10/01/2017

Gente da Gleba (Conto), de Hugo de Carvalho Ramos


Gente da Gleba

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
Apertando a sobrechincha encarnada por sobre os pelegos da sua boa sela mineira, o Benedito dos Dourados enfreou a mula rosilha e espalmando satisfeito a mão no lombilho dos arreios, voltou ao paiol da fazenda, onde a camaradagem se entretinha ferrada no truque.

– Morro abaixo, morro arriba, urrando como guariba, truco no meio, barriga de coeio – berrava o Malaquias, um negralhão espadaúdo, primeiro braço de foice e machado em derrubadas e demais eitos da roça.

– Estou de forma! com quinze quilos e quinhentas gramas! – retrucou Joaquim da Tapera, um cafuzinho pernóstico de gaforinha e barba rala, agregado do sítio.

– Êh lá, que eu também tenho parte do boi, os quatro quartos, a cabeça e o fato! – pilheriou o cabra entrando e indo abeirar-se do lume.

– Já de partida, seu Dito? – perguntou um adventício assentado numas retrancas de cangalhas e batendo fogo no isqueiro; olha que, mesmo assim, só estará em Santo Antônio lá pelas tantas do dia, com um solzão à mostra; a rosilha é estradeira, não resta dúvida, e amilhada como vai puxa bem légua e meia; mas a Estiva está que é uma lazeira, atoleiro pra riba do peitoral; um trabalhão, a passagem...

– Qual o quê! Seu Zeca passou lá ontem à boquinha da noite, sem lua, com o mato já escuro; não soube reparar no desvio que conheço. Chuva deste mês já não faz lamedo, e a mula, além de ferrada, arresta que fia fino pr'essas estradas...

– Bicho como aquele tive um, quando traquejava na linha de Cuiabá; macho rosado de fiança! Levou-o um arrieiro por seiscentos bagarotes, notas novinhas em folha, e uma franqueira aparelhada de prata de quebra; e assunta que, mesmo assim, não ficaria contente da barganha, não fora o defeito do macho em meter-se a passarinheiro nos últimos tempos. Bicho bom! como aquele bem poucos...

O cabra espicaçava com a unha uma rodela de fumo pixuá que tirara dum embornal da parede; assentado sobre os calcanhares, escutava descuidado a pacholice do correio. Retirou detrás da orelha a mortalha do cigarro, enrolou-o cuidadosamente e puxando com um graveto a brasa da fogueira, acendeu-o, baforando dois tragos longos de fumaça.

– A lua vai descambando, quero ainda amanhecer no arraial a tempo de pegar a missa do Divino; até amanhã, para toda a companhia.

E saiu fora, arrastando as chilenas.

– Não esqueça a minha cabaça de pólvora para as salvas de roqueira no Chico Fogueteiro – avisou o Malaquias interrompendo a partida.

– E o garrafão de licor com a comadre Maruca – disse João Vaqueiro.

– Esse não esqueço eu, sem o que corre chocha a função – caçoou o cabra desamarrando a besta no moirão do cercado; arre! está um frio das carepas!

– Veja lá um golo de pinga pra esquentar – obsequiou de dentro alguém.

– Vá feito.

Abeirou já montado do batente, estendeu para o interior o braço, tomando o cuité que lhe ofereciam. Bebericou uma golada e passando o dorso da mão pelo bigode fino, elogiou:

– Bicha braba!

– Truco tapera, quem não ama não espera! – gritava o Malaquias, que descobrindo com precaução o naipe seboso de suas cartas, levantara-se num repente até a cumeeira de sapé, ferrando uma patada no ligal que servia de mesa, a fazer dançar os tentos e bois da parceirada.

– Crioulo de sorte – observou o adventício.

O Benedito já virara rédeas, batendo lá longe a cancela do curral e ganhando o estradão.

A lua ia a transmontar, muito branca, como uma garça-real nas águas azuladas da lagoa. Os campos desdobravam-se por devesas e baixadas, em ondulações suaves e alguns sulcos fundos, onde negrejavam restingas de mato e os renques de buriti que orlam o curso dos córregos das vargens. Emperolava-se a orvalhada no grelo viçoso do catingueiro roxo dos serrotes e a gadaria ruminava ao luar, à sombra tranquila das fruteiras-de-lobo e pequizeiros da chapada.

A mula cortava a estrada na marcha batida; o cabra, desengonçado no arção, ia a chupitar fumaçadas, algumas vezes entremeadas duma quadra esquecida:

Menina, amarra o cabelo,
Bota um lenço no pescoço,
Pra livrar dalgum quebranto,
Mau-olhado dalgum moço.

Caburés e noitibós estridulavam a sua elegia noturna à beira dos capões; um curiangu que encontrara a fingir uma ponta negra de cerne emergindo do solo, acompanhava-o agora no seu voo rasteiro e balofo, indo postar-se adiante, para recomeçar à aproximação da montaria, estrada afora.

As divisas do Quilombo desapareciam ao longe, envoltas em neblina e luar; a mula resfolegava, abeirando a passo miúdo da Estiva; um galo tresnoitado arreliou numa palhoça, além, no fundo da baixada.

O Benedito repisou a melopeia:

Pra livrar dalgum quebranto,
Mau-olhado dalgum moço.

Aí, nesse mesmo estirão, viajando, alta noite, um luar tão claro como aquele, por pouco que se deixara ficar, assombrado.

Era pelo começo de seus amores com a Chica do povoado. A labuta ia dura na fazenda. Ajuntavam boiadas para a venda do ano. Nessas vaquejadas, mal tivera tempo de dar, no decorrer duma quinzena inteirinha, um só pulo a Santo Antônio para deitar seu olho enamorado à cabocla.

Assim, para que não o dissessem mofino e mulherengo, quando vinha a tardinha, após o jantar, enquanto a camaradagem, amodorrada, espichava-se pelas redes e mantas, ele aparelhava o macho queimado – velho sim, mas ainda marchador – e à socapa, juntando esporas, ganhava a porteira e dentro em pouco lá ia, plena andadura, chapadão em fora, rumo do povoado e do cochicholo da Chica, donde arribava madrugada alta, para, no dia seguinte, levantar-se com o sol, ao traquejo costumeiro.

– Raparigas...

Bom tempo aquele! E nunca, campeasse em plainos de malhadas ou fossem cerradões garranchentos, faltara à sustância, mostrando corpo mole, mesmo quando fosse para dar uma rodada bem feita num garraio espantadiço ou rês matreira enfurnada nas brenhas, que pedisse quem lhe corresse nas pegadas à desentoca.

O Malaquias, que lhe sabia das escapadelas, ao vê-lo noutro dia como sempre, laço à garupa, forte e desempenado, ao alto do seu pampa campeador, botava a mão no queixo, coçava o picumã da barba falha e metido lá naquelas espáduas largas de preto nagoa que eram a admiração do pessoal, rosronava d'olho avelhacado:

– Home, como sô Dito, só ele mesmo! Eta gente, quem havera de dizer. Qual! parece mais obra do capeta!

Pois meu povo, pr'essas pelintragens, se a fraqueza lhe dava às vezes à canela, não era de raspar-se com a estrela boieira para o povoado e lá, metido a noite toda em vira-vira de cateretês e sapateios à viola com a Chica, – toda dengosa e faceira em suas chinelinhas arrebitadas de marroquim, – ao outro dia aguentar escorreito com o seu posto no campeio. E mesmo – que nesses bailaricos surgiam dessas – topar pela frente um dunga qualquer de quatro costados, vezeiro em tretas, arrotando valentias e pabulagens, o jeito de querer sonegar-se com a morena. Não! que nesse caso fechava mesmo o tempo, acostava-se jururu à rapariga e fazia trabalhar o ferro, costurando o mais intrometido; e isso, quando a queimada vinha já a ponto de pedir que se tirassem as teimas ao valentão.

Uma cruz, simplesmente uma cruz, o motivo de todas as suas dúvidas e hesitações ao momento de pôr o pé no estribo e ganhar a estrada batida.

O caso é que era um fraco da meninice. Pequenote – puxava então guia de carro na fazenda à falta doutro préstimo – vindo duma festança em Santo Antônio, estourara ali perto o Zé Caolho, cantador daquelas bandas, dumas sopitações do coração, falta d'ar, segundo diziam uns, empanzinado de cachaça, afirmavam outros. O certo é que o velhote, quando no codório, metia-lhe medo com aquelas compridas unhas de pássaro agoureiro e as histórias infindáveis de sacis-pererês assobiando ao lusco-fusco no olho do pau, gemidos de menino pagão no cemitério, pragas de rola fogo-apagou no alto dos telheiros e coisas mais, que asseverava à noite aos pequenos, enquanto a cachorrada saía a ganir à lua no terreiro.

Desde então, passasse aí na Estiva, um mal-estar danado cerrava-lhe o peito; e era quase aos choros, geladinho de terror, juntando-se muito aos que com ele iam, que atravessava a ribeira. Com a idade, apontando o buço, fora-se a maior parte da perrenguice; contudo, talvez pelo costume adquirido, uma sensação incômoda molestava-o sempre naquele travessão de mato, onde a cruz do violeiro avultava dentre o mata-pasto e samambaias da beirada, toda roída de velhice e caruncho.

Três anos havia, vindo do arraial, sob o xadrez da camisa uma prenda querida da Chica e nos lábios escaldados a impressão gostosa de sua primeira boquinha – a cabeça zanzando, tonta de paixão – topara com boa naquele trato de terra.

Passava alheado, não se lembrando dessa vez da promessa que lhe fizera o cantador duma feita, por vias dumas peraltices, de vir puxá-lo pelas pernas à meia-noite, quando morresse; eis, um grito rouco, d'alma penada, chega-lhe com o vento aos ouvidos.

O macho entesourara orelhas, estacando na estrada. Ele caíra do céu das recordações e olhava em torno. Lá estava ela, a cruz do troveiro, em meio o seu montículo de pedras, braços abertos, no aceiro do mato; e o luar tão lindo, que tomava agora uns tons lívidos ao entranhar-se nas primeiras árvores da Estiva, donde aquele clamor parecia subir, tão fundo, tão angustioso, que só de lembrá-lo agora os pelos se lhe arrepiavam na cara.

Fosse noutra ocasião e torceria rédeas, esperando pelo amanhecer. Mas essa noite, com a impressão ainda fresca do beijo da Chica, impressão nova que lhe infundia ao ânimo uma ardideza capaz de enfrentar com o Cuca em pessoa, pareceu ao cabra que andava mal em dar assim de costas ao perigo.

Fosse lá a morena vê-lo como se portava naquele aperto...

Apeou, já que o animal empacava de vez. Negaceando, com cautela, avançou sorrateiro, palpando o terreno em torno. Era agora um desfiar intermitente de ladainhas, como se andasse alguém encomendando almas a Satanás, ou houvesse ali uma tropilha de feiticeiros apanhados em tramoia.

Junto ao córrego, estralejante, um fogaréu luziluzia entre os cipoais, alumiando ao fundo, vagamente, um amontoado de vultos esquisitos, que a vista turva não distinguia bem, uns aqui direitos como guardas, outros ali de cócoras, sob uma coberta; no meio espaço, lívido, sinistro, estirado no chão duro, um rosto magro olhava o céu, as formas do corpo sobressaindo angulosas da mortalha, restos talvez de quem sucumbira escanifrado de fome, ou houvessem os vampiros e demônios chupado o sangue em seu festim imundo...

Ele detivera-se a olhar tudo aquilo, transido, mão na coronha da garrucha, como que grudado ao ingazeiro onde encostou para não cair. Uma cabeça branqueada surgia agora da terra, ao pé do morto; mastigava as ladainhas, um ferro a retinir no fundo da cova.

Não havia duvidar – era assombração.

Crac, crac, aperrava a arma; e, reagindo contra o medo, berrou:

– Lá vai obra!

Descarregara ambos os canos. Ao estampido, cessou a cantoria. Uma voz que nada tinha de sobre-humana, voz um tanto travada pela comoção, queixou do fundo do buraco:


– Olha que me mata, moço! Anda a gente a cumprir com seu dever de cristão e saem-lhe em cima aos tiros! Já se viu só! Santa Maria!...

– Ora, é o velho Cristino!

– Ele mesmo, moço! Uai, como se não bastasse uma só desgraça num dia.

E o velho carreiro, arrancando-se do fundo da escavação, veio até ele, tremendo.

Tudo ficou claro. A tropilha de bruxos encapotada ao fundo, era o carro do velho, o respectivo toldo de couro malhado, os fueiros e as cangas e cambões enfeixados ao lado. O defunto do lençol e para o qual olhava ainda com desconfiança, um filho do Cristino, que também ganhava a vida carreando nessas estradas. Apanhara umas febres no Veríssimo e vinha por toda a viagem tiritando no fundo do carretão. Morrera esse dia e o pai, entre lágrimas, orando ao Santíssimo, estava ali cuidando da sepultura, quando o surpreenderam os tiraços do passageiro.

– Ahn! isso é outra conversa. Pois me parecia... Mas não era para menos! Vote, a gente topa cada uma...

E como tinha boa alma, ajudou-o a enterrar o rapaz e passou ali ao pé do fogo o resto da noite, embrulhado no pala, bebericando café, que o velho veio aprontar, e procurando consolá-lo e entretê-lo com o seu proseado fácil de mestiço imaginoso.

– Êh, gente – ia agora a matutar. – Sertão, escola do mundo.

E com as barras que vinham quebrando, misterioso, soturno e imenso, esse mesmo sertão desaparecia ao longe, no nevoeiro da manhã, todo prenhe de assombros e aparições...


II
A madrugada amiudava. Já as barras vinham quebrando e no cabeço dum serro, mui branca e tremeluzente, a estrela-d'alva minguara o seu clarão lacrimejante, anunciando o romper do dia.

Rédeas encurtadas, a niquelaria da cabeçada retinindo festivamente, Benedito deu entrada no arraial no trote picado da mula, que frechou direita ao rancho dos tropeiros. 

Pelo largo, no vassouredo rasteiro onde trilhos se entrecruzavam em teia, adensava o lençol matutino da neblina, abafando o horizonte. E o mulherio do lugar, embiocado em xales, esgueirava-se ao longo dos casebres, arrastando pela mão a filharada, semitonta de sono e entanguida de frio sob as dobras da saia materna, que lá ia em camisola, o chinelinho de couro na ponta do pé, trec, trec, trec, rumo da igreja, onde o sino se pusera a badalar a intervalos, enforcado no trapézio de aroeira ao ângulo esquerdo da sacristia.

Pelos currais mugia o gado, ladravam cães, o galo amiudava o canto álacre e as vacas leiteiras, passando a beiçama rósea por baixo dos paus de porteira, farejavam avidamente a cria presa, soltando após doloroso e prolongado bramido.

O rapaz desenfreou, prestes, a mula no rancho dos tropeiros; desapertada a cilha, dependurou os arreios num caibro baixo do teto, enfiou à Pelintra o embornal de milho que trouxera à garupeira e, fechada a cancela, saiu então apressado, no retintim das esporas, em direção à capelinha.

De lá vinha o clarão tristonho dos círios, a alumiar ao fundo, soturnamente, a paramentação dos altares de pobreza vilareja, e imagens toscas, esculpidas a maior parte por ali mesmo, que o poviléu contemplava em silenciosa e profunda veneração, amontoado pelos cantos, sobre o pavimento úmido de terra batida.

Pelo teto desforrado, em surtos trôpegos, alguns morcegos erravam às tontas, apegando-se ao caruncho das traves e de lá, inquietos e atordoados de luzes e o burburinho desusado, quedavam-se a observar os intrusos, agitando as suas cabeçorras de ratos. E andava em torno, de mistura com o arder de ceras e rolos de incenso, o cheiro enjoativo da excrementação daquelas “aves” noturnas, junto ao bafio peculiar dos templos do interior muito tempo fechados. 

A campainha retiniu mais uma vez. Nos coqueiros de guariroba que ladeavam o calvário do adro, chalrava agora um bando de pássaros-pretos, tatalando as asas, arrepiados, saltitando de palma em palma. E ia fora a garoa matinal esgarçando-se e acentuando os contornos do casario, que principiava a debuxar-se dentre o caio alvacento das fachadas, que o sol não tardaria em pouco a branquear de vez com a sua grande luz cáustica de manhã sertaneja.

Ite missa est – perorava afinal o celebrante, um padre redentorista vindo expressamente da vila próxima.

Mais uma vez, repenicou o sino na sua forquilha de aroeira, naquela mesma toada cavernosa de bronze gretado. Um foguete subiu ao céu, estourando no meio da praça. Aos atropelos, os pequenos do adro precipitaram-se a ver quem apanharia a cana.

Estava findo o ofício.

Ele levantou-se lesto do canto à entrada, onde se tinha ajoelhado e perquiria em torno. Sim, lá estava ela, por sinal que um tanto macambúzia e entregue toda ao terço do rosário, naquele seu vestidinho de chita azul bem liso e justo ao corpo, fruto capitoso que o sol sertanejo amadurara e enrubescera despercebido ali, naquele fundão da boa terra goiana, para o gozo e a secreta ventura de seus olhos...

Não o vira, absorta na devoção. Também não insistiu em olhar muito para aquele lado, mesmo porque uma velhota se pusera a vigiá-lo com o seu único olho de coruja rabugenta, escandalizada, talvez, de não o ter visto ainda corresponder a preceito com as pancadas de contrição que a assistência rumava ao peito.

Ganhou o adro; atravessando rapidamente a praça em bulício; e veio esperá-la à esquina dum beco tortuoso, que ia ter, após voltas e reviravoltas, à fonte pública do lugar, uma cacimba afogada em estendais de são-caetano e fedegoso-bravo, onde a água minguava a maior parte do ano.

Ao fundo, num alto que apanhava a linda vista do povoado, a casinhola de Chica abria as duas janelas ao longe, mui brancacenta em suas paredes barradas a fresco de cal, a entrada baixa ao lado, por onde tantas vezes passara feliz, na certeza antecipada de logo ter aos braços, ofegante e rendida, aquela dengosa morena que fora o encanto de suas primeiras emoções de homem e a quem queria com a violência e o ardor que os daquele sangue põem em suas mínimas paixões.

Aí vinha ela já, um tanto arisca e sorridente – reconhecera-o de longe – ensaiando o seu passo requebrado, feito todo de denguices de felino e arqueios de pomba-rola, que o trazia enrabichado havia três anos.

– Não quis faltar à devoção, hein, sô Dito; medo do purgatório não é brincadeira... – E ria, mostrando os dentinhos claros, de roedor, na face cor de mate.

– Qual o quê, sá Chica; purgatório é este mundo, onde tanta alma de Deus vive a penar; oratório, tenho-o sim, mas aqui dentro, no coração, para rezar por certa ingrata que sei... 

Suspirara fundo, brincando com a trança da açoiteira, que ia enrolando e desenrolando em espiral pelo cabo niquelado, num enleio que nem o hábito, nem o tempo tinha conseguido ainda dissipar.

E seguiram pelo pedregulho da viela, que os cercados de taquara dos quintais confinavam, ela adiante, ele um pouco atrás, a mão tisnada repuxando o fio do bigode, em derriço.

Um guegué morrinhento saiu do fundo do quintalejo e veio escarreirado até a rampa por onde subiam, latindo furioso; reconheceu gente de casa, abanou a cauda farejando e foi anicharse entre cinzas, no palheiro, aos ganidos e mordidelas com os bernes da gafeira. 

Uma boró apareceu no momento ao terreiro, a vassoura de piaçaba na mão, o bócio enorme avultando sob o queixo, e um riso atoleimado escorrendo da boca desdentada, donde duas compridas presas, sólidas e amareladas, surgiam, vincando o canto inferior do beiço.

– Ehú! ó Joana – acenou-lhe a mulata, bota a chaleira no fogo.

A idiota continuava a rir, acurvada; e os dois passaram, transpondo num salto, entrelaçados, a soleira. Na sala, presa das escápulas, roçagante, pendia a larga rede cuiabana, atravessando de lado a lado o pavimento de massapé. O resto da mobília espalhava-se em torno, meia dúzia de tamboretes de couro tauxiado ao pé da mesinha de costura, de cujo balaio transbordavam entremeios de crochê, um cabeção de crivo, alinhavos inacabados de corpete, junto ao castiçal de latão sobre um volume encadernado da história de Carlos Magno e dos pares de França. No canto oposto, uma banquinha com a sua almofada de bilros e a renda em começo sobre o papelão de alfinetes.

Ele espichou-se, deleitado, na rede; e Chica entrou no quarto contíguo, a dependurar o xale com que viera embrulhada.

Pôs-se então a fitar distraído as folhinhas que cobriam a parede, os recortes de jornais com retratos e figuras coladas de alto a baixo, estampas e cromos tirados de peças de morim, abrindo-se em leque no reboco nu; uma senhora Sant'Ana em moldura, duas séries intermináveis de fotografias do papa e grandes anúncios ilustrados do Rio, a forrar todo o espaço acima da mesa.

Eram-lhe familiares aquelas gravuras. Algumas fora ele até quem trouxera de Goiás, de quando lá ia levar os carregamentos de açúcar e café que o coronel mandava anualmente ao mercado. Tinha mesmo um vago prazer – misto de amizade e saudade antiga – em remirar um Santo Antônio já amarelinho, um dos primeiros ali grudados, o sorriso bonachão na cara desbotada, testemunha silenciosa de seus papagueados amorosos, e cúmplice da primeira beijoca que roubara à Chica, uma noite em que ela trazia um enorme monsenhor na rodilha do cabelo e tinha o riso mais úmido e sensual nos lábios polpudos e sangrentos...

Um cheiro forte, de banha fresca derretida, vinha lá de dentro; crepitavam os gravetos do fogão e a gordura na caçarola.

