10/24/2017

O Pároco de Aldeia (Conto), de Alexandre Herculano


O Pároco de Aldeia
LENDA DE 1825

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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PRÓLOGO

Como a filosofia é triste e árida!

Às vezes, na Primavera, o vento norte atira-se pelas encostas, tombando dos visos da serra, como se uma inteligência vivesse nele, inteligência de maldade e destruição. De noite e de dia, os troncos das árvores torcem-se e gemem, as ramas despedaçam-se a açoitá-los, envoltas nos braços longos e flexíveis da ventania: o demônio do setentrião sibila no meio delas um zumbido entre de lamento e de escárnio. Debalde o bosque estende, saudoso, por um momento o seus mais altos raminhos para o Sol, que se vai alevantando no Oriente: a rajada despega de novo da cumeada da montanha: o bosque curva-se para o meio-dia; e, galgando por cima daquelas mil caras inclinadas das plantas gigantes, das rainhas majestosas da vegetação, os turbilhões da atmosfera agitada rolam pela planície, coberta já de relva entressachada das primeiras florinhas. Então, relvas e florinhas murcham, esmagadas pelas mãos da procela, que tudo alcançam, fustigam e desbaratam. Os carvalhos frondosos e as boninas rasteiras, com a cara pendida para a terra, como outros tantos símbolos do desalento, não ousam erguê-la para o céu. É que, rugindo, a ventania cai da montanha em perene catadupa. As vezes, como por brinco infernal, o vento finge adormecer um instante e depois remoinha e apruma os topos das árvores e as corolas das flores, mas é para logo as vergar com mais força e apupar com o silvo insolente aquela rápida esperança, que se
desvaneceu tão breve.

E, quando o vento acalma, é para saltar ao poente ou ao sul. A rajada já não silva na montanha: uma bafagem tépida vem da banda do mar; mas o céu está toldado e o ar úmido: o dia passa melancólico e pesado sobre a bobina que a nortada açoitou: ela não pôde saudar o Sol no Oriente: está pendida e murcha como a ventania a deixara. A noite vem encontrá-la numa espécie de torpor, que é existir, mas que não é vegetar, e ainda menos viver.

Como a florinha do campo, a alma por onde passou a procela da filosofia, esse turbilhão transitório de doutrinas, de sistemas, de opiniões, de argumentos, pende desanimada e tristonha; e na claridade baça do ceticismo, que torna pesada e fria a atmosfera da inteligência, não pode aquecer-se aos raios esplêndidos do sol de uma crença viva.

Com Kant, o universo é uma dúvida: com Locke, é dúvida o nosso espírito: e num destes abismos vêm precipitar-se todas as antologias.

Como a filosofia é triste e árida!

A árvore da ciência, transplantada do Éden, trouxe consigo a dor, a condenação e a morte; mas a sua pior peçonha guardou-se para o presente: foi o ceticismo.

Feliz a inteligência vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperança postas pela religião além da morte, sem que um momento vacile, sem que um momento a luz se apague ou a esperança se desvaneça! Para ela não há abraçar-se com a Cruz em ímpeto de agonia e clamar a Jesus: “Creio, creio, ó Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral é sublime; porque eras humilde e virtuoso; porque, filho da raça sofredora e austera chamado o povo, eras meu irmão e não podias, tão bom, tão singelo, tão puro, enganar teu pobre irmão. Creio, creio, ó Nazareno! porque até a hora do expirar na ignomínia, até a hora da grande prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, ó Nazareno! porque tu só nos explicaste o mistério desta associação monstruosa da saúde e do ouro, do poderio e dos crimes a um lado; da enfermidade e da pobreza, da servidão e da inocência a outro; porque nos explicaste como os destinos humanos se compensavam além do sepulcro. Creio, creio, ó Nazareno! porque só tu soubeste revelar a consolação à extrema miséria sem horizonte, e os terrores à completa felicidade sem termo na vida, colocando no lugar do destino a Providência, e a imortalidade! Creio, creio ó Nazareno! porque a intensidade do teu viver é um impossível humano; a vitória da tua doutrina severa, contra a filosofia e o paganismo, um milagre; a glória do teu nome de supliciado maior que todas as glórias das mais altas e virtuosas existências do mundo. Mas foste, na verdade,
um Deus?”

Não, o ânimo vulgar que nunca vacilou na fé, que nunca discutiu o verbo, que nunca julgou o Cristo, possuído do insensato orgulho da ciência, esse não sabe a dolorosa oração do que pede a Deus o crer; ignora quanto fel encerra a interrupção contínua de cada frase, de cada palavra daquele tormentoso orar; ignora o que é atirar-se aos pés da Cruz por um impulso quase frenético do coração, sentir a voz gélida, pesada, cruel do entendimento dizer-lhe tranquilamente: “Quem sabe!”, e cair desanimado no letargo da dúvida, donde muitas vezes bem tarde se alevanta o espírito, oprimido e quebrado, porque nele pelejaram horas largas o instinto religioso e o demônio implacável a que chamam ciência.

A sociedade é bem injusta, quanto às faces do desgraçado, que assim luta consigo mesmo, sacode o lodo da injúria, dizendo-lhe: “Hipócrita!”, porque escondeu aos que o rodeiam, não as certezas, que não as tem, mas as dúvidas terríveis da inteligência, e lhes revelou só as aspirações, os desejos, as saudades do coração! — Hipócrita?! Tanto como o que, havendo-se transviado da estrada e caído em fogo profundo, dorido, coberto de pisaduras e feridas, e ensanguentando as mãos e o rosto nos silvados do despenhadeiro, lidasse por sair dele e voltar ao caminho suave e plano, e bradasse aos que visse ao longe: “Não vos afasteis para aqui!” Hipócritas são aqueles que mentem aos que os escutam; que simulam a paz do descrer tranquilo, quando vai lá dentro o tumultuar das incertezas. Como Satanás, eles dizem que o Inferno é o Céu; dizem que a irreligiosidade tem o segredo do repouso e da ventura, quando o que ela dá é inquietação e desesperança.

Feliz a alma vulgar e rude que crê e nem sequer sabe que a dúvida existe no mundo! Está certa de que, além a morte, há vida, conhece as suas condições; conhece-as como lhas ensinaram, como conhece as condições dos corpos. Para ela, as noites não têm os pesadelos monstruosos, nem os dias a meditações febris em que o cético involuntário se debate na orla do possível, que toca por um lado nas solidões do nada, por outro na imensidade de Deus.

Mas ainda mais feliz a inteligência superior às do vulgo, aquela que a Providência destinou à missão do poeta, nos anos da infância e da juventude, antes que o bafo árido da ciência a queimasse, passando por cima dela! Nesse espírito e nessa idade, a religião não está só nos preceitos e nos dogmas; está na natureza inteira. A alegria de Deus, o aspirar das fragrâncias celestes, a toada suavíssima dos hinos dos anjos descem a ela nos raios do Sol, quando nasce e quando desaparece; tremulam no espelhar-se da Lua nas águas; misturam-se no cicio das árvores; entretecem-se com os mil gemidos da noite; vivem nas afeições domésticas e santificam o primeiro bater do coração pelo amor. Tudo então é viçoso e puro; porque a alma poética lhe empresta viço e pureza. As harmonias moldadas, na virilidade, pelas leis das línguas e das escolas são apenas um eco frouxo desses cânticos da meninice e da primeira mocidade, que se evaporam sem se escreverem, que são um oceano de delícias inefáveis, em que se embalam molemente a imaginação e o sentir do homem a quem o mundo há de chamar poeta. Nessa época da vida, ele não abstrai do real para salvar verdadeira e intacta a sua idealidade: faz mais; derrama esta, que é a seiva íntima do seu viver, pelo universo, e converte-o numa coisa formosa, santa, ideal, que o mundo está bem longe de ser.

Depois vem outra época da vida, em que a felicidade é mentida, mas ainda é felicidade, posto que já eivada de vaga inquietação, de ambições desregradas, de esperanças mesquinhas e contraditórias. São os anos que precedem e seguem imediatamente os vinte. Abrem-se ante nós os caminhos do mundo, como uma conquista. Glória de artistas, poderio, opulência, ações generosas e grandes, amor sem termo, amizade sem perfídias, vida multiplicada indefinidamente pela infinidade de fatos; que há, enfim, que não sonhemos nessa época de fervente loucura? A inocência morreu, a poesia íntima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam; os aplausos das multidões aos nossos hinos descorados, que elas ainda julgam sublimes e esplêndidos; aplausos que nos desvairam: fica-nos uma filosofia orgulhosa e insensata, que se crê profunda, uma ciência superficial, que se crê completa, pela qual dormimos tranquilos sobre a negação de todas as ideias místicas e de todas as lembranças de Deus.

Desta idade em diante é que chega o desfazer das ilusões, até das ilusões do orgulho. A poesia suave e pura da infância e da puberdade passou: passa também o íris das paixões férvidas, das ambições insaciáveis, da crença na própria energia. Começa então o pardo crepúsculo deste ceticismo, que, semelhante a herpes lentos, vai lavrando por todas as nossas opiniões e afetos e os prostra e subjuga. Desde essa época, a vida tem largas horas de tédio, em que o existir é uma carga pesada; porque nos falta alicerce em que possamos firmar-nos; porque flutuamos sobre as névoas densas do duvidar de tudo. O materialismo incrédulo já tirou das fases espirituais dos altos engenhos argumento contra a imortalidade. Com a sua lógica míope, persuadiu-se de que via as enfermidades e a decadência da alma acompanharem as enfermidades e a decadência do corpo; que via o entendimento caquético esmorecer com a decrepidez; quis que ele, na morte, ficasse perdido e anulado entre as cinzas da sepultura. Se o materialismo soubesse que a vida das sumas inteligências é a poesia e que essa vida segue a ordem inversa do desenvolvimento físico; se conhecesse que a energia íntima tem o seu apogeu nos anos débeis a infância e começa a desvanecer-se quando os órgãos se fortalecem, ele não teria achado a explicação do fenômeno nas suas tristes doutrinas. Nos destinos eternos dos homens iria encontrar a razão desse fato, que então veria à sua luz verdadeira. Os olhos da alma vão-se pouco a pouco enevoando no meio das trevas do mundo: nesta atmosfera grosseira e corrupta, ela resfolga a custo, e, com o diminuir dos alentos, diminuem-se-lhe sucessivamente os brios. Cada dia lhe desfolha um afeto, lhe discute uma crença, lhe mata uma esperança, lhe traz um desengano cruel. Entre o espírito e o mundo quebraram-se, um a um, todos os laços.

Vós credes que a mente se definha e ela apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrás do sepulcro.

Tomai-me esse octogenário tonto que foi um alto engenho: cavai no deserto do seu coração gasto e frio e arrancai-me de lá uma daquelas paixões que ardem até o último instante da existência: vibrai uma corda das que lhe davam na idade viril um som estridente: dizei-lhe: “Teu filho querido foi arrastado ao tribunal como criminoso; espera-o o suplício, se não houver uma voz eloquente que o defenda. Se ela se erguer, será salvo; e tu foste na mocidade o mais eloquente dos homens!” Dizei-lhe isto, e vereis esse engenho que credes moribundo atirar-se, como um tigre, ao meio dos juízes e achar toda a energia dos vinte e cinco anos para defender aquela vida que a natureza ligou à sua pelas harmonias misteriosas da paternidade. Se as palavras, se o órgão extenuado da linguagem não puder exprimir o pensamento daquela alma remoçada subitamente, o gesto, o olhar, os meneios substituirão a língua, e se, cansados e débeis, não bastaram à violência da ideia, o espírito despedaçará o quase cadáver e, despedindo-se da terra, provará que, se dormitava, não se extinguia e que, despertando, partia o vaso frágil que já não o podia conter.

Tal é o destino da inteligência neste breve desterro: dois dias conserva as recordações verdadeiras e puras da sua origem imortal: outros dois ilumina-se com o fogo-fátuo das paixões e esperanças: o resto deles revolve-se na luta tormentosa das ideias, dos afetos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice e a regeneração da morte.

Eu, que já vou aquém do marco onde começa o terceiro período da vida humana, a sós, às vezes, com as minhas recordações infantis, ponho-me a comparar o aspeto prosaico e triste que tem atualmente para mim o universo com as formas suaves e poéticas em que ele me aparecia envolto desses tempos dourados. É uma comparação amarga; mas a saudade que encerra consola do seu amargor.

Hoje, a Lua no crescente alevanta-se ao anoitecer de um dia sereno de Estio e estende o manto de lhama de prata sobre a face levemente crespa das águas. Os seus raios, transparecendo por entre o verde-negro das copas do arvoredo, que se balouçam sonolentas, descem trêmulos sobre o chão pardo e mosqueiam-lhe a superfície, semelhante, depois disso, a dorso de pantera. A viração tenuíssima da tarde passa e murmura um cicio quase imperceptível na folhagem. Em volta do círculo alvacento que o luar esparge no céu cintilam raras estrelas no azul do firmamento, que parece o leito recamado de safiras em que se reclina a rainha da noite.

Há quinze ou vinte anos, noite tal como esta tinha para mim um seminúmero de misteriosas harmonias, que eu não sabia explicar, mas que sabia sentir. Agora sei dizer-vos o que é a Lua, a sua luz refrata, a noite, a viração, o vulto das águas encrespadas, as estrelas e as solidões do espaço; mas o que já não sei é verter as lágrimas de inefável contentamento que, outrora, se me escoavam tépidas pelas faces, contemplando as harmonias imateriais e íntimas que vagavam pela atmosfera tranquila, como ecos longínquos de harpa angélica, rolando de astro em lastro, até se derramarem na Terra!

Dai-me uma nota só dos cânticos que eu então escutava; dar-vos-ei em troca toda a minha estúpida e inútil ciência!

Mas essa época da vida não voltará mais porque não pode retroceder uma única onda do rio impetuoso do tempo! Depois da taça do mel esgotada, resta a do absinto. Que se resigne e espere aquele que vai devorando os dias da dúvida e do desalento. Chegará a hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a da morte. A Providência foi ainda generosa conosco, consentindo-nos que, a espaços, afastemos dos lábios o cálix do fel e deixando que nesses momentos rasguem o nosso longo e tedioso crepúsculo alguns raios transitórios de luz. A memória é o instante de repouso e a saudade o clarão enorme que nos ilumina.

Recordar-se — consolar-se.


I — A ALDEIA E O PRESBITÉRIO

Uma das coisas que, nas recordações da juventude, ainda espiram para mim poesia e saudade é a imagem de um velho prior de aldeia que conheci na minha meninice. Hoje, tão bondosos, tão alegres, tão veneráveis, há-os por certo aí, e muitos: eu é que não sei conhecê-los. A auréola que então rodeava as cãs do sacerdote ancião desvaneceu-se pouco a pouco; desvaneceu-a a experiência do mundo, como tantas mil crenças e imaginações de outrora! Ele morreu já, por certo; mas, vivo que fosse, eu não sentiria ao vê-lo, ao falar-lhe, aquela espécie de alegria tímida, de confiança receosa que nesse tempo o bom do velho me inspirava. Parecia-me que, estando ao pé dele, estava mais perto de Deus, cujo valido, por assim dizer, era o padre-prior. Não sabia o sacerdote essa língua que eu cria falar-se no Céu, o latim, coisa então para mim misteriosa e santa? Não trajava, às vezes, os trajos da corte celeste, o amicto, a casula, o pluvial, com que estavam vestidos alguns vultos de anjos pintados em três ou quatro antiquíssimos quadros do presbitério? Quando, nas suas práticas, depois da missa do dia, narrava os gozos da bem-aventurança, os tormentos do Purgatório e os tratos intoleráveis do Interno, não juraria qualquer que ele já peregrinara largos anos além do sepulcro, ou que voz de cima lhe revelava tantas maravilhas e tão solenes terrores? Evidentemente, o velho clérigo estava mais perto dos degraus do trono divino que toda a outra gente e, por me servir da linguagem política, exercia em nome do Céu uma delegação na Terra; era uma espécie de missus dominicus da Providência. E, quando ele, apesar dos meus tenros anos, me escolhia para acólito, para estafar a porção de latim do missal que as rubricas inexoráveis subtraíam ao seu império, sorriam-me as esperanças, algum tanto vaidosas, de obter de Deus deferimento às minhas pretensões infantis, como costumam sorrir ao requerente à quem deputado de grande conta mostra familiaridade na presença de onipotente ministro.

Hoje, o latim do padre-prior parecer-me-ia um tanto bárbaro e, talvez, barbaríssima a sua prosódia: nas vestes sacerdotais acharia os trajos romanos do Império, atravessando, imutáveis como a Igreja, por entre as transformações da moda e do luxo; nos quadros do presbitério riria da ignorância e do mau gosto do pobre pintor; e nas descrições das venturas e dos tormentos da outra vida descobriria unicamente uma encarnação grosseira em imagens materiais das revelações profundas do espiritualismo cristão. É que nesse tempo tudo me chegava aos olhos da alma iluminado, risonho, variegado, porque tudo transparecia através de um prisma de sete cores, da inocência singela e crédula da infância, e que hoje tudo me parece, como a folha que caiu da árvore no Outono, murcho e desbotado, passando através da atmosfera nevoenta e triste da ciência e do orgulho. Então, o velho pároco afigurava-se-me mais que um homem; hoje, na escala das desigualdades humanas, provavelmente só acharia para ele um bem modesto lugar.

A aldeia em que o bom do clérigo pastoreava o seu rebanho espiritual estava assentada na falda de um monte, e pouco inferior a ela dilatava-se uma veiga, que, ao longe, lá bastante ao longe, ia bater no mar. No alto da povoação ficava o presbitério. Era a igreja, segundo hoje se me afigura (e tenho-a bem presente), daquele gosto duvidoso entre a arquitetura cristã, que expirava, e a da restauração romana, que ainda se não compreendia: era um desses templozinhos construídos no fim do reinado de D. Manuel e durante o de D. João III, de que tão grande número resta ainda pelas paróquias de Portugal e que são mais um argumento de que os nobres conquistadores da índia, donatários das terras e padroeiros das igrejas, não voltam do oriente com as mãos vazias. A devoção nesses tempos era objeto de luxo: edificar uma igreja ou uma capela equivalia a ter hoje camarote em São Carlos ou cocheiro com estrigas de linho na cabeça e chapéu triangular.

A portada da igreja, de arco tricêntrico firmado em pilares polistilos de meio relevo, era o mais claro testemunho da idade provecta do presbitério. A residência paroquial, originariamente no mesmo estilo, estava já civilizada. Uma porta retangular substituíra a antiga. Esquadriadas estavam, também, as duas janelas do sobrado, de diferentes dimensões e afastadas uma da outra, e nos seus postigos da esquerda via-se o moderno conforto das vidraças. Não quero dizer com este elogio à morada do padre-prior que a igreja tinha resistido, teimosa como velho caturra, aos progressos da civilização. Pelo contrário. Estava mais alindada ainda. Uma irmandade, ou não sei quem, que entendia na fábrica, havia pintado de ocre tudo o que era pedra, de vermelhão tudo o que era azulejo. As câmaras municipais das grandes cidades, os cônegos das colegiadas e sés ainda não passaram do ocre e uma pobre irmandade da aldeia já tinha, há vinte anos, vencido a meta a que apenas hoje chegam o município e a catedral.

O que, porém, escapou ao ocre e ao vermelhão dos mesários do burgo foram dois seculares e formosos plátanos que sombreavam o portal do presbitério. Na febre-amarela, que grassa tão furiosa pelo senso estético dos nossos magistrados populares e das nossas dignidades eclesiásticas, admira que tenha esquecido estender o benefício da caiadura gemada aos troncos rugosos e carrancudos das velhas árvores que rodeiam os edifícios ou as praças. Verdade é que todos os dias alguma desaba sob os golpes do machado. Isto é melhor. Mas porque não haveis de remoçar as que vão escapando com as lindezas e alegrias canônico-municipais?

Belos e Veneráveis eram os dois plátanos. O adro, cobriam-no todo com as suas sombras fechadas, e só pela volta da tarde, principalmente no Outono, é que algumas réstias açafroadas do Sol no Poente se estiravam por debaixo deles e lá iam bater frouxas no limiar da igreja, polido do contínuo perpassa r, e na porta de um vermelho-desbotado, onde nesse tempo começavam a alvejar os remendos brancos com que as revoluções converteram os áditos dos templos em pelourinhos eleitorais.

À entrada do adro alevantava-se uma grande cruz de madeira pintada de preto, em cuja haste mãos devotas tinham atado um ramo de flores, e este ramo, no meio do qual havia um pé de perpétuas, era a imagem das vaidades do mundo ao redor da religião do Calvário, imutável no meio delas. As outras flores tinham-nas mirrado os ardores do Estio: só restavam do morto ramilhete as imarcessíveis perpétuas.

Era num poial que servia de base à cruz, onde, àquela hora do pôr do Sol, o padre-prior vinha muitas vezes assentar-se; e ali estava tempo esquecido, ora alongando os olhos pelas solidões do mar, que lá embaixo, no fundo do extenso vale, quebrava nas rochas, ora traçando atentamente na terra, com a sua grande bengala e castão de marfim, diversas figuras, se geométricas, não o sei dizer, porque hoje não creio tanto na geometria do padre-prior como então cria nas suas terríveis revelações do outro mundo tiradas, do Speculum Vitae. O que, porém, eu sentia melhor do que hoje, sem então o saber explicar, era a suave e profunda poesia que respirava esse quadro do velho sacerdote junto do símbolo religioso, àquela luz moribunda da última hora do dia, em que uma certa saudade melancólica vem, como percussora da noite, pousar-nos sobre o coração. Não o imaginava nesse tempo, mas imagino agora por onde vaguearia a mente do velho clérigo, enquanto a bengala ia de um para outro lado, cruzando linhas tortuosas e incertas. Os últimos instantes de moribundo, os quais ele tinha adoçado com as consolações da fé; a esmola tirada da escassa côngrua para enxugar lágrimas de viúvas e de órfãos; os conselhos paternais dados à mocidade, salva assim por ele de largos dias de remorsos e amargura; os ódios convertidos em perdão entre inimigos; as dissensões domésticas pacificadas pela conciliação do pastor; todo o bem, enfim, que, por trinta ou quarenta anos, ele havia semeado na aldeia, desde as últimas casinhas de colmo que alvejavam caiadas na orla pálida dos campos até o altar do presbitério, frutificava, talvez, ante os lhos da sua alma, nesses momentos de êxtase, em rica seara de esperanças, cujos frutos entesourava no céu. Depois, a cruz hasteada junto dele lhe viria lembrar o nada das diligências que empregara, dos sacrifícios que fizera para verter algum bálsamo de ventura nas chagas dolorosas da vida; para remir da perdição as ovelhas transviadas do pobre rebanho que lhe fora confiado. A cruz negra, no seu eloquente silêncio, contava-lhe sacrifícios infinitamente mais árduos que os dele, feitos, não em proveito de uma aldeia ou de um povo, mas para remir o gênero humano. Por isso eu lhe via, às vezes, deixar pender a cara calva sobre o peito, ou tomar-lhe o rosto uma expressão singular, inexplicável nessa época para mim, mas que era o desalento que lhe gerava no espírito a desanimadora comparação das suas ações com as do Supliciado do Calvário, ao qual tomara por modelo e que jurara imitar. Muitas vezes espantava-me de, que se conservasse assim engolfado nos seus pensamentos até que o sino das ave-marias o vinha despertar; e, na minha alegria pueril, vendo-o tão triste e carrancudo, pensava comigo que o padre-prior se ia tornando com a idade, tonto e aborrido. Todavia, era que o bom do velho, nesses momentos de meditação, volvia atrás os olhos para os caminhos da sua vida, onde esperava achar alguns vestígios brilhantes de obras virtuosas; mas esses caminhos, sumidos na penumbra da Cruz, não os percebia, senão como uma nuvenzinha escura e duvidosa através da luz imortal das virtudes e dos benefícios de Cristo.

Ao tocar, porém, das ave-marias, todas aquelas imaginações desconsoladas, se ele as tinha, como hoje creio, desapareciam por um movimento habitual do espírito e do corpo; este para se erguer, aquele para orar. Sobraçada a bengala, em pé, com as mãos postas, segurando ao mesmo tempo entre elas o seu chapéu de três ventos, com a cabeça um pouco inclinada para o chão, o padre-prior murmurava em voz baixa aquela tão poética oração do despedir do dia. Os trabalhadores que, voltando das fadigas do campo, acontecia passarem por aí nessa ocasião descobriam-se também e, encostando-se ao ancinho ou à enxada, punham as mãos e rezavam, até que o reverendo, acabando os latinórios, que eles iam repetindo em vulgar, lhes dizia: “Boas noites, rapazes, vá a cobrir.” E os ganha-pães cobriam-se, respondendo: “Guarde-o Deus, padre-prior.” E partiam: e ele assentava-se outra vez a olhar para o Poente, onde o Sol, que se afundira no mar, deixava entre si e a noite, que se precipitava após ele das alturas do céu, uma barra de vermelhidão e ouro, estirando-se para um e outro lado do horizonte, como se tentasse embargar o caminho às trevas. E ali estava pensando, até que a Tia Jerônima alçava meia adufa de uma janela baixa, que dava claridade à cozinha, e o chamava para a ceia, ao que prontamente obedecia; porque cumpre advertir que o padre-prior não só respeitava à carga cerrada todas as tradições do catolicismo romano, mas também a sabedoria tradicional do povo, que, neste capítulo da ceia, reza que deve ser comida sem sol, sem luz e sem moscas, momento fugitivo do expirar do dia, que não consta deixasse jamais passar por alto a boa Tia Jerônima.

