10/01/2017

Nostalgias... (Conto), de Hugo de Carvalho Ramos


Nostalgias...

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Trecho de carta

Já que vais brevemente à chapada, vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num tronco novo de jenipapeiro que fica junto à casa do teu agregado (se é que ainda o manténs), próximo a umas goiabeiras, e aí talhado por mim a última vez que lá estive. Olha, não te esqueças de dar algumas tarrafadas ao poço do Periquito, de fundo aliás bem sujo e garranchento; e também, ao do Mané Fulô, como diziam os caipiras, onde ia todas as tardes, a comprida cana de pesca sobraçada, farnel de iscas a tiracolo, descalço às vezes, peito descoberto e em mangas de camisa quase sempre – tal o nosso Casimiro de Abreu dos Meus oito anos, – a cantar velhas trovas nativas pelas estradas...

Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão. Passava a correr, saltando córregos, a tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só, quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.

Gralhas e acauãs guinchavam na galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra banda – com a chuvarada que descera brusca para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao sol glorioso, descambando além na Barra – preás levípedes, o olho reluzente e globoso de roedor espreitando em torno, saíam assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa de argila vermelha, entranhando-se do outro lado, no catingueiro recendente. Não raro, no emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem habitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as folhas secas derredor...

Apressava o passo, a gargantear velhos motivos da terra, ora esse dengoso Compadre Chegadinho, dos batuques e muxirões da roça, ora aquela dolente melopeia do Baleador, tão simples e evocadora:

Ê! baladô!...
Ê! baladô!...
Bateu bala na porteira,
A porteira não quebrou!...

Assim alegremente, fazia os dois quilômetros que nos separavam do poço onde dormiam, no remanso das águas, os cardumes de avoadeiras e jeripocas sob as coivaras.

No Manuel Flor, tapera antiga que, como todas as taperas, diziam mal-assombrada, e de que restavam apenas os moirões de aroeira, carcomidos e negros, metia-me pelo atravancado dos gravatás, goiabeiras silvestres, taquaral estralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo trilho inculto que levava à pedreira favorável, e aí, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas taquaras apodrentadas adensavam os mandis-chorões, desenrolava a linha, iscava o anzol, impunha silêncio inviolável ao moleque, e eis-me todo entregue às emoções variadíssimas da pescaria...

Voltávamos ao sítio pelo anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e ouro, quando caga-fogos e vaga-lumes luzeluziam nas baixadas, eu um tanto fatigado da caminhada, mãos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando às vezes o dedo dolorido duma ferroada de jurupensém, mas pronto a recomeçar no dia seguinte, o Raimundo atrás, sopesando a grossa cambada e nela discriminando já, com olho de dono, os bagres e lobós que lhe seriam como prêmio adjudicados.

De longe, ouvia-se o rechinar lamuriento da gangorra no terreiro à frente, onde Vítor e os primos tripudiavam contentes, os mais pequenos receosos e assustados dum trambolhão a um pinote ou volteio mais rápido.

Caía sobre o Vermelho, que passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde. Berravam nos cercados os bezerros. Piavam guaxos e joões-congos nas grimpas dos jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes. Mosquitinhos azoinantes e zumbidores enxameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos moleques, sobre a lombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeções do pelo arrepiado, gania relambendo-se entre palhas, no borralho.

Distante, na estrada da Barra, cargueiros passavam ajoujados e resfolegantes sob a carga de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo da cidade e do mercado. Escutava-se o relho a estalar ao longe, e a voz pigarrosa do caipira, batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a incitar aos muxoxos a mulada:

– Ehú! Ehú! Ehú!... Crioulo!... Penacho!...

E mais além, aqui na mata, ali nos furados de jaraguá, jaós e perdizes correspondiam-se, moduladas e dolentes as primeiras, subitâneas e estrídulas as outras, de lado a lado rememorando a história pungentíssima de seu mútuo apartamento...

Anoitecia. A paz do sertão, sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Na mesa tosca, ao canto da sala, fumegava a janta sobre a toalha alvacenta de algodão, alumiada ao centro, vagamente, pela candeia de três bicos, que se espevitava de vez em vez.

Surgiam o angu de caruru nos tigelões pintalgados, a feijoada, o ensopado de peixe, farto, em travessas e pratos estanhados, rebrilhando à luz entre olhos de gordura. Ao lado, o garrafão de caninha e o frasco de malagueta para os mais velhos, os que gostassem do condimento rústico.

Empanturravam-se como pagãos que éramos, à primitiva moda e ao apetite das velhas colônias...

Que rica bóia e depois que rico sono, aquele que nos surpreendia pela volta das nove, ao tempo que se contava ainda na fieira dos anos onze, doze, treze primaveras apenas!