Benedito espreguiçou-se, bocejando:

– Ó benzinho!...

– Espera, homem, estou frigindo uns carajés.

Ela apareceu logo, um prato de bolos na bandeja, o bule fumegante à outra mão. Com denguice, fazendo cair do alto o café aromático, encheu-lhe a tigelinha bordada d'azul.

Ele passou-lhe o braço em redor da cintura, petiscando pelo pires uma golada.

– Me deixe, homem, ora já se viu só!...

– Cabocla faceira...

– Uai, gente, como está hoje mesmo... Parece até que é separação...

– Hoje não, todo o santo dia, coraçãozinho...

– Que enjoo!... Anda, toma o café, é melhor; olha um bolo, tem pimenta; este não, essoutro que já mordisquei.

Depusera a bandeja sobre um tamborete e sentara-se ao lado na rede, sorrindo, encarando-o fito, os olhos langues.

Ele deitou-lhe a cabeça ao colo, olhos cerrados, numa felicidade calma de velha posse; e ligeira, com meiguice, a mão da amante ia perpassando devagar por sobre os seus cabelos corredios, a catá-lo minuciosamente, às cócegas, como um cachorrinho de estimação.

A claridade solar entrava aos jorros pela porta aberta, acalentava-o pouco a pouco, preguiçosamente, num enervamento volutuoso de corpo e sentidos. Lento e lento, pesava-lhe o sono as pálpebras cansadas.

Pela volta das dez e meia, Chica acordou-o como pedira. Foi à loja do major, a cuidar das encomendas. Deu um giro pelo arraial, à cata do fogueteiro e conhecidos; veio por último esbarrar na venda da Maruca.

Àquela hora, em sua fatiota domingueira de riscado, a rapaziada bebericava ali aguardente, jogando o truque e o douradão.

O tempo estava mesmo quente, pois desde o lado de fora ouvira exclamações:

– Milho no muro, antes que fique escuro!

– Quebrou um lanço da cerca, eu vou dentro!

– Vim topar o portão da romaria!...

– Licença, licença, meu povo.

– Ora, viva, o Ditinho dos Dourados! Pula pra cá, rapaz; entra na roda, que temos parceiro sacudido, gente! Cabra turuna pra esquentar uma partida!

– Pois então entra aqui no meu lugar – obsequiou Zé Velho – que tenho d'ir ainda campear o meu piquira; levou um sumiço desde trasanteontem.

– Se é um piquira cabano, estrelo de testa e ferrado das mãos, não se afoba, seu Zé, topeio ali atrás, numas barrocas de catingueiro, meia légua pra cá da Estiva. Estive mesmo quase a tocá-lo para o povoado; por sinal que trazia cincerro.

– Ele mesmo, muito obrigado; já lá vou atrás do malandro; agora não relaxo mais a peia. E dizer que o cigano com quem o barganhei afiançou ser mesmo o bicho raçoeiro. Vá lá uma criatura de Deus fiar-se naqueles excomungados.

– Ciganos? Dizem até que têm parte com o Cão – advertiu Bentinho Baiano.

– Se têm! Mal esticam a canela, vão logo de cambulhada para as areias gordas...

– Para animal fujão conheço santo remédio – aconselhou um velhote d'olhos pretos e cabeça branca, que tinha uma gagueira na voz e os membros trêmulos. – É receita afamada dum benzedor das bandas do Tocantins. Um porrete! Fiz a simpatia com a minha égua baia e nunca mais saiu deste largo. Ponha mecê numa cuia uma mancheia de sal torrado bem moído, vai dando a salga ao animal por debaixo do sovaco, da porta da cozinha à da rua e da frente à porta do fundo, três vezes sem parar, passando e repassando por dentro da casa. Faça isso três dias seguidos e pode dormir depois descansado.

– Não duvido, compadre; mas, por via das dúvidas, sempre passo hoje a peia de sola curta no danado. Sá Maruca, bota pr'aí mais um cobre de pinga e meia quarta de fumo, que o que tenho na patrona não chega para o pito. Até à vista, minha gente, apanhando o rastro, piso logo na retranca do velhaco.

– E mecê vai olhando as encomendas, que a demora também é pouca – ajuntou Benedito. – Trago aí debaixo dos coxonilhos um sapiquá, manda o pequeno buscá-lo lá no rancho, enquanto baralho cá uma corrida com esta rapaziada.

– Isto é que é falar às direitas – disse Bentinho Baiano, já entusiasmado.

– Quem é mão, pessoal?

– Agora é mecê – respondeu o velhote.

– Cuidado, minha gente – avisou alguém. – Temos aí cabra pra trucar sem zape nem catatau.

– Truco, tapera! Por que não me espera! – gritava já ao lado o primeiro parceiro.

Corrida a roda, Benedito retrucou, cortando-lhe a vaza. E um mulato apessoado, que fizera a segunda, estatelando a espadilha na mesa, desafiou todo ancho.

– Estudante de medicina, vou em Roma volto em mina, consulta seu companheiro e vê se vocês combina!

– Truco vai, milho vem, mosquito na corda desce bem!

– Assim, menino! Jesus Caetano! Noss'Senhor, diabinho!

– Onze! Baralho na mão do bronze!

Junto ao balcão, onde voejavam moscas caseiras sobre coscoros, Maruca coçava a verruga do queixo, e metia com pachorra o garrafão de licor no fundo do piquá. Da outra banda do saco, colocara os embrulhos, que dependurou ao alcance, numa vara.

– Os temperos vão de lado, seu Dito; fica aí à vista no varão, para não esquecer quando sair.

– Não seja esta a dúvida, sá Maruca. Comigo é nove, êh! velhote treme-treme! Corto o sete-de-ouros com o curinga!

Levantara-se no bico das botas e abatendo-se com arreganho, vozeou:

– Êh! carta veia... Chincha de Medeia!

O outro volveu encafifado:

– Velhote... treme-treme... Cada qual sabe de sua vida, moço; não fosse arribadiço naquelas bandas, conhecessem há mais tempo quem fora o Generoso das Abóboras e a conversa mudava de rumo. Mundo, lição pra gente...

E depôs as cartas, resmungando.

A partida esfriava. A companhia espreguiçava-se no saguão, em torno da mesa cambeta, sobre sacos de mamona, baforando cigarradas, desbonecando as mortalhas de palha, que a lâmina dos quicés ia a grosar, ringindo ásperas, e cuspilhando a miúdo, às placas estraladas, o pavimento de terra úmida com a gosma dos gorgomilos. Amiudavam-se os copitos duma cachaça amarelinha e rascante – das boas – que a vendeira trazia reservada para os fregueses mais chegados. E como entrasse o pequeno com o tabuleiro de café, o velhusco repetiu ainda uma vez, um tanto agastado, sorvendo pelo pires o conteúdo da xícara:

– Velhote?… treme-treme?… – Passasse aquela gente o quarto d’hora que tinha experimentado e o caso mudava de feição.

– Ora, sai daí! Que homem mofino! Deixa de zanga, seu Generoso, que o Dito é assim mesmo; é do jogo. Venha antes a história, se há; o mais, conversa fiada.

Pois não, pois não; mas assuntassem que nem sempre aquela tremura de pernas lhe atrasara a vida, nem tampouco tivera a língua perra nalgum aperto que pr’este mundo de Cristo a gente topa…

O caso acontecera pouco antes da campanha de Canudos, onde a jagunçada dera pancas ao antigo batalhão cá do Estado, segundo ouvira contar, e um seu mano obteve as divisas de furriel…

– Andava nesse tempo numa comissão de linha telegráfica, porta-mira de turma. Féria boa, é verdade, mas trabalho era ali! Isso, rumo do Araguaia, abrindo picada na mata virgem, esse mundão de mato grosso que principia em Jaraguá, beiradeia os rios Uru e das Almas, cai no Araguaia, ganha o Tocantins e vai acabar lá para as bandas do Pará.

Madrugadão, com um frio de bater queixo, o pessoal já estava de pé, teodolito e apetrechos ao ombro, rumo do serviço. Poucas léguas faltavam para alcançar o porto do Registro e ganhar a outra banda do rio. A turma armara o acampamento num aceiro largo, à beira dum ribeirão. Ali os borrachudos e miruins eram que nem castigo. Assim, moído como estava, não pudera pregar o olho boa tirada de tempo.

Os mosquitos – zim!… zim!… – outras vezes – zum!… zim!… – estas eram as muriçocas miúdas, azoinavam-lhe o ouvido, conquanto trouxesse a cara tapada sob o cobertor. Os pernilongos então, esses, nunca vira coisa assim; atravessavam com o ferrão a lã grossa do pala, a calça, a camisa e vinham aferretoar-lhe embaixo as carnes, com danação.

– Vote! Praga desse feitio, só mesmo naqueles fundões; mil vezes antes os carrapatinhos, que se encontram às bolotas nos travessões de mato, mas uma boa fumegação bota-os abaixo por dá cá aquela palha; e, mesmo, porque não resistem às primeiras chuvas do ano. 

Mas, como estava a dizer, aquilo já passava de mangação, tinha as orelhas a arder, as horas iam correndo e manhãzinha lá o esperava o serviço costumeiro.

Puxou umas mantas dos arreios, onde dormia; e, na luz das estrelas, saiu às gatinhas da barraca, indo arranjar a sua cama bem longe do córrego, entre folhas secas, ao pé duma sucupira.

Ferrara no sono que nem camaleão no oco do pau. Com o virar da madrugada, começou a ter uns sonhos maus; ora era enterrado vivo, como sucedera na estranja a uma velha, ora uma porção de diabinhos se punha a batucar no seu peito, pesando, pesando, que… Acordou.

Abriu os olhos, mas esses, meio cerrados, pisca-piscando, tornaram a fechar-se com força.

Cruzes! Parecia até que era ainda em sonho! Descerrou de novo os luzios com cautela, o coração aos trancos, mal-assombrado.

Lembrava-se como se fora naquela hora. O dia acabava de clarear, cantava perto um curió no galho da sucupira.

Sobre o seu peito, enroscada, a cabeçorra ao centro, os olhinhos voltados para a sua cara e a língua em forquilha para fora, uma cascavel dormia sossegadamente, no calor brando do corpo.

Ficou gelado, sem movimento, a cabeça transtornada, a olhar apatetado a cobra. 

O tempo que assim passou, não sabia dizer; mas se há inferno nalguma parte, é curtir uma alma de Deus as amarguras daquele ruim quarto d'hora!

– Santo nome da Virgem, que martírio! Olham a tremura que reaparece...

– Eu sacudia de riba o bicharoco e pulava para o lado – comentou Bentinho Baiano vivamente interessado.

– Qual! e resolução? Pensar não é nada, fazer é que são elas!... Se acudisse um gesto, um expediente, estava salvo; mas, como lhes dizia, fiquei gelado, as juntas bambas, sem movimento, como coisa largada. Vivi naquele momento mais vida que a de mecês todos somada.

Afinal a cascavel, despertando, espichou a forquilha da língua, foi desenrolando aos poucos os anéis do corpo e saiu devagar pelo meio das folhas, farfalhando...

– No acampamento era tudo animação. Ultimavam-se os preparativos para o trabalho do dia. Cheguei tremelicando, as pernas vergadas, como atacado de maleitas. A voz embargada, relatei o fato ao chefe. Mas que é isso, Generoso, disse ele; olha aqui este espelho. Olhei. Tinha a cabeça branquinha!

– O que deve acontecer, tem força, acontece mesmo – ponderou Benedito à laia de consolo.

– Pinga pr'aí mais dois dedos, sá Maruca – pediu o narrador.

No largo, a luz meridiana rebrilhava na areia das estradas, faulhavam ao longe os detritos de mica e uma evaporação quente, pulverulenta, como que parecia subir da terra rescaldada.

Alguns já se erguiam, despedindo-se dos parceiros; e, como era domingo e dia santo, a vendeira aprestava-se a fechar as portas do negócio.


III
Deixando atrás a longa trilha paralela do ferro das rodas, rolava um carro encosta abaixo, ao passo vagaroso da parelha de bois, o eixo lamuriando à distância ao atrito dos munhões, vindo das plantações do outro lado da baixada.

Ensanguentada, a tarde baixara o seu clarão crepuscular sobre a mata, ao longe, a cuja entrada dois jequitibás se alteavam, eretos e sobranceiros àquele mar de frondes, donde a sombra parecia avolumar por graduações, redourada e tênue ainda nas últimas cumeadas, dum azul sombrio e carregado sob as últimas ramagens, riscadas aqui, ali, dos primeiros pirilampos.

Aumentara a gritaria dos meninos no terreiro da fazenda. Uns, ao canto, jogavam o bete; escarranchados os demais na gangorra, cujo peão fazia eco ao rechinar distante do carro, que descia aos solavancos os brocotós do carreiro.

A camaradagem, acocorada ao longo dos puxados, comprimidos os pés em chinelões de caititu e botas de veado catingueiro, chupava pachorrentamente cigarradas, manejando o Malaquias uma alavanca no meio do terreiro, a cavar o lugar onde em pouco se aprumaria a bandeira do Divino.

João Vaqueiro alinhou as roqueiras em direção à estrada; e, como um moleque o acompanhasse curioso, ordenou áspero:

– Anda a ver uma cuia de farinha, ó pamonha, e mais a pólvora que sobrou da festa passada. Êh, pessoal, vamos cá esperar nhô Dito com uma salva de sustância!

– Olha que a Pelintra é reparadeira – avisou o nagoa. – O rapaz, se vier distraído, pode comer terra na força do estrondo.

– Quem, aquele? Tá, tá, tá, vai para outro lado com essa cantiga; ainda meninote, não havia poldro nestas redondezas ao qual não lhe desse na veneta tirar as tretas. Nhô Dito, esse, conheço-o melhor que as veredas deste sítio: peão de fiança!

E, enquanto proseava, punha a carga à roqueira; sobrecarregou-a com um punhado de farinha grossa de mandioca e duas pancadas secas da culatra no chão serviram de soquete.

– Lá vem ele, lá vem! – bradou um molecote empoleirado no moirão da cancela.

O vaqueano escorvou o ouvido à peça e correu a apanhar um tição no fogo que fizera entre as pedras da gameleira; mas alguém atalhava:

– Rebate falso, é a obrigação de sô Quim.

De fato, o agregado, naquele pedrês caolho, barganha infeliz duma lazarina nova, chegara à frente da sua obrigação, a Gertrudes, três meninas rechonchudas e bisonhas, e um par de pequenotes atarracados, de olho esbugalhado e triste, a barriga a impar sob a correia da cinta – sinal característico de meninada molenga, afeita a roer torrões de barro às escondidas, pelos cantos da palhoça.

A mãe vinha adiante toda sestrosa, empurrando a filharada para a frente, o bócio avultado sob o carão empalamado, pito à boca, um lenço d'alcobaça atado à cabeça, as pontas reviradas para trás e os chinelões de marroquim amarrados numa trouxinha sob o braço, para calçar à hora da reza.

– Uma salva pra seu Quim e a comadre Gertrudes, minha gente – propôs Malaquias. E sem mais, descarregou o trabuco de que se armara.

Joaquim da Tapera voltou-se então, ufaneiro, na cutuca velha; aprumou o clavinote que trouxera a tiracolo para um galho de gameleira, pipocando estrondoso tiraço.

– Desapeia, desapeia, compadre, e chega pra cá, que seu Dito não deve tardar. Vamos todos arrebentar a pipocada tão logo apareça lá na vargem a rosilha.

O caipira afrouxou a barrigueira do pedrês, sacudiu de riba a sela, e as caçambas de pau entrechocando-se uma na outra, foi guardá-la ao paiol.

Na saleta da casa-grande acendiam-se agora as velas em torno da bandeira. Nhá Lica, a filha do patrão, já lhe pregara aos bicos os bambolins azuis e andava borboleteando em torno do altar improvisado, a enfeitá-lo com florinhas de papel de seda rosa. A Divina Pomba, mui mansa e serena, asas espalmadas, abria o seu voo místico inclinada no fundo branco do andor, sobre uma toalha engomada de linho, ladeada por dois jarrões, que embalsamavam o aposento com a fragrância ativa dos resedás.

Cessara há muito a grita dos meninos no curral. O carro, aos avisos – êh! Barroso, êh! Relógio! – entrara lá fora no abrigo dos tropeiros. Desajoujados da canga, os bois foram soltos no mangueiro e o guia, um latagão destorcido, sobrinho de João Vaqueiro, que se tinha deixado ficar ainda aquele dia no canavial, veio enxaguar a poeira do rosto e as mãos à bica do monjolo, reunindo-se depois à rapaziada.

O lusco-fusco já se fazia cerrado nos arredores. Ia no céu, atrás da copa distante dos jequitibás, o brilho trêmulo de papa-ceia.

Súbito, no fundo da estrada, junto à nascente que os buritizais assombreavam, adensou uma nuvem de pó, que cresceu rapidamente, na marcha de mais em mais apressurada da mula rosilha.

– Agora é ele, agora é ele! – berrou o pequeno lá do poleiro da cerca.

João Vaqueiro encostou a brasa ao rastilho da peça. Ao estampido, a besta refugava, atravessando em dois trancos a cancela escancarada e veio célere bufando alto, esbarrar ao pé dos foliões, contida nas rédeas pela mão segura do cavaleiro. Este, garrucha em punho, aperrados os gatilhos, virara-se no arção, mirando a caveira de boi-espácio que alvejava na forquilha do cercado.

Joaquim da Tapera fez ainda fogo com o clavinote. Então o recém-vindo desfechou de vez os dois canos, saudando a companhia.

Lá na forquilha da cerca saltaram lascas das chanfras do espácio.

Vitoriava-o uma aclamação geral. Apeado, as pernas meio trôpegas da caminhada, dirigiu-se para a casa-grande, onde o coronel relia àquela hora, sob a luz baça do lampião de queresone, um número atrasado da Folha de Goiás, recostado pachorrentamente na sua rede de embira.

– Bênção.

O fazendeiro tirou as cangalhas que pusera para ler, chupou uma última fumaça à ponta sarrosa do cigarro e fez um gesto vago.

– Deus o abençoe. Não me manda nada o major?

– Trago aqui na patrona as cartas do correio e um maço de jornais. O major manda dizer que rompeu com o partido, à vista das últimas eleições; o resto vem aí relatado na carta.

Entregou os objetos e foi avançando para o interior, as botas esturradas de mormaço ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo da cozinha. Lá provava d. Luísa o caldo à comezaina do dia, azafamada numa roda-viva de mulheres.

Beijou-lhe com respeito os dedos nodosos da mão reumática e trabalhadeira. Foi tirando do piquá as encomendas e como a boa senhora se pusesse logo a esparrimar umas pitadas de canela no pratarraz d'arroz-doce, indagou apressado:

– Dindinha não tem mais precisão de mim para alguma coisa?

– Ah, sim, toma tento em Nequinho; diacho de pequeno sapeca, não me deu sossego todo o santo dia, a querer provar o ponto a quanta tachada houvesse. Sentido naquele capetinha, não fosse também querer deitar fogo às roqueiras...

Em pouco, na sala toda luzes, por cuja janela aberta o clarão dos círios vinha alastrar-se cá fora, no terreiro, principiaram as rezas em torno do altar rústico.

Malaquias dera desde cedo a mão de cal ao mastro, que branquejava ao longo da casa, sobre dois cavaletes, cintado todo d'anéis d'oca e tinta a três cores. Era um magnífico cedro, que ele próprio fora tirar às terras da baixada, alto, liso, direito, medindo de ponta a ponta uns sessenta e seis palmos bem puxados.

Os moradores do sítio, ajoelhados até o fundo do salão, iam engrossando o vozerio das mulheres, reforçando atrás, gradualmente, a rogativa. Fazia-se uma pausa lenta, após a qual a voz afinada e suplicante de d. Luísa evocava novo santo, tirando a ladainha.

À saída, Nequinho distribuía os rolos de cera, enrolados em talas de taquaril, que cada qual foi acendendo ao lume do vizinho; e a procissão se fez breve, levado o andor à frente por quatro meninas, acompanhando as cercas dos currais, dando voltas às gameleiras, em torno do casario dos agregados, as luzes a tremeluzir na noite clara, sob o límpido luar do sertão, vindo por último esbarrar junto à espiga do mastaréu.

Fez-se um grande círculo. O coronel colocou a bandeira. Benedito adaptou a maçaneta, segurando-a a prego.

Rasgando em raiva o ar, estrugiu no alto um rojão. Era o sinal. A camaradagem agarrara-se ao longo do mastro e à garrulada dos pequenos e estouros de foguetes, puseram-no acima, aos vivas e brados ao Divino Espírito Santo.

Um momento, no afã da ascensão, o pesado madeiro pendeu para o lado da casa e esteve vai não vai a cair sobre os telhados.

– Arriba! arriba! – urrou Malaquias, o mais entusiasta, puxando pela peitaria. 

– Puxa! puxa!

– Arriba, homem – gemeu sufocado Joaquim da Tapera, arcando de seu lado com o maior peso.

– Aguenta, aguenta, meu povo – acudiu Benedito, metendo um forcado de escada na parte perigosa.

A rapaziada respirava aliviada, aguentando nas cordas, previamente atadas ao longo do espigão; e aos atropelos, trataram de encher o buraco. Pedras, calhaus e terra socada atupiram logo a cova; e o mastro, já seguro, aprumou-se airosamente, mui branco em sua mão de cal, os anéis em ressalte na noite luminosa e a bandeira lá no topo balouçante, sobre a cabeça de Malaquias, que se encarniçava embaixo, em torno da raiz, remoendo cantorias, a manejar o pesado macete.