Nunca me há de esquecer aquela hora na aldeia, nem a luz crepuscular da atmosfera, nem as gelosias dos aposentos inferiores da residência paroquial, nem a santa velha da Tia Jerônima, que teria proporcionado mais um capítulo a Chateaubriand sobre a poesia das usanças cristãs, se esse ilustre escritor houvesse uma vez saboreado as filhós que ela compunha, para celebrar o Carnaval — e os seus bolos da Natividade — e a sua olha e o seu anho assado da Páscoa. Não! — Saudades de tudo isso, durante a minha vida inteira, em qualquer fortuna, no meio das mais graves preocupações, nunca hei de afastar-vos impaciente, quando vierdes, como criança travessa, baralhar-me um período de trabalhada prosa ou aleijar-me com um verso parvo uma estrofe sofrível. Vinde, meus amores antigos, que para vós esta cara não saberá arrogar-se; esta boca não terá esses monossílabos duros e gelados com que se repelem importunações de indiferentes. Vinde, e demorai-vos comigo, e palrai por uma hora, por um dia, por uma semana; que vos escutarei sempre sorrindo. E, quando for ao sol-posto, que os ouvidos da minha alma vos ouçam reproduzir vivas, harmoniosas, melancólicas as lentas badaladas das ave-marias, não, como agora as ouço as vezes, no meio do ruído confuso, áspero, estridente do povoado, mas partindo da aldeia ainda deserta dos seus moradores, rolando pela veiga, espreguiçando-se pelo prado, rumorejando pelas quebradas da encosta ou pelo pinhal do cabeço e indo morrer lá muito ao longe, nas toadas duvidosas de uma cantiga de lavadeiras, ou no tinir das esquilhas de um rebanho de ovelhas que se encaminham para o curral ao sibilar do pastor. Repeti-mas assim, puras, campestres, vibradas num ar puro e sonoro, livres por um horizonte imenso, e ter-me-eis despertado um afeto consolador, o qual valerá mais que todas as ambições, que todos os contentamentos, que todas as esperanças do mundo.

Têm-se discutido os sinos, como se discute quanto há no universo. Desde a existência objetiva ou material deste mundo até à legitimidade do chocalho pendurado ao pescoço da cabra, retouçando pelas ruas de qualquer capital, que resta ainda aí para se lhe trazerem à praça os prós e os contras? Das definições possíveis do homem uma só é verdadeira: o homem é o animal que disputa. Os sinos têm tido amigos e inimigos: e por quê? Pela mesma razão porque sobretudo há duas opiniões contraditórias. E que tudo tem duas faces diversas. O vento sul é meigo para a árvore que viceja no recosto setentrional da montanha e açoite da que vegeta no pendor oposto o norte é o suplício da primeira e grato para a segunda. Nisto está cifrada a história das contradições humanas.

Os sinos, colocados em campanários de paróquia aldeã ou de mosteiro solitário, são uma coisa poética e santa: os sinos, pendurados nas torres garridas das garridíssimas igrejas das cidades de hoje, são uma coisa estúpida e mesquinha. O sino é um instrumento acorde com as vastas harmonias das serras e dos descampados. Assim como o órgão foi feito para reboar pelas arcarias profundas de uma catedral gótica, para vibrar na atmosfera mal iluminada pelas frestas estreitas e ogivas, do mesmo modo o sino foi perfilhado pelo cristianismo para convocar os seus humildes sectários ocupados nos trabalhos campestres. Quando se associou o sino do culto?

Ignoramo-lo: ignoramo-lo porque foi a religião serva e perseguida que o santificou; e, quando os poderosos da Terra a aceitaram para si, então entrou nele nas cidades soberbas. Lá, converteu-se numa coisa insignificante e impertinente. É mais um ruído intolerável para juntar aos outros ruídos discordes que troam por essas ruas e praças. O sino, tornado cortesão e fidalgo, é semelhante ao órgão trazido para o aposento do baile, ou, o que vale quase o mesmo, para essas salas ao divino, essas igrejas sem cãs, bonitas, vaidosas, douradinhas, que insensatos edificam para as admirações de parvos.

E com estas digressões esquecemo-nos do padre-prior. Não importa. Deixá-lo cear em paz e rezar o breviário. Eram estas, entre outras, duas fases graves e sérias de todos os seus dias. Depois, enquanto a velha Jerônima punha em ordem a casa, ele pegava num livro da pequena estante que lhe ficava à cabeceira e lia ou uma lenda pia do Flos Sanctorum de Rosário ou um trato daquelas grandes histórias de Fr. Bernardo de Brito, até que o sono tranquilo de boa e sã consciência, apertando-lhe com os dedos rosados as pálpebras, o entregava aos sonhos plácidos que só a alvorada vinha interromper, quando perigo iminente de alguma das suas ovelhas o não obrigava a erguer-se alta noite, ao som do resmungar malsofrido e, até certo ponto, ímpio da Tia Jerônima. No horizonte limpo e sereno destas duas vidas inocentes, destes Filémon e Báucis celibatários, que, amparados um ao outro, iam peregrinando contentes para o sepulcro, havia um ponto negro e triste. O rendimento da paróquia não consentia que o padre-prior possuísse essa espécie de ilota in sacris, de servo de gleba sacerdotal, chamado o padre-cura. As ventanias, as chuvas, as noitadas através das serras revertiam inteiramente, como a côngrua e os benesses, em benefício, se não do corpo, ao menos da alma do reverendo prior.

A sua côngrua era maravilhosamente estica: o grosso dos dízimos da paróquia jogava-os à risca todas as noites em tertúlias um digno Comendador não sei de que ordem. Ai, que a extinção dos dízimos foi a morte da religião!


II — NOITADAS PAROQUIAIS

A vida do velho prior passava, na verdade, dura e trabalhosa! Como todas as coisas deste mundo, o egoísmo da Tia Jerônima não era acabado e completo ou, para falarmos em estilo de filosofia fidalga, não era absoluto. O limitado e o imperfeito são o sinal que o Criador estampou na cara do homem e na face da Terra para nos recordar a todo o instante a nossa origem; é a barreira que ele alevantou diante deste grande mistério de energia e de audácia chamado a inteligência. Sabedoria, força, paixões, afetos, tudo tem um horizonte comensurável; horizonte para as virtudes, como para a dor. O espírito mede e abrange o que há mais vasto e profundo, os ermos, os mares, o coração humano; porque ao cabo disso tudo está o finito. Imensa, eterna, absoluta só há uma ideia, que está fora do universo. Esta é a ideia de Deus.

Por isso, grande é tão somente Deus!

Mas dizia eu que o egoísmo da Tia Jerônima era incompleto: digo mais; era incompletíssimo. Quando o sacristão vinha, alta noite, quebrar o dormir risonho e variamente ressonado do padre-prior; quando à voz roufenha do ostiário aldeão, despertando o pastor para ir levar as consolações extremas à ovelha moribunda e tirá-la já, porventura, dos dentes e garras do cão tinhoso, se juntava o trovejar ao longe da tempestade, o fustigar da chuva nas vidraças progressivas das meias janelas e o ramalhar da ventania nos dois plátanos do adro, era sem dúvida que o resmungar da Tia Jerônima, aparecendo da banda da sua pocilga, com a candeia mortiça na mão e as roupinhas vermelhas do envés, tinha o que quer que fosse repugnante e vil. Pensava, acaso, a boa da velha que a morte não seria tão descortês que negasse ao espírito do pobre moribundo o tempo necessário para poder, ao abandonar o corpo, subir, como chamazinha tênue, e galgar para o céu sobre um raio do sol-nascente? Pode ser que sim. Não seria, porém, antes, que ela preferisse o deixar frigir por alguns séculos nas caldeiras do Purgatório aquela pobre alma cristã, largando a sua veste mortal sem os últimos sacramentos, à necessidade de erguer-se por noite fria e tempestuosa, para tomar nos ombros uma parte da cruz do ministério paroquial? Também isto pode ser. O que se passava no abismo da sua consciência coisa era que ela não revelava a ninguém; mas, em todo o caso, era um pensamento egoísta.

Todavia, é preciso confessar que com ele se misturava um sentimento puro e nobre: dizia-o esse cuidado pressuroso com que a Tia Jerônima trazia as botas de cor térrea, o bérnio de saragoça, o capote de barregana, o chapeirão oleado e a aguardente de ginjas, sem um copo da qual o prior não ousaria transpor o limiar da porta e investir com as fúrias de noite procelosa: diziam-no a atenção com que mirava se ele ia agasalhado e as mil vezes repetidas ponderações higiênicas que lhe fazia com admirável volubilidade de língua. A afeição da santa velha mostrava-se em tudo isso viva e sincera; e o seu resmonear, que no meio das idas e das voltas e do perguntar e do responder, ia rareando e abatendo, como o assobio do furacão pelo vale, perdia gradualmente a expressão de egoísmo e convertia-se pouco a pouco na de um pensamento moral.

E o padre-prior calado! — Calado enfiava as botas; envergava o gabinardo; cobria-se com o capote; punha o amplo sombreiro; enchia um copinho do excelente cordial que a boa da ama lhe havia posto diante; virava-o de um golpe; fazia uma visagem, fechando os olhos com força e estendendo os beiços; dava um estalido com a língua no céu da boca; exprimia o íntimo conforto que nele gerara o etéreo licor com um brrahhh prolongado; estendia a pequena taça, cheia de novo, ao sacristão, que, mestre nos estilos da cortesia, se curvava, formando com o corpo um ângulo obtuso de noventa e cinco graus, desprezadas as frações, e arqueando o braço, para levar o copo à boca sequiosa, como se curva e arqueia um peralvilho de guedelhas saint-simonianas e miolos de água chilra, ao conduzir, em sala de baile, a deusa dos seus afetos de vinte e quatro horas ao meio do turbilhão doido e (perdoe-se-nos a blasfêmia) um tanto parvo das valsas e contradanças.

Depois, duas palavras mágicas saíam da boca do reverendo pastor: “Até logo!” O seu efeito era instantâneo: o sacristão, pegando numa lanterna, com as chaves da igreja na mão, encaminhava-se para o adro, seguido do padre-prior; a Tia Jerônima fechava a porta após eles; e o tentador, como se estivesse esperando por esse momento, travava-lhe novamente do espírito, e o resmoninhar da impaciência recomeçava em breve, acompanhado do ranger do linho na roca, e do espirrar da candeia a espaços, e do respiro asmático do nédio gato do presbitério, que, enroscado na lareira, abria de vez em quando os olhos amortecidos e cerrava-os logo com filosófica indiferença, enquanto a Tia Jerônima esperava pelo seu velho amo e se lhe apertava o coração, sentindo o temporal que passava lá fora, e lembrando-se de que o enfermo poderia ter guardado para hora mais decente e cômoda a agonia do passamento.

E pela serra fora, caminho de aldeia remoto, vai o velho prior: adiante o sacristão com a lanterna e a âmbula da extrema-unção e ele atrás com o cibório. As poças de água refletem essa débil claridade que as ilumina e fazem um contínuo plach, plach, debaixo dos pés dos dois caminhantes, cujo passo apressam as cordas de chuva batida pelos furacões do sudoeste. Os pinheiros, balouçando-se, gemem tristemente e os enxurros, estrepitando pelos córregos, tiram com o pinhal uma toada soturna. No céu profundamente negro não aparece uma estrela: na terra, ao longe, bem ao longe, não se descortina uma luz. A natureza debate-se consigo mesma: tudo dorme, entretanto, nos casais e na aldeia, salvo o velho pároco e a família daquele que em trances mortais espera o representante de Cristo, que lhe traz as derradeiras consolações e esperanças. Entre a filantropia humana e as agonias extremas dos pequenos e humildes a noite e a tempestade ergueram barreira quase insuperável: esta barreira desaparece, porém, diante da caridade que a todos nos ensina o Evangelho e que ao pároco impõem, como dever imprescritível, a sua missão sacerdotal e o seu caráter de pai dos pobres e afligidos.

A esta mesma hora, em que o velho prior assim vagueava por sendas alpestres exposto às inclemências de noite invernosa, talvez em aposento bem resguardado, no fim de ceia opípara, entre as taças cheias de vinhos generosos, no meio de mulheres formosas e voluptuárias, embriagado em todos os deleites dos sentidos, algum famoso espírito forte cerzia remendos das páginas soporíferas de Holbach ou de Diderot e dissertava profundamente sobre a mandriice, egoísmo e cobiça do clero, ou carpia a superstição do povo, que, para ser completamente feliz, de nada mais precisa do que abandonar as crenças do cristianismo e de amaldiçoar as esperanças de Deus, o conforto único da sua vida de miséria, de trabalho e de amargura. E, naturalmente, os neófitos daquela triste filosofia extasiavam-se em redor do sábio filantropo, que, impando de iguarias delicadas, de vinhos custosos e de grossa ciência, só lamentava a ignorância daqueles a quem muitas vezes faltava então, falta hoje e faltará no futuro um bocado de pão negro para matar a fome; extasiavam-se ali diante da sensualidade e bruteza de um insensato vanglorioso, enquanto a virtude do velho clérigo, exercitada nos desvios dos montes e no silêncio da noite, não tinha por testemunhas senão um céu úmido e cerrado e o vulto impetuoso e bramidor da ventania, mas que, em vez das lisonjarias de parvos, tinha para o aplaudir a voz sincera, consoladora e santa da própria consciência.

Havia, porém, no fim de tudo, uma diferença entre o homem do Evangelho e o da falsa ciência. Era o sistema das compensações. O padre-prior, depois de cumprir com o seu dever, voltava ao presbitério tranquilamente: tirava o capote alagado, despia o gabinardo felpudo sacudia a uma distância razoável as ponderosas botas e: enfiando-se entre os grosseiros lençóis, atava o fio do sono no ponto em que o deixara e, embalado brandamente por sonhos aprazíveis, só acordava Sol nado e alto, ao bradar da Tia Jerônima e ao cheiro da açorda fumegante almoço que, como tudo o que era consagrado pelos séculos e pela tradição, ele profundamente respeitava.

E o nosso filósofo? O nosso filósofo, recolhendo-se alta noite, ia todo o caminho provando a si mesmo que não há Diabos no mundo, nem almas, nem, talvez, Deus; mas sentindo arrepiarem-se-lhe os cabelos ao ver dançar a fosforescência de algum marnel, rezando o credo em cruz ao passar por algum cemitério, benzendo-se ao ouvir piar algum mocho. E depois de se deitar e adormecer sonhava... Em quê? Nas combinações infinitas da matéria eterna de que deve, segundo as boas doutrinas, ter rebentado o universo? Não! Sonhava com as pernas do Inferno e, ao acordar pela manhã com defluxo, pedia confissão e sacramentos.

Já lá vão vinte anos! Bom tempo era esse, ao menos para mim, que ainda não sabia da existência do animal chamado filósofo, classificado entre os rodentia, pelo medroso e daninho. Em vinte anos, que voltas tem dado o mundo! Aquela espécie vai-se acabando de todo. Autores de comédias, apressai-vos!

Antes que se perca o tipo, levai o incrédulo ostentoso à cena. Dai-nos algumas noites de rir doido e inextinguível.

Os dias do padre-prior corriam assim placidamente para o seu viver íntimo, posto que o duro mister de pároco lhe entenebrecesse muitas vezes os horizontes da vida material. E que importava, se todos na aldeia lhe queriam bem; se todos o acatavam, como a suma bondade e, o que não era menos, como a suma inteligência da paróquia? Até o barbeiro, o próprio barbeiro, homem grave e entendido em materiais de eloquência sagrada, não constava houvesse jamais torcido o nariz às práticas e aos sermões do padre-prior, que ele, com a mão sobre a consciência, punha acima dos melhores de Fr. Timóteo, um fradalhão arrábido, coisa brava em gritarias ao divino, que, por via de regra, se incumbia das domingas de quaresma naquela freguesia e nas circunvizinhas, com aceitação e aplauso universal do auditório, mas cuja fama era ofuscada pelos períodos singelos do velho sacerdote, repassados de unção e daquela eloquência de missionário, que, apesar de rude, lá vai fazer vibrar o coração do povo, afinado pela crença viva, como a harmonia que se tira das cordas de dois instrumentos acordes.

Agora por isso, o que será feito de, Fr. Timóteo?! Era naquele tempo um frade guapo e alentado! O que será feito dele? Se ainda vive, tiraram-lhe o burel e a corda de esparto, o seu capital; venderam-lhe o convento, o seu tonel de Diógenes; proibiram-lhe o capuz e as sandálias, o seu direito inauferível de andar trajado como lhe aprouvesse; e mandaram-no, desarmado de tudo isso, pedir para o mendigo a esmola que se dava ao burel, ao esparto, ao convento, ao capuz e às sandálias. Bom passaporte para Fr. Timóteo transitar pela vala plebeia do cemitério nos braços mórbidos e suavíssimos da fome! Foi um progresso de civilização, que se completou, pelo lado moral, com o aumento das lotarias, das casas de câmbio e das traduções de novelas e dramas franceses. Bem-aventurada a tão esperta nação que assim compreende o progresso!

Duas coisas, porém, mais que as práticas e os sermões, serviam para engrandecer e glorificar o padre-prior, não só diante dos homens, mas também diante de Deus. Era a primeira o incansável zelo com que se aplicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a concórdia doméstica, a pregar o trabalho, a guerrear a embriaguez e, sobretudo, a santificar pelo casamento as afeições ilícitas: era a segunda o fervor modesto e o inocente luxo com que procurava celebrar as festas religiosas, principalmente a de São Pantaleão, orago da freguesia e de quem, tanto os aldeões, como o velho presbítero, criam afincadamente possuir o metacarpo da mão direita, o qual devia ser de outro santo ou não santo, se acreditarmos (eu cá, pela minha parte, acredito) nos paroquianos da Sé do Porto, que se gabam de ter debaixo de chave São Pantaleão in totum, sem lhe faltar dedo de pé, nem de mão, quanto mais um metacarpo inteiro.


III — UMA ESCORREGADELA

A propósito do que o padre-prior era de casamenteiro, ainda me lembra uma velha viúva, a Sr. Perpétua Rosa (Deus lhe fale na alma!), que morava ao cabo do lugar, numa barraquinha à beira do rio, muito caiada, com o seu rodapé de vermelhão, e sombreada por cinco ou seis choupos que nasciam da borda da água. Tinha ela (a velha, não a barraquinha) uma filha, formosa rapariga, chamada Bernardina. Era uma das leiteiras mais desenxovalhadas de que se gabavam os arredores de Lisboa: bonita, que não havia mais dizer: alva como toalha de freira: airosa como pinheirinho de quatro anos. Uns poucos de rapazes da aldeia andavam doidos por ela. Nas noites dos domingos, em que havia dança e viola na, casa da brincadeira, a Tia Jerônima, que era capaz de espreitar este mundo e o outro, mirando da sua rótula o que se passava à entrada da rústica sala do baile, pouco distante do presbitério, notava que, apenas a Bernardina aparecia, os rapazes entravam após ela, com muito mais fúria e pressa do que pela manhã tinham corrido para a igreja, ao último toque da missa do dia. Antes disso, já a boa da velha tinha reparado no modo como eles se encostavam aos cajados para lados opostos, em frente uns dos outros, nos motejos do cantar ao desafio, no por dos barretes à banda, nos olhares que mutuamente se lançavam, no pegarem em seixos e atirarem-nos a grande distância, a modo de competência, sem dizerem palavra, como se cada um quisesse mostrar aos seus rivais a robustez do próprio braço. Disto tudo tirava a Tia Jerônima agouro de muita pancadaria — “por amor daquela delambida —, dizia a ama do prior nas suas caridosas murmurações — que anda toda arrebicada por balharotas, enquanto a pobre mãe moureja todo o santo dia, ao sol e à neve, naquele rio, para ganhar um bocado de pão, sem vergonha da cara. Havia de ser comigo!”

E o mais é que a Tia Jerônima não se enganava nas suas previsões. Chegou véspera de Reis: houve à noite brincadeira ou baile extraordinário: passou-se aí tudo na melhor ordem: riu-se, tocou-se viola, dançou-se, cantou-se ao desafio e cada qual se recolheu a esperar entre os lençóis os santos Reis Magnos, designação popular dos Magos do Oriente, cuja vinda a Belém se memora na Epifania.

Houve, porém, nessa noite um saloio mais cortês, que esperou vestido e ao relento, no caminho da serra, a vinda dos três santos personagens. Foi o Manuel da Ventosa, estendido com uma tremebunda e magnífica maçada, de que esteve ido, a ponto de dar ao padre-prior uma daquelas noitadas que suscitavam a cólera da Tia Jerônima e de que já acima fiz honrosa e específica menção.

O Manuel da Ventosa era filho único de um moleiro ricaço, chamado Bartolomeu, velho honrado, mas avarento como seiscentos Santanases. Teve a ventura (o rapaz entende-se) de cair em graça à Bernardina. Amoricos daqui, amoricos dacolá; janela na cara a um, respostas tortas a outros; segredar e rir de vizinhos, raivas de desprezados: soma total — zás, uma sova mestra no Manuel da Ventosa, por ter tido a negregada dita de merecer a preferência daquela que era o enlevo de todos os corações.

Mas enganaram-se. O amor redobrou com o sacrifício; os desprezos cresceram com a sede de vingança. O que começara por passatempo converteu-se em paixão violenta: um fogo íntimo devorava a alma de Bernardina e desbotava-lhe as faces dantes tão frescas e rosadas como de um serafim da peanha da Senhora da Conceição, obra de escultor insigne. No Manuel da Ventosa, isso não falemos: quando melhorou da doença, andava entre parvo e abstrato: atribuía-o o licenciado dos sítios a depressão cerebral produzida por alguma ripada nas vértebras; mas, se existia depressão de cérebro, outra era a sua origem. Certa mulher de virtude que havia na aldeia jurava e tresjurava que o moço moleiro tinha a espinhela caída. Histórias. Eu, apesar de ser então uma criança, sabia bem onde batia o ponto; por isso nunca fui para aí.

Por encurtar razões: os dois amavam-se como loucos. As pessoas desinteressadas achavam-nos um par completo; e com bom fundamento: o Manuel da Ventosa era um galhardo mancebo, único herdeiro de ginja abastado, e Bernardina uma rapariga honesta. As beatas da aldeia, às quais, conforme a direito, incumbia pôr ao soalheiro a vida privada de cada uma, no capítulo de honra nunca se tinham atrevido a ir devassar a barraquinha de Perpétua Rosa. Podia a Sra. Perpétua Rosa gabar-se, dessa! E, de feito, muitas vezes, metida no rio até aos joelhos, em discussões acaloradas com as suas ilustres amigas, as outras lavadeiras pelo círculo de Lisboa, ouvi-a emprazá-las para que formulassem precisamente, certas interpelações infundadas, rejeitando com desprezo alguns remoques bernardos relativos a Bernardina e apelando para a opinião do País, representada pelos seus órgãos, as beatas do soalheiro.

Mas, se os dois se amavam com tanto extremo e eram feitos e talhados para puxarem o mesmo carro matrimonial, porque não iam pedir ao padre-prior o conjugo vos? Aí é que certo animal torcia certa parte do corpo que eu e o leitor sabemos. Por não terem pedido esclarecimentos sobre o fato é que as lavadeiras faziam declarações vagas.

