clima de Portugal... Como teria ela aqui formosas flores para cultivar!
Abre-se diante dos nossos olhos a serenidade da sua vida desfeita e conformada, lendo esta singela carta toda saída do coração; o amigo Gilbert visitando a família, e tão triste, ele também, com a morte da pobre filha!...
Leva-lhe, Celeste, ao seu coval de virgem, braçadas das tuas flores tão queridas! Leva-lhas. E será melhor pedires à boa amiga que te deixou, um lugar ao seu lado, na pacificação do vosso cemitério raso. Com o teu coração, Celeste, que farás tu neste mundo de lama e ouro, pobre querida?!... Pede — aconselho-to eu— à filha do teu amigo Gilbert um lugarzinho doce onde te deites sossegadamente, com a touca engomada pela última vez, o teu vestido dos dias felizes, os sapatinhos que nunca terão uso. É o melhor que tens a fazer, se não queres o teu coração gelado pela indiferença alheia, como a neve que nas montanhas alveja diante dos teus olhos sonhadores.
O susto em que vives, simpática desconhecida, que eu compreendo e amo. Nem o teu amigo Gilbert, nem esse mesmo deve saber ao certo onde para o filho pródigo!
Que despedaçadores martírios e desgostos; que mortificantes saudades curtidas longe!...

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