Poucas braças adiante, junto ao calvário da fazenda, donde pendiam, esculpidos em madeira, os sete instrumentos de tortura, tinham sido levantadas as cruzes de bananeira, de alto a baixo espetadas por um renque paralelo de pauzinhos destinados a suporte das luminárias. Estas apareceram logo, em casca despolpada de laranja-da-terra, a torcida grossa de algodão ao centro, embebida em azeite, trazidas em bandejas à cabeça do mulherio, como ex-votos piedosos de passadas promessas.

Malaquias, paciente, com unção, foi dispondo as luzes nos espeques; e, vistos à distância, eram dois grandes cruzeiros luminosos, a rebrilhar sob a paz radiosa daqueles céus e ante a serena brancura do luar, que varria longe os escampos solitários.

D. Luísa surgiu no limiar da casa-grande, um tabuleiro de tigelinhas em cada mão; arrastando-se de joelhos, veio depô-las ao pé do mastro, que osculou repetidas vezes, em fervorosa contrição. Só assim cumpria de todo a promessa que fizera antes pelo restabelecimento de nhá Lica, presa das febres intermitentes quando da romaria do Muquém.

Nequinho, desenvolto, numa arteirice de colegial vadio, aproveitou-se logo daquelas luzes e desenhou em arco, ao redor da bandeira, em letras de fogo: Viva o Divino.

Arrematou-as com um enorme ponto de exclamação e às piruetas, de súcia com a molecagem dos agregados, atirou-se a ver quem saltava mais alto a fogueira do pátio.

Nhá Lica recolheu-se depressa ao interior da casa, onde tinha ordens a comandar.

A ceia, lauta, duma fartura de senhorio feudal, fumegava no varandão, esclarecida a intervalos pelos candeeiros de quatro bicos. A família do fazendeiro agrupou-se em torno do chefe e para o fundo, segundo o costume tradicional das velhas colônias, o pessoal do sítio, por graduação de idade e serviço.

Deram pela falta do Nequinho. Apareceu logo, à mão de Benedito, sujo de cal, amarrotado o lindo terno de azul-ferrete à marinheira, pé fincado atrás em oposição, arrepiadinho de ira. O moço levantou-o nos dedos, veio assentá-lo ao pé de nhá Lica e foi tomar assento do outro lado da mesa, junto à velha senhora.

Quisera o meleiro, de parceria com os moleques, marinhar-se ao alto do mastro e ele, Dito, obedecendo ao aviso da Dindinha, apanhara-o a meio caminho.

O pequeno desceu do tamborete e veio cavalgar a perna do coronel. A voz travada, explicava ainda o caso: seu Dito que se intrometesse com o que era da sua conta, não fosse mandar nos outros. Queria apenas ser o primeiro a beijar lá em cima a estampa do Divino, e virar a bandeira para o lado da casa.

O fazendeiro embalava-o na perna, gravemente, em silêncio. Mas nhá Lica, fitando o moço, reclamou assustada:

– Veja só! que maldade, mordeste-o na mão!

Uma pequena mancha rubra, vincada de dentinhos afiados, pontilhava o dorso da mão do rapaz, a ressumar umas gotículas de sangue.

Embaraçado, num acanhamento súbito, recolheu a destra debaixo da toalha e disse chocarreiro:

– Ora, ora, não foi nada, um arranhão; amanhã faremos novamente as pazes.

Mas o coronel encrespara o sobrolho, descia do joelho o filho e ralhava severo:

– Não fosse hoje dia de festa e levarias uma tunda de arnica e salmoura, para aprender a respeitar os mais velhos!

– Menino de hoje – disse d. Luísa reconciliadora – não guarda mais respeito a ninguém; olha, seu briquiteques, este moço que aqui vês, estás escutando? Já o sujaste muitas vezes nos braços, quando trazias cueiros!...

– Pois sim, mas agora sei português e geografia, e seu Dito levou uma manhã inteirinha a escrever um bilhete que mandou depois ao povoado...

Benedito disfarçou, carregando nas talhadas de leitão recheado que estavam à sua frente.

Nhá Lica abstraíra-se da conversa, atarefada em dar de comer a uma pequenita birrenta, sua afilhada, que pusera ao colo.

O fazendeiro, melhor humorado, cofiava a barba, asseverando:

– Gente de agora, nasce falando; influência do regime, fosse lá no tempo da monarquia...

Espalitava os dentes, espreguiçando-se no espaldar, repleto. Os subordinados, um a um, já se iam retirando silenciosamente; e as mulheres do sítio, assentadas como trouxas aos cantos, pelos batentes da cozinha, distribuíam a refeição à filharada, amassando entre os dedos a comida, a empurrar com o polegar os capitães de tutu de feijão para a goela dos pequenos, que engoliam sem mastigar, como patos.

No paiol, repenicando na prima, já ensaiava João Vaqueiro um descante. Malaquias logo o seguiu, a respectiva viola à bandoleira; depois outro, mais outro e outro ainda. O resto formou alas do lado oposto e caíram todos com entusiasmo, batendo palmas, na velha dança-decamaradas. 

No terreiro, à míngua de azeite, morriam as lamparinas dos cruzeiros; e o micaruloso luar do sertão, tão límpido e sugestivo naquelas terras, entrava por toda parte, espancando penumbras, devassando meandros, coado aqui pela galharada das gameleiras, alastrando-se acolá sem mancha e sem obstáculo pela lhanura plana dos chapadões.

E até tarde chorou no paiol a viola, na toada doída da trova sertaneja.


IV 
Abrandara o mormaço do meio-dia. Com o chiar lamurioso dos carros que desciam das roças atulhados de cana para o serão da moagem, vinha refrescando no ar translúcido a viração da tarde.

Nhá Lica contava pontos de crochê junto à janela do quarto. Para o fundo, abriam-se os canteiros de roseiras, a horta viçosa, as mangueiras folhudas do quintal, com sua longa fila de laranjeiras em sazão de ouro, o cafezal abaulado, dum verde retinto e sombrio; e mais além, onde a vista se perdia, vagos contornos de colinas verdejantes, malhadas aqui e ali duma rês esquiva que pascia, entre teias longínquas de arame farpado...

Joões-conguinhos e guaxos importunos galravam no laranjal, em matinadas atordoantes, ora abatendo-se aos bandos, ora em arribadas para a grimpa distante dos coqueiros do cerrado, onde tinham os grandes ninhos pendentes.

Nhá Lica contava pontos de crochê, a linha de novelo entre os dedos.

Cismava...

Eram recordações que lá iam, perdidas no fundo da memória, ao trabalho silencioso da agulha, dias de meninice, as primeiras inquietações da adolescência e a saudade ainda latente do colégio de Sant'Ana, na capital, onde bela e calmosa quadra da existência passara descuidosa.

E surgiam os passeios com as boas dominicanas, em tardes gloriosas como aquela, nos arrabaldes, pela estrada do Areão; as correrias das companheiras ao longo do caminho, a colheita de campainhas e boninas, umas róseas, dum perfume intenso, outras brancas, da candidez imaculada das almas que com ela iam, apanhadas aqui, além, aos molhos, que vinham sorridentes e confiadas ostentar ao sorriso benevolente da Madre; o jogo das prendas, o chicotinho-queimado, nos pontos de descanso; e depois, ao crescer o crepúsculo, a volta para o convento, duas a duas, elas adiante, as irmãs atrás, às orações invariáveis d'ave-maria.

Vinham os caprichosos artefatos de agulha e bordado, aquarelas, pastéis, a confecção artística de almofadas para a exposição do fim de ano, que ao colégio atraía toda a alta sociedade da capital; os prêmios, antecipando as férias, passadas entre arvoredo e alegres folgares, numa chácara pitoresca que possuíam as religiosas à beira do Bagagem.

No ano seguinte, a mesma vida uniforme, com as alterações do adiantamento de idade e progresso nos estudos, e de mais a mais, o gosto acentuado que crescia nela para as coisas místicas, os desvelos que punha no adorno da capela e aquele seu ardente fervor religioso ao terço do rosário, quando anoitecia...

Iam então juntas aos tríduos e novenas da Boa-Morte, às rezas vesperais da igreja do Rosário, e com que ansiosa expectativa, misto de impaciência e alegria, atendiam todas, as internas, às solenidades da Semana Santa! Pelo menos, eram as únicas em que lhes fora dado tomar parte.

Folias do Divino, com cantorias louvaminheiras de crianças à frente das filarmônicas, os peditórios de porta em porta por meninos e cavalheiros revestidos de balandrau e opa encarnada, o cetro, a coroa e a bandeira do Divino passeadas de lar em lar, aos ósculos extáticos da multidão e moedas e cédulas que se iam amontoando nas salvas, mal as podiam apreciar, através das persianas do monastério, a cuja saleta exígua recebiam algumas freiras o farrancho.

O ano passado, no entanto, aparecera ali no Quilombo uma das tais folias da roça, mui diversa, aliás, das da cidade. Compunham-na um bando de trinta mandriões, cavalgando animais lazarentos, apetrechados de pandeiros e violas, que se tinham deixado ficar em pândega na fazenda oito dias seguidos. Ao aproximar, deram uma descarga de trabucos, que a camaradagem do sítio replicou com salvas de roqueiras. Depois, apeados, aos descantes e loas, encostaram a um canto da sala a bandeira e caíram em regozijo na dança, aos sapateados e louvaminhas, que se prolongaram até altas horas da madrugada, e insaciáveis todos de cachaça, que o coronel mandara vir às canadas da armazenagem.

Abateram-se reses no curral, despovoou-se o chiqueiro de porcos, vários leitões foram assados, e, daquela folia, só guardara lembrança do muito cuidado que lhe dera, e à mamãe, na direção da cozinha. Ainda bem que o papai estava acostumado àquelas pousadas intempestivas.

Mas o que lhe doera ao coração, ao saber, foi os foliões, apenas saídos do Quilombo, terem ido arranchar meia légua adiante, na palhoça dum pobre lavrador, onde acamparam três dias seguidos. O rancheiro, coitado, ficara certamente na miséria, desertos os currais e poleiros da pequena criação, em folgança devorada pelos tiradores de esmola...

– Ora, que fazer – dissera o coronel. – Costume da terra!

Não guardava, muito menos, daquele tempo na capital, lembranças das cavalhadas que o imperador eleito do Divino realizava no campo de São Francisco para gáudio da população local, com aquelas histórias tocantes do cativeiro dos cristãos na torre de Ferrabrás, os amores da princesa Floripes com o par de França, o cativeiro dos mouros, a sua conversão na capelinha, que armavam ao segundo dia, e, no terceiro, a corrida final de argolinhas, que punha termo àqueles divertimentos.

Esses festejos, presenciara-os o ano passado em Curralinho, onde tomavam parte o papai como embaixador cristão, e Dito – rei dos mouros.

Guapa cavalgada! Como empinava bem o baio de estima de Roldão, dizendo atrevidamente a embaixada de Carlos Magno ao rei dos infiéis! E com que arrogância e donaire lhe respondia Dito na letra, cabriolando o ginete, a lança alçada, dois passos adiante da sua guarda! Chamejavam espadas. A pedraria reluzia faiscante na bordadura azul e vermelha dos justilhos e pelo cravejamento das fivelas prateadas, que prendiam os penachos encaracolados dos guerreiros. O sol lavava de luz opulenta e clara a arena sonora onde a pugna se desenrolava fremente. Havia um contínuo tropear de cavalos, mal contidos nas estacadas, e o vozerio indistinto da multidão, sob o varandil dos palanques, mãos em pala, à crueza dos raios solares, enquanto a charanga atacava num ângulo da praça a marcha belicosa.

Dentre o contínuo lantejoulamento das arreatas suntuosamente revestidas, a moirama passava em árdegos serbunos, crinas entrelaçadas, ferraduras e cascos dourados rebrilhando ao longe, à desfilada franca, toda sangue em sua vestimenta de veludo carmesim, as flâmulas tremulando na haste pontiaguda das lanças, à investida audaz contra os defensores da Fé. Estes, dentro o uniforme azul-celeste de seu rei, não menos garbosos e escorreitos, saíam em campo, à rebatida brusca dos barbarescos.

Apreciara o desenrolar de toda a justa do palanque de pita que o coronel mandara armar no lado principal, bem a coberto do sol. Divertira-se tanto aqueles três dias!

Mas em Goiás, quando no colégio, as irmãs não as levavam ao campo de São Francisco, supondo talvez, em seu piedoso entendimento, um tanto profanas aquelas exibições.

Havia ainda, na capital, outros divertimentos por ocasião das festas do Espírito Santo. Danças principalmente. O bumba-meu-boi, que afugentava às marradas a petizada; a dança-dosíndios, na sua véstia cor de carne, tinta de urucum, à moda dos tapuios, os cocares e as cintas de penas variegadas, trazidas de propósito de aldeamentos indígenas da beira do Araguaia, com toda aquela figuração de brandir de tacapes, lamentações de pesar em torno do pequenino cacique morto e o grande grito vindicativo de guerra:

Jaburê, quá! quá!...
Jaburê, quá! quá!...

Começavam os combates singulares de lança, porrete e frecha, sucessivamente, em torno da maloca assanhada. Os campeões procuravam-se por sob uma abóbada de arcos entesados, em artimanhas de selvagens e choques bruscos de armas.

E ao tempo que os adversários se sonegavam felinamente, uníssonos, num diapasão que ia do mais leve sussurro ao estertor fero de ódio e vingança, e deste, novamente, ao queixume lancinante murmurado em dolência, entoavam os guerreiros o hino bárbaro:

Arirê, cum! cum!...
Arirê, cum! cum!...

Saíam a campo, afinal, os dois pequenos caciques, maneirosos e ligeiros, em esquivanças rápidas de caxinguelê e passes traiçoeiros de jaguatirica, à rebatida derradeira dos tacapes enfrentados. As tabas rivais cercavam-nos então, a passo lento, esticando o cordame dos arcos, a clamar em lamúria:

Japurunga matou minha fia,
Japurunga matou minha fia,
Frecha nele sem parar!...
Frecha nele sem parar!...
Prazs!... Prazs!... Prazs!...

Disparavam.

Havia ainda a dança-de-velhos, em grandes cabeleiras empoadas, os sapatos de fivelão e costumes à Luís XV, exibindo por salões franqueados voltas obsoletas, à moda antiga.

O vilão, os lanceiros, estes organizados pelos rapazes da fina flor social, em rica fantasia, inauguravam as suas quadrilhas logo à noite do baile e banquete que o imperador do Divino oferecia à cidade.

O quebra-bunda não deixava de fazer também a sua aparição desde o começo das novenas, com as coplas e lundus chorosos dos mulatos, quadras requebradas e dolentes, uma das quais, esperem, rezava assim:

Minha mãe me pôs na escola
Pra aprender o bê-a-bá,
Eu fugi, fui aprender
O lundu do marruá!...

Indecente, pois não, mas apenas de nome, que no fundo, tão ingênua, tão simples, dessa simplicidade de velha dança colonial, não se impedindo o seu ingresso no seio das famílias, antes mui disputados e solicitados os organizadores a irem exibir os bailados no interior das casas principais e mesmo no palácio governamental...

De todos aqueles festejos, tinha conhecimento pelo que lhes contavam no outro dia as externas, aos intervalos da aula, o que valia, às vezes, exemplar reprimenda da irmã zeladora. 

Um e outro ano surgia a mais a dança do Congo, posta à rua pelos pretos, cujo rei era sempre um africano centenário, ainda forte e robusto, trazido de Luanda ao tempo da escravatura.

Aos reco-recos das varetas pela superfície estriada em serras das compridas cabaças que apropriavam, e ao som de adufes e pandeiros, celebravam os ritos e glórias de seu país ancestral, religiosamente através do exílio transmitidos, em fraseados complicados e embaixadas pomposas de língua perra.

Executava-se o duelo dos príncipes, procurando-se os dois rivais aos pulos ágeis, ora num pé ora no outro, entre as filas apartadas dos guerreiros e a final degola destes – a espada correndo cerce ao longo das gargantas. Arrematavam a encenação com dolentes cantorias, onde a nota – êh! Maria-Longuê! – era repisada em estribilho a cada retorno, invariavelmente. 

Esses, os do Congado, vira-os passar duma feita sob as gelosias, num quente meio-dia de domingo. Uns traziam gorros e capacetes de plumas, grandes corações recamados de vidrilho sobre o peito ofuscante de lantejoulas e glóbulos dourados; outros, meias-luas de prata em ressalte no fundo do colete mourisco, colares de búzio com voltas de conta e pulseiras de miçangas, metidos em calções de debrum e largos sapatões cara-de-gato. Os mais vistosos calçavam botins e tinham o justilho azul de pano mais fino, sobressaindo-se os tufos de pelúcia nos punhos curtos e sobre a gorjeira baixa.

Caminhando, iam e vinham sobre os próprios passos, arrastando a cantilena, ao reco-reco infatigável das cabaças empunhadas.

Ah, as doces, ingênuas, tradições goianas!

De novo, a saudade de Lica voou, trêfega, para as procissões da Semana Santa.

Ah, as procissões... Então, através das persianas donde espreitavam, como que a cidade tomava outro aspecto, revestindo-se dum ar solene e grandioso.

Trabalhadores, enxada à mão, punham-se nas ruas e praças a capinar febrilmente, dentre os interstícios do macadame, os tufos rasteiros de gramíneas; varriam-se as calçadas, o chão era atapetado de goivos, miosótis, jacintos, manjericões e mais folhas odoríferas.

No primeiro domingo, o de Passos, iam todas à Boa-Morte, a cuja entrada tinha lugar o encontro da Virgem Maria com o Filho desejado. Este, sob o peso do madeiro, mui lívido e doloroso, a grossa corda de nós cingindo os rins sobre a túnica roxa, a fronte pálida, porejando sangue, dobrava a esquina à coral mística dos rabecões, sob a auréola sangrenta da coroa de espinhos e nuvens e nuvens consecutivas de incenso, que o pároco, mui solene e paramentado, ia à frente turibulando.

Fazia-se um grande silêncio. A banda de música, que fechava o cortejo, cessava a sinfonia plangente do acompanhamento. Acotovelava-se o povo no ádito da igreja, pelas ruas e vielas que desembocavam na praça; e, de ao pé duma das janelas que abriam do coro para o largo, um frade beneditino, mui untuoso e comovedor, começava a longa prédica da paixão do Senhor, a voz soluçante e profunda no descrever a cena patética do Calvário, e a disputa última dos guardas sobre o corpo ainda palpitante do Crucificado!

Choravam todas. Ainda agora, ao relembrar, tinha as pálpebras umedecidas...

À noite, os Sete Passos da cidade, encravados em espaçosos nichos, onde o Cristo se detivera lasso na caminhada, iluminavam-se de alto a baixo, e toda a gente corria em Via-Sacra a visitá-los, depositando na toalha do altar, sobre a salva exposta, o óbolo devoto.

Depois, Quinta-Feira das Dores, nova procissão, a da Virgem Dolorosa em busca do Filho bem-amado. O andor, numa suntuosa ornamentação de flores artificiais, a imagem naquele manto azulíneo todo constelações, era pelo percurso levado ao ombro das donzelas de mais destaque na sociedade, todas de branco trajadas. E que desejo nutria ela, Lica, de carregálo também, garbosa e transfigurada da divina carga, embora nessa época mal debuxara ainda os seus primeiros catorze enfermiços anos e ser assim tão franzina e frágil de forças!

Dirigia-se então com as irmãs a esperar o acompanhamento na Matriz, onde recolhia, e deixava-se estar de joelhos muito tempo em adoração, extasiada, e, enquanto os círios ardiam, evolava-se em torno o cheiro profundamente místico dos incensórios, e o sacerdote no altar-mor principiava o ofício.

Após as Trevas, na Sexta-Feira Santa, as solenidades atingiam o seu apogeu de esplendor e compunção religiosa. Desde a véspera, nenhum rumor, nenhum grito de pregão, nem mesmo o ao de leve bater dos saltos dum sapato na rua deserta. A cidade soterrava-se num silêncio mortuário, sombrio, profundo, sepulcral, de necrópole abandonada... Nenhum brado de armas na cadeia pública; os toques de corneta dos quartéis não davam esse dia os sinais regulamentares e até os galos, no fundo dos quintais, pareciam olvidar o seu canto álacre.

Era o dia das santas virtudes, em que as árvores e as coisas se revestiam dum atributo sagrado e os homens, mulheres e crianças saíam pelos campos e matas dos arredores, atrás duma raiz milagreira de amaro leite, suma, batatinha ou folhas de chá-de-frade, que, colhidas em tal ocasião, santificadas pelo teândrico martírio do Cristo, adquiriam um maravilhado poder de cura nos achaques caseiros do ano...

Súbito, às doze, quando o sol que – único – não se velara de crepe, alcançava o pináculo do quadrante, ouviam-se as notas retumbantes e ásperas da matraca, anunciando aos quatro cantos da cidade que Nosso Senhor era morto. Então as meninas, que haviam comungado pela manhã e estavam desde a véspera em jejum absoluto, encaminhavam-se para o refeitório, onde o jantar era amelhorado duma iguaria nova, preparando-se todas logo em seguida para continuar as devoções da Boa-Morte.

À procissão do Enterro, acudiam moradores de toda a redondeza e mesmo de fora do município afluíam às vezes. Apesar da distância, a sua família viera duma feita, mais no entanto para visitá-la, que a essas cerimônias tinha d. Luísa por costume assistir em Curralinho, lugar bem mais próximo do Quilombo.