Eis o caso: o Bartolomeu da Ventosa era rico e avaro; mas bestialmente avaro: Perpétua Rosa, pobre, pobríssima. Por mal de pecados, fora ela antigamente lavadeira do casal do moinho, ou antes dos moinhos, porque, para a exação histórica, deve advertir-se que o moleiro possuía dois. Uma vez que levara grande porção de roupa tinha perdido três sacas velhas e rotas. Bartolomeu, quando tal soube, quis morrer. “Juro por esta”, dizia ele, esbravejando e beijando os dois dedos índices cruzados sobre a boca, “juro que Perpétua Rosa me há de pagar as minhas três sacas novas em folha, que me perdeu, a desalmada!” Mas nem novas, nem velhas; porque a verdade era que ela não tinha com que as pagasse. Forçado foi, portanto, ao moleiro fartar a vingança com ordenar-lhe que não lhe tornasse a rapar os pés à porta. Desde esse fatal dia, nunca mais Bartolomeu da Ventosa pôde encarar com a lavadeira: o seu ódio vivia envolto e aquecido na imagem das três sacas gravadas naquele coração de avarento. Assim, para ele seria coisa monstruosa e abominável só o imaginar a possibilidade do seu filho Manuel casar com Bernardina, a quem a pobreza fora de sobra para impedimento dirimente, quanto o mais ser filha de semelhante mãe. Tal era a dificuldade insuperável que se opunha à união dos dois amantes.

E os meses iam passando e as murmurações crescendo e saltando já das lavadeiras para as beatas. Tinham visto mais de uma vez (dizia-se: valha a verdade) o moço moleiro rondando a desoras a barraquinha da beira do rio. Havia também quem dissesse que, nas madrugadas de alguns domingos, quando a Sra. Perpétua Rosa saía para a missa das almas, se enxergava ao lusco-fusco um vulto que, cosendo-se com os choupos, se aproximava da porta de Bernardina e... e et etecetera. Era muito ver! Mas a coisa ia correndo e, no fim de contas, quem ganhava com essas histórias eram as línguas dos maldizentes, que se refocilavam na palangana da murmuração, e o Diabo, que se lambia para, por estas e por outras, os catrafilar ao seu tempo.

Veio a Quaresma: santa quadra; mas que, por isso mesmo, e, às vezes, boa demais. Desobriga vai, desobriga vem, sabe-se muita coisa. O padre-prior andava já com a pedra no sapato; porque ele não era cego, nem mouco. O meu dito, meu feito. Certo dia (por sinal que era uma sexta-feira), quando o sacristão veio abrir a porta da igreja, estavam já no adro, à espera, Perpétua Rosa e Bernardina para se confessarem. Não tardou o prior. Avisou-se a mãe: ajoelhou a filha: persignou-se, benzeu-se, disse mea culpa e começou a sua confissão.

Se isto fosse uma história de polpa, cortesã e culta, viria neste ponto o casus foederis de eu tomar a postura trágica a Ia moda, carregando as sobrancelhas e dizendo em tom soturno e lento: “O que aí se passou entre o venerável ancião e a donzela ninguém o soube!-!-!-! Mistério!-!-!-! Acontecimento terrível e fatal!-!-! As lágrimas ardentes do velho caíram sobre a cabeça da infeliz ajoelhada aos seus pés, cujo futuro (não o dos pés, mas o da infeliz) era de maldição!-!-!-!” Limitada, porém, a minha narrativa à chá e plebeia recordação de um pobre pároco de aldeia, refletirei, em suma, que me não é lícito revelar o segredo do confessionário. Os sigilistas já deram que fazer ao marquês de Pombal, cuja consciência, como todos sabem, era delicadíssima em matérias de ortodoxia católica e em tudo. Calo-me porque não quero cair no erro que ele condenou. Direi só que foi muito demorada a confissão de Bernardina e que, ao alevantar-se de ante os pés do prior, ela trazia os olhos como punhos: e digo-o, porque o viram os circunstantes, a saber, o sacristão e a Sra. Perpétua Rosa, que devotamente ia descabeçando a penitência enquanto a filha se desobrigava.

Ao sol-posto desse mesmo dia, o prior espairecia a vista pela veiga coberta de verdura, assentado no cruzeiro, segundo o seu costume. A brisa da tarde era fria e aguda, porque a Primavera começava apenas; mas o velho pároco parecia não a sentir, embebido em pensamentos; e, tão fundas iam estas que, em vez de traçar na terra com a bengala as usuais figuras geométricas ou antigeométricas, conservava-a Imóvel e perpendicular, com as mãos cruzadas sobre o castão, firmando a barba em cima. Conhecia-se no olhar e no mexer trêmulo dos beiços que algum grande cuidado o inquietava. E tanto assim que nem reparou nos três sinais das ave-marias, deixando-se ficar assentado e, até, oh profanação! com o chapéu na cabeça. Felizmente não passava ninguém naquele momento que pudesse notar a involuntária irreverência do distraído pastor.

Mas um vulto assomou ao longe e os olhos do velho brilharam, como animados por vida nova. Quem quer que era, descia do monte e vinha para a banda do rio. O caminho passava perto do adro: o prior ergueu-se, estendendo a mão e brandindo a bengala na direção do vulto.

“Ó Manuel! psio, Manuel! chega à fala! Ó rapaz!”

O filho do moleiro (porque era ele) hesitou um pouco. Alguma coisa lhe roía na consciência. Mas, vendo o prior em pé, com ar de quem estava resolvido a ir atravessar-se-lhe diante, cortou para ele, com o barrete azul e vermelho na mão.

“Boas-tardes, padre-prior: quer alguma coisa?”

“Quero que você chegue aqui, porque temos de falar.”

O tom com que estas palavras foram proferidas e, mais que tudo, aquele você fizeram estremecer o Manuel da Ventosa. O prior tratava todos por tu e o você na boca dele era presságio infalível de temporal.

O rapaz parou diante do velho, com os olhos cravados no chão, torcendo e destorcendo a orla do barrete que tinha entre as mãos. O padre-prior mediu-o de alto a baixo e começou ex abrupto:

“Então que histórias são estas da Bernardina, sô velhaco da conta benta? Sabe o que fez, grandessíssimo tratante? Aonde foi você aprender isso? (Esta pergunta era asnática.) E a doutrina que eu lhe ensinei em pequeno? De que têm servido os exemplos de modéstia e honra que lhe dá seu pai? De ser um vadio, um sedutor, um... Deixe estar: a cadeia não se fez para as aranhas e el-rei nosso senhor (o bom do pároco puxava em política para a escola histórica) ainda não mandou queimar a nau de viagem...”

“Eu padre-prior... como lhe ia dizendo”, interrompeu atarantado o saloio, coçando na cabeça e procurando atar o fio das suas ideias inteiramente confundidas.

“Cale-se; não me responda”, prosseguiu o velho pároco, achando, talvez, pouco fazer cinco perguntas para ouvir uma resposta. “Diga-me: que tenções eram as suas enganando uma rapariga honesta?”

“Eu...”

“Não me replique; já lho disse. Lembre-se que é o seu pastor que lhe fala. Aí está porque você ainda não o veio desobrigar-se; pensava que, por ela ser miserável e a sua mãe uma triste viúva, não tinham ninguém neste mundo? Enganou-se. Têm-me a mim. Saiba que, a poder que eu possa, há de ir bater com o costado na Índia ou casar com a Bernardina.”

Aqui, o pobre rapaz atirou-se de joelhos a chorar aos pés do velho e exclamou, soluçando:

“E é isso o que eu quero!... Juro-o por aquela árvore da bela cruz que ali está...”

“Vera cruz, salvage! vera cruz!”, interrompeu o prior, visivelmente abrandado com o pranto, humilde e declaração categórica do moço moleiro.

“Mas como eu ia dizendo”, prosseguiu este, “por mor daquela diabrura das sacas, meu pai não pode tragar a Sra. Perpétua Rosa. Se lhe falasse em tal, fazia-me os ossos tão miúdos como a picadura da mó. Se a Bernardiria tivesse dote, ainda, talvez ele consentisse... Mas sem isto; bem lhe sabe o gênio. Se o padre-prior pudesse adivinhar o que me tenho ralado, havia de ter dó de mim.

Não como, não durmo, ando doido! Não basta a maçada que gramei... Há! há! há!”

Chorava em berreiro, e o choro não o deixava continuar. As lágrimas começaram também a bailar nos olhos do prior, que ficou por alguns momentos, pensativo.

“Levanta-te, rapaz dos meus pecados”, disse ele por fim, puxando pelo braço do moleiro.

“Vamos; confessa a verdade; estás arrependido do que fizeste?”

“Estou, sim, senhor! Há! há!”

Nesta parte, apesar do choro e dos soluços, parece-me que o saloio mentia.

“Prometes, casar com Bernardina, se o teu pai consentir?”

“Prometo, sim, senhor! Há!”

“Ora, pois, sossega e não chores. Deixa o caso pela minha conta. Volte para casa e não me torne a rondar pela beira do rio. Entende? Olhe que!...”

O prior estendeu a bengala para o lado dos moinhos, que assobiavam lá no alto, e Manuel da Ventosa voltou cabisbaixo e a passos lentos pelo caminho por onde viera. Sentia confusamente que se aproximava a crise mais temerosa da sua vida.

Então o padre-prior assentou-se outra vez no poial do cruzeiro e recaiu em profunda meditação. Depois de um bom quarto de hora pôs-se em pé e encaminhou-se para o presbitério. Tinha anoitecido. De memória de homens, nunca ceara tão tarde!

E, andando, o velho sacerdote repetia aquelas palavras do livro de Jó, onde, entre parênteses, há mais filosofia que num aduar inteiro de filósofos:

Nudus egressus sum de utero matris meae, et nudus revertar illuc.

O porque o dizia, bem o sabia ele! Ceou sem dar palavra: rezou o breviário:
deitou-se, e apagou o candeeiro. Contra o costume, Fr. Bernardo de Brito e Fr. Diogo do Rosário ficaram aquele serão na estante. A ama sentiu-o assoar-se, tomar tabaco e escarrar até muito tarde. Coisa rara! Sinal evidente de que tinha negócio de vulto, que lhe embargava o dormir!

Pior foi pela manhã. Apenas luziu o buraco, o padre-prior saltou da cama; calçou os sapatos engraxados; vestiu a loba nova; pediu o chapéu de três ventos, a bengala de castão de prata e os óculos fixos, que só punha em dias de missa cantada, e disse à ama que se aviasse com o almoço, porque tinha de sair cedo.

Enquanto a Tia Jerônima, para maior brevidade, fazia umas papas de milho, o prior abriu um contador enorme, destes que os nossos grandes amigos ingleses nos vão agora levando em lugar de vinho do Porto, tirou para fora uma folha de papel almaço e bradou:

“Jerônima! Ó Jerônima!”

A velha chegou ao corredor da cozinha, com o abano na mão.

“Estão quase feitas”, disse ela. “Tenha paciência um instantinho.”

“Não é isso, mulher”, replicou o prior. “Ouve cá: vai ao forro (Ia escada e traz-me aquilo.”

“Isso, eu lá ponho. Mas, com a sua licença, de onde veio maquia grossa? Ontem não houve batizado nem enterro...”

E a Tia Jerônima estendia a mão esquerda, coberta coma ponta do avental, para não sujar a maquia de que falava, e, ao mesmo tempo, volvia olhos ávidos, ora para o bufete, ora para o prior.

“Qual carapuça!”, replicou ele, fazendo-se vermelho. “Tira-se; não se põe. Faça o que lhe digo e dê ao Demo o que sabe.”

A ama empalideceu. As palavras tira-se; não se põe eram de ruim agoiro; mas vendo já o padre-prior azedo, calou-se e obedeceu.

“Dali a pouco”, o velho pároco começava a tirar de um pé-de-meia uma, duas, três peças de ouro; foi tirando até setenta; restavam apenas obra de uma dúzia delas.

“Basta”, rosnou o prior. “Pode ocorrer uma doença. Então, Jerônima, vêm essas papas?!”

E, dizendo isto, embrulhava muito bem as setenta peças na folha de papel que tinha sobre o bufete e metia-as na algibeira da loba.

“Guarde isso, Jerônima “, disse ele à ama, que entrava com as papas. E empurrou pela mesa fora o exangue pé-de-meia. A ama, ao ver aquela horrorosa sangria, esteve a ponto de largar a frigideira no chão e de deixar o bom do padre sem almoço.

Quando voltou para a cozinha, ouviu-a o prior soluçar.

“Nudus egressus sum de utero matris meae, et nudus revertar illuc.”

Murmurando esta profunda sentença da Bíblia, o reverendo pároco saiu pela porta fora. A ama, vendo-o sair, andava como pasmada.

Nestas idas e voltas havia nascido o Sol. O Bartolomeu da Ventosa, afanado com a sua lida, em pé à porta de um dos moinhos, bracejava, ralhava, praguejava como possesso. Os brutos dos moços tinham-lhe quebrado já duas cordas ao enquerir as cargas de uma récua de machos pimpões presa à argola do moinho.

De repente viu um castão de bengala sair-lhe por cima do ombro. Voltou-se: era o prior.

“Olé, vossa senhoria por aqui a estas horas?!... Psio, o Zé Dorna, olha o rabicho daquele macho!... Grande novidade, padre-prior! grande novidade!... Raios te partam! Que tal está o filho do Diabo?!”

Estas duas últimas jaculatórias eram acompanhadas de dois reverendíssimos pontapés na barriga de uma das carruagens, que já estava carregada e que parecia achar mais prudente deitar-se enquanto as outras se aviavam.

O moleiro dava assim a modo de umas lembranças de Napoleão ditando ao mesmo tempo a dois secretários.

“Falaste, Bartolomeu!”, replicou o prior. “Novidade e grande! Há quarenta anos que sou pároco desta freguesia e é a primeira vez que tal me sucede. É negócio intrincado e quero ouvir o teu conselho, porque tens caixa para as coisas. Rapazes”, acrescentou, dirigindo-se aos moços do moinho, “safa daqui, que tenho que dizer ao patrão em particular.”

“Rua!”, gritou o moleiro, correndo com força ambas as mãos pelo colete e pelos calções, donde saiu um nevoeiro de farinha. “Entre vossenhoria.”

O prior entrou e foi assentar-se numa tripeça que estava a um canto. Bartolomeu assentou-se sobre um saco de trigo, em frente dele. Os dois velhos mediram-se com os olhos por momentos, como se cada um deles tentasse ler no rosto do outro os pensamentos que lhe vagavam tia alma. A primeira ideia que ocorreu ao moleiro foi a de alguma festa que o pároco pretendia fazer e para que lhe vinha pedir dinheiro. Batia-lhe o coração com violência e já imaginava trinta mentiras para evitar essa calamidade.

“Homem”, disse por fim o prior, “tenho na minha mão uma soma avultada; mais de quinhentos mil réis (o moleiro estendeu o pescoço): pertencem a um devoto, que os quer dar em dote a uma rapariga pobre desta freguesia. Encarreguei-me do negócio e deitei as minhas linhas para dar no vinte; mas temo não acertar e venho bater contigo. És honrado, meu Bartolomeu, posto que um tanto sovina: falo-te com o coração nas mãos, e...”

“Isso é o que dizem por aí essas línguas perversas”, interrompeu o moleiro, fazendo-se vermelho de cólera; “essas mandrionas do soalheiro, porque não lhes meto no bandulho o meu remédio. Os diabos me levem...”

“Tá, tá!”, acudiu o prior. “Ajustaremos contas na desobriga. Vamos agora ao que serve. Sem refolhos: a quem te parece que demos este dote? Parafusa lá.”

O moleiro pôs-se a pensar, alevantando os olhos para o teto, estendendo e revirando a mandíbula inferior e batendo de vez em quando na testa.

“Nada... a Genoveva da Teresa não”, disse por fim...”Tal mãe, tal filha. Aquela está arrumada.”

“Nem pensar nisso é bom”, retrucou o prior. “Libera nos Domine. Anda, vê se atinas.”

“A Clara da Fonte também não”...

“Hum!”, rosnou o clérigo, abanando a cabeça.

“A Catarina Carriça menos. Hein?”

“Tó carapuça! Aí vai já! Fundia-me o dote em menos de um ano com tafularias tolas. Adiante.”

O leitor pode prever que o Bartolomeu da Ventosa e o seu pároco estavam no caso de duas linhas paralelas, que, prolongando-se indefinidamente, nunca podem encontrar-se: o pensamento do prior dirigia-se a Bernardina, e o moleiro já tinha afastado por três vezes do espírito essa lembrança, como ideia importuna.

“Eu”, disse ele finalmente, coçando na cabeça, “tinha cá uma ideia... mas não sei... Não digo nada... Acabou-se.”

Desembucha lá, homem! Foi para te ouvir que vim aqui.”

“Então sempre lho direi. A minha sobrinha Joana é um anjo. Boa rapariga! Famosa rapariga! Meu irmão Barnabé não pede esmola, é verdade; mas anda atrapalhadote. O Casal dos Caniços arrastou-o este ano: deve-me já vinte moedas, e...”

O prior cortou-lhe o entusiasmo pelos seus parentes com uma gargalhada estrondosa. O moleiro ficou de boca aberta no meio daquele destampatório.

“Oh, oh, oh! querias que o meu dote servisse para pagar as tuas vinte moedas!? Não é assim?” E, voltando imediatamente ao seu sério, prosseguiu: “Bartolomeu! Bartolomeu! Por causa da iniquidade da sua avareza me irei e a feri: diz o profeta. A cobiça que te cega há de baldear-te no Inferno, como tu baldeias para a ribanceira as mós que já não prestam. Queres mentir à tua consciência enganar o teu pastor, quando ele te vem pedir que o aconselhes? Isto não é bonito, Bartolomeu! Não é bonito!”

“Mas, padre-prior...”

“Qual mas, nem meio mas! Deixemo-nos de histórias. Bem diz o ditado: 'Fui a casa da vizinha, envergonhei-me; vim à minha, remediei-me'. O melhor é seguir a primeira lembrança.”

“Então, se vossenhoria já tinha posto o dedo...”

“Tinha, tinha!”, retrucou o prior. “Queria só ver se tu concordavas comigo: mas sacas-te com uma esquisitice de fazer arrepiar. Não temos feito nada, meu Bartolomeu: não temos feito nada!”

E, dizendo e fazendo, o clérigo erguia-se, como para sair.

“Pois, diga vossenhoria”, acudiu o moleiro, ainda atrapalhado com o revertere, “e enforcado morra eu se...”

“Não praguejes, homem! Aí vai! Quem há de apanhar o dote é a Bernardina de ao pé do rio...”

A história das sacas era espinha que ainda lhe estava atravessada na garganta: ouvindo tal nome, o velho não pôde conter-se:

“Quem? A cara de fuinha da filha da Perpétua Rosa? O padre-prior está brincando. Olha as lesmas! Umas desmazeladas e caloteiras! Isso, nas unhas da mãe, era fogo viste, linguiça. Terçãs me matem...”

“Espera, homem, espera! Não é isso o que se diz na aldeia. Tu tens osga às pobres mulheres e cega-te a paixão. Desmazeladas?! Basta olhar para elas; como andam limpas na sua miséria. Caloteiras? Coitadinhas! É porque não têm com que pagar ao Agostinho da tenda? Pagar-lhe-ão agora. Quinhentos mil réis ainda ficam livres e Bernardina há de com eles achar um bom casamento.”

Enquanto o prior falava, uma ideia bem-aventurada iluminara subitamente a alma do moleiro. As três sacas podiam não estar perdidas de todo; podiam voltar melhoradas ao moinho. Sentiu a cólera desvanecer-se-lhe, como a nuvem negra que varre a brisa do norte.

“É verdade que a gente, às vezes, tem cá as suas birras”, disse ele, com certo ar que queria ser fino e saía parvo. “Cega-se com as pessoas! Vossenhoria bem sabe o que faz: dê o dote a quem quiser, que diante de mim ninguém há de tugir nem mugir contra vossenhoria.”

“Pois bem!”, prosseguiu o prior, “esta lebre está corrida. Resta achar um noivo para Bernardina. Isso é bico-de-obra que requer escolha e siso. Pensa no caso, Bartolomeu! Vamos a ver se acertas melhor desta vez. Agora outra coisa. Tu és capaz: tens sabido guardar o teu dinheiro; saberás guardar o alheio. Eu para isso não presto: sou um mãos-rotas. Aqui te deixo setenta louras, que ao seu tempo se hão de entregar a quem tocarem, incumbes-te disto?”

“Vossenhoria manda”, respondeu o moleiro, cujos olhos brilharam com o fulgor devorante da avareza, ao ver rolar as peças, que o prior tivera a cautela de desembrulhar sobre a grande arca das maquias. O velho pároco usava de uma esperteza de Satanás para fazer uma obra de Deus.

E, despedindo-se de Bartolomeu, saiu. O moleiro ficou de pé e imóvel. Estava, mal comparado, como o asno de Buridan entre as duas medidas iguais de cevada: nem se podia afastar do ouro, nem ousava faltar à cortesia devida ao padre-prior. Afinal, por um movimento sublime de energia moral, correu pela porta fora atrás dele, que já ia a certa distância. Neste correr, parecia-lhe sentir estalar o que quer que era dentro do coração.

“Se vossenhoria é servido do nosso almoço”, bradava o moleiro, “não tarda aí um credo. Pobre, mas de boa mente.”

“Obrigado! obrigado!”, respondeu o prior, sem se voltar, brandindo para trás a bengala, como quem dizia adeus. E pensava lá consigo: “Fora, miserável sovina!”

Apenas o bom do clérigo dobra — rã a quina do muro de uma quinta que se dilatava desde a encosta até à baixa do rio, truz!... Com quem havia de dar de rosto? Com o Manuel da Ventosa, de espingarda ao ombro, rede às tostas, chumbeira e polvorinho a tiracolo. O saloio ficou embaçado.

“Com que, sim senhor! já você por aqui me aparece a estas horas”, disse o prior com um gesto folgado, que forcejava por ser colérico. “Hein?”

“É verdade, padre-prior!... Entreter um bocado. A manhã estava boa.”

“Pois não! Aos pardais... bem sei! Ora corte-me para casa e vá ajudar seu pai, o pobre velho, que lá anda lidando... e você feito caçador das dúzias... Caçador! Pensava agora o sonso que me enganava! Vamos marchando!”

Deu alguns passos para diante, enquanto o Manuel da Ventosa fazia o mesmo em sentido contrário. Depois voltou-se de repente. O saloio também parara a olhar para trás.

“Olé. Escuta cá, Manuel!” O Manuel aproximou-se.

“Depois de amanhã é necessário que você se bote aos pés do seu pai, que lhe conte a boa obra que fez e que lhe peça licença para casar com Bernardina...”

“Pelo amor de Deus, padre-prior!”, interrompeu o triste do rapaz, cheio de susto. “Com os fígados dele, põe-me os ossos num feixe.”

“Não se perdia nada”, acudiu o velho. “Mas não é ano de fortuna. Era melhor que se tivesse lembrado a horas. Faça o que lhe digo, que não lhe há de suceder mal nenhum! Vamos.”

“Se vossenhoria entende?!”

“Entendo, sim, senhor. A Páscoa não tarda; e passada a Quaresma você há de receber-se. Mas disto nem palavra! E corte!”

O tom com que o pároco proferiu estas palavras deu uma alma nova ao Manuel da Ventosa. Imaginou logo que o padre-prior tinha aplanado o negócio. Não sabia se risse ou se chorasse. Instintamente, agarrou a mão do clérigo e beijou-a. A sua gratidão era sincera. O padre-prior sentia palpitar esse vivo sentimento naquelas mãos calosas, que apertavam a sua mão enrugada, naqueles lábios ardentes, que pareciam devorá-la. Conheceu que estava arriscado a deslizar da habitual severidade e, afastando-se rapidamente, bradou com voz áspera, mas alguma coisa trêmula: “Deixa-me, pateta! Deixa-me!... e Deus te ilumine, para que seja esta a última das tuas rapaziadas.”

Fez bem em alongar-se: duas lágrimas lhe rolaram pelas faces abaixo.

Naquele dia a Tia Jerônima chegou a desconfiar de que o padre-prior tinha a bola desarranjada. Toda a manhã não fez senão cantarolar, ora um pedaço do Tantum ergo, logo um versículo do Te Deum Laudamus, e assim por diante. Até andou, por mais de meia hora, a brincar com o gato do presbitério. E, para resumir em poucas palavras a extravagância de que parecia possuído, basta dizer que, ao descalçar-se, arrumou os sapatos para um canto e, depois de ter lido um capítulo da crônica de Cister, pela primeira vez da sua vida meteu na estante essa espécie de Carlos Magno monástico, sem o pôr de pernas ao ar. Aquele coração sentia dilatar-se na santa paz do Senhor.

E porque não cabia o bom do padre na pele? Porque tinha feito felizes duas criaturinhas, sacrificando-lhes as suas economias de quarenta anos. Achava isso coisa naturalíssima; mas a Providência dava-lhe parte da sua recompensa nessa alegria suave e íntima, que mal pode entrar rios palácios dos grandes e poderosos do mundo; porque é o prêmio, não do benefício insolente da opulência mas sim da abnegação caridosa da humanidade.