Não raro, o caseiro do sítio, forte e desempenado em sua robustez de oitenta anos – o braço mais rijo e feroz dos eitos da roça três léguas derredor – vinha para a soleira da porta, encapotava-se banzento ao batente, acendia um cigarrão, e, a cabeça nevando ao luar como capucho de algodoeiro, punha-se a devanear, baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e pequenos.

Eram sempre histórias antigas, das passadas eras do Império e presídios do Araguaia. Ficávamos a escutar, sonhando com essa região longínqua de canguçus e caboclos desnudos, areias infindáveis alvejando à distância, onde a pintada vinha uivar em cio à noite, agoniada do luar, e de cujo fundo das águas saíam, em estação propícia, as tracajás à desova pelas praias de arribação...

E a mente exaltava-se, repassando contos e lendas, frutos de leituras precoces duns e outros que, mais felizes, tinham visto ou descrito o Araguaia, e bebido em suas paragens a selvática poesia dos sertões brasílios...

– Ah! tempos que passaram, tempos de moço, como cabo ordenança e vaqueiro particular do capitão José Manuel, teu pai, nosso tio-avô!

Vinham logo narrações da vida à beira do grande rio, proezas de caça e pesca, combates e matanças dos índios canoeiros, caiapós e xavantes; o ataque do fortim de Santa Maria, como ele, ajoelhado à soleira do rancho, a velha espingarda reiúna e respectiva munição ao lado, mordendo impassível o cartucho, fizera frente a toda uma tribo encarniçada de guerreiros, fuzilando-a à queima-roupa e dando assim tempo à guarnição de tocar a rebate e acudir em defesa às muralhas.

– Era pelo meio da noite, um luar tão claro como dia. A caboclada tingira-se de preto, uma larga faixa branca pintada na testa. Isso servia de pontaria. Não perdera um tiro. O rancho ficara que nem porco-espim: crivado de alto a baixo de frechas e tantas que, ao outro dia, andando os soldados a apanhá-las nos arredores, ajuntaram feixes enormes, que depois serviram para manter o fogo da cozinha semanas a fio. De sua parte, por conta e risco, só ele matara oito. 

– Tempos brabos – comentava.

(Ai, meu pobre herói obscuro, que dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teu sono de paz numa cova rasa do cemitério da Barra, junto ao filho do Anhanguera, o desbravador de meus pagos!)

Relatava agora, entre sério e jocoso, como a colerina alastrara súbito no presídio, afrontando do último recruta ao comandante; de como faltaram então todos os recursos e mantimentos naqueles fundões. Só a ele poupara, a danada! Ia para o fundo do quintal, o pau-de-fogo aperrado, entre os bamburrais, assuntando. Tucanos, quebrando talas, grazinavam saltitantes nas embaúbas.

– Pum! pum! Botava um, botava dois, três, abaixo; e era essa a canja que, com milho pilado, servia ao pé do leito aos patrões devorados de febre.

– Bicho duro, o tucano! Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo que prestasse. Como ele, só papagaio, vote! Parecia até o capeta em figura de ave. 

Depois, era como duma feita sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fizera engraçado com a mulher. O camarada riscara a parnaíba com vontade; ele aparou e deu-lhe resposta bem segura, entre costelas, no bucho...

E explicava: O anspeçada fora procurá-lo no açougue da vila – estavam então em Santa Leopoldina – onde ele acabara de abater uma rês gorda, cria da fazenda, por ordem de seu capitão. O cabra chegou como quem vinha mesmo decidido a armar sarseiro, cara amarrada, berrando alto, gesticulando atrevido, arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de cachaça nos bofes.

Ele ouviu, ouviu, como quem não entendia; mas num repente, ante um desaforo mais grosso, quando o provocador transpunha já o limiar, saltou por cima do balcão, ajuntou o famanaz pelos peitos, atirando-o com violência ao meio da rua.

O Domingos foi de roldão bater na quina dum frade, e voltou de lá cego, o facão à mostra, piscando os olhinhos de cobra assanhada, sobre o adversário, que já o esperava também do lado de fora, a comprida faca do corte – reluzente e ensebada do serviço – na mão firme.

O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o passar. De novo, frechou-lhe em cima o anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando aberta; novamente ele furtou o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra veio espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.

– Ah, como que ainda sentia pelas mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue do Minguinhos salpicando-o de alto a baixo, todo fumegante, como brasa!

Animado pelo calor da narrativa, acrescentava depois como derrubara doutra vez, numa tarde mui límpida e calorenta de agosto, um velho carajá que topara acocorado no alto duma árvore, todo acobardado e trêmulo ao vê-lo, duma feita, quando vinha do campeio...

E anotava:

– Qual! Carajás... nação fraca...

– Mas mataste-o à toa, Casimiro?