Milhares de luzes tremeluzindo em alas davam volta às ruas principais, o cortejo ritual ao centro. Escutava-se a espaços, o peito lacerado por inenarrável opressão, o cântico merencório e lancinante da Verônica – moça feliz que tivera a fortuna de representar esse ano a Madalena – trepada a um tamborete carmesim, o diadema refulgente sobre a testa e a ampla cabeleira desnastrada espáduas abaixo, exibindo à multidão contrita, entre mal sopitadas lágrimas, o lençol sanguinolento que amoldara a cabeça coroada de espinhos do Homem-Deus.

E toda a milenária Dor humana, consubstanciada naquelas palavras, parecia ainda como que a ressoar-lhe aos ouvidos, funebremente, doloridamente: Vos omnes qui transitis per viam, attendite et videte si est dolor sicut dolor meus!...

À sua imaginação, impressionada ao excesso, fugiam os detalhes, num turbilhão de figuras litúrgicas a passar; aqui São João, o halo predestinado sobre a fronte, entre dois apóstolos, sobraçando um livro; ali, as três Marias carpideiras,vestidas de crepe, atrás do catafalco lúgubre, sob cujo pálio damasquino, sustentado por seis cavalheiros de opa violeta a empunhar as varas de prata maciça, jazia num leito de martírio o corpo seminu e anguloso da Divindade, macerado de angústia, em holocausto sacrificado à redenção de todos os mortais.

Sábado da Aleluia! Repiques festivais de sino na catedral; pombos e pássaros que se soltavam, a esvoaçar entre os coruchéus e cornijas do templo; foguetes e girândolas no largo estourando. Saudade...

Domingo da Ressurreição, madrugada alta, um frio cortante descendo da garganta da Carioca e tanta gente amontoada à luz do luar no adro da igreja, à espera de que as largas portas se descerrassem, enquanto a meninada se ajuntava no meio do largo, procurando distinguir as feições do Judas, lá dependurado no alto duma embaúba, e que seria queimado após o ofício divino.

Até àquele canto da nave, onde costumavam ajoelhar-se, chegavam de fora gritos e assovios, matinadas ferozes em torno dum mesmo objeto, vaias estrídulas, a partir dos quatro ângulos da praça. Era a molecada, às centenas, às maltas incontáveis, armada de seixos, atacando os caipiras – pobres matutos desentocados do fundo de suas roças e plantações pelo prazer de tomar parte naquela santa festividade, – e a bradar-lhes à orelha a alcunha injuriosa:

– Queijeiro!... Queijeiro!... Queijeiro!...

Ainda bem que Benedito, que fora com a família uma daquelas vezes à capital, mudava de feição, adotando facilmente o aspecto distinto de moço da cidade, não obstante passar a maior parte do ano na fazenda, e mesmo, não se envergonhando de – na necessidade – pegar o cabo da foice, como vira o ano passado e pôr num chinelo toda a camaradagem do sítio, batendo-a no eito, mesmo àquele Malaquias, apontado como o primeiro no corte dos canaviais.

E Lica, levada por outro curso de ideias, olhou para o fundo do quintal, onde o seu companheiro de infância, assentado numa moenda velha de engenho, à sombra das mangueiras, se entretinha a traçar com o canivete arabescos caprichosos na peroba dum piraí, a assobiar descuidado, enquanto Nequinho já em vias de reconciliação, rondava em torno, olhos grudados no trabalho do moço, entre arrependido e incerto da posse daquele brinco.

– Olha que apanhas um resfriado, menina – disse d. Luísa abeirando-se sem que percebesse. – São horas de recolher, o sereno já começa a cair e tu aí absorta, como se estivesses sonhando!

Anoitecera. No céu azulíneo, duma diafaneidade única, o Cruzeiro do Sul lucilava como um símbolo vivo sobre a imensurada vastidão daquelas planuras, que a rudeza do velho Anhanguera desbravara e estendera o guante de conquista, povoando-a duma grande raça empreendedora e forte, que a moleza do clima, o misticismo ancestral dos reinóis e bastardias de sangue, iam lento e lento desfibrando, salvo arrancadas extemporâneas dum e outro rebento mais rebelde...

E nhá Lica cismava ainda nos festejos queridos de sua terra, que traziam entretecida a cadeia de suas recordações de menina e moça dum filão preciosíssimo de suaves e repassadas saudades, que o luar, a noite, o sertão e a festa da véspera tornavam ainda mais fundas e cruciantes naquela alma ingênua e simples, virgem ainda dos contatos brutais com as paixões, os azares, com a Vida enfim.

Uma mato-virgem arrulhou além, oculta entre os cafezais; e um grilo, cricri, afinou sob a janela, ao rés da grama, numa fenda mal coberta de reboco.

Súbita tristeza, amálgama de confrangimento e aperto de coração, num pesar indefinível, assenhorou-se de nhá Lica. Dobrando o pescoço, mui alvo e transparente, sobre o peitoril da janela – um bucle anelado a ressaltar na nuca, sobre o cetim da epiderme – as lágrimas, uma a uma, correram lentas, sem causa aparente e sem um só queixume de seus lábios contrafeitos...

Benedito pensava a Pelintra. Uma dobra dos baixeiros pusera-a sentida do espinhaço no passeio que tinha feito pouco antes em companhia dos filhos da fazenda, ao sítio próximo. Vieram chamá-lo a mando do patrão.

Dependurou o chifre de tutano com que lhe engraxava o pelo na argola de recavém dum carro, saiu às pressas do puxado dos tropeiros, rumo da casa-grande, onde o fazendeiro media impaciente as passadas ao longo do varandão.

Caminho andado, João Vaqueiro fizera-o ciente do sucedido – fugira o Malaquias!

O nagoa, furtando-se à velha dívida do ajuste, abrira o pala à meia-noite, montado na melhor besta de sela da fazenda.

Galgando os degraus do varandil, viu logo pelo jeito que o caso era sério. O coronel passeava os quatro cantos da sala, carrancudo, repuxando as falripas da barba grisalhona, o olhar atravessado e duro sob a ruga da testa, num daqueles seus terríveis e frequentes acessos de mau-humor.

Era quase ao anoitecer. Pelos tampos escancarados das janelas, enquadradas em portais de jacarandá, a luz crepuscular entrava difusamente, alumiando ao fundo o ouro fulvo das peles de onça que forravam as paredes, esbatendo-se entre os rosários de orelha de anta e veado entrecruzados e pendentes do teto, destacando aos renques – bizarramente – a alvura das caveiras de capivara, galheiro e queixada que atestavam aos cantos, ao gosto das fazendas do interior, as proezas venatórias do chefe.

Sob aquele peso de troféus, de rifles, clavinotes e caçadeiras dependuradas dos cabides, o fazendeiro media às passadas o aposento, como outrora o senhor feudal cruzando as lájeas de sua sala de armas, a meditar a baixa justiça sobre a cabeça redonda e vil dum vassalo acusado de felonia e traição...

Mal o divisou, foi advertindo ríspido:

– É aprontar-se já e partir sem detença pela madrugada. Não descanso mais uma só noite sossegado, enquanto não ver aquele ladrão na sala do tronco.

– A Pelintra veio sentida do Mamede, mas não havia de ser por isso que o negro deixaria de vir...

– Pois é escolher aí no pasto o animal que mais convier. Quanto a dinheiro para despesas, vem aqui ter comigo assim que tudo estiver arrumado. Gaste eu um conto de réis nesta empreitada, mas a fama do Quilombo não há de ficar desmerecida; nesta fazenda cachorro vadio teve sempre ensino, ninguém foge aqui ao trato firmado! É dar em riba do negro e trazê-lo amarrado pelo cangaço ao moirão do curral, que o resto havemos de ver.

O outro não estranhou, acostumado àqueles repentes. Coçou a orelha sob a aba do chapéu, e, sem mais, foi tratar com zelo dos aprestos da viagem.

Sabia-a arriscada, melindrosa mesmo, dado o desapego do nagoa ao perigo, e o seu tino tantas vezes comprovado em manhas e astúcias para enfrentar ou esquivar-se a quem se lhe atravessava no caminho. Também a ele, Dito, não faltava jeito... Haviam de ver.

Foi ao quarto, em separado num dos ângulos do casarão; abriu uma canastra, vinda com ele em pequeno dos Dourados, quando lá mandara buscá-lo a Dindinha. Trazia ainda tacheadas sobre a tampa de couro, as iniciais de seu finado pai. Pôs-se a separar atento a roupa – dois parelhos de brim riscado, ceroulas de algodão grosseiro, três camisas de morim, que lhe dera a madrinha pela véspera do Natal. Levaria aquilo tudo sob os coxonilhos dos arreios, reservando os alforjes da garupa para a matula, as mezinhas, se houvesse precisão, e demais objetos miúdos. Enfim, ali estava todo o necessário para quem, como ele, ia viajar à escoteira. Despendurou do cabide o rifle e, à luz da candeia que acendera, pôs-se a examinar com cuidado o mecanismo da culatra, fazendo mover lentamente a alavanca do gatilho. Limpou-a minuciosamente, meteu pelo cano de reserva os doze cartuchos precisos, fechou a arma e foi pendurá-la à bandeira da porta, para quando saísse.

Nada, o nagoa era arteiro, trazia patuá bento contra ferro alheio; e, para gente curada, só mesmo calibre 44 e a pontaria de seu olho. Pois sim, que com ele, não havia reza nem bentinho; era tiro e queda.

Enfim, ia prevenido.

Demais, não era essa a primeira vez que o patrão o enviava à pega de camarada fugido. Tinha até fama o seu faro nas redondezas. Em apanhando a catinga, ia direito no rastro que nem cachorro perdigueiro e não havia então tirá-lo da pista enquanto não trazia filada a caça à porteira do curral.

Ainda duma vez...

Mas para que lembrar! Tinha ainda no braço os caroços de chumbo com que o chamuscara um cigano, ladrão de cavalos, que andava a limpar as pastarias dos arredores. Ao estampido, caminhara que nem canguçu na fumaça e trouxera-o ali amarrado ao moirão, onde o coronel, à vista de todo o pessoal reunido, mandou aquele mesmo Malaquias chegar-lhe aos untos do traseiro uma coça mestra, rapar pestanas e cocuruto à moda de frade, salvo seja, e depois, com desprezo e aos risos da camaradagem, soltá-lo no campo, assim como uma rês capada...

Outra, foi na romaria da Trindade. Um baiano apessoado batera uns contecos ao patrão no jogo. Ele bem observara, postado do lado de fora, a tramoia. O meleiro ia ajuntando uma por uma as pelegas, de que fazia um bolo e que metia no bolso interior do jaleco, proseando com ufania, a entreter o coronel; este, mui confiado, a praguejar contra o azar do marimbo que o perseguia, atirando nota sobre nota na mesa. 

Aquilo cheirava às léguas a embromação. Com disfarce, descobriu logo que o gajo, de súcia com o parceiro, manejava com outro baralho, que traziam escondido no forro dos chapéus. A horas tantas, quando já se levantavam satisfeitos, saltou-lhes à frente, a garrucha na destra, a franqueira na outra, desmascarando num berro a esperteza.

Foi uma roda-viva. Um deles pôs-se logo a tremer, acovardado; mas o baiano, sujeito atirado e quizilento, encrespou o sobrolho, rugiu cinco desaforos e quis abecá-lo pelas costas, armado dum sabre-punhal que sacara do cabo do rebenque.

Homem aquele de peitaria! Mas não dera tempo; já o apertava num canto, riscando-lhe de sobreleve a faca pelo ventre, dominando-o com a garrucha, até que, rendido, o forasteiro achou por seguro chegar às boas, restituindo a cobreira, sempre protestando no entanto, o descarado, contra a sua parte na maroteira...

Ah, tempo! Metesse na veneta do fazendeiro fazer-se oposicionista, não havia mãos a medir com tantos seu-Dito-faz-isto, seu-Dito-desmancha-aquilo!

Verdade seja, não mandara nunca uma criatura de Deus desta para melhor, não, graças ao Santíssimo; mas não era que carecesse de ocasião. Santa Maria! brigas, tivera-as muitas, raras por provocação, seja dito de passagem, que era lá de seu foro mui ordeiro e avesso àquelas exibições, antes de natural lhano e metido em seu canto; mas, as mais das vezes, birras do patrão com a gente da redondeza, no que o servia em reconhecimento de ter ido recolhê-lo aos Dourados, quando lá ficara órfão e só; e depois, pela Chica, mulata que por ser mulher, tinha seu quê de faceira, gostando de estadear o talento do amante quando se lhe faziam de engraçado.

Em épocas de eleições, quando o coronel estava contra o governo, então, andava numa corre-coxia dos trezentos, tais os embrulhos que surgiam. Na vila, às vezes, dançava alto o pau; não raro, eram os tiros que se não sabia donde partidos, as teimas para convencer o votante contrário, enfim, o costume da terra. Eram ordens pra aqui, ordens pra ali, arregimentando o pessoal da fazenda, garantindo a chapa, o diabo!

Malaquias fora sempre um dos que mais o ajudavam naquelas alhadas. Nem mesmo sabia por que fugira o preto. Estimado da casa, afeito àquele serviço desde rapazote, não podia ganhar fora mais do que lhe davam na fazenda. Feitiçaria? Não acreditava, apesar de tudo, naquelas baboseiras; que ali, naquelas cercanias, eram ele e nhá Lica, talvez, os únicos que não criam nessas imundícies... Feitiço, talvez, mas dalguma daquelas mulheres que tinham pousado a semana passada no puxado dos tropeiros, em companhia duns soldados em diligência para as recebedorias do Paranaíba. Isso sim, acreditava; tanto que elas tinham passado a noite toda em gaitadas e cantorias, enquanto o cabo da tropilha tocava a sanfona de sobre o jirau dumas cangalhas, as espingardas empilhadas ao canto, o chapelão de palha com fanfarrice batido e acampado à banda. Por sinal que uma daquelas raparigas veio comprar à casa-grande meia garrafa de caninha e fora o Malaquias quem lha medira no quarto da armazenagem. Não fosse o preto ficar embeiçado da roxa, e daí os propósitos da fuga.

Mas abanou a cabeça, duvidando:

– Qual! O nagoa fugia sempre ao rabicho das saias e não seria daquela vez que se deixaria tentar.

Quanto à besta de estima, sabia-o bem, não havia ali tenção de furto; Malaquias levara-a por necessidade de montaria ligeira que o apartasse depressa daqueles sítios.

Então, que seria?

E o cabra, apoiado à cabeceira da cama, entrou a matutar fundamente. Lembrou-se pela vez primeira – ele que a praticava instintivamente – que era livre e movia-se para onde bem queria, prendendo-o apenas àqueles lugares o hábito da meninice e a sua gratidão para com os donos da fazenda, enquanto que a condição dum camarada era muito diferente, tolhida a liberdade pelo ajuste do fazendeiro.

Geralmente, o empregado na lavoura ou simples trabalho de campo e criação, ganha no máximo quinze mil-réis ao mês. Quando tem longa prática no traquejo e é homem de confiança, chega a perceber vinte, quantia já considerada exorbitante na maioria dos casos. É essa a soma irrisória que deve prover às suas necessidades. Gasta-a em poucos dias. Principia então a tomar emprestado ao senhor. Dá-lhe este cinco hoje, dez amanhã, certo de que cada mil-réis que adianta, é mais um elo acrescentado à cadeia que prende o jornaleiro ao seu serviço. Isso, no começo do trato; com o tempo, a dívida avoluma-se, chega a proporções exageradas, resultando para o infeliz não poder nunca saldá-la e torna-se assim completamente alienado da vontade própria. Perde o crédito na venda próxima, não faz o mínimo negócio sem pleno consentimento do patrão, que já não lhe adianta mais dinheiro. É escravo da sua dívida, que, no sertão, constitui hoje em dia uma das curiosas modalidades do antigo cativeiro. Quando muito, querendo dalgum modo mudar de condição, pede a conta ao senhor, que fica no livre arbítrio de lha dar, e sai à procura dum novo patrão que queira resgatá-lo ao antigo, tomando-o ao seu serviço. Passa assim de mão em mão, devendo em média de quinhentos a um conto e mais, maltratado aqui por uns de coração empedernido, ali mais ou menos aliviado dos maus-tratos, mas sempre sujeito ao ajuste, de que só se livra, comumente, quando chega a morte.

Benedito sentiu aquilo tudo, confusamente; mas nem por sombra lhe passou pelo juízo contrariar as ordens do coronel. Desde pequeno, achara as coisas naquele pé, e assim como estavam, haviam de continuar até quando fosse Deus servido em comandar o contrário.

O preto fugira, estava ali o fato; devia ao patrão novecentos e cinquenta e cinco mil-réis, eis a circunstância; mandavam-no buscá-lo: havia de vir. Os meios, pouco importavam; morto ou vivo, filado à gola pelo sedenho ou apenas o par de orelhas como prova, havia de vir.

– Nhô Dito, olha que a ceia está a esfriar – arrancou-o daquelas preocupações a voz de João Vaqueiro, surgindo à abertura da porta.

No varandão, agora deserto, provando uma colherada de angu de caruru que lhe servia a mulher do caseiro, pôs-se a ruminar os planos de campanha.

D. Luísa apareceu do interior e colocou sobre a mesa um sapiquá atufado, aconselhando maternal:

– Muita prudência, menino.

Não fosse atirar no outro sem necessidade; também, nada de afoiteza em expor-se à ira do camarada.

A Dindinha que não se arreceasse, sabia com quem lidava; demais, se o preto emproasse, ali estava ele mais a carabina para quebrar as proas que fossem aparecendo.

E como nhá Lica surgia no limiar, iluminando com o seu perfil suave a moldura enegrecida da porta, empinou o busto orgulhoso, mão à cinta, sobre o cinturão de sola larga, onde rebrilhava o cabo niquelado da franqueira.

– Olha, deste lado vão a paçoca, um frango recheado e o mexido de ovos em separado na lata – disse a senhora. – Do outro, café, o açúcar em latinhas e umas cocadas que nhá Lica aprontou.

– Não era preciso tanto cuidado – agradeceu meio confundido. Tomou-lhe a bênção rápido, cumprimentou a moça e foi despedir-se do pessoal da casa, àquela hora, como de costume, reunida no paiol de milho, em comentários ao caso do dia.

– Aquele negro tem sorte – dizia Joaquim da Tapera. – Caindo no mundo, ninguém mais lhe bota a vista em riba. Cabra destorcido! Matreiro que nem lagartixa, com a cabeça diz que sim, com o rabo diz que não. Ali está a marca que fez uma vez para mostrar como se empalma uma faca nesta terra! Traçou uma roda de palmo na parede, dividiu-a em doze riscas e à distância de seis passos não errou um só bote! Demais, arrepiado como ouriço-cacheiro; diabo como aquele não entrega à toa os pulsos à correia.

– Pois, seu Quim – respondia João Vaqueiro –, se ele é que nem martinho-pescador, que frecha certeiro o peixe, tem pra frente nhô Dito, que é como tucano, quebra tudo que o bico alcança.

– A pois, lá diz o rifão, dois bicudos não se beijam – comentou alguém.

Entrando, ele foi assentar-se num amontoado de suadouros de cangalha que ali estavam empilhados para atalhar e pôs-se a ouvir em silêncio a conversa.

– Seu Dito, toma tento com aquele crioulo, caso venha a topá-lo, o que duvido – avisou Fidélis. – É bicho sarado, tem mandinga contra arma de fogo. Mesmo ferro benzido, escorrega naquele couro que até parece bagre fora d'água. Toma sentido!

– Essa cantiga comigo não adianta – disse afinal. – Não há como pulso firme e franqueira de fiança, sempre pronta na ocasião. O mais, conversa fiada...

– Ora, ora... Não acreditava! – cortou o outro melindrado. – E esta! Só mesmo um moço da cidade. Nem parecia até que fora criado naqueles fundões. Conversa fiada, veja só!...

E desatou a rir, constrangido. Depois:

– Pois vou contar um fato, acontecido com o meu defunto compadre Desidério, cabo de polícia no tempo da monarquia. Andava aí pr'esses sertões um tal Deodato, bandido de profissão, com dezoito mortes e tantas no costado, e um sem-número de falcatruas nos povoados, a caçoar do governo com as arrelias e façanhas de todo o dia, matando hoje um homem aqui, forçando amanhã uma mulher ali, ora nos Gerais, ora nesta província, e, apesar dos prêmios e a fama que adviria a quem o prendesse, sem poder as diligências jamais botar-lhe o olho em cima. Crescendo de atrevimento com a falta de ensino, chegou a penetrar nas vilas à luz do meio-dia, ameaçando céus e terra, pondo o povo todo espavorido com as bravatas que arrotava, e faria mesmo, caso piasse alguém ao lado. Duma feita, penetrou na cadeia do lugar onde estava arranchada a escolta encarregada de prendê-lo e foi desancando do primeiro ao último com o cabo do chicote, enquanto dois de seus parceiros mantinham em respeito, com a boca dos trabucos escancarados da soleira, a soldadesca surpreendida. Vivia num estadão, garantido até pelos chefes de partido, que aproveitavam os seus préstimos de capanga para negócios de politicagem. Deodato trazia sempre consigo um bentinho no pescoço, bentinho em que depositava muita fé e é aqui que bate o ponto da história.

“O meu compadre era um homem às direitas. Metera-se-lhe na cachola que havia de dar cabo do bandido, e uma vez assim ateimado, não havia por onde torcer. Ele batia pois essas estradas e cafuas, à frente de quatro cabras decididos, e tanto viramexeu, que uma noite, dando cerco a uma tapera à beira do Uru, onde tinha notado uns sinais que o punham assofismado, calhou que lá dentro se encontrasse de pernoite, sozinho, o afamado assassino. Deram volta à casa, e um deles foi bater à porta da frente, de cujas fendas gretadas de caruncho saía um longo crivo de luz. Os demais ficaram de tocaia, estirados atrás das moitas de gravatá e tiririca do arredor, vigiando as saídas.