O padre-prior tinha tido tempo de estudar, individualmente o caráter dos seus fregueses, e por isso seguira aquele caminho para chegar ao fim moral que se propusera. De feito, o velho moleiro andou abstrato todo o dia e de noite? Não pregou olho! As escuras, via diante os olhos as setenta peças a reluzirem, como visão ao mesmo tempo celeste e infernal. Depois, naquelas longas horas de vigília, punha-se a calcular a ação prodigiosa que elas teriam, incorporadas com mais de outras tantas que tinha enterradas. Era o que bastava para dar o harmonioso epíteto da minha à azenha do Inácio Codeço, e por lá o seu Manuel a labutar e a ganhar dinheiro, muito dinheiro, e ele a tomar-lhe contas ao sábado: meia moeda... uma moeda... duas moedas, e a pilhá-lo num a gaziva de seis vinténs; e despertava daquela espécie de êxtase, ao atirar-lhe o primeiro pontapé. Era um regalo! Ria, às vezes, ao lembrar-se de uma que ele havia de pregar no outro dia ao Agostinho da tenda. Essa estava segura. Ia-lhe comprar o creto de Perpétua Rosa, por metade, por um terço, talvez. “O sô Agostinho, você não vê que isso é dinheiro perdido? Cinco mil réis! Seis mil réis! Vamos; é minha a dívida.” E tripudiava na cama, e assentava-se, lançando mão dos calções, para ir, para correr, para voar, antes que algum diabo (pensava ele) fosse meter no bico ao usurário do tendeiro a mudança de fortuna de Bernardina. Chegava, naquele fervor, a enfiar os calções; mas recaía na cama, ao ver ou, antes, ao não ver, que era escuro como breu. Momentos havia em que as suas ideias tomavam outro curso: representava-se-lhe seu irmão Barnabé a largar-lhe o Casal dos Caniços pelas vinte moedas e por mais umas trinta peças, com que o engodava; e ele a fazer estercar as terras e alqueivar e lavrar e semear e mondar e ceifar, e a ter na eira uma serra de trigo durázio, e a achar uma excomungada de uma velha pedinchona a furtar-lhe à sorrelfa uma abada daquele grande trigo e ele a desancá-la com uma tranca. E saía desse pesadelo de homem acordado a ranger os dentes e com a mão agarrada à maçaneta do catre. Daí a pouco vinha-lhe a outra enfiada de imaginações, e daí outra, e outra, até que, por fim, a ideia de que as setenta peças eram suas lhe ficava de tal modo encravada e enraizada na alma, que o arrancar-lha de lá seria o mesmo que meter-lhe no bucho uma apoplexia. Então punha-se a pensar no pensamento capital e gerador de todas essas imagens bem-aventuradas que lhe luziam no olho, e como chamaria à mochila as setenta do dote. Abafá-las? Negá-las ao prior? Estremeceu horrorizado; porque Bartolomeu era homem de probidade, ao seu modo, que, sem malícia seja dito, vinha a ser um modo, como o de tantos homens honrados que todos nós conhecemos. Nada! Era preciso um meio natural, decente, legítimo de arranjar o negócio. Caiu então no que o prior queria que ele caísse. Casou in mente o seu Manuel com a Bernardina. Feito isto, as peças eram suas; suas, porque o Manuel pelava-se com medo dele e, casado ou solteiro, havia de ficar-lhe sempre debaixo dos cabeções. Assentado este ponto, o moleiro sentia certo refrigério interior que o consolava. Não tardou a adormecer no sono do justo e, em plácidos sonhos, balouçou-se todo o resto da noite entre a azenha do Inácio Codeço e o casal do seu irmão Barnabé. Saía às vezes desta hesitação benéfica, sonhando no gatázio que ia pregar ao Agostinho, e ria com um rir de inocência. Era um santo velho aquele Bartolomeu da Ventosa!

O leitor deve estar já suficientemente aborrecido de tão comprida história do moleiro, da lavadeira e do prior; por isso não o farei assistir às explicações entre o pai e o filho. Mais repousado o sangue com o dormir, Bartolomeu refletiu pela manhã que o propor ao pároco o seu Manuel para noivo de Bernardina tinha as suas parecenças com o haver-lhe proposto para ser dotada sua sobrinha Joana, ideia maldita que lhe tinha custado uma risada nas suas barbas e um revertere com texto da Bíblia. Por outra parte, pensava que Manuel era o seu único herdeiro e que, se Bernardina trazia para a ceia, ele levaria para o jantar, princípio consagrado pela filosofia saloia talvez desde o tempo dos Mouros. Enfim, o pai nestes vaivéns e o filho com os receios que o leitor pode imaginar fizeram ao declararem-se, uma verdadeira cena de comédia. Ao cabo, porém, de tudo entenderam-se. Assim, o padre-prior, à custa das suas economias de quarenta anos, teve a consolação de fazer três sermões, um a Bartolomeu, sobre a cobiça e a avareza; outro a Manuel, sobre o trabalho, sobriedade e mais virtudes anexas à condição de pai de família; outro, finalmente, a Bernardina, sobre a honestidade, modéstia e sujeição das mulheres casadas. Depois, quando veio a Páscoa, regalou-se de atar o laço matrimonial entre os dois amantes, acabando por uma vez com as interpelações das lavadeiras, com as espreitadoras dos curiosos e com as murmurações do beatério. Custou-lhe a brincadeira setenta peças e o atirar à rua com o sermão sobre a avareza; porque o Bartolomeu continuou a ser sovina até à hora da morte, na qual piamente se deve crer o catrafilou o Diabo, não só por ser unhas de fome, mas por ter refinado a ponto que, perdendo a vergonha, já começava a sisar nas maquias, com escândalo dos fregueses e grande mortificação do seu filho Manuel.

Agora duas palavras sobre a festa do orago da paróquia, o meu rico São Pantaleão. O leitor viu o padre-prior caminhando pela estrada dolorosa da moral evangélica: é necessário que o veja também radiante no meio das pompas do culto.


IV — ALHOS E BUGALHOS

 São Pantaleão era, como disse, o orago da freguesia rural cujos habitantes mais conspícuos o leitor já conhece e por via dos quais o pus em contato com as diferentes classes de que se compunha aquele mundozinho, ou, para melhor dizer e falar de modo que não me entendam, aquele microcosmo. Este grecismo espremeu-mo do espírito São Pantaleão, que, conforme o que bem pondera a folhinha, foi médico, e os médicos finam-se por grego. O padre-prior e o sacristão representam a Igreja espiritual e materialmente, o Agostinho da tenda o comércio, o Barnabé a agricultura, a Sra. Perpétua Rosa a indústria e, finalmente, o honrado Bartolomeu da Ventosa representa, nos seus sonhos, a indústria agrícola ou a agricultura industrial, gênero de existência lembrado por alguns economistas da Alemanha, para salvar as classes laboriosas do horrível futuro com que as ameaça o vapor; porque se há de advertir que alguns restos de prudência e juízo, que ainda havia cá por esta nossa Europa, varreu-os Deus para aquele canto do mundo a que nós chamamos a terra das teorias e das quimeras; nós, os homens do Meio— Dia, que fazemos falanstérios e não sei quantas mais comédias políticas, capazes de fazer rir... quem direi eu? O próprio mirradíssimo São Pantaleão da Cidade Eterna.

Eterna, entenda-se, até que o primeiro cometa venha embrulhar na cauda este nosso microcosmo, tão caturra e parvo, chamado o orbe terráqueo.

Celebra-se a festa de São Pantaleão a vinte e sete de Julho; data preciosa e averiguada por mim em largas vigílias, consumidas em revolver breviários, antifonários, legendários, missais, santoriais e livros historiais, na frase daquele grande retórico Gomes Eanes. Está a folhinha pontualíssima; podem acreditar-me! Celebrou-se, celebra-se e há de celebrar-se a festa de São Pantaleão, o bem-aventurado físico, todos os vinte e sete de julho, até a consumação dos séculos; salvo caso de ninguém se lembrar daqui a cem ou duzentos anos de que existiu no mundo o meu rico santo; mas espero tal não aconteça, ficando lançada a sua memória nestas páginas, às quais indubitavelmente pertence a imortalidade.

“Mas”, acudirão os leitores, “que nos importa a nós que essa comemoração seja a vinte sete ou a vinte e oito; seja em julho ou em dezembro? Vamos à festa e deixemo-nos de histórias.” Devagar, devagar! E justamente porque isto é uma história grave, sisuda, erudita, que eu não me havia de meter abruptamente na narração, sem deixar averiguada, esmiuçada e apurada a data precisa e irrecusável do meu recontamento. Sabem o que é uma data? Uma data é, depois de uma questão de ortografia, do talho e da feitura de uma judia, a que os nossos velhos chamavam uma aljuba, e depois de um falanstério, a que os ditos velhos chamariam uma sandice, a coisa mais importante que conheço neste vale de lágrimas. No caso presente, suponhamos que eu fosse um cabeça-de-vento que atirasse com São Pantaleão para vinte e sete de dezembro. Ficávamos asseados; não tem dúvida! Aí se me ia meter a segunda oitava do Natal com o meu santo mártir; e eu a querer revestir o padre-prior para a missa cantada e a ver-me doido na escolha da vestimenta. Vermelho? Saltava-me a canzoada dos críticos: “Fora, ignorantão! Vermelho na segunda oitava da Natividade!? Vai ler o Cláudio de Vert, alarve! Vai ler o Campello, o Gavanto, o Lambertini.” Atarantado com a grita, atirava-me ao gavetão da vestimenta branca. Pior! Vinha-me outra surriada de sotavento: “Olha a alimária! Não querem ver? A um mártir vestimenta branca! Hipócrita que nos anda aqui a pregar sermões a favor dos padres e dos frades e ainda não sabe qual é a sua vestimenta direita. Aí têm os tais escrevedores de água doce, que se riem à socapa das Arcádias e das odes pindáricas e da ciência em notas e das cronologias dos acadêmicos. A gente que fazia essas coisas trazia as vestimentas na ponta da língua: distinguia-as como hora horae de servus servi. Vai ler, ó tábua rasa de Locke, vai ler o Prado, o Clericato, o Bauldry, o...”

E eu, que não podia ir ler tanto calhamaço em fólio, em quarto, em oitavo e em doze, estacava, punha-me a gaguejar, perdia o fio da narrativa e não prosseguia nesta notável história do padre-prior, a qual me abriria as portas do Instituto Histórico de Paris, se eu fosse tão criança que me resolvesse a pagar não sei quantos francos por ano para gozar dessa incomparável honra.

Por isto façam os leitores ideia das deploráveis consequências de um erro de data! “Porém”, replicarão eles, “quem te obrigava a tratares essa questão cronológica, superior, talvez, às forças do teu entendimento? Não foste andando até aqui sem te meteres nesses debuxos? Porque não descreves a festa, deixando aos entendidos em calendário o pô-la na época própria?” Boníssimos leitores, pensais vós que eu sou o Manuel da Ventosa, que me deixe assim esmagar por uma saraivada de perguntas? Enganai-vos! A resposta vai cair dos bicos desta pena como as frechas de Apolo longe-asseteador caíam no campo dos argivos, segundo reza Homero no capítulo primeiro da sua crônica das birras do Pelida e do Átrida: a minha tréplica vai desfechar sobre os prelos, convincente, irresistível, irreplicável. Ei-la. Finjamos por um momento que, em vez de consultar os respectivos atores sobre a verdadeira casa de São Pantaleão no tabuleiro do calendário, nem sequer pensava nisso e começava a ex abrupto a cena da festa aldeã. Que sucedia? Como estamos no Inverno, e eu gosto do Inverno, principalmente quando ruge uma boa nortada (são gostos), punha-me a escrever um destes formosos dias de dezembro ou de janeiro em que o firmamento parece retinto de novo no seu tão lindo azul; em que a verdura infantil das searas à flor da terra sorri, estirando-se dos topos arredondados dos outeiros pelo pendor de recostos levemente inclinados; em que a relva se mira à luz vermelha da aurora no espelho do caramel, que envidraça a superfície dos pegos e remansos dos regatos. Falar-vos-ia de uma abençoada missa do galo, na aldeia em noite de luar, missa mil e quinhentas vezes mais poética do que toda a poesia protestante desde Luterpo, o pai do protestantismo, até Strauss, que hoje lhe tira as derradeiras consequências; falar-vos-ia, enfim, de mil coisas, muito bonitas, muito viçosas, muito brilhantes, mas que viriam tanto a propósito de São Pantaleão como o anho pascal daquela santa velha da Tia Jerônima viria a pelo da Natividade, com o seu caldo tradicional de peru, ou como o estilo do nosso drama moderno se casa com a linguagem da sociedade, cujo transunto deve ser. E por esta razão que, em coisas sérias, quais a presente narrativa, eu sou muito pechoso em averiguar tudo quanto pode contribuir para a perfeição de obras em que a forma de, modo nenhum há de vencer a substância — e a essa classe pertencem estes estudos morais.

Resolvida e assentada a questão de tempo e lugar, sem o que não há obra literária, segundo afirmam os glossadores e espevitadores daquela famosa embrulhada de Horácio chamada a Epístola aos Pisões, resta dizer alguma coisa acerca de São Pantaleão. Por muita importância que eu ligue à feira, aos foguetes, aos busca-pés, às jarras que eu ligue à feira, aos foguetes, aos busca-pés, às jarras de flores, aos tocheiros acesos, ao sacristão, à música, aos festeiros e ao padre-prior, ligo muita mais à memória daquele cuja festa trazia num rodopio toda a aldeia e até tivera a influência magnética de alargar os fechos da bolsa ao venerável moleiro Bartolomeu. Tenham, portanto, paciência; que já agora hei de dizer-lhes duas palavras acerca do meu rico santo. São reminiscências do sermão, o qual, desde aqui fique sabido, foi feito e pregado por Fr. Timóteo, o fradalhão arrábido de mendicante e espoliada memória. É, pouco mais ou menos, um resumo da história do santo, como a contou Fr. Timóteo. Parece-me que o estou ouvindo.

São Pantaleão era um médico de Nicomédia. O bispo Hermolau converteu-o ao cristianismo. Desde então, ele reduziu o seu receituário à invocação do nome do Senhor. Seguiram-se daqui duas consequências graves: as suas curas foram mais baratas e mais rápidas, ao mesmo tempo que as ofertas dos doentes escasseavam nos templos pagãos e os sacerdotes de Esculápio começavam a morrer literalmente de fome. O resultado foi um clamor geral contra o pobre santo: os sacerdotes acusavam-no de ímpio e de bruxo, os médicos de charlatão. O ódio contra ele chegou ao último auge: só faltava uma ocasião para a vingança: esta não tardou a aparecer.

“Não, que não havia de chegar!”, rosnou o barbeiro, que, especado em frente do púlpito, meneava a cabeça laudativamente de vez em quando, em honra da eloquência de Fr. Timóteo, que, narrando a vida do santo, esbracejava como um possesso. “Não, que não havia de chegar! Bastavam os médicos. Os médicos e os cirurgiões! Posto que, até certo ponto, pertença à faculdade, hei de dizê-lo: é a classe mais invejosa do mérito que eu conheço.”

O barbeiro pensava assim havia muitos anos: desde que fora cruelmente arranhado por três raposas, que os lentes do hospital lhe tinham largado às pernas num exame de sangrador. Boas ou más, eram as suas doutrinas.

Entretanto, o arrábido continuava a lenda de São Pantaleão: as ideias que dela conservo são as seguintes:

Neste meio tempo veio a Nicomédia o imperador Maximiano. São Pantaleão restituiu, perante ele, a um paralítico o uso dos membros, o que nem os sacerdotes pagãos nem os médicos tinham podido fazer, mostrando assim quanto era poderoso o Deus dos Nazarenos. Mostrar aos poderosos que se tem razão contra eles é o maior dos perigos do mundo. São Pantaleão experimentou-o. Lançaram-no às feras no circo: mas as feras, em vez de o devorar, vieram lamber-lhe os pés. Cresceu a cólera do imperador. Mandou atá-lo a uma grande roda e soltá-lo por uma ladeira abaixo: mas as prisões quebraram-se e o supliciado ficou ileso. Então ordenou que o degolassem. O santo, segundo parece, estava saciado de prodígios: ao golpe do algoz a cabeça voou-lhe dos ombros, e a sua alma, subindo ao céu, viu o próprio nome escrito no livro dos mártires. O Inferno e a tirania tinham sido mais uma vez vencidos.

Tal é, em poucas palavras, a história do santo orago da aldeia, que constituía os domínios espirituais do padre-prior...

A noite que precedeu a grande solenidade da paróquia foi semelhante naquele ano, em que sucedeu o caso e Bernardina, ao que havia sido no ano antecedente; semelhante ao que costumam ser tais noites nos campos deste nosso bom Portugal. Um coreto coberto de velhos razes alteava-se à porta da igreja; dele resfolegava uma selvagem e, às vezes, atrozmente desentoada música e embaixo crepitavam as fogueiras. Como faltariam fogueiras no mês de julho e em festa saloia? Os fogos noturnos são o símbolo da alegria; mas cumpre que se repintem no céu diáfano e estrelado. Debaixo de uma atmosfera crassa e negra, o seu reflexo tem o que quer que seja soturno e infernal. O sentimento poético está mais vivo e puro nas almas habituadas às harmonias campestres do que em nós, os habitantes das grandes cidades: é por isto que os camponeses acendem no Estio as fogueiras festivas, usança que, como todos sabem, ofende o nosso profundíssimo e estupidíssimo senso-comum. Eu, por mim, que, graças a Deus, não tenho a honra de pertencer à classe desses que lidam, contentes de si, por se bambolearem no vértice da animalidade pura e que se chamam homens da vida positiva, digo que, por mais ardente que vá o Estio, amo uma fogueira no arraial em véspera de festa, e aquele estourar e chispar dos foguetes que roçam rápidos pelo manto escuro da noite. Sei também que o consumir-se pólvora em esbombardear cidades e em alastrar de cadáveres um campo de batalha é coisa muito mais filosófica e sisuda do que desbaratá-la nas festividades supersticiosas do povo. Mas nem todos podemos ser filósofos e eu tenho queda particular para a superstição.

E que quereis? O catolicismo é jovial: o seu culto, como o vulgo o entende, é ruidoso e risonho e brilhante e atrativo e sociável, e por isso debalde trabalharíeis por arrancá-lo ao povo, que vive e morre no meio do trabalho, das preocupações, das privações. O domingo, o dia santo, o orago da paróquia são os seus dias de contentamento e repouso. Abençoado quem inventou os oragos! Pois as invocações da Virgem e a advocacia dos santos?! Mil vezes bendito quem os multiplicou! Ride-vos, se vos aprouver, dos que creem que tal Senhora obra mais maravilhas que todas as outras Senhoras juntas; que tal santo é remédio infalível para esta ou para aquela enfermidade. As preces levam, pelo menos, uma vantagem às drogas dos físicos: não custam nada e são mais ricas de esperança, e a esperança é a maior, quase a única virtude dos medicamentos. E depois, as devoções, as promessas, geraram as romarias, as festas e logo as feiras e todo esse franco e alegre folgar das multidões, que voltam de lá contentes, sem tédio e sem remorsos, o que nem sempre nos acontece nos nossos prazeres das cidades, a que bem longe estamos de associar nenhum pensamento de Deus.

Alguns economistas destes tempos dizem “as, feiras vão-se”, como certos doutores de há uns anos diziam, aludindo ao cristianismo, “os deuses vão-se”. Ó sensaborões dos meus pecados! Nem os deuses, nem as feiras se vão. Tudo isso fica, porque o abriga e salva a égide encantada do amor popular: vós é que tendes seguro o passardes: e, se fizerdes o vosso ablativo de viagem nalguma aldeia, como a do meu padre-prior, lá do adro, onde haveis de jazer, alevantai a caveira descarnada, no dia de São Pantaleão ou do santo influente do lugar, qualquer que ele seja, e vereis o foguete subir nos ares, e os Manuéis e as Bernardinas de então a feirarem-vos, em revindicta, sobre as cinzas, que as ventanias terão espalhado, e ouvireis os ram-ram da guitarra e o cantar ao desafio e o bradar dos leilões de cargos, e aviventar-vos-á o olfato o cheiro do incenso, envolto em rolos de fumo, que, espalmando-se nas faces dos gordos querubins pintados no teto, surdirão pelo portal da velha igreja remoçada de ocre e virão embalsamar os ares: inclinai, não as orelhas, que não as tereis, mas os ouvidos em osso, escutai o futuro padre-prior alevantando o Glória, e o pregador — ai! já não será um fradalhão arrábido!... —, contando, voz em grita, as maravilhas do mártir. Então reconhecereis a vaidade das vossas doutrinas e morder-vos-eis e danar-vos-eis, dizendo com as vossas costelas esbrugadas, à falta de botões: “Bem nos pregava aquele grande cronista do padre-prior! Aquilo é que era homem de juízo! Miserere mei, Deus, quia asinificavimus! Compadece-te de nós, Senhor, porque asneamos!”

Agora por asnear, acudamos a um reparo, antes de ir mais longe, já ouço um destes oragos de botequim (também aqueles templos têm seus oragos); um destes eruditos em Balzac e Marryat, em Paul de Kock e Dickens, sacudir a melena anelada, afastar da boca o charuto apertado entre o pai-de-todos e o fura-bolos, salivar com os dentes cerrados, dando um som de espirro de gato, tomar a Postura solene que estudou numa gravura em madeira do Anthony de Dumas, e dizer-me em tom pausado e soturno: “Ó malfeliz, malfeliz! que, em vez de empregares esses raios do fogo cerúleo e invisível das inspirações estéticas, que, da misteriosa solidão em que se dilata o hálito celeste da suma inteligência, desceu aos abismos íntimos da tua essência, em depurares o sentimento religioso das suas fórmulas materializadas, para o transportares às regiões ideais do culto íntimo, seguindo os vestígios das notabilidades mais remarcáveis da intelectualidade atual, que flutuam nos grandes centros de luz progressiva chamados Paris e Londres, vertes os teus sarcasmos, baixos, triviais e desgostantes, sobre o espiritualismo panteístico, apoias o fetichismo e poetizas (crês poetizar, digo eu) essas festas da populaça e esses prazeres gordureiros das massas, que sublevam o coração daquele que adora o supremo arquiteto no silêncio interior, enquanto os seus lábios estão imóveis, como se eles fossem de mármore explorado nas carreiras de Paros! Escritor retrógrado e condenável, que, em lugar de combateres a barbárie do País, pretendes atacar mais o povo ao obscurantismo, que dirão as sumidades do jornalismo estrangeiro e os turistas e impressionistas viageiros, quando lançarem seu golpe de olho de águias para o Portugal e virem sua materialização supersticiosa inculcada e as suas tradições grosseiras exaltadas? Repetirão o que o imortal marido de Lady Byron dizia de nós, a propósito de uns cachações com que o massacraram certa noite à saída de São Carlos:

Nação impando de ignorância e orgulho, 
Que lambe e odeia a mão que brande a espada 
Que do Galo assanhado à zanga o rouba...

Onde é sujo o palácio ao par da choça, 
E o hóspede forçado em lama trepa; 
Onde nobres, plebeus nunca pensaram
Em ter limpa a casaca ou roupa branca, 
Posto que a lepra egípcia os cubra e roa, 
Intacta d'água a pele, e a grenha hirsuta.

Servos torpes e vis, bem que nascidos 
Nas pompas da criação. Tola és, natura, 
Com defuntos ruins em gastar cera.

Eis o que eles dirão, lendo a tua inconscienciosa defesa dos costumes e credulidades dos tempos do jesuitismo e da Inquisição.”