– Ora, ora, o velho coroca arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nele botei a vista, como guariba assustada, batendo os dentes, a dizer com perrenguice: “Aí tori... aí tori... (cristão, cristão), mata Bremeri... (nome lá da língua deles), aí ele não faz mal... Tori valente!...” E tremia, que nem atacado de maleitas. Eu atravessara o meu pampa campeador no meio do caminho, a coronha da lazarina sobre o serigote dos arreios, todo encruado em minhas perneiras e guarda-peito de mateiro, o chapelão para trás, preso ao queixo pela barbela de sola, mão em pala, assuntando... Dera com aquele diabo ao sair do cerrado, onde andava a campear umas reses do capitão José Manuel, seu tio-avô, que Deus tenha em sua santa guarda. Tinha achado rastros frescos num brejal, entre touças de caranã, mas batera três dias seguidos as redondezas, não topando vivalma. Daí a presunção em que vinha: pintada não fora, senão deixava algum sinal, resto de carniça, marca das patas, qualquer coisa; e só muito faminta atacava cria taluda... Os índios, talvez... Vai senão, topo aquele estorvo.

– Desce do pau, ó tapuio!...

– Aí tori... aí tori... mata ele... Brequeti não faz mal... Aí tori valente!...

– Ora, ora, o perereca batia a queixada como caititu acuado e eu – diacho de velho pra viver!... – quando o pampa dera já algumas passadas, torci-me no arção da cutuca, e despejei-lhe nas costelas a carga da reiúna. – Que bufo, vote!

Aqui interrompia a segunda mulher do caseiro – que a primeira há muitos anos morrera – toda lastimosa, um travo de zanga na voz:

– Pois tu não tens vergonha de contar coisas dessas, Casimiro! Credo! Olha o purgatório!

– Mulher, mulher, mete-te com tua vida, deixa os outros sossegados. Mortes, tenho treze nas costas, mal contado; e não me arrependo, mais não fora, tanta gente ruim anda pelo mundo!...

– E remorsos, nunca os teve? – indago.

O velho, cuja cabeça nevava ainda mais o luar, olhou-me em silêncio, como se não compreendera. Depois riu, a boca murcha espichando num bocejo cínico, onde sobressaía desenhada toda aquela vida primitiva no seio bruto do deserto, a par de feras e perigos, sem contemplações e sem piedade para com os mais fracos, os vencidos...

– Lereia...

Sim, lérias, discutia eu no meu íntimo, que nessa época já começava a tirar lições práticas do mundo, e sabia que o cafuzo que ali estava, o busto ainda alto e espigado, onde os três sangues da raça se caldeavam apaziguados, nunca passara da cartilha de mão, e vivera assim desde rapazote, à gandaia da natureza, a grande mestra da vida.

Quando fora da estopada do Minguinhos, cristão como ele e companheiro de tarimba, não tivera, quanto mais daquele velho coroca, a bem dizer bicho do mato!...

Ora, ora, anos depois, de passagem, fora ver o local: a caveira reluzia ao sol e ria macabramente no aceiro da selva, enquanto que a ossada se espalhava em torno, dispersa pelas enxurradas e animais bravios...

Terras bárbaras, gente forte!

***

– Ai, a nostalgia do sertão!...

Pela manhã a Merência, papuda e avara, ia ao curral ordenhar a sua parelha magricela de vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia sovinamente a tostão o guampo. Também, crivávamos-lhe de epítetos e epigramas, à veia estudantal, a papeira mazomba, mal virava, rezingando, a costa acorcovada.

Amigo: não val descrever a vida que aí levamos e da qual fruis ainda os doces encantos. Longe, numa terra inóspita para os pequenos e humildes, nesta trapeira velha onde noite alta zune a ventania e vem visitar-me alcateias de ratazanas, às voltas com os meus tédios e minhas pequenas manias de rabiscador anônimo, o espetáculo grandioso da civilização desenrolando-se ao pé pelo buzinar álacre dos autos nas avenidas e pedalar intermitente de tranvias, tão só, à espera dum futuro que não chega e sabendo quão amarga sói às vezes ser a solidão para os que meditam e sonham e quão duro é viver distante das coisas que nos foram familiares, relembro a paisagem adusta de nossa velha terra, e confesso – não raro uma lágrima furtiva ressuma em minhas faces escaldadas, como óbolo votivo ao torrão onde vi a luz, onde minha infância decorreu como todas, ai, tão depressa, tão descuidosa...

Mas basta de sentimentalismo!

Revê-la-ei? Não sei. Talvez nunca. Entanto, nesta luta insana pela existência que é o viver cotidiano das grandes cidades, assediado a cada momento por vivos e contrários embates de interesses e paixões mesquinhas, sinto que o meu íntimo permaneceu o mesmo doutrora, insensível e sereno a todas as agressões brutais deste meio material e grosseiro que o cinge e aperta num supremo e frenético esforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em meio a sua tristeza, a grande escada de fogo por onde se guindará a outras paragens mais amigas, filhas do meu Sonho e da minha Saudade...

Vale.

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