– Ó de casa – bradou o soldado com voz firme. Respondeu-lhe tremendo estampido de clavinote, que escumou de vez a madeira da porta, e a fera pulou para fora, o facalhão em punho. O rapaz ouvira antes o estalido da arma aperrando e teve tempo de desviar-se da descarga. Ajoelhado de banda, fez-lhe fogo ao peito. Os companheiros descarregaram por sua vez, da tocaia, as pederneiras. Deodato, mortalmente baleado, caiu sobre um joelho; e o destacamento, carregando de novo as espingardas, deu-lhe mais duas ou três descargas à queima-bucha, quebrando-lhe um a um, por quinze sangrentas feridas, os ossos do corpo. Foram depois pernoitar meia légua adiante, numa fazendola, donde voltaram com enxadas ao romper d'alva, para dar sepultura ao criminoso e cortar-lhe as orelhas. Conforme o uso, elas iriam dar testemunho daquele feito. O dia clareara já de todo, o sol mostrava-se meia braça acima dum oiteiro, quando chegaram à tapera. Deram um rodeio ao oitão, à procura do morto. Não o tinham encontrado no lugar em que caíra varado de papouco.

O ervaçal espezinhado, coágulos frescos de sangue umedecendo o orvalho e que se alastravam agora em largas manchas sobre a grama, diziam bem que era ali exatamente o local onde sucumbira de vez o bandido sob os couces d'armas da patrulha. Mas o corpo, que é dele? Admirados, zanza pra'qui, zanza pra'colá, na suposição de que uma vara de bichos do mato o tivesse arrastado para longe, eis que o anspeçada, afoitado numa capoeira de assa-peixe e juábravo, solta um grito de espanto, clamando socorro. Acudiram todos. Os cabelos em pé, olhos esbugalhados, o rapaz apontava para um claro da saroba. E aí está o que viram: encostado a um cupim, as pernas direitas, segurando numa das mãos o clavinote, a outra aconchegada ao peito, Deodato olhava-os também, mui vivo, procurando armar o cão emperreado do seu boca-desino... O anspeçada, sem relutância, meteu a arma à cara, e estava para disparar, quando o compadre atalhou:

“– Fica quieto, não é preciso gastar mais munição com esta cobra; deixa-a cá comigo. – Achegou-se com cautela e afastando a mão do jagunço, que procurava embalde obstá-lo, arrancou-lhe do peito o bentinho, junto a um patuá, em cujo forro estava cosida a reza brava contra bala! Assim que lho tirou, o homem caiu que nem fruta podre, para nunca mais se erguer. Como esse, tantos casos mais; qual, ser curado é coisa séria; perigo, e grande, corre quem se mete com esse povo. E o Malaquias, afirmo porque vi, sempre trouxe no pescoço um breve...”

– Por mim – ponderou João Vaqueiro levantando-se – acho que a melhor reza é confiança no santíssimo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e a carabina de nhô Dito, que nunca negou fogo.

– Pois não, pois não – confirmava o outro, arrastando um couro do fundo do paiol; mas que o moço fosse sempre prevenido.

E começou a preparar a cama, arranjada com um ligal aberto sobre a esteira de espigas, forrando-a depois com as mantas e lombilhos d'arreios.

Um acauã guinchava à distância, na noite escura.

O minguante, esguio e tardo, principiava a espalhar, entre nuvens, os seus primeiros bruxuleios de luz mortiça por detrás das últimas serranias do nascente.

E, no paiol da fazenda, a camaradagem conversava ainda em torno da chocolateira fumegante, preparando nova infusão aromática de folhas de limeira-de-umbigo com rapadura, enquanto pelo sertão sem termo, de cotovelo a cotovelo das estradas, de barroca a barroca, ia o grito d'alarma das aves noturnas.

Através das persianas cerradas da janela de nhá Lica, uma luzinha brilhava ainda.

Que estaria a fazer àquela hora a filha do patrão? pensou Benedito, recolhendo caminho de seu quarto de solteiro.


VI 
Pelos dias de agosto, todo o horizonte goiano é um vasto mar de chamas: fogo das queimadas que ardem, alastrando-se pelos Gerais dos tabuleiros e chapadões a afugentar a fauna alada daqueles campos; fogo dos cerrados que esbraseiam, estadeando à noite os seus longos listrões de incêndio nas cumeadas das serras, intrometendo-se léguas e léguas pelo mato grosso e travessões do curso dos rios e subindo, carbonizadas as folhas secas que o vento acamara, pelo cipoal e trepadeiras dos troncos seculares, cuja casca rugosa tisna de sobreleve para ir em fúria crepitar nas grimpas, entre as galharadas verdes, reduzindo a cinzas os ninhos balouçantes do sabiá nativo, as caixas extravagantes da borá e mandaçaia, quando não enxota de pouso em pouso as guinchantes guaribas, os velozes caxinguelês, das alturas prediletas do tamboril, jatobá, aroeira ou barriguda – os mais comuns – daquelas matas.

Através do espesso lençol de fumaça que à noite encobre o lume das estrelas, o sol semelha de eito a eito um enorme carvão aceso e sangra pelos flancos a sua luz avermelhada e mortiça, numa atmosfera de forja, que nenhum sopro de aragem alenta.

Emigra a vida para longes climas. Das alfurjas, nas tocas solapadas de ao pé dos morros, nos desvãos de pedra, onde em dias de chuva calangos e lagartixas espapaçaram-se ao vento, à cata de insetos, desapareceram misteriosamente os reptis, à espera da tarda estação da fartura, que aí deve chegar com as primeiras chuvadas de outubro. E somente à beira dos charcos que ficaram, nos furados úmidos, continua ininterrupto o ramerrão do cururu e saparia miúda, ao mormaço das longas tardes nevoentas e a zoada surda das mutucas e pernilongos, que lá, mais que alhures, enxameiam no gado acossado dos capões.

Não há ali porém, louvado seja, os rigores da seca em céus do Norte. As nuvens vão beber no farto divortium aquarum dos grandes rios que alimentam simultaneamente as bacias do Amazonas, Prata e São Francisco, elementos abundantes para o próximo ressurgimento da terra; e a miséria do solo resulta antes da incúria do homem, que ateia fogo às derrubadas para a fertilidade da lavoura e destas, quase sempre, transpõe as divisas da roça e vai floresta adentro avançando a sua obra de assolação, transpondo levadas e ribeirões, escalonando serras de extremo a extremo do sertão, espraiando-se sem obstáculo pelas extensas ondulações das campinas fecundas, e só parando quando o tropeço dum grande rio ou o encontro com outra queimada lhe roube elemento onde saciar a sua fome implacável de extermínio. Rodopia e morre então em torno de si mesmo, quando não cinge uma vítima, caça ou rês dos arredores, no redomoinho trágico.

A obra de destruição vai lento e lento preparando ali a ruína das gerações futuras, embora a natureza opulenta exubere a cada nova hecatombe com redobrado vigor e esplenda em louçanias aos primeiros aguaceiros, espalhando aos quatro ventos, indiferentemente, as messes abundantes com que retribui de ano a ano a bronca insensatez do matuto. E ai do destino daquele ubérrimo rincão, não fora o recurso natural das imensas florestas virgens e dos sertões ainda por violar.

Cessa por esse tempo a labuta nas fazendas. O gado espera a chuva para amojar e remói o mata-pasto ruim das encostas, o angola paludoso dos alagados desaparecidos, o capimpuba e gordura que o fazendeiro reservou e defendeu nas invernadas, se se não embrenha na selva imune, atrás do papuã.

Se o incêndio devorou os capoeirões e pastagens naturais, deu por sua vez cabo da praga de carrapatinhos que depauperava a criação. É o tempo em que os carniceiros caracarás, únicos satisfeitos na desolação derredor, se põem a catar os gordos rodoleiros – caídos de maduro – na pelanca descarnada dos animais, esborrachando-os no bico d'aço retinto dum bigode de sangue negro, ora pousados no lombo, ora entre as aspas, ou sob a barriga varada, aos pulinhos curtos, mas certeiros, e gritos bruscos de espaço a espaço.

E se acaso passou, na lombada descoberta dos campos, um pé-d'água que não fez torrente, as perdidas emergem o seu caule nu dentre os interstícios do pedregulho rescaldado, sob uma pompa bizarra de flores de sangue...

Também o homem, agente irresponsável naquela desolação, ressente-se molestamente da mágoa que ressuma errante na natureza. Mais que o aspecto acabrunhante daqueles céus, reflete-se-lhe no olhar com que sonda as alturas, a nostalgia das águas que se foram, chupadas da terra avara e o verde primitivo das serranias que – quando? – verá de novo reflorir na quadra feliz, com as ramalhadas de ipê e paineiras esfolhando-se à distância, e a criação mugindo satisfeita nos currais, repletos de bezerrada nova.

Depois de São Sebastião, ultimam-se os aprestos do plantio nas roças calcinadas; a terra recebe a semente do pobre, que encoivarou as cercas nos derradeiros muxirões. Rondam os vaqueanos os malhadouros frequentados, onde as vacas amojaram na força da lua; e em pilões da cozinha, o mulherio soca e peneira o sal para o cocho das salgadeiras. Na casa da oficina, temperam os ferros enferrujados, rebatem na bigorna uma marca nova para o filho do patrão, que já tem aquele ano a sua ponta separada.

E todos atendem às chuvas que não tardam.

Na alma de nhá Lica, à sugestão daquela paisagem amortalhada em brumas, pesares e saudades acorriam lentas, como nuvens...

A bica do monjolo corria embaixo, um fio tênue, indo empoçar-se lá no fundo do açude do mangueiro, para onde tangiam os campeiros de manhã a tropa das pastarias adjacentes, e o coaxar soturno das rãs punha uma nota lúgubre, ao vir das tardes enfumaradas, com as suas tristezas mudas do anoitecer.

Três meses atrás, e o céu revestia-se ainda de tons suavíssimos, numa transparência luminosa de anilina, refrescado pelos aguaceiros temporões que abril e maio prodigam às vezes. Nas malhadas, refloria a flor-de-maio; cambarás vergavam sob os corimbos apendoados; e, dominando os escampos, sob as paineiras do outeiro, o solo estivava-se duma aluvião de pétalas lilases, quando o roxo vivo da quaresma não feria o olhar à distância, avultando nos alcantis dentre tufos de folhagem.

De manhã ou em vindo o crepúsculo, havia nas espessuras uma orgia contínua de sons, estrídulos prolongados de seriemas confidenciando nos vargedos, lamentos reiterados de almasde-tapuio, no fundo da mata, trilos, matinadas, algaravia de povis, tiês e sanhaços no colmo frutificado das gameleiras. Bento-vieiras e tesouras, como frechas, abicoravam a lavadeira, uma chupé que carreava para o cortiço, ou simples tanajura que tecia os seus amores nos espaços, e vinham depô-las na goela sôfrega dos filhotes, que aos chilidos esticavam o pescocelho implume dentre flóculos de paina, na copa altanada das marias-pretas...

Nuvens consecutivas de guaxos abatiam-se, elevavam-se, das fruteiras carregadas do quintal, cujas laranjas, poupadas da estação passada, reverdesciam outra vez, num orgulho exuberante de seiva nova, ao tempo que rombos anuns e azulões solertes remexiam, como besouros, a estrumeira dos currais.

Sobre os lameiros d'água empapaçada que secavam ao sol o seu limo esverdeado, borboletas enxameavam, numa ronda alerta de asas multicores, variando entre o azul-negro, azulclaro e azul-metálico das Ageronias aretusas, cambiando a fartura de tons dos amarelados de ocre, laranja e amarelo-enxofre das Pieris pirra, umas a pousar do surto incerto, estriduloso, nas pontas dos gravetos e nervuras descobertas de folhas podres que emergiam do charco, espalmadas as asas horizontalmente, as demais da margem levantando o voo caprichoso em alegre farândola, pelo vento tocadas a outras vasas e vergéis mais fartos, para o aéreo noivado, para a aérea fecundação das pradarias em gala...

E mal ouvissem o passo dum animal na devesa, papa-capins, coleiros e patativas erguiam dentre moitas cacheadas de jaraguá o voo frustre e o peixe-frito saía matraqueando ao longe, às orelhas-de-pau que se quedavam a escutá-lo, o zombeteiro cantar...

Na alma de nhá Lica, ao aspecto da paisagem fumarenta, como nimbos, saudades e sonhos se acastelavam. Dias de março, saía com o mano e o Dito, a quem confiava os filhos a mamãe, campo afora, ela na sua eguita castanha, uma pluma de ema presa à fiveleta do chapeuzinho de feltro, airosa no selim, destemida às vezes nas apostas de galopada, a colher pelo caminho, junto aos cerrados e capoeiras, o murici cheiroso, cuja árvore anã e folhuda se distinguia ao longe, as corriolas verdolengas, denunciadas à distância pela fragrância intensa e mangabas e guabirobas, que trazia em jacazinhos, sobre o gancho do silhão.

E um a um, os passeios antigos iam avolumando, os da infância principalmente, a povoar aquelas horas de lazer doméstico do encanto agridoce da saudade, através da adustão derredor, e as primeiras bátegas espaçadas de chuva, que pejavam já as nuvens aplumbeadas das morrarias distantes.

Nesse tempo, talvez no Paranaíba, talvez do outro lado de Minas, em Mato Grosso quem sabe, Benedito viajava longes terras, nas pegadas do negro fugitivo.

Nhá Lica recordava sempre.

O hábito da soledade exacerbara a sua imaginação. Nos compridos vagares da agulha, quando d. Luísa se absorvia nos misteres domésticos e o fazendeiro rondava os arredores fiscalizando o serviço, vivia a vida passada, rememorando sentimentos, repassando saudades, reatando o fio de pequeninos episódios do viver sertanejo, que lhe iam apressurando os momentos langorosos de trabalho ao canto da janela.

É que, quando se sente infelicitada no presente, a alma corre para o passado, como um refúgio.

Da cozinha, no meio-dia ardente, vinha o baque alternado das mãos de pilão esmoendo a canjica. A água espanejava lá embaixo, junto aos alicerces do açude, na roda limosa do moinho. Ciscavam pintainhos no terreiro. No pilão do monjolo afluíam as cocás, gulosas do arroz pilado, esticando para o interior o pescoço esgrouvinhado aos intervalos das pancadas, quando não empinavam a crista córnea de sobre a copororoca dos cercados, desatando o agudo tofraque.

Os olhos da nhá Lica baixavam de novo sobre o crochê e uma aqui, outra ali, evocações e saudades iam surgindo a cada movimento dos dedos ágeis, se a trama não ficava parada no colo e o olhar remoto, perdido numa imagem defunta, de que, sacudindo as bastas tranças, a arrancava um suspiro de alívio, para entregar-se novamente com redobrada atenção à contagem dos pontos...

Às vezes lia. Histórias tocantes de Genoveva de Brabante ou as aventuras dos doze pares de França, livro tido em grande estima no sertão, cuja leitura, nos serões solarengos das fazendas do interior, era feita em torno do lampião de querosene à família atenta, que tinha herdado da idade feudal, através do drama das conquistas, aquele gosto barbaresco de façanhas guerreiras, postas em prática anualmente na sede dos municípios com o espetáculo faustoso das cavalhadas.

Nhá Lica fazia em casa essas leituras. Começava quase sempre pelo episódio da princesa Floripes, de que tinha um secreto prazer em acentuar a animosidade e o ardor belicoso com que, abrasada toda por converter-se à fé cristã de seu amado Gui de Borgonha, acirrava contra as hostes de seu pai os cavaleiros cativos na torre de Ferrabrás...

E uma noite, recolhendo-se um tanto excitada daquelas narrativas, sonhou que estava encerrada numa alta torreola, como a que armaram a vez passada em Curralinho, e Dito era o moço paladino que viera libertá-la dos furores paternos do almirante Balão, encarnado na figura venerável de seu velho pai... De então, ao reler aquelas páginas, sentia-se enleada por um sentimento obscuro e era com desafogo que passava aos amores da rainha Angélica com o sobrinho do imperador, o destemido Roldão, corajosamente encerrado no interior do leão mágico...

Tinha ainda sobre a mesinha da cabeceira alguns exemplares de contos da carocha, vindos com ela do colégio, cadernos de modinhas brasileiras, que lhe dera uma das amigas na capital, e um desaparelhado romance de Alencar, esquecido entre os formulários da medicina caseira do papai, que, mui positivo em matéria de livros, além dos de Carlos Magno e jornais políticos da terra, eram os únicos que tolerava.

O organismo debilitado pelas febres intermitentes apanhadas na romaria do Muquém, de que se vira tão-somente boa o ano passado, como que a energia vital se lhe refugiara no cérebro, desenvolvendo exageradamente as faculdades da imaginação; e esta, sôfrega, ia suprir-se naquela meia dúzia de volumes, junto às impressões cotidianas do viver campesino, que iam acrescentando dia a dia uma nova página onde deter e fixar aquela sua irresistível tendência evocadora.

Nos últimos dias de setembro, rolaram trovões pelo lado do Anicuns. Apertara a canícula abafadiça. No lamaçal do açude, sob as taiobas, redobrava o cantochão das rãs; e à tarde, com o chuvisqueiro que passara, um fartum ativo, de húmus fermentado e terra fecundada, exalava-se dos plainos escaldados.

Na alma de nhá Lica refloriam recordações...

Via-se pequena, na casa do engenho. A chuva corria grossa pelos beirais de telha-vã, descia em rego ao longo das almanjarras, e a espaços, com as rajadas de vento, vinha fustigarlhes o rosto, a ela e ao Dito, encolhidos num canto, sobre o borco duma talha.

Entontecia-a o bafio pesado de calda azeda que as masseiras exalavam; e como o aguaceiro abrandasse, a água do açude começasse a subir com as enxurradas que desciam, e o córrego fosse agora uma vasta caudal de torrentes tumultuosas, ocorreu-lhe uma ideia:

– E se arranjássemos um bote?

– Ora, não custa – disse o companheiro.

E pronto, revirou a masseira em que se achavam, cavada num tronco largo de tamboril, arrastou-a até a margem do rio, e arremangando as calças acima do joelho, impeliu-a para dentro.

Ela descalçou os tamanquinhos, experimentava a água fria com a ponta rósea do pé. E como ele lhe oferecesse a mão, saltou sem hesitar para a canoa, que a corredeira já puxava para o meio do rebojo.

Benedito empunhou a pá de bater melaço, deu com firmeza duas remadas, para a direita, para a esquerda. A embarcação, muito frágil, inclinou para uma banda, carregando água. Com o balanço, ela agarrara-se assustada à outra borda, para lá pendendo o corpo; e, àquela sobrecarga, o barco virou de vez, arremessando os tripulantes ao bojo das águas.

Procurou nadar, desatinada; mas Benedito já a rebocava para terra, em duas vigorosas braçadas. E de novo no engenho, tiritantes, procuravam os dois reanimar-se mutuamente com gracejos, sacudindo os fatos molhados.

Ela suplicou:

– Não digas nada, hein?

– Pois sim.

E o parceiro foi de novo atirar-se à torrente repor no lugar a masseira, engarranchada lá embaixo, num espinharal de malícias.

Aqueceram breve a roupa, ao sol ardente que se fizera após a chuva, como acontece tantas vezes no sertão; e foram depois apanhar os girinos do córrego, que depunham, trementes, em tanques separados, ou cheia a mão d'água da bica, faziam-na cair aos pingos nas folhas largas de taioba, cuja extrema polidura emperolava o orvalho como líquidos, translúcidos brilhantes.

À noite, teve um ameaço de febre; mas o escalda-pés que lhe deu a mamã, pusera-a de novo risonha e lépida na manhã seguinte.

Benedito armava mundéus de cutia nos goiabeirais, ou vinha trazer-lhe as juritis surpreendidas nas arapucas do quintal. Uma tarde, tinha onze anos – o papai tencionava conduzi-la na manhã seguinte ao colégio da capital – acompanhava-a ele ao sítio próximo duns conhecidos, onde ia levar as suas despedidas. Cavalgava a eguita castanha, nesse tempo muito nova e extremamente arisca. Passavam à distância dum cercado. De lá um pastor se pôs a relinchar prolongadamente.

A porteira estava aberta, uma trave atravessada no furo mais alto dos moirões. A potranca, surda aos reclamos do freio, enveredou num galope desatinado naquela direção. A trave pegá-la-ia pelo peito, à passagem do animal.

Àquele risco iminente, fechara os olhos, abandonara as rédeas, transida de pavor... Mas o seu companheiro vira de longe o perigo; numa corrida desenfreada, fincando esporas ao piquira, chegou ainda a tempo de alcançar a poldra entrando de raspão no curral e de arrancá-la com violência de cima do selim.

E fora ele quem recebera a pancada em pleno peito! Pancada que o atirou na lama, mas a depôs, intacta e de pé, sobre o solo.

Levantara-se sem queixar e fora pegar no curral os animais, que espojavam os arreios no lamedo.

Depois, depois... ela partira para o colégio.

Quando voltou, era moça, ele passou a olhá-la com um respeito e uma timidez, que só se rende às rainhas e às santas.

Nunca mais se deixou levar nos abandonos duma amizade de irmãos; e quando obrigado a dirigir-lhe a palavra, era contrafeito, como se se envergonhasse em seu foro íntimo da antiga camaradagem que ousara dedicar à filha do mais opulento fazendeiro daquelas terras.

E era aquele o único homem que lhe fora dado admirar, e que a mão do Acaso tinha atravessado em sua vida!

Ah, quando? Quando? Chegariam a entender-se?