Tal reparo antevejo eu que me há de ser feito pelos pensadores da nossa terra, por estas ou por outras palavras. Respondo: “O que escrevi, escrevi.” A primeira vez que pus os olhos naqueles bonitos versos do Childe Harold, impei. Fui vivendo e lendo e afiz-me às injúrias de estranhos. Livros, jornais serra-madeiras, jornais populares, jornais atoalhados, jornais lençóis, em se tocando em Portugal, Santa Bárbara, advogada dos trovões, nos acuda! Fervem as calúnias, os motejos, as acusações de todo o gênero, o que indubitavelmente é grande, é nobre, é generoso! O dar é assim! — numa nação cuja língua, pouco conhecida na Europa, torna impossíveis as represálias. E se fosse a verdade só! Muitas verdades amargas nos poderiam dizer, como se podem dizer a todas as nações do mundo; mas a calúnia tem mais pilhéria e Portugal é um tema em que até os Ingleses querem ter graça! Os Franceses ainda alguma vez, por engano, nos fazem justiça: eles nunca. Em Inglaterra não há nenhum tolo que não faça um livro tourist, nenhum arquitolo que não o faça sobre Portugal: estes livros e os sermões constituem o grosso da sua literatura. Assim, ó filósofo idealista progressivo, eu sei tão bem como tu o que nos há de custar a festa de São Pantaleão, quando esta famosa história for cair nas mãos dos críticos de além-mar. Mas pensas que me faltará moeda para dar troco às misérias de revisteiros, turistas, magazineiros e fazedores de livros em sarapatel mascavado de normando e teutônico, surripiado por metade em cada palavra, na melodiosa pronunciação britânica? Enganas-te, ó caricatura viva do Anthony morto! Enganas-te! Quando os Ingleses se rirem de eles terem muito dinheiro e nós pouco, torçamos a orelha e choremos, como crianças, pelas barbas abaixo. Quando eles compararem o Strand ou Regent Street com os arruamentos da nossa cidade baixa, agachemo-nos. Quando perfilarem as suas estradas com as nossas azinhagas reais, cubramos a cara. Mas quando compararem as venturas do homem de trabalho inglês com a triste sorte do peão português, risada. Quando opuserem as virtudes e ilustração das suas classes ínfimas à barbaria e estupidez das nossas, duas risadas. Quando encherem as bochechas das suas velhas liberdades (do tempo de Ricardo III, de Henrique VIII, de Isabel, de Cromwel e de Carlos II), das suas leis de propriedade em particular e da clareza, simplicidade e retidão de todas as suas leis em geral, e nos atirarem à cara o absolutismo dos nossos antigos monarcas, a bruteza da nossa ordenação, a intolerância dos inquisidores, trinta risadas. Quando, enfim, nos oferecerem, em escambo das nossas crenças e dos nossos costumes religiosos, os seus costumes e a sua crença, que esboroa há mais de dois séculos em quatrocentas crençazinhas, com os seus muito arrevessadinhos, quatrocentas risadas ou, antes, uma risada só, mas retumbante, maciça, inextinguível, como aquelas famosas gargalhadas dos deuses de Homero. O caso é disso! Se caíssemos na troca, ficávamos logrados. Traziam-nos de envolta, na carregação dos sermões domingueiros, os dízimos e as bruxas, de que há muito estamos livres, pela misericórdia divina, e que são os dois maiores flagelos da Inglaterra, depois da lei dos cereais e dos arrendamentos das terras, que aí alugam, até por semana, a dez milhões de esfaimados quatrocentos mil proprietários gordos e anafados.

Ao menos são quatrocentas mil barrigas de uma amplidão respeitável, campeando entre dez milhões de irmãos nossos, que não foram formados de barro, como nós e Adão, mas de massa insossa de batatas. 


V — EXCURSO PATRIÓTICO 

Falemos sério: não contigo filósofo estético-romântico-progressivo, que não vales a pena disso, mas com o povo português, que fala português chão e inteligível. Falemos sério porque estas matérias de crenças e de culto são coisas graves e santas. Saber resistir à violência é forte, mas vulgar; saber resistir à calúnia e aos motejos é maior esforço e mais raro. Envergonhemo-nos do que houver mau e corrupto nos nossos costumes; envergonhemo-nos de, muitas vezes, não seguirmos na vida prática os ditames do cristianismo: não nos envergonhemos, porém, do culto dos sete séculos da monarquia.

A língua e a religião são as duas cadeias de bronze que unem, no correr dos tempos, as gerações passadas às presentes, e estes laços, que se prolongam através das eras, são a Pátria. A Pátria não é a terra; não é o bosque, o rio, o vale, a montanha, a árvore, a bonina: são-no os afetos que esses objetos nos recordam na história da vida: é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a língua em que pela primeira vez ela nos disse: “Meu filho!” A Pátria é o crucifixo com que o nosso pai se abraçou moribundo e com que nós nos abraçaremos também antes de ir dormir o grande sono, ao pé do que nos gerou, no cemitério da mesma aldeia em que ele e nós nascemos. A Pátria é o complexo de famílias enlaçadas entre si pelas recordações, pela crenças e até pelo sangue. Tomai, de feito, as duas delas que vos parecerem mais estranhas, colocadas nas províncias mais opostas de um país: examinai as relações de parentesco de uma com outra família, quais as desta com uma terceira, e assim por diante. Dessa primeira, que tão estranha vos pareceu, à última achareis o fio, enredado sim, talvez inextricável, mas sem solução de continuidade. Uma nação não é só metaforicamente uma grande família: é-o também no rigor da palavra.

A oração que consolou nossos avós nos consola no dia da amargura: o gesto com que imploramos a Providência é mais veemente quando nos foi transmitido por aqueles que pedem por nós a Deus. É por esse meio que os homens apertam mais os laços invisíveis que os unem aos seus maiores; porque o sentimento misterioso da família, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no Céu.

Vede na história a prova de que a religião pode, por si só, criar uma nacionalidade mais rapidamente que todos os outros elementos que tendem a compor as nações. Considerai as cruzadas; essa multidão de homens nascidos em países diversos, entre os quais não há nenhuma comunidade de interesses, antes muitas vezes ódios. sangrentos e fundos. Lá na Ásia, em frente do islamismo, formam um só povo; são irmãos porque ajoelham todos ante o mesmo altar, combatem todos pela mesma ideia religiosa. Olhai para os Muçulmanos: vede o Corão, aglomerando, assimilando o beduíno e o egípcio, o alarve do Atlas e o negro de Al-Sudan. Onde quer que um pensamento grande precisa de toda a energia de uma unidade social para se desenvolver e realizar, lá haveis de encontrar a religião, produzindo essa energia.

Se isto é assim, qual culto, entre os de todas as parcialidades cristãs, será mais eficaz em gerar essa unidade forte do amor pátrio, que dá, não tanto a vida ativa e exterior, como uma vida íntima, escondida, tenaz, que resiste à morte e à dissolução sociais? Serão essas mil variações do protestantismo que diariamente se vão subdividindo e condenando umas pelas outras; essas crenças incertas, em que o filho já despreza o culto que o pai seguiu e o neto desprezará o de ambos? Quando e onde, não dizemos na mesma cidade e na mesma rua, mas na mesma família, enquanto o marido dorme ao som monótono do sermão anglicano, sublime de trivialidade e tédio, a mulher dá representações de Bedlam numa senzala de quacres ou de metodistas, pode acaso dizer-se que aí a religião é laço que impeça a morte do corpo da república, não nos dias de ventura e prosperidade exterior, em que é fácil conservar pelo orgulho a unidade nacional, mas nas épocas de calamidade e decadência? Parece-nos pouco provável. Aí as prisões morais da família são apenas hábitos humanos e não estão harmonizadas e santificadas por se prenderem no Céu: o primeiro sopro das paixões ou da desventura as reduzirá a pó. A história também no-lo diz e a história não é senão a profecia do futuro.

O protestantismo acusa o catolicismo de se haver afastado da pureza cristã antiga e gaba-se de ter revocado o cristianismo às suas tradições primitivas. O discutir tal matéria, em relação às doutrinas, fora insensato: os tempos dessa argumentação consumaram-se: tudo por este lado está dito de parte a parte. Quanto, porém, às fórmulas exteriores do nosso culto, são essas que ainda hoje atraem os insulsos motejos da imprensa protestante; é o culto católico, principalmente, que dá origem àquelas raças inglesas, tão agudas como a inteligência dos habitantes do Bethnal-Green, de Londres, ou do Winds, de Glasgow, embrutecidos pela fome, pela embriaguez e pela imundície; tão brilhantes e leves como o fumo de carvão de pedra que constitui a atmosfera britânica. Diariamente são acometidas as duas nações das Espanhas nos seus hábitos religiosos por homens, que empregariam melhor o tempo em estudar os cancros asquerosos, que devoram moral e materialmente a classe popular no seu próprio país, e em pedir à riqueza, só poderosa, só respeitada, só insolente, mais alguma caridade para com os muitos milhões dos seus compatrícios, que lidam, cheios de fome e de frio, cobertos de farrapos e vermes, para acumularem aos pés de bem poucos homens as fortunas incalculáveis e quase fabulosas que alimentam o luxo desenfreado de Londres; da Roma, ou, antes, da Babilônia moderna.

Por certo que no culto católico se têm introduzido abusos, e para isso contribui muitas vezes o próprio clero, menos instruído, menos bem educado, moralmente, que o clero anglicano. Mas, em que é culpado o culto da pouca instrução dos seus ministros e dessa falta de educação moral que diversas causas, alheias à religião, têm trazido e trazem ainda? É a Igreja que recomenda a ignorância? São os abusos consequências lógicas das doutrinas católicas? Eis o que cumpriria se provasse, como não é dificultoso mostrar que o protestantismo, querendo anular as pompas e os espetáculos, as fórmulas externas e brilhantes do catolicismo, matou tudo o que a crença do Calvário tinha de unção, de consolações, e afetos para o comum dos seus sectários, e converteu a religião numa certa metafísica nevoenta, que foge à compreensão das almas rudes e vulgares, quebrando todos os esteios a que, nesta vida de tristezas e dores, elas se encostavam para confiarem no Céu e consolarem-se na esperança; porque esses arrimos, necessários à sua fraqueza intelectual, eram o único meio de subirem até ao trono de Deus e descerem de lá armadas de resignação para continuarem a lutar com as tempestades da existência. O protestantismo foi só feito para os ditosos e abastados da Terra!

Vede aquela casinha, tão humilde e só, no meio de um descampado. Lá, sobre camilha dura e rota, delira em acesso febril um filho, único amparo de mãe desditosa, que vela, chorando ao pé dele. Na sua solidão e miséria, nenhuns socorros humanos pode esperar a pobre velha, cujas mãos trêmulas em vão tentam aconchegar as roupas que o febricitante arroja, murmurando aflito com o ardor que o devora. Uma lâmpada de ferro, que ilumina frouxa o aposento, arde no canto oposto, diante de uma grosseira e afumada imagem da Virgem. A triste mãe volve para lá os olhos, embaciados da idade e das lágrimas, e sente que não se acha inteiramente abandonada. Ali está outra mãe que também derramou choro por um filho; choro mil e mil vezes mais amargoso que o seu.

Ela há de compreender-lhe a aflição e valer-lhe, porque é boa e poderosa ante Deus. Ei-la, a pobre velha, que trôpega se arrasta e ajoelha aos pés da imagem e cruza as mãos enrugadas e ora; ora com fé viva. Na procela de terrores que a cercam começa a bruxulear uma luz de esperança: espera porque crê na possibilidade da intercessão e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque, no meio das lágrimas e das rezas, ela pensa lá consigo que aquela imagem trouxe já muitas consolações aos seus pais, a ela mesmo e a toda a família, e que a Virgem Santíssima há de acudir-lhe ao seu filho, que, desde pequenino, gostava de ir apanhar as flores campestres para enfeitar a S, e que tantas vezes, à noite, antes de se deitar, ia pôr-se de joelhos ali onde ela estava a rezar uma salve-rainha. Quantas vezes, depois destas orações ardentes, volve Deus olhos compassivos para a morada da miséria e da amargura, e obra, não um milagre inútil, mas o benefício que faria qualquer médico, se na habitação solitária houvesse a possibilidade de se buscarem os socorros da ciência humana!

Dirá o protestantismo que isto é idolatria? Quê! Ignora, acaso, o mais grosseiro católico que acima dessa imagem está o espírito puro que ela representa e que acima desse espírito está Deus? O catolicismo, no seu culto das imagens, nas suas festas, nas suas visualidades, como vós lhes chamais, cometeu o grave erro de supor que a maioria do gênero humano não era composta de filósofos, nem capaz de um espiritualismo absoluto; de abstrair inteiramente das coisas sensíveis para remontar ao Céu.

O catolicismo lembrou-se das doutrinas do Cristo; acomodou-se à curta compreensão dos pequenos e humildes. Vós tendes um evangelho mais fidalgo e altivo. O protestantismo convém por isso ao Reino Unido, onde os quatrocentos mil senhores do solo são tudo, e são nada quinze ou vinte milhões de servos de gleba e de mendigos.

E como deixaria ele de ser exclusivo, aristocrático, orgulhoso? Essa crença, ou, antes, essa infinidade de crenças, unidas só em guerrear a igreja de dezoito séculos e que, no dia em que lhes faltasse o inimigo comum, se despedaçariam mutuamente, não podem deixar de viver de um misticismo perfumado, de um culto ininteligível para o povo. Desde que a reforma substituiu a autoridade e a tradição a ciência humana, o raciocínio e a discussão saiu do templo para a escola; transformou-se de fé em teoria. Então, o cristianismo deixou de ser uma coisa prática e positiva para todos os homens: os espíritos grosseiros e ignorantes aceitaram-no como um costume que acharam no mundo, sem afeto, nem má vontade, e as imaginações desregradas fizeram cada qual uma religião ao seu modo. Deram uma Bíblia ao ganha-pão, ao porcariço, ao bufarinheiro, e por esse fato constituíram-no teólogo, santo padre e até concílio. Creram ter estendido ao gênero humano a maravilha das línguas de fogo, que desciam sobre os apóstolos, e ficaram muito contentes de si. As multidões é que ficaram tristes e desconsoladas, porque tinham desaparecido de redor delas todos os símbolos, todas as imagens que lhes serviam como de marcos miliários para buscarem a Deus.

Afigurai-vos, de feito, o exemplo da mãe idosa e miserável que vê em trances mortais o filho, seu único abrigo; buscai este exemplo, ou outro qualquer, porque entre os pequenos não são raras nem pouco variadas as ocasiões de ásperos infortúnios. Lançai, a mãe aflita no seio do protestantismo. Qual refúgio lhe oferecerá a religião; refúgio imediato, sólido, esperançoso? A Bíblia? Também nós sabemos que tesouros encerra a Bíblia; também nós sabemos quantas vezes as suas páginas divinas têm feito dilatar em torrentes de lágrimas as negras aperturas do coração; também nós sabemos que dessa fonte inexaurível manam a resignação e a paz: a igreja católica sabia-o muitos séculos antes de vós existirdes. Mas quem vos assegura que a pobre velha achará a passagem análoga à sua situação; que encontrará nas palavras do livro sacrossanto o conforto de que carece e a esperança do socorro imediato e sobre-humano de que não menos precisa? Quem vos assegura, enfim, que ela saberá ler? Ou é que no país dos quacres a inspiração também faz de mestre-escola, como exercita o mister de mestre de Teologia?

E, depois, não sabeis que a dor moral do homem do povo tem gemidos e queixumes; é estrepitosa, delirante, sincera? Que não se reporta, não se esconde, e vem ao gesto aos meneios, aos olhos, à voz, como a dor física! Julgai-a semelhante ao spleen do dândi, ou ao devorar íntimo e calado das almas a quem a educação e a ciência ensinaram a dignidade das grandes agonias? Estes tais, exteriormente tranquilos, podem encostar-se ao braço, fitar os olhos no livro aberto ante si e aspirar naquelas páginas sublimes e profundas o hálito consolador que delas espira. Mas para o homem do povo, quase primitivo, quase selvagem, cujos olhos nadam em lágrimas, e que se estorce e brada, flagelado pela aflição, a Bíblia é, nesses instantes, inútil; porque é impossível. Deixai-lhe a imagem do santo, o crucifixo, o voto, o altar doméstico, a lâmpada acesa ante o vulto do mártir ou da Virgem; deixai-lhe o ajoelhar, o gemer, o rezar, o fazer promessas. Deixai os símbolos materiais da confiança na Providência à imbecilidade da natureza humana, aliás, crendo aniquilar a superstição e a idolatria, não fareis senão matar a vida moral e religiosa do povo.

Se nos dias, desgraçadamente muito comuns, das mágoas extremas só o catolicismo tem conforto para o homem rude, nos de contentamento só o catolicismo tem festas que convertam para a gratidão e para Deus o seu gozo interior, que tende a trasbordar em risos e folgares. O simples repouso do domingo, para aquele que, condenado a lavor indefeso durante a semana inteira, compra, à custa de suor e cansaço, um pouco de pão duro é grosseiro, é uma alegria semelhante à do preso que, adormecendo em ferros, despertasse livre. Aquele coração precisa de dilatar-se, aqueles sentidos de recrearem-se, aquele espírito murcho e triste de se tornar viçoso, de desabrochar de novo ao sol da vida, ao menos nalguns desses dias reservados para o descanso. É então que o catolicismo lhe oferece as pompas das suas solenidades; o templo iluminado, os cânticos dos sacerdotes, as harmonias do órgão, o espetáculo brilhante das vestes sacerdotais e dos adornos do altar, os ramilhetes povoando os degraus do santuário ou juncando o pavimento, o incenso embalsamando a atmosfera. E, como tudo isto é para as multidões, o culto trasborda do estreito recinto e derrama-se pelas ruas, pelas praças, pelos campos, em procissões, em círios, em romarias, e o povo flutua, folga, reza, tripudia, esquece-se dos seus destinos de miséria e trabalho, ama a religião que o consola e, voltando suas habituais fadigas, leva para o meio delas a saudade do dia santo e as recordações afetuosas da Igreja.

E o protestantismo? O protestantismo despedaçou os vultos dos santos, proibiu os oragos, as romagens; esfarrapou alvas, casulas, amictos, pluviais; apagou as luzes; varreu as flores; assoprou o incenso. Fechou-se na celebração do domingo; e fez bem! bem ao povo a quem, para tédio e tristeza, nos países protestantes, sobra o domingo. E porque fez ele isto? Foi porque essas coisas eram superstições papistas: as imagens idolatria, a água, benta água lustral, as vestes sacerdotais indecências ridículas, as cerimônias visagem, a missa mentira. Passagens da Bíblia e compridos sermões ficaram bastando ao culto externo, e, se alguma coisa deixaram ainda a esta poética e atrativa, foi o canto dos salmos e a harmonia do órgão; porque, como todos sabem, nas ágapes dos cristãos primitivos cantavam-se os salmos ao som do órgão!! Os protestantes são indubitavelmente antiquários eruditos, mas, sobretudo, lógicos.

Qual foi o resultado desta reformação insensata de instituições antigas e venerandas? Foi que o culto se tornou num hábito maquinal, numa ação que se pratica, pela impossibilidade de se praticar outra. A polícia vigia sobre isso. Deixe ela, ao domingo, abrir as lojas, os passeios, os estabelecimentos públicos, os espetáculos, as fábricas e as oficinas; deixe correr nas veias do corpo social o sangue comprimido, e os templos dos distritos de Inglaterra mais fervorosos no protestantismo ficarão tão ermos como as igrejas da Irlanda, onde o reitor prega ao sacrista o suado sermão que há de um dia, impresso, iluminar o mundo, enquanto o seu recalcitrante rebanho, a porta do presbitério solitário, ouve, ajoelhado na rua, a missa que, em altar portátil, lhe diz o pobre clérigo católico, verdadeiro e legítimo pastor, a quem incumbe consolá-los, bem como ao pároco protestante pertence... o quê? Fazer prédicas às paredes e comer os dízimos, sacramento que, decerto, o puritanismo protestante achou nalgum alfarrábio velho ter sido instituído por Cristo!

Temos ouvido lamentar às pessoas de boa fé excessiva, destas que estudam as nações nas aparências, e não na vida íntima, que o catolicismo não tome entre nós a severidade e decência exterior do culto anglicano; que o dia consagrado ao Senhor não seja guardado pontualmente; que as nossas igrejas não ofereçam na celebração dos ofícios divinos a gravidade, o silêncio, a ordem, o asseio de um templo protestante, nas horas destinadas â oração. No estado atual das sociedades em que o fervor dos primeiros tempos cristãos tem esfriado, em que, tanto entre católicos como entre protestantes, a religião deixou de ser o primeiro ou, ao menos, o exclusivo negócio dos homens, o que eles desejam seria impossível, e, se absolutamente um bem, relativamente um grande mal; porque as causas que facilitam esse estado de coisas em Inglaterra são a prova mais clara da morte, se não de uma certa religião vaga, em que os espíritos mais cultivados se alevantam até ao pé do trono de Deus, ao menos da religião, positiva e prática e bem definida, morta e enterrada há muito na mina de carvão de pedra chamada Grã-Bretanha.

Já dissemos que não é tanto o sentimento religioso que guarda em Inglaterra a decência do culto como a admirável polícia inglesa. Quem não o sabe? Quem ignora que, naquele país, a religião tem a natureza de outra qualquer fórmula material da sociedade; que é uma coisa como o regimento, a nau de guerra, o work-house? Ao cristão, um vigário, uma Bíblia, e a cadeia se perturbar o ofício divino; ao soldado, um coronel, uma espingarda e uns açoites, se mexer a cabeça na forma; ao marinheiro, um comodoro, um posto junto da amurada e um mergulho por baixo da quilha, se ofender a disciplina; ao miserável que vai cair no work-house, um diretor implacável, uma atafona e ração curta para aprender a deixar-se estalar à míngua sem pedir esmola. A cada instituição suas condições, sua sanção penal, seus destinos; o regimento serve para provar aos cartistas que a melhor organização política possível é a que faz morrer anualmente milhares de obreiros de fadiga, de fome e de febres pútridas, sobre uma pouca de palha fétida e úmida, no fundo de subterrâneos; a nau serve para civilizar a Índia pelas contribuições e moralizar a China pelo ópio; o work-house serve para curar radicalmente os que não têm nem pão nem camisa do vício infame da mendicidade; enfim, a igreja dominante (established church) serve para sustentar de dízimos muitas famílias honradas, com as modestas e reformadas prebendas anglicanas, entre as quais nenhuma excede a vinte mil libras esterlinas per anum, que, em moeda portuguesa, apenas montam a uns miseráveis duzentos mil cruzados.

O templo católico é comummente o símbolo da completa igualdade; lá não há distinções, senão para os ministros do culto; e, quando o orgulho humano, que forceja sempre por invadir ainda as coisas mais sagradas, vai aí profanamente estender o tapete aristocrático e colocar sentinelas, o povo murmura, e murmura em voz alta; porque sabe que na sociedade cristã, só há um Grande e Poderoso, que é Deus. Os nossos hábitos, as nossas ideias, são que o mais cômodo, o mais distinto lugar do templo pertence ao que primeiro o ocupou. O catolicismo entendeu que, diante da majestade do Criador, os vermes cobertos de brocado não o são menos que os vermes cobertos de farrapos.

Assim, o vulgo dos fiéis precipita-se como torrente através dos umbrais da igreja; estrepita nas lájeas do pavimento com os seus sapatos terrados; roça com o burel grosseiro as Finas sedas dos nobres e abastados; afasta com as mãos calosas os grupos alinhados dos peralvilhos; esquece-se, enfim, dos respeitos humanos, que se guardam e devem guardar cá fora. Como, pois, obter a ordem, as atenções, o silêncio? O nosso povo é rude e mal educado (não o gabamos por isso; mas o vulgacho inglês leva-lhe, em bruteza, incomparável vantagem); o nosso povo conserva dentro do templo os hábitos ruidosos, inquietos, grosseiros da praça pública. E poderia ele despi-los de súbito ao entrar na casa de Deus? Prova, acaso, desprezo pela religião, o burburinho que aí soa? examinai os que parecem estar com menos respeito e decência; os que falam e se agitam; são aqueles entre os quais o cristianismo iria achar os seus mártires se viessem de novo os tempos em que a crença do Crucificado precisava de ser revalidada pelo sangue dos seguidores da Cruz. Que esses pobres tontos, que nos motejam sem nos conhecerem, venham estudar o catolicismo português, se disso são capazes, e saberão se nós falamos verdade.

Nestas consequências, tão lógicas, tão rigorosas, do caráter primitivo da religião cristã e do estado das classes inferiores da sociedade, pôs cobro a igreja anglicana. É verdade que Jesus Cristo, segundo o Evangelho, na tradução vulgata, chamou principalmente os pobres e humildes; e, se no templo há quem valha mais que outrem, não são, por certo, aqueles que o filho de Deus achava mais anchos para entrarem no Reino dos Céus do que um camelo para entrar no fundo de uma agulha. A igreja reformada entendeu, provavelmente, que outra era a interpretação do Evangelho; porque é corrente que os católicos nunca souberam grego, desde São Jerônimo até Ângelo Policiano ou Aires Barbosa, para o poderem interpretar bem. Assim, em Inglaterra, aquelas tão formosas e vastas catedrais da idade Média, a que só falta um culto poético e consolador para serem sublimes, repartiram-se em camarotes de teatro, fechados à chave, e alguns, até, com todos os requisitos desse comfort que só os Ingleses conhecem bem. As jerarquias do dinheiro e do sangue estão lá rigorosamente guardadas: pelo lugar dos estalos e pelo seu luxo, os espíritos habituados à topografia da church podem orçar o número de avós ou os milhares de libras que possui cada filho da igreja anglicana: o comum dos vilãos, empurrados para ao pé da porta lá perdem em parte os deliciosos períodos do sermão do reitor, encarregado de acalentar... queremos dizer de conservar puros na fé, averiguada e decretada pela grande teóloga chamada rainha Isabel, os seus dizimados fregueses.