E como a lua surdia no horizonte, como uma enorme roda de carro, avermelhada e triste dentre os vapores das derradeiras queimadas, alumiando ao longe os carreiros cor de barro e inundando o rosto pálido de nhá Lica, os seus olhos voltaram-se para o céu; e, fitando aquele astro, exalou-se-lhe dos lábios uma prece tímida:

– Nossa Senhora das Candeias, minha madrinha, velai por nós!


VII 
Benedito viajava longes terras.

Atravessara o Meia-Ponte em Pouso Alto. Seguindo as informações que lhe dera um rancheiro perto de Morrinhos, enveredou pelo sertão das Abóboras, coito famigerado de relapsos e trânsfugas, onde tem ido às vezes a política estadual suprir-se de acostados e facínoras para os motins locais.

Naqueles fundões, abandonando as fazendas de criação e indo pedir pousada a um rancho de sapé que se acaçapa afogado no bamburral, à margem do ribeirão, o viandante vareja muitas vezes a casa do sitieiro, sem que encontre um punhado de farinha, um taco de rapadura ou a manta de carne-seca no jirau de mantimentos, fora a acolhida usual que lhe dá o hospedeiro. Mas a clavina chapeada ou o rifle de estimação, topa dependurado, ao alcance, no gancho da parede, junto à patrona couro de onça bem fornida de cartuchos.

É o único luxo que se permite aquela gente hospitaleira...

Não raro, a arma permanece inativa no cabide meses e meses, quando não sai para uma caçada de anta ou espera de veado, ao tempo que os pequizeiros da chapada ou as tarumãs da beira do rio começam a derrubar as suas flores e frutos.

Viajava de costume à luz das estrelas, ou sob o limpidíssimo luar daquelas paragens, fugindo à mormaceira meridiana, num rastro que se lhe escapava muitas vezes com os informes contraditórios, pousando hoje à sombra duma palmeira de buriti, dormindo adiante nos ranchos solitários, que o município ou moradores das proximidades mandam construir à beira das estradas, para o descanso do passageiro e o encosto forçado da tropa nos pastos fechados das circunvizinhanças.

Assim rondou o sertão do Caiapó, despistado por um correio que lhe dera uns sinais falsos na estrada de Jataí; e desceu margeando o rio dos Bois, certo já de encontrá-lo no Paranaíba, se se não tivesse o preto embrenhado em Mato Grosso por Coxim, ou escapulido para o outro lado das divisas mineiras, perdidas as pegadas nos centros populosos do Triângulo.

A pelo-de-rato que cavalgava afrouxou logo no terceiro dia da jornada e teve de barganhá-la em Morrinhos com um forte desconto de quebra, o que lhe transtornou os planos, dando tempo talvez ao Malaquias de tomar o rumo que melhor lhe parecesse.

Entanto, obstinado como todo sertanejo, cedo ou tarde havia de topá-lo forçosamente. Conhecia casos em que o batedor tinha ido pegar a sua caça no Uruguai; mas para o seu não havia necessidade de tanto, pois que o preto, dormindo descansado na fiúza de seu braço e o bote infalível, não teria decerto expediente para entocar-se naquelas funduras.

Desceu pois o rio dos Bois, e subiu beiradeando o Paranaíba, cujos afluentes engrossavam com as chuvas, à passagem das primeiras boiadas que vinham do sertão.

Em Santa Rita, um arrieiro deu-lhe notícias seguras da estadia do nagoa em Caldas Novas – vendera-lhe a besta de sela por uma tutameia, com o produto adquirira na loja do Gaudêncio uma garrucha niquelada e dois cortes de chitão enfestado, que ofereceu à roxa com quem se metera aqueles dias à entrada do povoado. Lá havia a noite inteira bebedices e cantorias, numa das quais saíra esfaqueado o culatreiro de sua tropa, atraído ao casebre pelos descantes de catira, no meio duma rusga que os parceiros do nagoa acharam por bem armar às tantas da madrugada.

E assim dizendo, à porta do administrador onde proseavam, lá se foram encaminhando para o rancho, a cuja frente a besta da fazenda recebia a ração do embornal, o ferro do Quilombo sobre o quarto traseiro, enfileirada com as demais ao longo da casa.

Joaquim Culatreiro, o cabra que levara a facada, ainda desfigurado da sangria, veio até o parapeito e confirmou as palavras do patrão. Que sim, era mesmo o Malaquias, um negralhão espadaúdo, por sinal que tomara o seu partido no fuça, desarmando o cachaceiro que lhe tinha aprontado à traição aquele aleive.

– Quanto à mula, seu moço – dissera em consciência o arrieiro – pode levar consigo, que não quero animal furtado na minha tropa. O prejuízo é de duzentos mil-réis, mas irei entenderme com o seu patrão, tão logo navegue naquelas bandas.

– Não resta dúvida – atalhou o outro –, e, enquanto não aparecer, aqui lhe deixo, a fim de evitar transtorno na condução, o meu macho queimado. Até lá, vai-se remediando com ele...

Passou a sela dum para o outro animal, e após ligeira prosa, servida a café, com que o obsequiara a companhia, postou-se a observar uma ponta de gado que descia para o porto, estacionando na encosta, toda estarrecida ante as águas do rio, que turbilhonavam lá embaixo numa extensão de cerca de mil metros, espessas e profundas.

Eram as primeiras levas que o Estado exportava naquelas paragens, tangidas pela vaqueirama encourada dos boiadeiros, que por ali penetravam o sertão, a tirar as boiadas luzidas com que iriam abarrotar os mercados e feiras d´além-Paranaíba.

O boiadeiro, feita a contagem das cabeças e embolsados os talões com um forte abatimento de cinquenta por cento de imposto na recebedoria – segundo o velho trato que mantinha em particular com o administrador – veio dar uma vista de olhos ao gado apertado na rampa, e bradava ao capataz:

– Êh, Chico! É tanger para o outro lado do rio a boiada, antes que o dia vá de todo descambando. Olá, que é do passador? Ó Totônio, dá um pulo à casa desse homem, e avisa que é tempo de passar os meus bois.

Mas a mulher do nadador veio à porta dizer que sentia muito, mas naquela ocasião o seu homem não podia apanhar molhado, em resguardo ao ataque de sezões; que procurassem outro por ali mesmo, que haviam de encontrar.

– Veja só, que transtorno! – bufou ojerizado o boiadeiro, batendo botas e bombachas com o rabo-de-tatu. – Êh! negrada valente da boca do barulho, qual de vocês aí sabe nadar?

E animava os rapazes reunidos num alto, a dominar a manada, gesticuloso, encarando-os fito um a um, os olhinhos reluzentes, dentro o seu carão tostado de sulista.

Mas ninguém, entre aquela vaqueirada, se sentia com ânimo bastante para afoitar-se naquele mundão de corredeiras rápidas e rebojos que espumavam lá embaixo. O capataz ajuntou. Que seu Juvêncio desculpasse, mas tinha as cadeiras rendidas por uns fardos que erguera em seus tempos de tropeiro; e a mais, a mão esquerda aleijada duma cortadura de facão feita havia anos.

Os demais, não se atreviam.

– Rapaziada molenga! Quem há de ser, quem?

Descera o barranco, sobre o pontilhão da barca, a balouçar presa à corrente da beirada; e alcançando a mão em pala, olhou para o outro lado, perquirindo a margem mineira, onde um bando de pombas caldo-de-feijão parecia mais moscas a voejar; sondou com cuidado os arredores de uma casa acachapada na ribanceira, de cujo telhado ascendia uma espiral esmaecida de fumo, e voltou desalentado à roda dos camaradas, repuxando as bochechas rosadas, numa impaciência que mal podia sopitar as pragas trovejantes que lhe gorgorejavam no peito.

– Gente mofina, gente mofina – repetia inquizilado.

Então Benedito avançou a besta, que refugava nas esporas, e adiantando-se até o grupo, ofereceu os seus préstimos: Que ele sabia, e, se quisessem, estava ali às ordens.

A natureza expansiva do boiadeiro explodiu incontinenti numa risada sonorosa. Batendo-lhe à coxa com animação, vozeou voltando-se para a companhia:

– Moço às direitas!

A rapaziada espalhou-se logo em direções opostas, batendo o carrascal e unhas-de-gato dos arredores, apertando o gado num círculo de mais em mais fechado, compelindo-o para a rampa, onde os curraleiros se detinham, resistindo aos que vinham atrás, cascos fincados, numa atitude queda de refugo, o olhar esgazeado para a água torva do rio...

Mas a vaqueirama premia alas, animando-os no arrodeio, à grita prolongada:

– Êh! ôh!... Êh! ôh... oah!...

E um alentado caracu, após recolher hesitando uma e outra munheca, atirou-se num arranco ao remanso; e, perdendo logo pé, as suas aspas ficaram a boiar, junto ao focinho úmido, que aspirava com sofreguidão o ar em torno.

O cabra, apeado, atirou-se mais abaixo, vestido como estava, de esporas e chapelão, tomando-lhe a frente, guiando-o com o aboiado; o resto da boiada, aos pares, aos magotes, os ia seguindo à esteira, após um baque surdo de corpos sobre a água, que espadanava para as margens as suas toldas aljofrantes.

Já o boiadeiro se metera com homens, animais e bagagem na barca. Impelida rio acima pela zinga do piloto e varejões, cujo gancho uncilado se agarrava à garrancheira da margem, foi impulsionada para o meio, entrando rápida a faina dos tripulantes em vencer as correntes no manejo dos remos, indo depois aportar, numa descida lenta, às terras de Minas.

Em pouco, descortinando-se de lá, flutuava mais abaixo e ao longe toda uma vasta floresta movediça de aspas retorcidas, emergindo fantasticamente do seio torvelinhento das águas, os cornos a entrechocarem-se nos bolos, tocada lentamente das correntezas, e aos poucos afastando-se da margem goiana, ao canto abafado do passador, cujo vulto aparecia aquém, como uma pequenina cabeça de alfinete.

Às vezes, no redomoinho duma corrente, um boieco soerguia desesperadamente as ventas exaustadas, sorvia com demora o ar em roda, soprando um grosso bafo de vapor, que o sol irisava, e agitando os cascos à tona um momento, desaparecia de vez, no rebojo das águas.

– Mais um!... Mais outro!... – dizia resignado o boiadeiro, esperando-os cá do barranco. 

Dava-se por feliz quando deixava apenas a ossada dumas trinta reses alvejando atrás, à beira dos malhadouros, nos olhos-d'água dos vargedos, onde acampava à tarde a boiada.

Azares do ofício. À noite, a camaradagem rondava por escala a manada, revezando-se um a um no arrodeio, descansando nos intervalos em que o gado deitava para ruminar, quando a presença duma jaguatirica na boca da mata não levava o alarma a todo o acampamento, como o espirro súbito duma ponta de curraleiros.

Faina dura! E de pouso a pouso, léguas e léguas dos vastos Gerais goianos, à canícula meridiana dos tabuleiros e cerradões, bandos e bandos de urubus a acompanhá-los na marcha lenta, serenando nas alturas, abatendo-se às chusmas nos brejais lamarentos, onde um novilho incauto se esforça atolado; sobre a copa duma fruteira-de-lobo da chapada, a cuja sombra agonizava outra rês afrontada do mormaço, quando não se punham a banquetear na carniça da que ficou atrás, picada de cascavel, nos travessões de mato por onde passaram. 

E é um espetáculo que cerra o coração, ouvir o bramido que solta a rês retida no atascal, onde embalde briquitavam em roda com o laço os campeiros para livrá-la, e o olhar profundamente humano com que segue a boiada, que se movimenta rumo das malhadas distantes...

E ali fica sem auxílio, apodrecendo numa agonia estupenda, presa viva dos abutres que lhe arrancam às bicadas a carne palpitante.

E se casualmente por ali passou depois um vaqueiro no rastro dum animal fugido, dá-lhe por comiseração um tiro ao ouvido, para acabar com aquele martírio.

Entanto, pago o ajuste de sua gente, descontados os impostos e encostada enfim a boiada nas invernadas de Três Corações, aqueles bois lhe vão render um saldo compensador, dada a baixeza de preço por que os adquiriu no interior de Goiás.

Tomando pé na margem mineira, Benedito foi ter ao varandão dos tropeiros. Assentado sobre os calcanhares, braços estendidos para o fogo, enxugava as roupas, enrolando uma palha de cigarro, já de todo reconfortado com o trago da borracha de pinga que lhe oferecera o cozinheiro.

A vaqueirama fechara num pasto a manada. O boiadeiro meteu a mão no bolso da calça e, sacando de um bolo de notas, estendeu-lhe uma pelega de cinco, que recusou.

Desculpasse, não era soberba, mas não fizera aquilo por amor ao ganho.

O outro insistiu, mas ele encolheu os ombros, sorrindo: ora, que desse à mulher do passador, necessitada, com a doença de seu homem, e aquela penca de filhos às costas.

– Pois este Pernaíba não é brinquedo de menina fêmea – asseverava o capataz. – Tem histórias... De vez em quando, contam os moradores, aparece aí no meio do rio um toldo de carro, e então é certa a morte duma pessoa afogada nas redondezas...

– Conversas! – atalhou o boiadeiro.

Mas não, ninguém ali duvidava, muitos tinham até visto ao meio-dia, outros à luz da lua.

– Ora, ora, nem mecê parece viajado, seu Chico! – Nunca vira patetice igual à daquela terra. Povo franco, é verdade, mas a presteza em pôr fé naquelas bobagens! Já para o sul, no Rio Grande onde tivera a dita de nascer, a coisa era outra: gente positiva.

Não duvidava:

– Toda terra tem seu uso; e o mundo é grande, seu Juvêncio, para caber isso tudo.

Enfim, não valia apena teimar sem caso pensado.

Pois sim, pois sim; nele é que não pegavam, porém, aquelas baboseiras.

E como o cozinheiro batesse a borra do café no parapeito, escaldando o coador e repassasse depois a bebida, pôs termo à conversa com um convite franco:

– É entrar no cafedório, enquanto está pelando!

VIII 
Chovia aquela noite. Não essa chuvinha miúda, comum às plagas do litoral, que no sertão cacheia os arrozais, e o lavrador abençoa como as primícias duma colheita abundante; mas aquela pancada pesadona, cortada de relâmpagos ziguezagueantes e estampidos de trovão, que emudece a natureza e transe as árvores sob o látego do vento esfuziando nas baixadas, e quebra e tala o milharal em que o matuto depositou as esperanças do ano. 

Chuva brava, a que sói muitas vezes, desentranhando raízes nas enxurradas, transpor socalcos e barranquias, despenhar-se nos grotões, esvazando nas covoadas e morrendo nos ribeirões, que engrossam e transbordam mato adentro.

Com os raios que fendem meio a meio angicos e canjeranas, estalando nos fraguedos nus e picos de morrarias, áspera provação, a do viandante desgarrado naqueles fundões.

De cada vargem rebenta um olho-d'água, fortes caudais descem reboando pela garganta das serras, a cada passo a montaria empaca junto a um lamarão inabordável, a pinguela do rio rodou légua abaixo, no atalho mais seguro. O frio cerra, sob o ponche encharcado; e é uma felicidade caída dos céus quando se avista, entre as cordas de chuva, uma luzinha ao longe, num desvio, que realenta o ânimo do caminhante transmalhado naquelas funduras. Tem-se então, viva, a sensação da graça divina outorgada. Daí o grande fundo de religiosidade daquela gente.

Naquele cochicholo da estrada, ao princípio do povoado, o cateretê entrara duro pela noite, sob as toldas d'água cantando no telhado, e aos goles da caninha com gengibre que a dona da festa repartia amiúde, em tigelas, aos convidados.

Sentado ao canto num tamborete, pernas trançadas, junto ao prato da queimada, o sanfoneiro espichava o fole do instrumento, a cabeça ora a uma banda, ora a outra, apertando entre os dedos as chaves, na toada dolente da dança.

Saracoteando na sala à frente duma mestiça, que bamboleava derreada o corpo, olhos em alvo para o parceiro que a distinguira na roda, chorava um crioulinho atarracado:

Rolete de cana
É bom de chupar!...
É bom de chupar!...
É bom de chupar!...

E os demais, acompanhando, gemiam em conjunto:

É bom de chupar!...
É bom de chupar!...

Malaquias, saltando num pé, meio tomado, saiu-se com esta:

Minha tia é magricela,
Tem achaque no pulmão,
Fui pedi-la em casamento,
Respondeu que fosse ao cão!
Rolete de cana
É bom de chupar!...

Logo o coro:

É bom de chupar!...
É bom de chupar!...

Mas alguém batera à porta. A festeira foi abrir. Montado, o pala escorrendo água, as abas do chapéu dobradas sobre o rosto, o forasteiro num relance varejou aquela cena. Descobriu o Malaquias agachado sobre o garrafão de cachaça, a despejar o seu conteúdo no prato de açúcar, e berrou:

– Negro! Vim buscar-te!

Ele olhou, turvo, e apanhando sobre a mesa um facão amolado com que raspara a rapadura, saiu ao terreiro. Os demais guardaram silêncio, intimidados com o tom imperativo do recém-vindo.


– A mim ninguém amarra – urrou o preto riscando a terra com a faca. – Quem entrar neste risco vai de encomenda pra Satanás. É chegar, quem pode!... 

Benedito serviu-se da garrucha, alvejando-lhe o braço para desarmá-lo; não era, porém, fogo central e apenas as espoletas estalaram.

O negro, enfurecido, saltou-lhe então à goela num bote cego; e o outro, rodando numa esporada a besta, deu-lhe com a coronha da arma uma pancada no cotovelo, e o nagoa, tolhida a destra pelo choque, deixou cair o ferro.

Sem dentença, saltando do animal, já Benedito o algemava com as ferropeias, que tirara pouco antes da garupa. Jugulado o adversário, sem se importar com os protestos da assistência que dava mostras de querer intervir na questão, preso o cadeado da corrente à sobrechincha da sela, montou de novo e foi tocando o preso para a frente, sob o chuvisqueiro que recomeçava a cirandar.

– E essa! – disseram uns aos outros boquiabertos. Mas Silvirina, a festeira, que ostentava um vistoso corte de chita, presente do Malaquias, atalhou com um muxoxo:

– Ora, gente! Basta de pasmaceira. O que foi lá foi; o negro era camarada fugido, devia ao patrão. – Tinham vindo buscá-lo; o mais, era tratar de folgar enquanto houvesse música...

– Ó seu Tomás – disse, voltando-se para o sanfoneiro que se deixara ficar indiferente no tamborete. – Toca aí uma quadrilha, faz favor.

Estirado nos baixeiros que lhe deixara Benedito, Malaquias voltava a si, no rancho do povoado, dos vapores do álcool que lhe toldavam o juízo.

Desafogou o pescoço, metendo ambas as mãos à cadeia da gorja, a olhar aboborado para as brasas do lume, meneando a cabeça, num esforço penoso de quem procura coordenar as ideias. Sentia a goela seca, e, fazendo tenção de levantar-se, no que era estorvado pela corrente cuja extremidade o companheiro prendera por cautela ao pulso esquerdo, pediu com voz humilde uma gota d'água.

Benedito foi apará-la ao beiral e como se sentasse ao lado, chegando-lhe aos lábios a copa do chapéu onde a recolhera, o preto, limpando em cada ombro o fio d'água que escorria pelos cantos da boca, fitou-o demoradamente, depois disse aliviado, sem rancor:

– Seu Dito fez mal, não devia aceitar aquela incumbência... Tempo de cativo e capitãodo-mato já passou... – Estava no seu direito de ir para onde muito bem queria... Labutava na fazenda, trabalhando dia e noite como mouro; e no fim, que é que via? Dívidas e mais dívidas, o patrão de ano em ano mais exigente e desalmado; enfim, aquela vida de cachorro de camarada. De resto, sem garantia no trato. O patrão abusava de sua falta de letra, esticando como lhe parecia na conta, transtornando os seus arranjos de abatimento do fim do mês; e ela, a danada, a espichar, a espichar, que nem mesmo um imperador era agora capaz de resgatá-la! Ora, nesse pé, não podia haver seriedade no ajuste. Mais valia cair a gente no mundo, como fizera, ou estourar aí para um canto, moído de pancada, como sucedera ao Torquato por meter-se a respondão...

O outro deixou-o desabafar em sossego. Ultimava os aprestos do café, que tirara dos alforjes. De cócoras junto à fogueira, ia empurrando para o lume os gravetos que ardiam, picando um rolo de fumo, e a esmoê-lo silenciosamente na palma da mão.

– Olha, negro – disse de repente – se és o mesmo de sempre e dás a tua palavra de como não tentas fugir, tiro-te esses estorvos.

Deu-lha Malaquias com solene gravidade, e como ficassem proseando num certo pé de camaradagem, assentados sobre as mantas, o preto falou sentencioso, acentuando as palavras, quase em segredo:

– Olha, seu Dito, sempre lhe tive na estima desde pequerrucho; nem sei mesmo como aprontei aquela tarantada na porta da Silvirina; devia ser da cachaça. – Mas que tomasse sentido, aquele fazendeiro ainda havia de lhe dar o pago da sua dedicação.

– Hum! hum! aquilo é bicho mau que nem peste, Seu Dito; muito afável para os que não lhe deviam obrigação, mas judeu até ali com os subordinados ou quem se metesse a empatar-lhe as vazas. Se não dava mostra de toda a ruindade que tinha, era devido à presença da mulher, temente a Deus. A prova estava em como bastou a patroa ir com os filhos passar algumas semanas em Curralinho, para que mandasse logo surrar o Torquato da maneira que fez, escadeirando o rapaz e dando com ele na cova.