E o vulgo? Os homens do trabalho, da fome, dos farrapos? Os três quartos da população inglesa? Esses? Esses lá têm o templo da esperança e do consolo: lá têm o gin'spalace (palácio da genebra), a taberna. Na sua incrível miséria, os homens que não podem encontrar Deus, porque a igreja anglicana lho colocou numa atmosfera nebulosa, onde o não descortinam; porque o templo os repele; porque o priest, com o seu aristocrático, polido e perfumado sermão, não pode substituir a entidade exclusivamente católica chamada o missionário, sublime de persuasão, de energia e de virgem rudeza; os miseráveis, dizemos, atiram-se desorientados aos braços da embriaguez, porque a embriaguez tem o esquecimento, tem a sua horrível alegria. Lá, no gin's shop, estendendo o braço cadavérico e vacilante para a destruidora bebida, sorvendo-a com frenesi, essa espécie de brutos com forma humana resumem, no seu aspeto e meneios e na decadência de todos os sentimentos de pudor, as últimas consequências morais do protestantismo.

Que nos seja permitido citar as próprias palavras de um escritor moderno que melhor, talvez, que ninguém pintou o estado presente das últimas classes em Inglaterra e que em todos os fatos que narra se funda ou nas próprias observações ou nos documentos oficiais publicados pelo Governo Inglês. Perfeitamente imparcial a respeito da Grã-Bretanha, o seu testemunho é o que mais a propósito podemos neste ponto invocar:

“A seriedade e o silêncio com que este licor ardente (a genebra) é tragado fazem arrepiar. É como se o povo assistisse a um ofício divino. Consumado o sacrifício, vão-se assentando no banco de madeira corrido em frente do balcão e ali ficam quietos, mudos, como arrebatados em inefável êxtase. Depois, passados alguns minutos, voltam ao balcão, tornam a beber e repetem até se lhes acabar o dinheiro. Vai-se assim a última mealha. E têm ânimo de afrontarem o morrer de fome, eles e os seus filhos, para se embriagarem. Provou-se, pelos inquéritos feitos por causa da lei dos pobres, que as esmolas em dinheiro dadas pelas paróquias iam cair inteiras na taberna e só aproveitavam ao taberneiro. O povo ínfimo da Inglaterra está de tal modo atolado no seu lodaçal, que não há aí caridade que possa desempegá-lo.”

“Sabem todos quão rigoroso preceito eclesiástico e civil é o guardar o domingo em Inglaterra. A única exceção da regra é a taberna. Lojas, tudo fechado; lugares de honesto ou instrutivo recreio, como hortos botânicos e museus, o mesmo. Só o gin's shop se abrirá de par em par a quem empurrar a porta com o pé.

O caso está em que pareça cerrada; duas meias portas sólidas, que se fechem por si, fazem a festa: janelas fechadas: dentro, lusco-fusco, como em santuário, e até sua luz de gás. Tomadas estas cautelas, licença inteira, licença autorizada para se venderem bebidas todo o dia sem lhe faltar hora. E é neste país, que os caminhos-de-ferro estão devolutos por todo o tempo do ofício divino, em honra do domingo! Enquanto, em Manchester, eu me espantava das largas que se davam às tabernas, apresentava-se à Câmara dos Lordes um bil para proibir o transporte das mercadorias pejos canais, no sagrado dia do domingo! Na cidade de Manchester há jardins zoológicos e botânicos, que o povo frequenta gostoso; mas não se obtém da pontualidade anglicana que estejam patentes no dia santo; e os bispos, tão escrupulosos no mais, são indiferentes pelo que toca aos gin's shops, abertos publicamente e frequentados ao domingo. Não é singular que a coisa única permitida ao povo seja embriagar-se?”

“Não”, diríamos nos ao autor do excelente livro que havemos citado. O Governo e a igreja da Grã-Bretanha sabem que entre a horrível miséria das classes laboriosas, a embriaguez e o suicídio não há uma quarta coisa para suavizar a agonia dos tratos que a primeira dá ao homem do povo. A religião, que falava aos sentidos do vulgacho e, por meio deles, ao seu espírito, mataram-na, e, como a morte não tem remédio, o protestantismo, crença de dois dias, mas já sem vigor e esfalfada, encomenda à religião das pipas o salvar os mal-aventurados obreiros, não do suicídio moral, mas, ao menos, do físico.

Dir-se-á que o povo não está entre nós numa situação análoga à do povo inglês, para o catolicismo ser posto à prova? Felizmente isso é verdade. Mas já houve tempos quase semelhantes, posto que ainda inferiores em terribilidade aos que vão correndo para a gente miúda de Inglaterra. Era quando a peste devastava as nossas cidades e invadia os nossos campos, levando-nos, às vezes, mais de um terço da população. Aí existem inumeráveis monumentos dessas épocas desastrosas: que apareça tini só por onde se prove que o desalento popular buscasse conforto no vinho e na aguardente. Pois cá o remédio não era caro! O que achamos são as preces, as romarias, procissões as lágrimas, os votos, o sentimento exaltado da confiança e da resignação na Providência. Achamos a pequena diferença que vai de um cristão a um bruto.

“E os Irlandeses?” Oh, bem sabemos que os Irlandeses, católicos como nós, na sua miséria monstruosa, têm caído, se é possível, ainda mais fundo que os Ingleses Mas, em rigor, esses católicos na intenção e na crença podem, acaso, sê-lo no culto que aviventa o espírito? Onde lhes deixou o protestantismo os seus templos, os seus sacerdotes, os seus costumes religiosos? O vulgacho irlandês é o argumento mais dolorosamente persuasivo da necessidade dessas festas, dessas alegrias, dessas formas materiais do culto. Sem elas, o católico miserável embrutece-se como o miserável protestante e o seu embrutecimento vem, por outra parte, recordar-nos de que não é possível achar um nome que qualifique devidamente o descaro com que o anglicanismo, inquisidor implacável e tenaz de três séculos, nos lança em rosto as trinta mil verdades e as sessenta mil mentiras que, com justíssimo horror, se relatam da Inquisição.

Eis o que nós podemos responder aos insulsos ditérios com que é diariamente vilipendiado o catolicismo português: e não dizemos tudo; não dizemos metade. Quanto aos motejos que nos dirigem, como nação pobre, pequena, fraca, isso não passa de uma covardia, que só desonra a quem a pratica. Trabalhemos por levantar-nos da nossa decadência. Será essa a mais triunfante resposta.

E com estas deambulações de patriotismo religioso saltamos a pés juntos pela história do padre-prior. No capítulo seguinte daremos satisfação plena ao pio e benigno leitor.


VI — BARTOLOMEU DA VENTOSA

A quem não tem sucedido, nas horas de solidão, no silêncio da noite em que não pode dormir, ou no pino do dia calmoso, ao atravessar o bosque cerrado e sombrio, onde só se ouve o zumbir e o fervor dos insetos; a quem não tem sucedido engolfar-se numa vaga meditação e, por assim dizer, despenhar-se de pensamentos em pensamentos, presos por fio tão tênue, tão imperceptível para a consciência, que, depois dessa espécie de devaneio, pretender remontar da última à primeira ideia seria baldado empenho, por falta de transições naturais e lógicas? E, todavia, a alma, que, nessa situação, como que perde o sentimento da vida externa, lá achou, no seu incessante pensar, uma ponte invisível para transpor os abismos que a fria, coxa e orgulhosa razão humana supõe existirem, quase a cada passada, no mundo da inteligência. Quando o espírito se desata dos corpos; quando a imaginação, depurando o senso íntimo, o faz repelir a matéria, fechando-se, como a mimosa pudica, à ação grosseira dos sentidos externos, o homem alevanta-se até o viver de além da morte, a luz dos anjos ilumina-lhe as profundezas mais obscuras do universo ideal e ele sabe quais os caminhos que, mergulhando pelos vales, unem as suas cumeadas brilhantes, únicos pontos que se podem enxergar da terra. O primeiro que disse: “Em tudo está tudo”, teve uma destas revelações da imaginação pura, revelação completa do ideal, que não é mais do que a fusão da variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade.

Mas estes momentos em que somos iluminados pelo sol da vida celestial passam rápidos: o espírito cai logo dentro dos limites da sua existência de provança e desterro e, recordando-se confusamente daquelas inspirações fugitivas, sorri-se e chama-lhes sonhos, abusões, desvarios. É que a pobre e soberba razão, míope advogada do lodo e do crepúsculo, rejeita com horror as cogitações puras e luminosas que Deus faculta, às vezes, ao miserável ente, criado quase anjo por ele e a quem o primeiro raciocínio que se fez na Terra converteu em insensato e Precito.

E a que vêm estas metafísicas aqui? De que utilidade são elas para a história do pároco da aldeia e da festa do orago, há tanto tempo interrompida e que até agora não tem passado de divagações por objetos sem ligação com a vida e costumes do reverendo padre-prior? “Venha o padre-prior: venha a festa”, dirão alguns, “e deixemo-nos dessas metafísicas modernas, que escorregam por entre os dedos e não passam de feixe de maravalhas, ao pé daquelas grandes filosofias dos ideólogos, que até um sapateiro era capaz de estudar, batendo a sola e apertando o ponto; filosofia de pão, pão, queijo, queijo; filosofia substancial; filosofia de ouvir, ver, cheirar, gostar e apalpar, roliça, atoucinhada, confortativa. Se era necessário algum troço da ciência do atqui e ergo para atar estes capítulos ou capituladas da crônica aldeã, porque não recorrer ao claríssimo Condillac, ao bisclaríssimo Tracy? Para que parafusar em entes de razão impalpáveis, em armadilhas que trescalam às parvoíces germânicas, quando estava aí à mão a filosofia do senso comum, que é o senso patagão e russo, tupinamba e sueco, chim e dinamarquês, enfim, o senso de todo o mundo?”

Ai, leitor, que aí bate o ponto! Quem me dera isso! Quem me dera poder explicar por um capítulo tantos, parágrafo tantos, daquele santo homem de Locke o que me sucedeu ao escrever esta famosa história e lançar na balança da tua inflexível justiça uma desculpa de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e disposição destes importantes estudos! Por mais que pensasse, por mais que aferisse pelos bons princípios ideológicos o meu trabalho, saía-me tudo torto: era querer levantar uma bola com um gancho, ou firmar a tábua rasa do filósofo inglês sobre uma das pontas de um dilema. Como ajeitar a minha narração deambulatória pelas regras dó método? Impossível, impossibilíssimo! Fiz então como Constantino Magno. Não achando escápula, nem esperança na religião da matéria em que me criaram, fugi para a religião dos espíritos e, por uma teoria de abstração subjetiva, expliquei, como Deus me ajudou, as minhas, aliás inexplicáveis, divagações. Encostado a ela, como a uma coluna de basalto (de basalto, porque as de mármore e de bronze estão muito safadas do uso quotidiano), rir-me-ei do mais abalizado doutor que venha perguntar-me qual é a ordem lógica das minhas ideias. A resposta está no que expus: pontes intelectuais, invisíveis, inapreciáveis pelas regras ordinárias do método; pontos que unem o branco ao preto, o circular ao anguloso, o próximo ao remoto. Fecho-me nisto. A imaginação que assim o fez, é porque assim devia ser: está muito bem feito, ao menos no mundo da idealidade pura. Foi lá que eu passei de um vulnerável pároco de aldeia, português velho em costumes, em linguagem, em crenças, vulto poético e santo, para um inglês empertigado, monossilábico, iconoclasta, libertador de pretos alheios, escravizador de saxões e irlandeses brancos; numa palavra, galguei de um a outro polo da humanidade. Foi lá que eu pude tombar, rolar, precipitar-me do catolicismo suave, consolador, festivo, ameigador dos miseráveis, desprezador dos poderosos soberbos, simbolizador, no seu culto, da igualdade ante Deus, para o anglicanismo perfumado, espartilhado, casquilho, teso, aristocrático, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me do vértice brilhante donde derrama a sua eterna claridade o puro espírito do cristianismo no charco onde o mergulhou e afogou a vontade de um tirano devasso do século XVI e a vã presunção da sua filha, a pura, generosa e sábia Isabel, espécie de Concílio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglês. Dou vinte anos a todos os ideólogos para explicarem por outro sistema a transição monstruosa e in compreensível que fiz a semelhante respeito nestes gravíssimos estudos. Idealizei um inglês (foi façanha!), idealizei o meu bom prior, e no mundo da razão pura lá achei que havia entre essas existências, infinitamente opostas, uma afinidade: qual, não sei eu dizer, porque o esqueci: e, ainda que me lembrasse, não saberia exprimi-lo. Dada esta explicação aos pechosos, vamos às prometidas duas palavras sobre a festa.

Era um dia ardente de julho, a 27, coisa certíssima para o leitor, em consequência das minhas profundas investigações cronológicas. O Sol ia alto: a igreja paroquial, envolta no manto tricolor — branco, amarelo e vermelho cal, ocre, roxo-terra — parecia rir no seu júbilo. Um moço do Bartolomeu da Ventosa, rapazote de quinze anos, quatro meses, vinte e quatro dias e vinte e três horas e três quatros completos (por ter nascido a uma segunda-feira à meia-noite menos um quarto, de 2 para 3 de Março), neste grande dia do orago pilhara ao moleiro duas graças a um tempo, a de deixar em descanso o seu tonel das Danaides, a implacável joeira, e a de poder assistir à festa e ouvir a missa cantada e o sermão, em vez de ir acabar o pesado sono da madrugada à missa das almas. Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou, antes, Graviel, segundo a mais eufônica pronúncia saloia, vestiu logo pela manhã as suas calças e jaqueta de bombazina em folha e o seu colete vermelho, engenhado de um do patrão a troco de dois meses de sol dada, calçou as botifarras novas e enterrou o barrete azul e encarnado na cabeça, derrubando-o para trás, e, sem fazer caso do almoço (pois era uma açorda que os anjos a comeriam) desandou, outeiro abaixo, pela volta das sete e trinta e cinco minutos da manhã, caminho da paróquia. Via-se que um grande negócio lhe ocupava o espírito, por isso que levava os olhos cravados no campanário e, sem fazer caso das trilhas, cortava por entre as restevas, escorregando, aqui, nas pedras soltas, levando-as, acolá, diante dos bicos agudos das botifarras. Chegou. O sacristão, que estava à porta da igreja, apenas o lobrigou, pôs-se a rir, porque entendeu o verso. Gabriel era um dos maiores pimpões em repicar sinos que havia entre a rapaziada do lugar, mas desde que entrara para casa do Tio Bartolomeu, nunca mais pusera pé no campanário. Nos meneios, no gesto, no olhar lhe revia a sede, a ânsia, a saudade das harmonias risonhas, doidas, estrugidoras de um repique desenganado. Vinha tão cego, que só viu João Nepomuceno (assim se chamava o sacristão) quando deu de rosto com ele. Estacou embatucado; tirou o barrete e começou a coçar a região occipital, olhando de revés para o sacristão, que se encostara à ombreira com as mãos cruzadas atrás das costas, assobiando o Veni Creator.

“É-lé Graviel!”, disse este, por fim, com um sorriso. “Você hoje campou. O patrão é festeiro; fica o moinho a dormir! Hein? Galdere; não é assim? Mas, cos diabos! não sei como não vieste cá dormir. Botas os olhos acolá para o arraial. Vês? Duas bolacheiras e a Tia Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico apareceu para começar o repique. Pois para isso não é cedo, que a missa da festa é às dez em ponto, já o padre Chaparro e Fr. José dos Prazeres estão na sacristia e dizem que não tarda aí Fr. Narciso, que vem servir de mestre-de-cerimônias.”

“Ó sô João de Permecena!”, acudiu o saloio, que tornara, ao ouvir o nome do Chico, a enterrar o barrete na cabeça, mas desta vez à banda, “com a sua licença, há-me de perdoar: não sei o que fez em chamar num dia destes aquele jumento do Chico para tocar os sinos. Aquilo!? Ora deixe-me rir. Há de a fazer bonita; não tem dúvida! Olhe, sempre lhe digo...”

“Não digas nada: bem sei. Mas que dianho querias tu com uma cravela de doze que dá a menza da irmandade e nicles? Mesmo o Chico, deu-me água pela barba para o resolver. Se aquilo são uns dianhos de uns fonas!”

“Pois, se vossemecê quer”, interrompeu Gabriel, em cujos olhos se acendia o desejo, o deleite, a esperança, “eu lá vou. Hoje, o patrão deu-me licença até às trindades. Salto na torre e vai tudo raso. Toco até aquela cantiga de Lisboa, em que dizem que canta um tal Catragena em São Carlos... totro, trão-balão, re-pim, pi-ri-pim-pão.”

Entusiasmado, o moço do moleiro cantarolava imitando os sons de um sino, ou, antes, de um tacho, a música horrendamente aleijada, esfarrapada, assassinada, dueto de Assur e Semíramis: La sorte piu fiera. Se Rossini ali chegasse de súbito, ou não a conhecia, ou esganava-se. O sacristão estava enlevado.

“Homem!”, disse ele, quando Gabriel parou, “bom era isso: mas o Chico está ajustado; e já agora...”

“É que o Chico é o seu padagoz: há-me de dar licença que lho diga, Sr. João de Permecena!”, interrompeu o moço do moleiro, vendo apagar-se a luz que lhe iluminara o espírito. “Pois eu tocava aí a desbancar, ainda por menos: bastava que me pagasse um arrátel de bolachas e dois berimbaus.”

“Eu cá não tenho padagozes, homem! C'os dianhos!”, replicou o sacristão. “Se ele não estiver aqui às oito, dou-te a chave da torre, e são hoje teus os sinos. Quando quiseres terás as bolachas e os berimbaus.”

A proposta de Gabriel penetrara, como um bálsamo suave, na alma do sacristão: fazia a despesa com seis e meio e economizava o resto para a igreja, isto é, para si, como representante dela.

Gabriel saltou acima do parapeito do adro e pôs-se a olhar para o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o coração com força. Às oito horas devia nascer para ele um dia de glória e contentamento, ou de desdouro e zanguinha. Deram as oito. “Viva!”, bradou, saltando ao terreiro e correndo ao sacristão. “Venha!”, prosseguiu, lançando mão da chave da torre com tal violência, que João Nepomuceno por um triz não foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo.

“Dianho!... Safa, alimária! Forte doido!... Ó Gabriel! Ouve cá, Gabriel! Olha que está passada a corda da garrida...”

Qual Gabriel, nem meio Gabriel! Tinha desaparecido como um foguete. O sacristão levantou os olhos para o campanário e viu já as cordas a bambolearem e a desembaraçarem-se, como as tranças de nobre dama nas mãos subtis de aia jeitosa. Gabriel era, sem a menor sombra de dúvida, a flor e nata da rapaziada curiosa da aldeia.

Uma pancada retumbante e sonora no sino grande, a qual se repetiu lentamente algumas vezes, foi como um mensageiro, despedido por montes e vales, a anunciar um dia de repouso e folgares para o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais trabalhos rurais do Estio, durante os longos dias de trabalho. Era como o romper de vasta sinfonia. Gradualmente, os outros sinos misturaram as suas vozes argentinas com a do primeiro e a atmosfera esplêndida vibrou, ondeando em tempestade de notas, que se cruzavam, cortavam, interrompiam, lutavam, com bárbara harmonia. A princípio, Gabriel, pausado e lento, lançava sucessivamente uma ou outra mão a esta ou àquela corda; pouco a pouco, os movimentos tornaram-se mais rápidos e os sons que transudavam por todas as aberturas, pelos mínimos poros da torre, começaram a assemelhar-se ao granizo do noroeste, que, de instante a instante, se torna mais espesso ao passo que a nuvem corre mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delírio, uma fúria sonora. Gabriel estava tomado de campanomania; mãos, pés, dentes, tudo repicava. Enovelado, como um gatinho, que quer agarrar e ao mesmo tempo repelir um dixe que colheu às unhas, o bom rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia possesso: trepava, bracejava, careteava, tropeava, agachava-se, torcia-se, pulava, volteava, como se estivesse recebendo por todos os lados e a cada instante descargas elétricas. Insensível à matinada infernal que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel dirigia palavras de amor, de ameaça, de incitamento aos sinos, como se eles pudessem ouvi-lo. Queria comunicar-lhes o seu ardor e entusiasmo de diletante; e, como se o entendessem, dir-se-ia que, no contínuo vaivém, eles oscilavam trêmulos de prazer e tentavam desprender da pedra os braços robustos e voarem, como as aves que também soltavam livremente as suas harmonias, pela amplidão dos céus.

No fim de duas horas de lida, a natureza recuperou os seus direitos. Alagado em suor, perdido o alento, esgotados os brios e as forças, Gabriel afrouxara pouco e pouco. A estrepitosa e horrenda caricatura do dueto da Semíramis fora o canto do cisne. A viveza doidejante do repique converteu-se num tocar lento e solene, que ora imitava o dobre de finados, ora os três sinais melancólicos que indicam o fim do dia que expira.

Também era tempo. No seu banco, parte dos festeiros, cobertos de fitas e medalhas, esperavam já impacientes que o prior, o padre Chaparro e Fr. José dos Prazeres saíssem da sacristia para começar a missa. No coreto, as rabecas chiavam, cada vez com o ódio mais figadal entre si, ao passo que os virtuosos faziam todas as diligências possíveis para as por de acordo consigo mesmas e com os outros instrumentos. A gente, não só da aldeia, mas também dos casais e lugares vizinhos, afluindo de contínuo, enchiam a igreja, e o apertão, que ia a maior, começava a avariar os chapéus, os xales e os vestidos das aldeãs mais opulentas, que tinham obtido transfigurar-se horrendamente com os trajos das peralvilhas da capital, os quais harmonizavam tão bem com aqueles corpos mal acepilhados e robustos, com aqueles rostos morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orquestra se afinavam entre si.

Era um escândalo, profundo escândalo, para as beatas da freguesia, para as almas repassadas de patriotismo saloio, ver as novidades de vestuários que as corruptoras influências de Lisboa iam exercendo nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louçainhas. A honestidade das raparigas, entendiam aquelas matronas de virtude tão sólida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos, envolta nos farrapos das humilhadas salas de baeta vermelha, das abandonadas roupinhas de pano azul e das piramidais carapuças. A devassidão, embrulhada nos vestidos de chita, de lã e de seda e metida entre o forro dos chapéus de palha, penetrara no seio das famílias. Tudo estava perdido e a moral ia cada vez pior, diziam elas, com a filosofia maciça que o judicioso Horácio já gastava há dois mil anos e que é a mentira mais trivial, mais velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexões piedosas, as respeitáveis decanas da aldeia esqueciam, ou, antes, ignoravam, o único motivo sério que havia para lamentar aquela transformação. Era que esses trajos tornavam contrafeitas as raparigas aldeãs; matavam a poesia campestre; associavam ao idílio a valsa e o whist, e como que impregnavam a atmosfera, pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o ambiente pesado e abafadiço de tertúlia cortesã.

Mas antes de prosseguirmos nesta gravíssima história, é necessário que trepemos àquela encosta que fica em frente do presbitério e que vejamos o que é feito de um nosso conhecimento antigo, roda indispensável para o andamento da máquina de sucessos que vamos tecendo. Quem não vê que falamos do jovial e praguejador Bartolomeu, santo velho, se não fosse um desalmadíssimo avaro? O moleiro, desde que o filho casara, andava-lhe tudo à medida dos seus desejos. Era ganhar dinheiro como milho, e o futuro da família dos Ventosas surgia brilhante no horizonte. O Manuel estava, de feito, aposentado na azenha do Inácio Codeço e com uma labutação de por aí além. As peças do padre-prior tinham feito o milagre sonhado por Bartolomeu e ainda tinham sobrado algumas, que o honradíssimo moleiro associara às do seu mealheiro, para arranjar o Casal dos Caniços, de cuja venda já lhe dera palavra seu irmão Barnabé, a quem ele, havia dois meses, não deixava de dor de ilharga para que lhe tornasse as suas vinte moedas, que lhe eram indispensáveis, dizia o matreiro saloio, para pagar uma dívida contraída com um usurário de Lisboa por causa do casamento do seu Manuel, que se vira obrigado a arrumar. E, como Barnabé, que também era saloio e manhoso, lhe objetasse que só vendendo o Casal dos Caniços lhas poderia pagar de pronto e que era uma de seiscentos achar comprador que desse o que ele valia, Bartolomeu, aceso em amor fraterno, lhe declarou que o maldito usurário dera a entender que, se ele, Bartolomeu, tivesse umas terras que lhe empenhasse, esperaria pelo dinheiro com quaisquer cinco por cento ao mês; que, por isso, vendo-se naqueles apertos e aflições, faria o sacrifício de lhe tomar o casal pelas vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao mesmo usurário; porque — acrescentava ele, quase chorando — vão-se os anéis e Fiquem os dedos. Que ficaria arrasado, e a bem dizer a pedir esmola, porque, como ele, Barnabé, lhe afirmava todas as vezes que lhe ia pedir o seu dinheiro, as excomungadas das terras apenas davam para o fabrico. Enfim, tão despejadas mentiras pregou ao irmão, tanto o atenazou, tais artes teve de lhe converter as setas em grelhas, que as bichas pegaram e Barnabé deu o sim, a risco de estourar os ossos à Tia Vicência, sua respeitável consorte, à mínima pegadilha, ou de rebentar de paixão alguma noite na cama, como um Satanás se não desabafasse daquela grande mágoa com uma boa maçada na mulher, consolação que para um verdadeiro saloio é, nas aflições, o supra-sumo dos prós e percalços matrimoniais.

A Providência temperou as coisas deste mundo de modo que se podem simbolizar todas as felicidades dele numa ameixa saragoçana. Doçuras, suco, beleza externa, sim, senhor; tudo quanto quiserem: mas, no fim de contas, travo e mais travo ao pé do caroço. É o que explica, pé à pá Santa Justa, a teoria das compensações de Azaís. Mais um caso para mostrar as carradas de razão que Azaís tinha na sua grande cenreira a este respeito é o que sucedeu ao moleiro no dia em que Barnabé acabou de se resolver sobre o Casal dos Caniços. Tinha sido, justamente, no dia da festa pela manhã, que Barnabé fora com a sua Joana à missa das almas e viera pelo moinho almoçar com o irmão, que não lhe mostrou a melhor cara a princípio, mas que até mandou fazer uma fritada de meia quarta de linguiça e três ovos (um botou-se fora, porque estava goro) quando soube ao que ele vinha. Bartolomeu não cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados rio avental obra de dois arráteis de farinha, para fazer umas raivas, pondo lá o açúcar e os ovos e mandando-lhe metade delas, e, por mais que pai e filha se escusassem de aceitar o seu favor, embirrou e não houve torcê-lo. Estava naquele dia capaz de lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era, dizia ele, um pobre de Cristo. Logo que se foram, Bartolomeu deitou a correr para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas após outras, as vinte gavetas de um contador, mexeu e remexeu em todas elas, tornou a fechar e, fazendo contas de cabeça, começou a passear de um para outro lado do aposento, com as mãos cruzadas nas costas e entregue às suas preocupações.

Os adornos ou guarnição do quarto consistiam num leito de casados de pau-santo, de pés torneados e cabeceira redonda, tálamo nupcial, agora enlutado pela sempre chorada morte da Tia Genoveva da Ventosa, mãe de Manuel da Ventosa e mulher que fora do honrado Bartolomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitária rola (ou rolo ou rolho) naquele ninho silencioso, se encouchava triste nas longas noites de Inverno, aí, outrora tão felizes! O contador ficava em frente, ao lado um bufete, e sobre o bufete um oratório forrado de damasco amarelo, com sanefa encarnada. Sete santos povoavam o larário da defunta moleira: São Sérvulo, Santo Onofre, São Miguel, São Sebastião, São Gregório, Santo Antônio e São João Batista; este último no centro e em peanha mais elevada; Santo Antônio, à sua direita, com um cordão de ouro lançado ao pescoço, dando muitas voltas ao redor do corpo. Como suplemento, por cima da cabeceira da cama, uma lâmina da Senhora da Conceição e dois registros, um de Santa Bárbara e outro de Santa Rita; no tardoz da porta uma cruz de São Lázaro, pregada com massa. Uma arca da índia, com ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeças chatas, de duas polegadas de diâmetro, e quatro cadeiras de costas e assentos de couro lavrado completavam a mobília do aposento. No canto do bufete, quase à borda, estavam cravados um cruzado novo e um tostão falsos, memórias dolorosas de um mono que pregara certo padeiro de Lisboa ao moleiro na compra de uns sacos de farinha, história que, se eu a contasse, havia de fazer arrepiar o pelo aos leitores, mais do que as novelas de Ana Radcliffe.

“Dez centos de mil réis! Chumba-lhe!”, dizia o velho, esfregando as mãos, como um botecudo esfrega dois paus de que quer tirar lume e passeando com passos curtos e rápidos de um para outro lado. “É isso! Cem peças, setecentos e meio: quatrocentos pintos, dois centos menos oito: fazem novecentos e meio menos oito: duzentas cravelas de doze, meio cento menos dois: oito e dois dez: dez centos menos dez: oitenta de seis fazem duas moedas: duas moedas dez mil réis menos um cruzado: oito meios tostões quatro tostões: quatro tostões com... justamente, dez centos. Ah, sô Barnabé, quer setecentos? Hein? Com vinte moedas que já lá andam a juro, parece-me!... Quer ou não quer?” “Homem, isso é muito pouco...” “Pouco?! E doze moedas de foro?” “As terras dão bem para isso: só a Abrunhosa...” “Pois se dão, homem, paga-me as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!” 

E Bartolomeu ria a bom rir daquele diálogo que fantasiava travar com o irmão. De repente, porém, as feições contraídas pelo riso se lhe imobilizaram diante de uma ideia fatal. Barnabé podia dar com a língua nos dentes acerca do negócio, nalguma noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a vinho, conforme o seu costume, e sair um atravessador a picar-lhe o lanço; o Bento Rabicha, por exemplo, que tinha muito caroço e que era um dos da tripeça da bisca. Vinham-lhe calafrios com tal pensamento. Uma palavra, uma alusão perderia, talvez, tudo. Era verdadeira agonia a sua.

Costumado a implorar o céu nas grandes aflições, Bartolomeu, por uma daquelas sutilezas morais dos avaros que sabem conciliar a devoção com o seu vício hediondo, ajoelhou diante do oratório e, com lágrimas e fervorosas súplicas, começou a pedir a São João Baptista fizesse com que Barnabé não tugisse nem mugisse a semelhante respeito. Nas suas orações passou-lhe, talvez, pela cabeça a ideia de um estupor na língua de Barnabé. Desconfio: não o afirmo; porque não gosto de coisas ditas no ar. O que é certo é que procurou dar a entender ao santo que teria duas velas acesas e uma esmola para a sua festa, se as coisas lhe saíssem a jeito, exprimindo-se, todavia, por tal arte que não ficasse absolutamente preso pela palavra e pudesse roer a corda depois de se pilhar servido.

Enquanto o moleiro se debatia nestas tempestades de ambição, passava-se no presbitério a cena que já descrevi entre João Nepomuceno e Gabriel. A princípio, Bartolomeu, embebido nos seus cálculos, temores e rogativas, nem sequer ouvira os repiques variados e harmônicos Com que o rapaz do moinho rompera o seu grande e festivo concerto; mas, pouco a pouco, o motim dos sinos crescera a ponto que só os defuntos do cemitério poderiam ficar indiferentes a tão retumbantes belezas musicais. Na aldeia já ninguém se entendia no meio dessa procela de sons, que, trepando pelos outeiros ao redor e precipitando-se para os vales além, iam levar o ruído da festa e a glória de São Pantaleão às povoações vizinhas. Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquelas vibrações desalmadas fizeram-no despertar do êxtase de sovinaria devota que o arrebatava. Ergueu-se, chegou à janela, alçou a adufa, pôs-se a mirar o relógio de sol do campanário, piscando os olhos e fazendo com a mão uma espécie de pala para os defender da luz e, depois de se afirmar por um pedaço, deixando cair de golpe a adufa, correu à arca, murmurando: “Nove horas! já mais de nove horas! Esta, só por trezentos milheiros de diabos! E ainda tenho de me vestir! Com seiscentos diabos! Daqui a nada estão lá os outros. Ora o Diabo!...”

Estas imprecações em razão descendente, que o moleiro tinha sempre na boca por um mau hábito e que todas as pregações e remoques do padre-prior não tinham podido fazer perder àquela língua danada de Bartolomeu, nasciam de uma circunstância, na verdade séria. A função de igreja deveria começar às dez horas, e ele era um dos festeiros. O padre-prior tantas voltas dera que o obrigara a sê-lo e a esportular uma moeda para as despesas. Devemos acreditar que nunca o teria alcançado se não fosse o dote de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clérigo deixasse escapar alguma palavra. Ele aproveitara habilmente o caso para passar por bom pai e generoso e, ao mesmo tempo, para se esquivar ao menor ato de beneficência o resto da sua vida, afirmando que se empenhara até os olhos para comprar e reparar a azenha do Inácio Codeço, e estabelecer lá o seu rapaz, quando a verdade era que, comprada a azenha, posta a casa aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de três meses a dois moços, provida a despensa e deixadas algumas moedas para as despesas diárias, ainda certo número de louras do padre-prior tinham ido cair, como já disse, no escaninho onde jaziam, sem ver sol nem lua, aquelas que o moleiro acabava de contar. Obrigado por tal consideração, e à força de rogativos do pároco e das picuinhas de outros irmãos da Irmandade do Santíssimo, que se tinham metido no negócio, o moleiro achava-se elevado a uma situação que estava longe de ambicionar. Perdida a moeda, que ele havia de chorar toda a sua vida, importava-lhe não perder a consideração e valia na festa, valia que por tão alto e raivado preço comprara; era esse o risco que ele via iminente, ao menos em parte, se não estivesse a ponto de sair da sacristia para a capela-mor no préstito dos festeiros.

O dia começara bem; mas ia-se tornando aziago.

Apesar de velho, curto e barrigudo, o moleiro, não vendo nenhum outro meio de esquivar o contratempo que receava, apressou-se o mais que pôde em se adornar com o asseio e pontualidade que requeria o ato. Do fundo da arca saiu o arsenal completo para os dias de ver a Deus. Era respeitável pela antiguidade! Monumentos de mais felizes épocas, os arreios esplêndidos de Bartolomeu constavam de uns calções de gorgorão cor de tabaco, de um colete de veludo verde e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto passava há bem dezoito anos), antípoda da casaca peralvilha dos casquilhos daquele tempo. As minudências do trajo diplomático do moleiro compunham-se de um chapéu armado, de um pescoçinho com bofes, de umas meias de algodão brancas e de uns sapatos de entrada a baixo, ensebados de novo, com fivelas de prata, que batiam quase na vira, de um e de outro lado. Assim vestido, era um príncipe. Não; que lá isso é verdade; metia respeito! Apressado, vermelho, suando com a calma, bufava como um touro, encaminhando-se para a igreja. Os moços dos seus colegas, os de três padeiros que havia no lugar e os de cinco lavradores a quem costumava comprar os trigos, passando por ele, desbarretavam-se até baixo; a outra saloiada, especada pelo arraial, fazia menção de cortesia com o barrete: dos mendigos que começavam a apinhar-se para o lado do presbitério ao cheiro do bodo, uns, que não o conheciam, por virem de longe, estendiam-lhe a mão e davam-lhe senhorias, tudo em vão; outros, que eram dos arredores, rosnavam e praguejavam-no. Mas dessas rosnaduras e pragas ria-se ele. Na auréola de glória que o cercava já, que o ia cercar, ainda mais brilhante Bartolomeu estava tanto acima da maledicência daqueles madraços como os homens de Estado de qualquer partido costumam estar acima das ferretoadas, sovinadas e lambadas da imprensa periódica do partido contrário, segundo afirmam os da sua parcialidade: vide jornais de todas as cores e cambiantes, passim. Como os políticos, o moleiro podia dizer, pondo a mão no coração “a minha consciência”, “a minha honra”, “a opinião pública”, “os meus serviços”, “a nação”, “a posteridade”, e depois tossir e escarrar grosso, e seguir avante, sem se embaraçar com aquele rosnatório despeitoso e zangado; porque, como bem disse um poeta de filosofia ancha:

O prêmio da virtude é a virtude:
O castigo do vício o próprio Vício.

E foi o que Bartolomeu fez: e com razão. Não eram os respeitos dos moços e dos outros moleiros e dos lavradores seus fregueses e os dos pobres que o avaliavam pelo sécio dos trajos a prova cabal e indestrutível da sua popularidade? Eram. Que caso devia, pois, fazer dos zunzuns de meia dúzia de farroupilhas? Nenhum. Eu cá, pelo menos, sou de opinião que fez bem prosseguindo no seu caminho, tranquilo com o testemunho de uma voz íntima, que o certificava de que era homem de importância e digno por todos os títulos de representar o papel de festeiro a que fora chamado.

Mas a nobre altivez do moleiro e a firmeza que mostrara em não deslizar um ápice do caráter grave e sobranceiro que era próprio da sua situação tinham de ser postas à mais dura prova. O momento em que chegou ao adro foi aziago. Aí viu e ouviu coisas que o fizeram sair da gravidade e compostura que até então guardara. O que o negócio deu de si vê-lo-á o leitor no prosseguimento desta história, que poderá ter mil defeitos, mas que (não é por me gabar) tenho levado com toda a pontualidade na cronologia e na averiguação dos mais miúdos fatos que possam ilustrá-la.


VII — TANTAENE ANIMIS? 
Quando Bartolomeu ia entrando no adro, viu um taful e uma senhora que, à porta da igreja, forcejavam para romper a pinha de povo que a obstruía. Vistos assim pelas cestas, pareciam pessoas de conta. Trajava ela um vestido de seda preta, um grande xale vermelho e um chapéu, franzido à inglesa, cor de café: ele calça e casaca preta da moda e chapéu fino, posto que já amarrotado pelos apertões da saloiada, que, fingindo quererem abrir caminho ao elegante par, cada vez se uniam mais, olhando uns para os outros com aquele sorriso de socapa e malévolo que é peculiar dos campônios quando colhem algum indivíduo, cujo porte e aparência os humilha, para vítima das suas graças e perrarias, um pouco abrutadas.

O moleiro tinha nascido naqueles sítios, nunca dormira uma noite fora do lugar, lidava com muita gente em consequência do seu tráfego, ia-lhe já a neve pela serra e, por isso, conhecia perfeitamente os hábitos, propensões e manhas dos seus patrícios. Percebeu logo que os saloios estavam de embirração com as duas personagens cortesãs e desenganou-se de todo, vendo vir do lado da igreja um dos moços do Agostinho da tenda, que, fingindo-se bêbado e cambaleando, dizia: “Cresça o Monte, rapazes; cresça o monte!”

O magnetismo animal é um mistério ainda: a extensão das afinidades magnéticas ninguém a pode demarcar. De homem para homem elas são indubitáveis; mas, porventura, vão mais longe. Ao menos, eu creio que os calções, a casaca e o chapéu armado do moleiro atuavam fortemente no seu espírito por influência oculta. Sentia no coração uma espécie de cócegas aristocráticas, uma vontade de mostrar o que podia e valia aos nobres hóspedes da sua terra, que, pretendendo assistir à festa, se colocavam naturalmente debaixo da sua proteção, como festeiro. Era esta uma ideia que não lhe viria à cabeça quando trajava os seus calções enfarinhados, o seu colete assertoado e a sua jaqueta de saragoça. Mas veio-lhe então, misteriosa, irrefletida, forçosa, posto que sem quebra da liberdade de a rejeitar, semelhante, se a comparação fosse lícita, à graça eficaz. Aproximou-se, pois, abrindo passagem por entre a turbamulta. O primeiro indivíduo com quem topou em cheio foi com Gabriel, que, tendo saído do campanário, tratava também de penetrar na igreja para ajustar contas com o sacristão, logo que se lhe oferecesse oportunidade. Para aproveitar o tempo, Gabriel, informado do que se passava, ia ajudando a aumentar o apertão que crescia cada vez mais, de modo que a dama do xale e o dândi de preto, entalados junto do guarda-vento, nem podiam recuar nem surdir avante. Apesar, porém, da pequenez do seu corpo, Gabriel parecia ter de olho as duas vítimas, como receoso de que, voltando a cabeça, o lobrigassem. Careteava, ria, empurrava com alma; mas, de instante a instante, punha-se nos bicos dos pés, espreitava por cima dos ombros e por entre as cabeças dos vizinhos, agachava-se, ao menor movimento que via fazer aos dois, tornava a empurrar e, nesta lida, o garoto renovava, incansável em novo combate, as façanhas que, havia pouco, praticara no sempre memorando repique.

“Mariola!”, rosnou colérico o moleiro por entre os dentes cerrados, ao chegar ao apertão e agarrando de súbito as orelhas de Gabriel, que, com uma cara onde assomava o choro, encolhia a cabeça entre os ombros, mal comparado, como um caracol quando lhe puxam os tentáculos. Não tanto pela voz, como pelo contato das mãos, assaz conhecidas daquelas pobres orelhas, Gabriel sentira o patrão. Era, todavia, já tarde.

“Mariola!”, repetiu Bartolomeu, com o mesmo grito mal sopeado de cólera. E ouviu-se o tinir duvidoso de uma fivela, acompanhado de um som baço, como quem dissera o do bico de um sapato grosso batendo sobre uma pouca de bombazina estufada de certa porção convexa de carne humana. Gabriel descreveu com o corpo um arco, mas no sentido inverso ao de quem faz cortesia profunda. E começou a soluçar.

“Mariola!”, acrescentou, ainda outra vez, o moleiro, com aquele fatal rugido que significava o seu profundo despeito. Ao dito seguiu-se rapidamente o feito. Largou as orelhas do rapaz: recuou o braço, cerrou o punho e desfechou-lhe tal murro no toutiço, que Gabriel foi ao chão.

A princípio, uma certa contemplação com a idade, com o caráter e, mais que tudo, com a fama de ricaço de que Bartolomeu gozava, conteve os murmúrios dos poucos a quem as diligências comuns para penetrar na igreja tinham consentido atender ao duro castigo que convertera Gabriel num como bode emissário dos pecados de muitos. Quando, porém, o mesquinho rapaz caiu em terra, a indignação dos seus co-réus rebentou. O moço do Agostinho, posto que a medo, levantou a antífona.

“Também é bater à bruta! Agora, a prove criança fez-lhe algum mal?! Vá bater assim no Diabo. Olhe não matasse aqueles milordes!...”

“Entre, Sô Doutor!”, atalhou Bartolomeu, atirando umas escorralhas de pontapé que ainda lhe titilavam nos tendões da perna direita ao limite inferior das vértebras de Gabriel, já que não podia sem risco aplicá-las ao orador. Essa fora, todavia, a sua primeira inspiração.

“Ai, é para isso que uma mãe cria um filho! Coitadinho, já não tens pai! Não foras tu orfo e prove. Mas, cala-te, boca. A gente sempre vê coisas!”

Ouvindo estas palavras, proferidas por uma voz feminina conhecida, o velho moleiro voltou-se. Era a Sra. Perpétua Rosa, que, em companhia da ama do prior, tinha chegado naquele instante a mata-cavalos, por se haverem ambas entretido a examinar umas meadas que a Tia Jerônima dera a curar à lavadeira e que esta, vindo ara a festa, de caminho lhe fora entregar. Posto que ligados, até certo ponto, pelo casamento dos seus filhos, a mútua má vontade da lavadeira e do moleiro, alimentada por largo tempo, tinha sido como o escalracho: cada ano profundara mais um palmo de raízes. Só havia uma diferença, e era que Perpétua Rosa, protegida pelo genro, perdera pouco a pouco o medo que tomara a Bartolomeu desde aquela história das sacas e já se engrifava para ele sem cerimônia. Encontrando-se às vezes na azenha, nem uma só deixavam de se travar de razões por qualquer palha podre. De resto, tratavam-se com aparente cordialidade. Era como a aliança e simpatia atual entre a França e a Inglaterra.

“Pois não, sua lambisgoia!”, acudiu o moleiro, fazendo-se vermelho. “Acha você muito bonito que meia dúzia de patifes estejam judiando com as pessoas que querem entrar na igreja? Com um quarteirão de diabos! Quem dá o pão dá o ensino; e este, pelo menos, hei de eu ensiná-lo!... Rosna pra aí, pedaço de bruxa velha”, acrescentou ele, vendo que Perpétua Rosa continuava a resmonear, já com acompanhamento de: “tem razão, Tia Perpétua!”, “olha o maluco!”, “se queres ver o vilão, mete-lhe a vara na mão!”, “é agora o senhor assaluto!”. Era uma tempestade iminente: era a revolta eterna do pobre contra o abastado, que resfolga pelo mínimo respiradouro. E o sussurro crescia, e Bartolomeu, sufocado pela raiva, batia o pé, e debalde tentava cuspir por cima daquela quase algazarra as pragas, as injúrias, as ameaças, que lhe faziam maior entupimento na garganta do que pão de cevada faria em goelas de peralvilho dengoso. Vingava-se, é verdade, em servir de coices e cachações o mísero Gabriel, que se lhe rebolava aos pés; mas isto não era senão botar lenha ao forno e aumentar cada vez mais o tumulto. A hirta mó de saloios ao pé do guarda-vento tornava-se mais flexível, ondeava, alargava-se, dissolvia-se e vinha aglomerar-se de novo em volta de Bartolomeu, curiosos de indagarem o motivo daquela assuada. Falavam todos a um tempo: no meio do burburinho já ninguém se entendia; e, apesar da cólera e da sua habitual firmeza, o moleiro começava a titubear.

Na fúria em que estava incendido contra Perpétua Rosa, contra a ama do prior, que também tinha desembainhado a língua em defesa de Gabriel, e contra outras duas velhas do lugar que ajudavam a atenazá-lo, Bartolomeu não reparou que o taful, por cuja causa se metera naquela nora, forcejava por chegar ao pé dele. Por fim, foi a própria Perpétua Rosa que o fez atentar por isso.

“Venha, Manuel, venha cá: olhe a figura que está fazendo seu pai. Forte toirão! Abrenúncio!”

A isto o moleiro alçou os olhos para aquela parte e viu... Quem havia ele de ver? O seu Manuel, que com efeito, rompia entre a turba, aproximando-se, seguido de Bernardina, que, lá de longe fazia esgares e visagens à Sra. Perpétua Rosa e à Tia Jerônima para que se calassem. Os dois tafuis, os dois milordes, os dois fidalgos, por quem Bartolomeu afrontava as iras populares, eram, nem mais nem menos, seu filho e a sua nora. Ficou parvo. O luxo dos noivos fez-lhe esquecer Gabriel, as velhas, as injúrias, tudo. Como o corpo eletrizado pelo contato da resina, que é repelido ao chegarem-no de novo a ela e desembesta para o vidro se lho aproximam, a sanhuda indignação do moleiro nordesteou para as novas vítimas. Cingiu involuntariamente as algibeiras com as mãos; porque cada uma delas se lhe figurou convertida num repuxo de cruzados novos, que, descrevendo uma curva parabólica, iam cair nos balcões dos arruamentos de Lisboa. Depois, fincando os punhos cerrados nos vazios e abanando a cabeça de um para outro lado, poder-se-ia comparar ao oceano, nos momentos que precedem a tempestade, quando as vagas, profundamente revoltas, ainda se não encrespam em carneiradas, mas banzam, como sonolentas, espertando-se para o combate.

Passa a França pela terra clássica da galanteria. Parece que o belo sexo tem ali o seu trono. Neste ponto cedem a palma aos Franceses os outros povos. Dizem-no todos; mas eu digo que não. Vence-os esta namorada terra de Portugal. Os nossos afetos serão menos ruidosos, menos rendidos; são, porém, mais ardentes e duradoiros. Se as frases de uma língua podem, muitas vezes, servir para revelar o caráter, os costumes e, até, a história da nação que a fala, a nossa língua e a francesa nos oferecem argumento da existência dessa superioridade do coração, pela qual eu ponho, não digo a cabeça, mas quase. E, senão, respondam-me. Que incêndio seria maior: aquele que precisasse de um ano para amortecer e extinguir-se, ou o que durasse apenas um mês? Indubitavelmente o primeiro. Belamente. Venhamos agora à hipótese. O matrimônio é, da sua natureza, resfriativo: a paixão mais violenta acalma, entibia-se, entisica e morre com o trato doméstico; e feliz se pode chamar a união em que a amizade e a estima vem substituir os sonhos e delírios do amor já saciado. Há, todavia, um período em que, apesar de satisfeito, ele resiste ainda: é durante o lento desabar das ilusões, que vão caindo peça a peça. Nesse período, ainda aos casados cabe o nome poético de amantes; depois é que se chamam a coisa mais prosaica e positiva que se conhece no mundo; chamam-se marido e mulher. Esta época transitória tem a sua fórmula diversa conforme as diversas línguas. Exprime-a em francês a frase lua-de-mel: o português diz ano de noivos. É claro que em Portugal resiste o amor ao matrimônio doze vezes mais que em França. Lá um mês; cá um ano. Fiquem as raparigas de aviso: nada de amores com estrangeiros: Se em França, num mês, colhem todo o fruto da vitória, que será por essas terras de Cristo mais geladas e nevoentas? Eu, por mim, façam lá o que quiserem. Lavo daí minhas mãos.