E como batesse o sarro do cachimbo, atupindo-o com o fumo que lhe emprestara o companheiro, ficou a banzar, chupando o canudo, olho pregado nas brasas que se consumiam. Depois, numa baforada, meneando a carapinha, repisou:

– Seu Dito, Seu Dito, toma tento naquele judeu. – Sabia de coisas... Olha, parecia conversa, mas era verdade; o velho botara o seu olho em riba da Chica; mandara-lhe por ele, Malaquias, uns presentes que a mulata recusou. Isso, depois que o moço já andava metido lá... Não dissera nada até então, a pedido da Chica, que não queria Seu Dito zangado com o patrão. Hum! hum! Aquela cobra tinha veneno... Nem mesmo parecia marido de quem era! D. Luísa, essa sim, uma santa. E a filha saíra-lhe em tudo na bondade, mais a beleza, que mesmo parecia uma Virgem no altar.

– E olha, seu Dito – ninguém lhe tirava da ideia – aquela moça tem paixão pelo senhor. – Quando andava ausente lá pelo povoado, vira-a uma vez sob a mangueira do quintal, olhando para a janela de seu quarto, uma lágrima nos olhos. Ele estava ali perto, agachado numa touça de fedegoso, a armar um laço para os filhos de João Vaqueiro. Ouvira-a dizer num suspiro:

– Benedito...

Àquela revelação, o moço sentia como que um aperto acerbo travar-lhe pouco a pouco, dolorosamente, as pancadas do coração. Fugira a lembrança de Chica, de que a narrativa do preto avivara zelos ferozes; ficara apenas de pé, nimbada no fundo de suas recordações de infância, a meiga companheira de travessuras passadas, de que uma timidez excessiva o afastara na fazenda, atalhando uma inclinação que não se sentira nunca com forças para revelar-se a si mesma. Exaltava-a em pensamento, nos rápidos instantes em que detinha em sua doce figura a imaginação, como um ideal mui alto, onde só se pode deter de joelhos, como as imagens das santas que se contemplam nas igrejas... E quando a via passar entre as laranjeiras ou a acompanhá-la silencioso nos longos passeios pelo campo, morriam nele os olhos da carne, e era uma imensa, dolorosa saudade que ficava, angelizando tudo... E não sabia que aquilo era amor!...

Fora, as trevas despejavam chuva com reiterada violência; uivavam os ventos ríspidos, e no largo, o chocalho da besta badalava cavamente, aos intervalos da borrasca.

Malaquias roncava, papo para o ar, estirado nos baixeiros. E ele ali a pensar, a pensar, curvado sobre as cinzas, comprimindo entre os joelhos as fontes, que latejavam...


IX 
Ainda não havia de todo anoitecido, quando avistaram, dentre currais, os telhados do Quilombo, para onde tangia João Vaqueiro uma ponta de gado. Na tarde que caía, o vulto do cavaleiro, cortando a galope a frente dum garraio refugado na porteira, agitava-se ao longe como um pequeno ponto sujo no horizonte; e até cá embaixo, na vargem por onde subiam, vinha rolando o canto do vaqueano, num supremo e vigoroso lamento:

– Êh coou!... Êh! coou!... Êh!...

Ecoava tão perto o aboiado, no ar translúcido da tarde, junto aos ladridos do cão pastor mordendo a focinheira da rês espirrada, que um momento entreteram a ilusão de alcançá-los logo à cola, mal galgassem a encosta dos buritis, embora o comprido estirão a palmilhar que mediava ainda a vargem da fazenda.

E era já noite fechada quando transpuseram o mangueiro, manquejando como vinha o Malaquias, com uma estrepada de tucum no calcanhar, que inchara e se pusera a sangrar desde o pouso da boca da mata. A cancela bateu, num chiar prolongado de guariba malferida; e os dois endireitaram para o lanço principal, em silêncio àquela hora e onde as luzes permaneciam apagadas, como mansão sem moradores.

– Ó de casa! Êh, gente! Ó vaqueiro! – gritou Benedito.

João Vaqueiro pôs o nariz fora do paiol, onde recolhia os arreios, e numa mal disfarçada satisfação, retrucou:

– Êh, de fora! Ora essa, êh! Nhô Dito! Cá chegou o homem, enfim.

Arrastando as chilenas, correu a apertar-lhe as mãos, segurando as bridas para que apeasse, todo exclamações, mal dando tento de Malaquias, que se derreava encapotado à sombra do batente; e saía já às carreiras, a dar a novidade ao pessoal, quando o outro o interpelou de novo:

– Mas não se vá, homem de Deus, espera aí um tiquinho; que é do patrão mais a família?

Nhô Dito não sabia, mas tinha havido mudanças em casa; a patroa fora no princípio do mês passar com nhá Lica uma temporada em Curralinho, onde ia repor Nequinho na escola. Quanto ao patrão, andava lá pelo povoado, às voltas com os negócios da política; mas não seria aquele o transtorno, mandava um próprio avisá-lo, e de manhãzinha estaria em casa ou enviava as suas ordens.

Não sabia por quê, mas aquela mudança contrariou o moço; farejou qualquer coisa no ar. Apressou-se porém em recolher o nagoa à casa do tronco, o antigo legado da escravatura, onde, ao capricho dos fazendeiros, recebiam correção os camaradas malandros.

Desfeito o jejum forçado em que estava até aquela hora, pela pressa de chegar e dar cabo de sua missão, no rancho do vaqueiro, cuja mulher lhe serviu um quibebe de abóbora que foi depois levar ao Malaquias, dirigiu-se para o seu quarto de solteiro, onde um sono solto, sem sonhos, o empolgou numa assentada, compensando as horas mal dormidas ao relento, e acabando de vez com aquele mal-estar da viagem acidentada.

Acordou dia alto com o estrépito dum animal que transpunha a cancela, e a voz pigarrosa do coronel trovejando no terreiro. Deixou-se estar ainda algum tempo no leito, numa quebreira avassaladora, olhos no teto, a divagar sobre toda aquela existência ali decorrida, onde a visão de nhá Lica surgia agora iluminada duma nova luz, numa suave auréola de perdão e reconforto, a tirá-lo duma senda por onde cega e erradamente enveredara antes, e talvez, talvez... o verdadeiro descanso, a verdadeira felicidade, poderiam vir a bafejá-lo em cheio...

Mas a voz do fazendeiro, que mais brava e trovejante se escutava a espaços, arrancou-o de vez à inconsequência daquele vago devanear. Levantou-se numa sacudidela, correu para a casa do tronco, na dependência à banda, onde o coronel, cercado de seus homens, empunhava o rebenque, ameaçando o preto acorrentado ao cepo, que, sem proferir palavra, olhava obstinadamente as cadeias do pulso.

O fazendeiro mal correspondeu à sua saudação. Voltado para os camaradas, ordenava imperioso:

– Que um de vocês chegue para aí às direitas o relho neste negro.

Os homens entreolhavam-se, confundidos. Não estavam acostumados àquele mister. Mandassem-nos assaltar a urna no povoado, sob o ferro dos contrários, correr com um bando de ciganos que talasse os campos da redondeza, e estavam ali todos prontos a enfrentar o perigo, pagando mesmo com a vida, se preciso fosse, o seu devotamento.

Mas surrar um preso, atado sem defesa àquele tronco, excedia as raias de seu entendimento, nem tinham ânimo para tanto.

A nobreza daquelas almas brotava-lhes nítida do coração à flor dos olhos, e somente o cenho duro e feroz do senhor dava largas a um ódio surdo, implacável, que lhe punha tremuras na fala e os demais transidos, hesitantes entre desobedecer ou cumprir uma ordem que lhes parecia fora de todos os preceitos da lei humana...

– Ninguém?! ninguém?! – resfolegava a custo, purpureado o rosto de cólera. – Pois eu mesmo vou mostrar como se ensina um cachorro!

Enrijado, o azorrague estalou no ar e desceu sibilando sobre o lombo nu de Malaquias, donde não tardou em pouco o sangue a ressumar.

O preto apanhou calado, batendo a cinza do cachimbo, que acendera momentos antes. 

Àquela resignada mudez, a encher de espanto os demais, afrouxou a sanha do algoz, que aplacado já à trigésima vergastada, rosronou dentre dentes:

– Tens para hoje a tua conta, veremos o resto depois. E olha que não sou dos mais vingativos, fosse noutra fazenda e a tua medida seria acrescentada...

Enfiou o chicote no cano da bota e meteu-se pelo interior da casa, onde não mais foi visto o resto do dia.

Benedito achou-se às voltas com um grande arrependimento. Ter ido a tão longes terras buscar o nagoa, para assistir àquela cena! Das outras vezes, cumpria relevar, fora sempre mais compassivo o patrão. Enfim, desobrigara-se do seu dever; que desse o coronel satisfações a quem de direito. Agora, só tinha em mente um pensamento: rever nhá Lica.

À noite, foi ter ao paiol, onde se reuniam os camaradas, a distrair o espírito daquelas ideias importunas. Na forma de costume, lá dava Fidélis largas à imaginação:

– Seu João, viu como o negro pitava o cachimbo?

– Vi, e que tem?

– Pois andava ali feitiço, tinha certeza; trato daquele jeito, ninguém pode aturar sem pôr a boca no mundo; só mesmo a santa paciência de Nosso Senhor Jesus Cristo era capaz de tanto. Ali havia feitiço...

– Ora, gente, Malaquias sempre foi homem de opinião; achou que não devia piar, e nem que o matassem a pancada mudava de tenção; aí está.

– Pois pergunta sá Quirina, que foi do tempo da escravidão, a história de pai Romeu; tal qual como o Malaquias!

E narrou. O senhor mandara surrá-lo por vias dum furto, de que o escravo era inocente. Deu-lhe o feitor uma tunda mestra, até não mais poder levantar o braço de cansado. Trezentas lambadas recebeu pai Romeu no cangaço sem que desse parecência de dor. Pediu apenas fogo para o pito, que atupiu de cinza.

A taca cantava de cima, e ele a tirar baforada mais baforada...

O senhor de engenho apanhou o bacalhau, que o outro já não podia aguentar, e acrescentou outras tantas tacadas.

O preto, calado, pitava o seu cachimbo.

De vez em quando remoía os beiços, mastigando uma reza má; mas não soltou um só gemido.

Pois bem! assim a tereia cantou-lhe nas costas, lá no canavial ouviu-se um grito lamentoso. Era o filho do senhor a queixar-se de que o estavam espancando à traição.

Mas não havia ali perto ninguém. Os companheiros acudiram e bateram as moitas da redondeza, não topando viv'alma; e, entanto, as pancadas iam uma a uma caindo-lhe rijas nas costas, e ele a correr duma para outra banda, desvairado, ao tempo que os demais, tomados de pavor, levavam a mão à cabeça e clamavam por socorro. Ouvia-se perfeitamente o zunido do vergalho a retalhar-lhe as carnes, mas a correria, nem quem a manejava, não se percebia em parte alguma.

As roupas em frangalho, numa correria desatinada, o senhor moço embarafustou então pelo caminho de casa, apanhando sempre. Lá chegou arquejante à casa do tronco, onde o pai suspendia o castigo, e lá se estatelou atravessado no batente, vomitando sangue pela boca, para nunca mais se erguer...

Pai Romeu, entretanto, continuava a ruminar as suas rezas, puxando, indiferente, a fumaça do cachimbo.

– Isso viu sá Quirina, que aí está entrevada no jirau, em seu tempo de moça; e por esta luz me jurou que era verdadeiro.

Ora, Malaquias também pitava a cinza do seu cachimbo, e não tugiu nem mugiu quando recebia a coça... Uma criatura não apanha assim sem pacto com o diabo. Ninguém lhe tirava da cachola que o filho do patrão estava também levando a sua sova nalguma parte, em Curralinho por exemplo.

– Seu João, que me diz a respeito? A velha não mentiu, viu aquele fato com os olhos da cara que a terra há de comer. Que lhe parece?

O outro coçou a orelha, interdito. Histórias como aquela eram correntias no sertão. Demais, poucos, muito poucos, duvidavam. Entre aquela gente simples não era costume a mentira. Se alguém aprontava um carapetão, ficava logo desacreditado para o resto da vida; e daí, a ofensa grave de que se julga alvo o sertanejo cuja palavra é tomada em suspeição.

Assim quando um caso como aquele ia de encontro às ideias assentadas sobre a experiência de cada dia, chocando as mais comezinhas noções que possuíam da realidade, era vezo dizer-se previamente: Não punha a menor dúvida no acontecido, longe dele duvidar, mas...

E avançava as suas razões:

– O fato podia explicar-se. Talvez fossem os parceiros de pai Romeu que, aproveitando a ocasião, tivessem dado aquela pisa no filho do senhor, a ponto de não mais poder queixar-se depois. E vieram relatar o caso daquela maneira... Tudo podia ser neste mundo largo... Vingança de cativo tem manha. – Enfim, não duvidava...

Quanto ao ato arbitrário do coronel em chicotear o Malaquias, ninguém aludiu, nem lhes passou pela mente discutir as razões. Era aquele um costume que assistia aos fazendeiros, e que punham em prática quando bem lhes aprovinha, sem que com isso levantassem entre os seus a mínima oposição, ou mesmo um simples murmúrio de censura.

Competia-lhes aquele direito, como outrora competia ao senhor feudal indicar, entre a arraia-miúda de sua peonada, um vilão qualquer, tirado a dedo, para que se lhe abrissem as entranhas onde enfiar, nas carnes palpitantes, os pés regelados das sortidas de caça.

Demais, da frequência dessas usanças, resultava escapar à rude singeleza daqueles homens a compreensão de semelhante arbitrariedade. E, se protesto havia, era apenas a repugnância instintiva que sentiam todos em pactuar naquelas iniquidades.

João Vaqueiro que ali estava, o mais prestimoso servidor da casa, cuja família a vinha servindo de pais a filhos, também tinha as suas queixas, se tinha! a formular contra aquele pé de coisas. Cuidava da criação de eito a eito, estivesse o senhor na fazenda ou andasse ausente na capital; tangia dos malhadouros as vacas, quando amojavam; curava no curral a bicheira da bezerrada nova, ferrando-a com o ferro do patrão, capando em tempo os boiecos, a fim de evitar desandamento na mestiçagem. A mulher fabricava com o leite, o queijo, o requeijão, a manteiga, que iam no mercado render dinheiro à casa; enfim, tinha por ano a sua paga de vaqueiro, que lhe dava a marca de tala, a razão duma sorte por lote de quatro crias.

Com essas cabeças tenteava a existência, formando pouco a pouco a sua leva separada.

Mas o patrão vira-lhe os arranjos, deitava logo com inveja o olho em riba.

Ora era a mulher do vaqueiro, que fora ao povoado e lá cobiçara um guarda-chuva de cabo floreado na loja do major Higino. Aquilo não lhe proporcionaria a mínima utilidade na fazenda, entre as garrancheiras e cipoais dos cercados. Mas era um desejo. Chegada à casa, punha o marido ao corrente de seu capricho. Ele coçava a orelha, e ia ter com o patrão.

Este, apressado, com gestos amplos de largueza, mandava um portador adquirir o brinco no negócio, e a mulher do vaqueiro tinha com que se pavonear do rancho à cozinha da casagrande.

Mas aquele guarda-chuva, que custara à vista oito mil-réis, lançava-o à sua conta o fazendeiro por vinte e mais, resultando daí todo o fruto da trabalheira do ano, as suas sortes penosamente apartadas, serem quase que insuficientes para resgatar o preço de semelhante bugiganga...

Outras vezes, era um zebu reprodutor picado de cobra, um novilho de valia que uma rodada mal segura pusera defeituoso. Jogada a culpa sobre o vaqueiro por imperícia ou falta de vigilância, o seu rebotalho era então pouco para saldar aquela rês perdida, que o senhor encarecia.

Entretanto, continuava a servir a fazenda com o mesmo zelo de sempre. O amor àquela vida a que se acostumara desde os cueiros do balaio, o dasapego nativo às questões de dinheiro, compensavam-no largamente das vexações sofridas. Continuava ali servindo, como tinham servido seu pai e avô, como também viriam a servir filhos e netos, desinteressado no ganho, defendendo com aferro os negócios da fazenda, na prosperidade dos quais punha mais cuidados que nos próprios arranjos.

Assim, não compreendia a fuga do nagoa, que acreditava vergonhosa, como não compreenderia nunca a sua dedicação a toda prova pela causa do fazendeiro.

Só na alma de Benedito, mais esclarecido, como um cão danado remordeu o remorso...


Pela volta das três horas, Benedito recolheu-se do campeio; e, após uma terrina de coalhada, modorrava na rede do paiol, ao abrigo da soalheira, que abrasava.

Fora um dia trabalhoso aquele, na boca da mata! Metido na macega, no pampa mascarado campeador, ao virar das onze e meia já tinha todas as reses encostadas num furado, sob a guarda de Fidélis; mas um novilho de nhá Lica, alentado meio-sangue reprodutor, dera-lhe ainda pancas por uma boa estirada de tempo; e, não fora topá-lo depois a jeito, dando-lhe uma rodada merecida, nem mesmo sabia quando lograriam pôr-se de novo a caminho de casa.

Ajudara Fidélis a tanger o gado até a malhada próxima, onde os esperava João Vaqueiro com outra ponta, e fora depois tirar os palmitos de guariroba que lhe tinham recomendado na cozinha.

Chegou moído, o pampa meio bambo da labuta, que até mesmo recusara a mão de sal no cocho da salgadeira. Por seu lado, ele trazia as juntas doloridas, as mãos ardendo do cabo da machadinha, e o couro do guarda-peito inutilizado por um violento rasgão de espinho de veludo, que, na tropelia do campeio, quase o trespassava também de vez na mata.

Mal pousou a cabeça sobre o punho da rede, já uma camoeca molesta chumbava-lhe as pálpebras; e, na sonolência que o quebrantava, formas estranhas começaram a passear-lhe a imaginação, encarniçando-se às vezes sobre um pequenino episódio do dia, a ampliá-lo e a exagerá-lo dum modo bizarro, ora era o novilho ateimado em encafuar-se na biboca, ou tinha sempre à vista um galho atravessado na galopada, de que era preciso desviar-se a todo o custo.

Zuniam-lhe os ouvidos. A mormaceira ardente daquele dia, que ao recolher o gado apanhara quase toda na chapada, punha-lhe as artérias a latejar, e a cabeça mais parecia uma zorra a zumbir...

Fora o veranico, aquela dura soalhada que nas intermitências das chuvas castiga o solo goiano, imobilizava a natureza, numa letargia contagiosa, emudecendo no terreiro o terno cacarejar da criação, sob as taiobas do açude, a sugar ávida a água do rego, catando no tijuco uma minhoca para a ninhada de pintainhos, que recolhia agora à sombra dos laranjais, onde ciscava uma cama fofa e esparrimava-se na frescura da terra, o bico semiaberto de cansaço e insolação.

A grande luz faiscava intensa na fachada do edifício principal. Da parede, uma tênue e impalpável poeirada ascendia, a provocar terçóis e inflamações noturnas à vista de quem desastradamente ali detivesse o olhar sonolento e deslumbrado.

A tarde já descia rápida, sem aragens. Benedito passava, enfim, do incômodo modorrar a um ligeiro sono reparador. E quando veio o crepúsculo, com um bando de pássaros-pretos que gorjeavam no coqueiro da cerca, e se pusera a picar no batente da porta o fumo do cigarro, tirando uma fumaçada distraído, ocorreu-lhe súbito a lembrança da Chica.

Assim, numa tarde calorenta como aquela, ao badalar do sino chamando os fiéis à novena e à alegre garrulada dos pássaros-pretos nos coqueiros do adro, vira-a a vez primeira no arraial, três anos e tanto atrás.

E uma semana havia já que estava no Quilombo, donde logo se ausentara o patrão, deixando-lhe expresso o encargo de vigiá-lo, e embalado num devaneio intraduzível, deixado n'alma pela revelação de Malaquias, não tivera tempo ainda de pensar naquela alegre companheira de folgares, que penas e aborrecimentos tantas vezes lhe poupara, com as suas chistosas galhofas e o riso brincalhão sempre pronto a desabrochar nos lábios escarlates.

Uma necessidade brusca de revê-la apossou-se-lhe da alma.

Seguindo, na forma do costume, o impulso da primeira ideia, mal o pensara já apanhava o cabresto, indo pegar no pasto a Pelintra.

Deixou-se ainda ficar dois minutos no curral, proseando com João Vaqueiro, a fazer diversas recomendações, após recusar o convite para a janta, que estava posta, e dizendo ir cear no povoado.

Depois, duas esporadas no vazio e a mula atravessou a cancela escancarada num galope mal contido, descarregando o ar da barriga, na ânsia de ganhar o chapadão. 

– Sinal de que volta logo – ainda bradou de longe o cabra a rir, voltando-se na sela.

E sumiram ambos numa depressão.

– Hum! hum! – pigarreou João Vaqueiro. E o patrão que punha tanto empenho ao ordenar-lhe que em caso algum deixasse a fazenda. – Hum! temos aí marosca feita.

E recolheu-se, pensativo, a repuxar a barba. Tinha uma dúvida a doer-lhe a consciência quando o moço se despedia, mas entre o dever e a amizade, resolvera calar.

– Mulheres!...

– Que é que te põe assim macambúzio, criatura! – interpelou-o a mulher, que o via ali parado à soleira, matutando.

– Coisas...

E num repente, meio irado, descarregando-lhe por cima o peso da preocupação em que vinha:

– Mulher, diacho de bicho abelhudo! É tratar antes do que é da sua conta, deixa os outros em paz.

– Também, pra que tanta zanga, homem de Deus? – não perguntara por mal.

E não falaram mais naquele assunto.

Entanto, Benedito batia longe, no galope sustado da rosilha.

Eram onze horas menos um quarto quando, deixando arreada a mula no rancho dos tropeiros, galgou com vagar a rampa que levava à casinhola da Chica; e, por maior cautela que pusesse em dar volta ao fundo da casa e aflorar de sobreleve a porta em duas breves e secas pancadas, sempre despertou o faro do guegué no palheiro, que investiu às cegas, ladrando desabaladamente.

Lá dentro houve um rumor de conversa abafada, como que duas pessoas se interrogavam precipitadamente, depois alteou-se a voz de Chica, que indagou medrosa:

– Quem está aí?

Não respondeu, numa súbita desconfiança; desviado na sombra, apurava o ouvido à escuta. O guegué fazia-lhe agora festas entre as pernas, relambendo o cano das botas, a reconhecê-lo. Um pontapé no ventre, e pô-lo depressa a caminho do palheiro, aos ganidos.

De novo a voz de Chica perguntava quem estava lá fora. Ele permaneceu silencioso, a orelha aplicada à fechadura; e já aquietada, ouviu a mulata que dizia:

– Não foi nada, certamente a vaca que vem aí lamber todas as noites o barro da parede assanhou o cachorro; em todo o caso, lá vou ver.

Escutou a cama ringir, e outra fala descansada de homem atalhando:

– Não é preciso, deixa-te estar.

Àquela voz, voz dum macho lá dentro, dum rival feliz, já a cólera o colhia repentina; e uma, duas, três, assentou sucessivas patadas à porta, cuja taramela cedeu à quarta; mas achando atrás anteparo numa escora, resistiu ainda, deixando uma abertura, por onde enfiou como uma cobra o braço, retirando a tranca.

Como um raio entrou na cozinha, e já forçava a porta do quarto, quando ouviu ranger lá dentro a janela que deitava para o oitão, dando talvez passagem ao fugitivo. Num pulo de onça, achava-se de novo cá fora; deu às carreiras rodeio à casa, a garrucha engatilhada, e lobrigou ainda um vulto que descia apressuradamente a ladeira, enfiando o casaco.

Fez com ambos os canos fogo naquela direção, e voltou espumando ao interior, onde Chica rezava de joelhos, apegada ao oratório, junto ao leito desmanchado, a chorar copiosamente.

Arrancou-lhe num safanão o rosário dos dedos, e o gesto transmudado, indagou:

– Quem era? Quem?!...

Ela abaixara a cabeça, e assim de joelhos, pôs-se a suspirar, lamuriando a intervalo das lágrimas:

– Ai! Jesus!... Ai! Jesus!...

– Vamos, diabo! Quem era o homem que estava aqui contigo?

Soluços, apenas soluços, sacudindo-lhe dolorosamente as arcadas do busto farto, e o olhar baixo, de cão corrido, eram a resposta às sucessivas e impacientadas perguntas.

Batia o pé no chão, cerrando os punhos, mordendo os beiços, o olhar chamejante, varrido numa raiva que não tardaria em pouco a explodir nalgum desmando, a repetir em desatino, com rancor:

– Quem era? Quem?!...

Aquela inércia exasperava-o. Fustigou-lhe o rosto com as contas do rosário, a coronha da arma chuchou-lhe o peito, a ver se conseguia obrigá-la a erguer o olhar culpado, rosnando sempre o estribilho feroz:

– Quem era? Quem?

Afinal, numa onda de sangue, atirou-lhe o primeiro pontapé às nádegas, jogou-a de bruços de encontro à parede; e, num assomo para o qual já não havia freio, pisou-a um instante barbaramente, estupidamente, passeando-lhe o corpo com as botas.

Depois, como tivesse ainda em resposta aquele choro frouxo e contínuo, cortado a espaços pelo estrangulado soluçar, um pasmo repentino sopitou-lhe a ira; e, na inexplicável comoção que o ia insensivelmente invadindo e era como que a gota d'água na fervura, ergueu-a com cuidado, assentou-a à borda da cama; e à luz do candeeiro que espalhava o seu clarão amortecido aos quatro cantos do aposento, deformando e ampliando em torno os objetos dum feitio estranho, levantou o queixo à mulata que tremia, pôs-se a festejar-lhe as faces mansamente, suavemente, num arrependimento mudo agora, em que tentava, embalde, estancar-lhe o pranto ao rosto esbraseado.

– Não chora!... Não foi nada... Ora veja, que molenga!...

E já sentindo que ia em breve fazer acompanhamento àquela choradeira desatada, reagindo contra a natureza que o traía, interpelou de novo, num esforço:

– Mas quem era, quem? Não faço nada, vamos, diz...

Ante o silêncio que mais uma vez o acolhia, a negar toda a certeza daquele amor passado, da fidelidade e obediência antiga, achou-se de todo desorientado; e, perdida a tramontana, numa impulsiva revolta, derrubou-a de novo arrebatadamente, e desandou a espancá-la, aos rugidos de fera.

A um solavanco da mesa, a candeia entornou-se e apagou, num último e sanguinolento lampejo.

Então, já dementado, dobrou-se sobre aquele corpo que lhe opunha apenas a morna passividade dum silêncio obstinado, e furiosamente, bestialmente, violentou-a com selvageria, a unhadas e mordidelas, que lhe foram, enfim, com igual furor, com igual paixão, retribuídas aos ganidos pela boca convulsa da amante...


XI 
A luz batia em chapa no forro de telha-vã, quando abriu os olhos daquele sono de pedra.

Pela altura do sol, já devia passar de meio-dia.

A princípio, não se recordou da hora nem onde estava; mas o aspecto desordenado dos objetos, noutro tempo familiares, que o rodeavam, lembrando sestas fervorosas e noitadas mais felizes, acordou-lhe brusca no espírito a cena da véspera. E foi com mal sofreada ânsia que procurou ao lado o lugar de Chica.

Encontrou-o deserto e frio. Levantou-se às tontas, tateando; e, na semi-obscuridade do aposento, chegou à janela, puxando o tampo, que ainda se conservava cerrado. Voltou-se então com a claridade, e àquela desordem dos trastes, as roupas atabalhoadamente atiradas aos montes pelos cantos, os baús abertos, estripando o seu conteúdo numa profusão de peças revolvidas, uma suspeita súbita cresceu-lhe na mente superexcitada:

Fugira a cabocla!

Procurou-a ainda pela casa, batendo os recantos; mas a ausência dalguns objetos preciosos guardados em certos escaninhos que sabia, o xale desaparecido do cabide e a porta às escâncaras, atestavam bem em evidência a partida precipitada de sua moradora.

Não se deteve mais tempo a averiguar, e desceu ao povoado. Fez uma ligeira ablução na água da cacimba, molhando a fonte e os pulsos, a acalmar a efervescência do sangue; e já montado, deixou-se ficar mais dois minutos na venda da Maruca, cortando o jejum com um rebate de meio dedal de cana, após o que cravou esporas na besta, rumo do Quilombo, disposto ao que desse e viesse naquela embrulhada, de que não compreendera ainda patavina.

O álcool agiu depressa naquele organismo, que desde a véspera não ingeria alimento algum; e pela estrada, metendo o animal no trote picado, na marcha esquipada, entrou a bazofiar:

– Vote, cabra! Calango de chifre e macuta furada, se não me está a cheirar que ainda hoje vejo o melaço dalgum desgraçado correr na ponta de minha franqueira!

Insensivelmente, com as esporadas que ia acrescentando ao ventre da besta, abriu num galope furioso, sob o sol que assava, deixando ao lado os pinguelões das ribeiras, para num salto transpor as barranquias, vergastando os ramos que encontrava dobrados sobre o caminho com o cabo do piraí, numa fúria mal recalcada, que não achara ainda onde descarregar.

Já lá no fundo da baixada o mato da Estiva avolumava o seu listrão sombrio de frondes ramalhudas. Com o vento, engrossado pelas chuvas da quinzena, vinha o marulhar cachoante do córrego nas pedreiras deslavadas. Corria à rédea solta.

De repente, passarinhando para o lado, a Pelintra estacou em dois corcovos bruscos; e, não fora a segurança do cavaleiro, viria ao chão, numa rodada desastrosa.

Era um vulto, o Malaquias, que surdira como que por encanto de trás dum oco de pau, na estrada.

O preto, armado duma clavina, cuja boca revirara prudentemente para baixo, avançou cauteloso, um dedo ao beiço, impondo silêncio, pedindo atenção. O outro, meio ressabiado, alisava a coronha da garrucha, e esperou firme sobre os estribos.

– Seu Dito, volta donde veio e suma no mundo – disse o nagoa. – O patrão tem gente à sua espera para o prender, morto ou vivo.

E explicou. O patrão chegara, pela manhã, esbaforido, na fazenda, uma escolta de Zé Velho, Bentinho Baiano e Generoso das Abóboras ao lado. Depois de ter mandado soltá-lo à casa do tronco, propôs-lhe em particular a desobriga da conta e mais uma boa molhadura de vinte mil-réis de quebra, se fosse com os demais, e João Vaqueiro, esperar a ele, Dito, à saída do povoado, e conduzi-lo amarrado ao Quilombo, matando-o mesmo, caso resistisse.

Fingiu aceitar e deram-lhe aquela clavina, vindo então com os outros emboscar-se no córrego da Estiva, numa tocaia que fizeram junto à cruz do Ambrosino. Lá ficaram os quatro à espera; quanto a ele, que tinha Seu Dito em muita amizade e com o qual não queria questão, desconversou com a companhia, dizendo vir apalpar o terreno e dar-lhes aviso quando aparecesse o vulto do moço na estrada. Mas adiantara-se apenas para inteirá-lo do perigo e prestar-lhe o seu auxílio, se preciso fosse, caso pretendesse mesmo afrontar os capangas, o que não aconselhava.

– Bem dizia eu, seu Dito, aquela alma do diabo é que nem cobra, só vive para aprontar maldade! E mais a mais, metido em fuxico de saias! – Então, tomasse cuidado, a jararaca ia mostrar agora toda a peçonha que tinha. Bem dizia!

O outro ouviu de mão no queixo, refletindo. Dissipavam-se as dúvidas que viera entretendo pelo caminho. Era pois aquele velhote perrengue que se lhe metera com a Chica! Bom achado! Quem havia de tal convencê-lo! E aí estava explicado o silêncio birrento da mulata e a sua fuga pela manhã.

– Ora, ora, mais parecia caçoada, que patusco!

Mas o sangue de todo não se lhe acalmara ainda nas veias. Passada aquela onda de chacota, veio logo uma secura à garganta, começou a sentir saibo de sangue na boca travosa, e, só em pôr o pensamento na imagem da Chica, o seu corpo luxurioso e fresco nos braços daquele velho coroca, uma revolta sanhuda sacudiu-o dos pés à cabeça, eriçando-lhe as falripas do rosto, abafando todo o respeito antigo, e uma necessidade imediata de desforço mostrou-se-lhe clara, na mais fera e imperiosa bruteza do instinto animal afrontado...

Pelo lume dos olhos e o arreganho involuntário do gesto, que o fazia crescer meio palmo na sela, Malaquias percebeu-lhe logo a intenção, e ia arengar no intuito de demovê-lo, quando, fincando esporas, já Benedito afastava-se, cego, numa arrancada veloz, rumo da Estiva, para o seu destino, para a sua perdição...

Mais uma vez, o vulto do negro aprumou-se no meio do campo, soerguendo o busto agigantado, levantando as mãos no ar, como que para detê-lo ainda a tempo, e já animal e cavaleiro desapareciam além, num capoeiral da volta da estrada.

Então Malaquias encolheu os ombros, resignado; e atravessando a arma à bandoleira, enveredou por um trilho à esquerda, caminho do homízio e do sertão.

Benedito penetrou as primeiras árvores da Estiva de sobreaviso, rédeas aos dentes, a garrucha numa das mãos, pronto a varrer qualquer tiraço na lã grossa do pala que desdobrara na outra, olho à direita, olho à esquerda, pesquisando. E ainda bem não deitara o olhar investigador a uma pequena moita suspeita de marmelada, saltou-lhe dali à frente o Zé Velho, empunhando um forcado, sobre a ponta do qual agitava um molambo de baeta, que estadeou às ventas da Pelintra.

O cavaleiro mal teve tempo de sofrear, no refugo, a alimária; e um laço sibilou-lhe à cabeça, atirado certeiramente pela mão de João Vaqueiro, do alto duma árvore, onde se empoleirara.

E os braços enredados pelo arrocho da correia, enquanto forcejava com os cotovelos, Generoso insinuava-se como uma cobra sob o ventre da mula, derrubando-o pela perna. Num fechar de olhos estava desarmado, tolhido e atirado como um fardo ao lombo da besta, que os da matula entraram sem detença a tocar, rumo do Quilombo.

Entardecia quando o coronel, debruçado a espaços, impaciente, ao peitoril da janela, os viu chegar, enxotada a Pelintra à frente, sob a sua carga humana.

Um riso surdo, duma expressão maligna, indefinível, a repuxar-lhe os cantos da boca numa careta horripilante, e que devera ser o mesmo riso de Pêro Botelho às voltas com as almas do Purgatório, alumiou então o rosto do fazendeiro. Passou o dorso sardento da sinistra pelos beiços, prelibando o gozo da vingança, depois comandou:

– Amarrem o homem no curral, tirem-lhe os estorvos do corpo, deixem apenas pés e mãos manietados.

Mandou vir da armazenagem um garrafão de restilo, que distribuiu às canecas pela capangagem. João Vaqueiro, cumprida a sua obrigação, retirara-se para o seu rancho e, encostado ao poial, ficou de longe espiando.

Zé Velho e Generoso, fechado o corpo com o trago da pinga e embolsada a maquia da peita, tinham metido os trabucos ao ombro, e já lá iam distantes, batendo a poeira leve da estrada com as suas alpercatas de couro.

Então o fazendeiro despiu o paletó e arregaçando as mangas da camisa, saiu ao terreiro, uma comprida folha de quicé debaixo do braço. Deteve-se a amolar o ferro à piçarra do rego, pachorrentamente, voltando a fronte bronzeada e deprimida ora a uma, ora a outra banda, num facies de riso alvar e cínico. Depois, mordendo os beiços, zombeteiro quase, rosronou à companhia:

– Que diacho de estupor é esse! Isto é lá coisa do outro mundo? É esta a primeira vez que trazem à porteira um poldro madraço em vias de capação? Pois as éguas do meu pasto não foram apuradas para roncolho dessa laia! É pô-lo manso, antes que me desande no campo a descendência de alguma potranca de estima. Uai, nunca viram? Pois o bicho parece mais esperto que a gente, fareja depressa a sorte que o espera no moirão, vejam só, está que nem bezerro desmamado!...

Mas a cólera rugia-lhe dentro demasiadamente violenta para continuar naquele enxurro de chufas. Tremia-lhe a voz, a cada palavrão; e, ao aproximar-se, os dedos da destra crispavam-se-lhe no cabo do quicé como cunhas. 

Para Benedito, atado ao poste de tortura qual novo São Sebastião, as palavras do fazendeiro ressoavam-lhe à orelha sem significado, como um vago e longínquo zumbido de maribondos...

Desde que se sentira atravessado na Pelintra, uma prostração profunda, sequência da excitação em que viera até aquele momento, paralisara no cabra a máquina do pensamento; e dali ao pelourinho do curral, tudo lhe parecera como num sonho, em que a sua personalidade semelhava desdobrar-se, e não era ele que ali estava jugulado pelo laço vaqueano, a arroxear-lhe os punhos intumescidos, e sim um outro indivíduo estranho, a quem era indiferente, com o qual não tinha a mínima relação.

A cabeça pendida sobre o peito, olhos esgazeados, olhava sem compreender, à espera de que aquele pesadelo de chumbo, à maneira do que lhe acontecia nas horas de febre – quando dormitava das soalheiras apanhadas na labuta do campo – se dissipasse ao vir da noite, nas primeiras frescuras orvalhadas do crepúsculo...

Que significava aquela lâmina reluzente, cujo fio o patrão experimentava na unha do polegar e a fitá-lo sinistramente? E a cadeia de ideias, de novo partida, se lhe embaralhava na mente, sem coordenação...

Modorrava...

Num gesto rápido, o coronel desabotoava-lhe de alto a baixo as braguilhas da calça. A roupa caiu-lhe balofamente aos pés, em papos fofos. E a camisa muito curta, que o estertor desordenado das arcadas do peito soerguia a breves intervalos, mostrou uns flancos robustos, peludos, de Hércules rústico.

A operação foi demorada, cruenta, dolorosa, a julgar pela contração intermitente de seus lábios convulsionados. Mas a boca, os olhos, esses, não exprimiram uma só queixa... Deixou-se amputar em silêncio, sem movimento quase, como uma rês abatida.

Dados os dois talhos longitudinais, o operador espremera os testículos, e repuxando os cordões, aos quais deu em cruz a laçada de uso como se faz aos marruás, separou-os de vez, num corte hábil.

Estava consumada a operação.

Já aquele pastor intrometido não sairia mais pela redondeza a importunar-lhe as potrancas de estima...

João Vaqueiro, encostado ao poial, punhos cerrados, olhava aquela cena. Tratos, assistiraos a muitos, de formas e maneiras várias, nessa e em outras fazendas do interior. Mas como aquele, pedia castigo divino!

Entrou no seu rancho pobre de sapé, sobre cuja esteira de jirau perrengueava a mulher, numa recaída de resguardo de parto; acordou-a de manso, e baixo, quase choroso, avisou: 

– É pôr-se logo de pé, que nos vamos daqui embora para nunca mais. A marca de tala deu boa porcentagem este ano; junto aos lavrados que possui, dá de sobra para a nossa desobriga. É pôr-se logo de pé...

Entretanto, o coronel, finda a tarefa, recolhia os despojos sangrentos de sua vítima num caco de telha, que depôs num moirão do cercado, onde já voejavam moscas varejeiras, e foi lavar as unhas sujas no limo do rego. Deu mais uma vez ordem a que atirassem com aquela rês pesteada no quarto escuro do tronco, e fechou-se na casa-grande, sem mais palavra.

Aos últimos raios de sol a ferir obliquamente a cumeeira da casa, naquela interminável tarde sertaneja de verão, uma alegre cavalgada apontou ao longe, na vargem em sombras, e veio estacar junto à cancela do mangueiro, que abriram, penetrando ruidosamente no pátio onde havia pouco se desenrolara aquela execução sumária.

Era um grupo de representantes do povo, coronéis e fazendeiros pela maioria como o senhor do Quilombo, que eleitos pelos círculos vizinhos, por ali iam de passagem, a assumir as suas respectivas funções de deputados e senadores no Congresso estadual.

Iam prazenteiros e satisfeitos, apressados como estavam em chegar ao término da viagem, ali se detendo apenas dois minutos para um aperto de mão ao correligionário político do lugar, uma das mais legítimas influências, e o mais forte esteio do partido no município... 

Enquanto se serviam do café, contou-lhes por alto o fazendeiro o acontecimento do dia.

– Pois não, coronel!! – disse um da comitiva. – Fez muito bem; que essa gente, traste imprestável e traiçoeiro, só serve mesmo para nos dar prejuízos e cabelos brancos. Ainda a semana passada, morreu-me um dos tais, com uma dívida de um conto e quinhentos mil-réis no costado por pagar. E, se não mostrarmos energia, montam-nos o pelo de botas e esporas... Gente ordinária até ali...


XII 
Na fazenda, agora erma, lento e lento o tempo começara a sua obra de estrago e desconforto.

Um a um, valendo-se de novos contratos com fazendeiros do arredor, os camaradas do sítio se tinham ido, numa passividade fatalista de rebanho, das ferropeias dum jugo para as de outro, quem sabe, mais duro e cruel...

Por último João Vaqueiro, que ali se deixara ainda ficar, lutando embalde com um atavismo de condição que o trazia atreito àquelas paragens, arrancou-se uma clara manhã, tocando adiante da família maltrapilha os refugos de gado que conseguira ressalvar no seu ajuste final de contas.

Também, para que persistir naquele pedaço de terra, tão ingrata e penosa agora de rever pela maldade dos homens? O patrão recolhera-se a Curralinho, onde estava a família, pusera anúncio nos jornais da venda do Quilombo, com pastos, benfeitorias, criação e mais gado miúdo.

Já o inverno vinha próximo, na azul transparência daqueles céus de abril, que ofertava, nas vargens de mimoso e jaraguá, as últimas galas da estação. Emudecia em torno a natureza, sob a frialdade das noites... Nas nascentes, a água dos córregos ia escasseando.

Assim, na chapada, sob um sol de rachar, tangendo à frente dos seus remanescentes da antiga manada, rumo incerto de distantes terras onde iria recompor a vida transtornada, e ao chiar do carretão que conduzia cambotando os destroços de seu lar desfeito, a bela voz do vaqueano já não tinha aquela sonoridade vibrante de outrora no ecoar do aboiado, e mesmo, fazia-se triste e compungida ao acentuar as notas derradeiras da cantiga.

É que ali, naquele mesmo trato da campina, fizera-lhe tantas vezes acompanhamento o grito triufante de nhô Dito, que vira crescer e tornar-se homem sob o seu olhar desvanecido, e que – pobrezinho – lá ficava agora esquecido na fazenda, sob os gravatás e ananases da beira da cerca, onde o tinham a mando enterrado, a sonhar o seu sonho de paz e de ventura noutra vida melhor...

Morrera o infeliz, após lenta agonia de uma semana sem pão e sem água no fundo da casa do tronco, donde urros de endemoninhado saíam na noite, ao acompanhamento lúgubre das aves de má morte no telhado.

E mais dolente e compungido se faria decerto o sertanejo, se soubesse que aquele seu descante agoniado, na tarde que baixava, era a nênia fúnebre que acompanhava, mais além, o enterro de nhá Lica, a filha do fazendeiro, morta em Curralinho de tristeza e paixão.

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