Bernardina, essa é que a dera em cheio casando com o Manuel da Ventosa. Aos quatro meses de noivo era ainda um baboso por ela. No princípio de julho ajustara contas com os compradores das maquias da azenha e recebera algumas moedas: a festa da aldeia estava próxima: Bernardina morria por tafularia: o moço moleiro também não lhe era avesso. Tinham o vício instintivo da gente nova, vício legítimo, se em vícios se pode dar legitimidade. Duas forças arrastavam, pois, o pobre Manuel da Ventosa: o amor e a própria inclinação. D. Tomásia, irmã do mestre-escola da aldeia (se Deus me der vida e saúde, ainda talvez um dia conte a história do digno professor), vivera na corte muitos anos com o sábio mano. Nisto de modas falava que nem um livro. Quando ia por acaso a Lisboa, nunca deixava de visitar duas ou três modistas suas conhecidas, de maneira que, por assim dizer, andava sempre ao par da ciência. Foi num aposento interior, no sancta sanctorum da residência magistral, que se traçou, discutiu e resolveu a conspiração que devia baralhar os cálculos de Bartolomeu sobre as maquias da azenha naquele semestre. Seis moedas foram ali barbaramente espatifadas. Foi um orçamento perfeito: talhou-se por cima da risca do necessário e gastou-se; gastou-se, daí a poucos dias, até o último real, já se sabe, com severíssimas economias, ficando-se devendo apenas uns três mil e seiscentos a D. Margarida, famosa modista daquele tempo. A campanha fez-se do modo seguinte: Manuel da Ventosa acompanhou D. Tomásia a Lisboa, para umas compras de certos arranjos domésticos, de que ela dizia muito carecer. Os arranjos eram os da fatal conspiração contra o velho Bartolomeu. Os trances de esperança e de receio do bom ou mau desempenho de D. Tomásia porque passou Bernardina, enquanto os dois não voltaram, não cabe no possível narrá-lo. Apesar disso, a elegância com que se imaginava trajada e trajado o seu homem namorava-a de si mesma e dobradamente dele. Chegava a ter ciúmes das olhaduras que deitariam ao Manuel as outras raparigas, sem que por isso deixasse de admitir, com certa complacência inocente, a ideia do quanto a tinham de achar atrativa os rapazes da aldeia. Enfim, é aqui o caso de dizer com o poeta, acerca do que se passava no coração da moleira: 

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas Julgue-o quem não pode experimentá-lo.

Voltaram os dois às trindades. O escolar valido do mestre, que aviava os recados de casa, tinha acompanhado a expedição. Num grande saco de damasco amarelo, herdado por D. Tomásia da sua avó materna, e em duas grandes caixas de papelão, trazia o rapaz os almejados adornos. Quem diria que o monumental saco era a boceta de Pandora!? Pois era. Bernardina saltou de contente ao desenfardelar aquela feira: estava vestida à moda desde os pés até à cabeça, posto que o seu Manuel houvesse cortado para si uma posta de leão. Digo isto porque, apesar de toda a farandulagem feminina que a boa da irmã do professor escolhera com fino tato, quatro moedas tinham ficado no Adrião, num chapeleiro do Rossio e num sapateiro aí próximo, não me lembra em que rua, porque isto já lá vai há muito tempo e a história está sujeita a estas deploráveis lacunas. O caso é que ele, pela sua parte, envergada aquela fatiota, poderia, sem grande favor, passar por um fidalgo de província chegado de três dias à corte. Fugia-lhe tudo um és não és do corpo e tolhia-o, é verdade; mas ficava um mocetão teso; um milorde, como diria o jovem do Agostinho da tenda.

Segredo, segredo profundíssimo (semelhante ao da nossa tão célebre conspiração em 1640 contra os Castelhanos, da qual só, talvez, sabia o primeiro-ministro de Castela) se guardou na azenha, olim de Inácio Codeço, acerca de todas aquelas tafularias. Quantas vezes não se vestiram a casaca e o vestido de seda! Quantas vezes se não puseram a casaca e o chapéu de castor e o franzido! Que reviravoltas se não deram, que visagens se não fizeram diante de um espelho de espinheiro, com as suas cortinas de paninho, que adornava a casa de fora, sobre uma cômoda de vinhático oleado, cujas puxadeiras de metal amarelo luziam que nem ouro! Que disputas não houve sobre o abotoar e o desabotoar, o atacar e o desatacar, o pôr o chapéu assim e o pôr o chapéu assado! E D. Tomásia, que presidia àquelas conclusões, da alteza da ciência punha termo à questão com o seu parecer decisivo, magistral, oracular. No grande dia da festa, a vaidade daquelas duas criançolas, satisfeita com a admiração popular, não valeria, não podia valer, o deleite que a antevista glória desse dia lhes dava em imaginação. Ai, assim são todas as ambições e esperanças humanas! O gozo é sempre o desengano, mais ou menos ensosso, das fascinações do desejo.

Mas havia uma nuvem negra que entenebrecia o brilho de tão completa felicidade. Era a lembrança do gemo de Bartolomeu. As vezes, no meio dos mais festivos comentários sobre a grande vista que tinham de fazer com as inopinadas sécias, a figura do moleiro surgia terrível, enrugada a testa pela severidade, os olhos-ervilhacas faiscantes de cólera, a boca borbulhando pragas. Bartolomeu cortava com o seu vulto ameaçador aquela linda página dos sonhos da vida, bem como o pingo de amarelado simonte (perdoe-se o enxovalhado do símile em favor da exação) que, rolando insensivelmente pelo estendido beiço do velho sapateiro, vai cair sobre o Carlos Magno, aberto em cima dos joelhos e, espalmando-se arredondado sobre as linhas mais interessantes do livro imortal, embacia e mata as chispas de Alta— Clara no momento em que ela rompe o arnês de Ferrabrás. E o mestre para e assoa-se; mas a interrupção fatal desvanece as ilusões dos oficiais ouvintes e, descerrando-lhes os dentes, lhes quebra os brios com que puxavam a encerolada linha ou cravavam os pinos no alteroso tacão.

Uma ideia, todavia, asserenava logo a alma de Manuel da Ventosa: o furacão paterno estava certo; mas devia ser passageiro. Ele não havia de pôr-se a ralhar nenhuns vinte anos. Era um dia ou dois, e aquelas louçainhas ficavam para toda a vida. Dilatava-se-lhe esta por horizontes tão ilimitados! O bom do rapaz ainda não dobrara o melancólico padrão de trinta anos, donde só se começa a medir bem com os olhos o curto caminho-de-ferro entre o berço e a cova, pelo qual vai correndo esta espécie de locomotiva chamada existência humana.

Aqui tem, pois, o leitor que gostar da história lardeada de todas as investigações, exibições e minudências gravíssimas de que ela se costuma temperar, com tanto juízo e talento, nesta nossa terra, as causas e itens mais remotos e recônditos da dificultosa situação em que achamos Bartolomeu, à vista da descomunal tafularia do filho e da nora, cuja defesa tomara sem os conhecer, como verdadeiro paladino, e que dava de todo coração ao Demo desde que vira assim arder sem remédio o seu remédio, como diriam o elegante autor dos Cristais da Alma, ou os poetas da Fênix Renascida.

Banzou por alguns momentos o velho. A transição era demasiado violenta e rápida e a revolução que se operava na sua alma vinha grávida de uma apoplexia. Indicavam-no as velas da cara, que engrossavam, a vermelhidão do rosto, que ia tirando a roxo. Semelhante ao hesitar da grimpa no topo do campanário, quando, em trovoada iminente, lutam dois ventos contrários, Bartolomeu não sabia se repelisse as insolências de Perpétua Rosa, que tivera a ousadia de chamar-lhe toirão, se descarregasse a cólera que o asfixiava sobre os dois bárbaros delapidadores da quase sua fazenda; quase sua, digo, porque o moleiro bem sabia que a azenha, comprada com o dote de Bernardina, era, em rigor, deles, e, por consequência, deles o seu rendimento, que, por paternal precaução, se encarregara de administrar e poupar.

Mas a avareza, superior ao orgulho no ânimo do velho, fez desembestar para o lado dos noivos o vento da cólera. Abandonando o arranhado e moído Gabriel, rompeu para os novos criminosos, que assim de súbito ousavam apresentar-se no seu inexorável tribunal. Andando, as mãos contraíam-se-lhe por espasmo nervoso, como as garras aduncas do gerifalte, e, ao chegar ao pé deles, lançou uma à gola da casaca do Manuel e outra ao braço de Bernardina. Eram duas tenazes de ferro.

“Que patifaria é esta, sô tratante?”, disse, dirigindo-se ao filho em voz baixa, rouca e, de vez em quando, apipiada pela indignação que lha tolhia. “Você não sabe que o dinheiro custa a ganhar? Para que é essa trapagem toda? Com quê, já a sua jaqueta azul tem bichos? E cá a grandessíssima tola não podia passar sem sedas? Não se lembra do tempo em que andava de sapatas atrás das vacas da Josefa Enguia? Diga, senhora mosca-morta... Olha a sonsa, que parece não quebra um prato! Anda-se um homem a matar para lhes fazer casa, e vossemecês, senhores badamecos, a botar o suor da gente pela porta fora. E eu sem saber nada disto! Com trezentas carradas de diabos! Pena tenho eu de que essa mariolada os não pusesse num frangalho. Não têm vergonha de se fazerem alvo do povo e de se arruinarem e arruinarem-me a mim, que toda a vida tenho labutado para viver com a minha cara descoberta?... Ó desalmado”, prosseguiu depois de um instante de silêncio, “que contas me hás de tu dar do dinheiro que extravaganciaste e que é preciso para me acabar de desempenhar da compra da azenhas?”

Neste momento, o discurso de Bartolomeu, que se Ia encaminhando ao patético, foi interrompido por um rir esganiçado e trêmulo, que lhe chiou ao pé dos ouvidos. Era o caso que Perpétua Rosa o seguira sem que ele reparasse em tal e se pusera a escutá-lo atentamente. A última frase que a boa da velha ouvira tinha produzido nela tão súbita hilariedade.

“E ri-se você, sua atrevida?!”, exclamou o moleiro, voltando-se para a Perpétua Rosa. “É natural que fosse intrépece nesta alhada...”

“Pois você na quer que eu ria a arrebentar ouvindo-lhe essas lérias da compra da azenha? Calo-me eu, bem sei porquê. Mas sempre lhe digo que está paga e repaga. O meu dinheiro, teu dinheiro... Entende-me Sr. Bertolameu! Minha filha não velo descalça...”

“Ó diabo de bruxa!”, exclamou o moleiro fora de si. “Dão-me inguinações de t'esganar! Olha a piolhosa, a estraga-albardas, que me deu cabo de seis sacas, as melhores que eu tinha, por desmazelada...”

“Já lho disse, seu mirra-mofina, seu manita de carneiro assado, seu sovina-mor! Não me faça falar. Olhe que eu não tenho papas na língua...”

“Um estupor tivesses tu nela, que te pusesse a boca à banda, aldrabista de centopeia, basculho de chaminé, carraça do Inferno! Falta agora que a senhora diga que a lesma da filha trouxe para o casal mundos e fundos!”

“Antão, como mexe nessa borbulha?”, acudiu Perpétua Rosa, agarrando o moleiro por uma das largas abas da veneranda casaca e sacudindo-o com força. “É preciso que não faça da gente tola. Assim o quis, assim o tenha. Saibam vocês”, isto dizia-o voltando-se para cinco ou seis velhas que faziam roda e segredavam umas com outras, “saibam vocês que o Sr. Bertolameu da Ventosa recebeu mais de cinco centos de mil réis de dote...”

“Eu deito-me a perder com este diabo!”, interrompeu o moleiro, fazendo-se fulo e soltando as mãos do braço de Bernardina e da gola do seu Manuel, para as lançar no gasnete de Perpétua Rosa. “Ó língua perversa! Quais quinhentos mil réis?!...”

“Os que o meu amo tinha juntado grão a grão, como se lá diz, à custa do suor do seu rosto, com muito glória in incelsis muito bem cantado, e muito enterro feito, e as suas bátegas d'água nos ossos, e muito sermão pregado, e muito arranjo e poupança desta sua criada, Sr. Bertolameu. Sr. Bertolameu, tenha propósito! que quem pão diz não houve; que lá reza o ditado: manha do açougue, e com vilão, vilão e meio. Foram setenta caras; salvo seja! Vi-as contar com estes olhos, que hão de comer a terra... E quem as arrecebeu? Nanja eu. Assim compra-se muita coisa e arrotam-se postas de pescada. Diz bem, Sra. Perpétua Rosa; diz bem! Quem perdeu, perdeu; mas não queiram meter os dedos pelos olhos à gente. Nunca \i criatura assim: t'arrenego!”

Este brilhante discurso, até certo ponto, e debaixo de certos aspectos, quase parlamentar, fez voltar o catavento de raiva do moleiro para a oradora, que não era ninguém menos que a Tia Jerônima, a qual abicara ao pé dele, na alheta de Perpétua Rosa.

Bartolomeu andava-lhe já a cabeça à roda e fugia-lhe o lume dos olhos. Largou os gorgomilos da sua estimável consogra e começou a menear os braços, por tal jeito que faziam lembrar as velas do moinho da Ventosa. Os olhos saíam-lhe das órbitas e a escuma dos cantos da boca: quase não podia falar. Entretanto, Perpétua Rosa, solta do feroz amplexo, exclamava:

“Pouca vergonha! Pôr as mãos na cara de uma mulher velha, este gaiato!”

À palavra “gaiato” homens, rapazes, mulheres, que de instante a instante aumentavam a roda, ninguém se pôde conter pelo contraste monstruoso entre semelhante epíteto e o vulto de capitão holandês, romboidal, vermelho, rugoso, quadrangular, irritado, do moleiro. Foi uma cachinada, um palmear, um ah ah ah... ih ih ih... um assobiar de garotos, que fazia tremer as carnes. Debalde Bartolomeu tentava fazer ouvir as suas explicações: o estrépito oposicionista embaraçava a atrapalhada voz do ministro, que pretendia desemaranhar aquela inextricável questão de orçamento. Ninguém se entendia: era completamente parlamentar.

Neste momento, à porta de um corredor, que dava para a sacristia, apareceu de súbito, já meio revestido, o padre-prior. O motim do adro tinha ecoado lá dentro. A vista daquele aspeto venerável e venerado, fez-se pronto e profundo silêncio.

“Que estrupida é esta?”, perguntou o velho pároco, com aspeto carregado e voz severa. “É na vizinhança da casa de Deus, na hora em que vão celebrar-se os divinos mistérios, que os meus honrados paroquianos vêm tecer disputas e travar-se de razões em vez de guardarem a compostura e devoção com que devem preparar-se para o tremendo sacrifício do altar? Rixas e apupadas no dia do, bem-aventurado São Pantaleão?! Não o sofro. Vamos, expliquem-me a causa de tal barulho. Que foi isto?”

“São estas descaradas...”, gritou Bartolomeu.

“Saiba vossenhoria...”, acudiu, ao mesmo tempo, a Tia Jerônima.

“E este insolente...”, interrompeu Perpétua Rosa.

“Não é nada padre-prior; não é nada”, diziam Conjuntamente o Manuel e a Bernardina, mais com a mão, fazendo gestos negativos, que com as palavras, enredadas ininteligivelmente com as do moleiro, da ama e da lavadeira.

“Fale um!”, gritou o prior. “Assim, fico jejuando.”

“Foi...”, disseram todos aos mesmo tempo.

“Pior!”, acudiu o pároco. “Cada um pela sua vez. Vamos.”

“Saiba vossenhoria...”, vociferou o moleiro, ganiu Perpétua Rosa, flautou a ama, murmurou o Manuel, pipitou a Bernardina, exclamaram os circunstantes. “Visto isso, é impossível saber de que se trata?”, interrompeu de novo o prior. “Está bom... Não importa! Depois da festa averiguaremos o caso. Tudo para dentro já! Vá tomar o seu lugar, Bartolomeu. Estão os mesários à espera e você entretido aqui com estas toleironas! Vamos. Nem mais uma palavra.”

E, dizendo e fazendo, recolhia-se para a sacristia. No relógio de sol, o gnómon estendia exatamente a sua sombra sobre o ponto de intersecção marcado pelo X. As rabecas soltaram a sua chiadeira quase harmônica e o grupo, desfazendo-se, escoou-se pelo portal tricêntico, cujas pedras a broxa vandálica havia amarelado; e dentro de poucos instantes o adro ficou silencioso e deserto.

Os instrumentos também fizeram silêncio passados alguns minutos e sussurrou lá dentro uma voz humana, cansada e débil, que entoava com suave melopeia:

“Introibo adaltare Dei.”


VIII — GLÓRIA AO PADRE— PRIOR!

Estamos à porta da igreja. A saloiada metemo-la dentro. O padre-mestre Prazeres, o padre Chaparro e o padre-prior, não sei se daqui os veem na capela-mor. Fr. Narciso gira, mira, vira, revira tudo, na credência, no altar, na banqueta. O cerimonial romano é um mundo de ideias que ele dispôs nos diversos repartimentos cerebrais, com uma compreensão, um tino, uma lógica de por aí além. Fr. Narciso tem de olho o padre Chaparro, que foi toda a vida um tonto em liturgia e assim há de morrer. General naquele conflito, Fr. Narciso, está alerta; nem seiscentos Chaparros seriam capazes de lhe entortarem uma ou mil missas cantadas. Em semelhantes ocasiões, o veterano mestre-de-cerimônias contempla impassível da altura da ciência as evoluções dos seus subordinados: tudo abrange, tudo prevê, tudo dirige tranquilo. E não solta uma única voz: não repreende, não incita, não ameaça. Uns beiços estendidos e inclinados à esquerda fazem parar o missal, que ia a ser extemporaneamente arrebatado da banda da epístola para a do evangelho; uns olhos trasbordando pelas pálpebras, acompanhados de um oscilar de cabeça rápido, horizontal e fugitivo, inteiriçam os joelhos, que vão a vergar em genuflexão deslocada. Enfim, para que estarmos a matar-nos? Como o nome de Fr. Timóteo na parenética, o de Fr. Narciso, na liturgia, será o nome que a história transportará às mais remotas eras, enquanto as glórias da família arrábida durarem na posteridade.

O introibo entoou-se: o negócio está agora em mãos de mestre: podemos ficar descansados com a festividade. Como o calor da igreja é muito, venhamos eu e o leitor conversar um pouco à fresca sombra dos plátanos do adro. Tenho explicações indispensáveis que lhe fazer; dê por onde der, embora ouçamos a missa descabeçada.

Sou homem de bofes lavados, como diziam os nossos velhos, e não gosto de que me estejam a morder na pele por causa de lacunas, mistérios ou contradições nas minhas narrativas. Menos isso. A história é a história, e não se hão de deixar por aqui e por ali obscuridades e incertezas que façam suar o topete às academias futuras: muito mais que há aí uns quidams, cujo ofício é esmiuçar, anatomizar e criticar os escritos alheios e que lhes fazem os mais cruéis e desalmados processos verbais que é possível imaginar, não lhes escapando período nem linha, ponto nem vírgula. Crítica rosnada pelos cantos é a destes, semelhante ao bisbilhotar da cozinheira com a criada da vizinha, à janela do saguão, sobre os talhos que a ama deu ao presunto ou sobre o mais ou menos acogulado da medida dos feijões-fradinhos. É por isso que tais críticas chamo eu verbais; verbais porque seus atores daí não podem passar. Coitados! Escreveriam vinte heresias se copiassem o padre-nosso. São os alcaiotes dos lapsus linguae, os mexeriqueiros dos atos de memória. No vento e com vento compõem: vivem de epigramas agudos como tranca: morrem sem deixar vestígio. Literatos a barbas enxutas, eruditos lendo ainda por baixo, passam nas trevas, como a coruja; mas, bem como a coruja, roçando as asas, que salpicou na alâmpada, pela alva toalha do altar, a deixa enodoada, assim a página pura, afagada de tanto amor do artista, estudada com tão sincera consciência lá recebe, na tertúlia de parvos, a dedada torpe e sebenta de um chapadíssimo tolo.

Não sou dos mais queixosos; todavia, guardo acatamento profundo a essas caricaturas de adibe, que, à de dentes para devorarem carniça, contentam-se de fazer e empolas e brotoeja na pele do próximo. Respeito-os a todos, altíssimos e baixíssimos; que os há de todas as riscas da craveira social, no civil, no militar e no eclesiástico.

Estou, por isso, sempre com o credo na boca quando escrevo uma linha, e antes quero que se queixem da frequência dos prólogos do que me condenem sem me ouvirem.

Disse já que tinha de fazer uma explicação ao leitor. Tenho; e é indispensável. Estou ouvindo um melenas arguir assim: “Como soube a Tia Jerônima que as peças do padre-prior se tinham esgueirado, com tanta mágoa sua, só para dotar Bernardina? Como o souberam os noivos e Perpétua Rosa? Não se passou tudo particularmente entre o prior e o moleiro, ambos interessados no segredo do negócio, um por virtude, outro por avareza? Foi um duende que veio revelá-lo? Mas isso é fazer como Eugênio Sue, que, logo desde o princípio das suas novelas, arranja um homem humanamente impossível e, até, uma entidade imortal, para nos casos dificultosos se desembrulhar das aperturas da situação. Isso é empalmar; isso não vale. Queremos saber por onde transpirou a generosa ação do velho pároco; mas por meios naturais. Não admitimos tergiversação, nem milagres.”

Tá, tá! Nem eu, falando de telhas abaixo. E era para explicar este mistério naturalissimamente que chamava agora o leitor para a fresca sombra dos plátanos do presbitério. O caso foi este:

Quando o prior, preocupado pela ideia de remediar a todo o custo a rapaziada que fizera o Manuel da Ventosa, deu consigo, ao romper da manhã, no moinho de Bartolomeu, lembrados estarão de que o velho, acedendo aos desejos manifestados pelo seu pároco de ficar a sós com ele, pusera fora da porta os rapazes, com o grito de “Rua!”. Se o homem fizesse como Polifemo, o qual, quando tinha Ulisses e os seus camaradas encapoeirados no antro com os carneiros e como carneiros, à falta do único olho que possuía e que lhe tinham vazado, ia apalpando e contando os que saíam, conforme mais largamente narra Homero, não sucederia o que sucedeu, e já as embrulhadas, picuinhas, ditérios e descomposturas adfacem ecclesiae, de que antecedentemente dei conta, não teriam sobrevindo, com escândalo das pessoas graves e tementes a Deus. Era, como no lugar competente deixei especificado, grande o tráfego no moinho à chegada do prior: duas récuas de machos a inquirir à porta; novos para dentro e novos para fora; sacos de farinha a rolarem e a empoeirarem a atmosfera; bulha, encontrões, sapateada, arres, xós, pragas, diabos; um pandemônio, enfim, em miniatura. A chegada do prior foi tão inesperada e súbita, que Bartolomeu, azoinado, não reparou nos que saíam à sua voz de comando. Daqui o dano. Uma testemunha ficava aí, sem que Bartolomeu desse por tal.

Esta testemunha era Gabriel. O pobre rapaz tinha andado, até à meia-noite, do moinho para a fonte e da fonte para o moinho, com um macho e dois barris, a carregar água. Depois estirou-se a dormir atrás de uma pilha de sacos de trigo, com aquele valente sono da primeira juventude a que se não resiste nem num campo de batalha. Dormiu, dormiu, dormiu. Rompia a alva, e ainda ele era pedra em poço. O grito de Bartolomeu despertou-o, na verdade; mas não teve ânimo para erguer-se: bocejou, bufou, espreguiçou-se, estendeu os, braços para diante, com os punhos cerrados, virou-se de barriga para o chão, meteu o nariz debaixo do sovaco e prosseguiu na interrompida tarefa. Felizmente para o pobre moço, que, se fosse pressentido pelo moleiro, teria de acordar de todo com o despertador infalível dos dois pontapés, Gabriel não ressonava, ainda no mais profundo sono. Crendo estarem sós, os dois travaram a larga conversação que no princípio desta famosa história ficou fielmente trasladada.

Não faço eu tão fraca ideia de mim ou do leitor que suponha assaz falta de interesse a minha narrativa ou o tenha a ele por um tal cabeça-de-vento, que admita se esquecesse da estrondosa gargalhada que desandou o padre-prior ao manhoso saloio, quando este lhe propôs desse o dote a sua sobrinha Joana, à falta de outra mais digna. À descomunal risada é que o sono de Gabriel, se não quebrado inteiramente, ao menos já estalado pelo grito de Bartolomeu, não pôde resistir. O rapaz fez uma reviravolta, abriu os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as pernas estendidas e a cabeça inclinada sobre o peito, meditabundo por alguns momentos e imóvel, como um daqueles manigrepos de que reza Fernão Mendes Pinto. Depois, levando as mãos à cabeça, começou a coçar rápido de alto a baixo, por cima das orelhas. Pouco durou, todavia essa primeira fúria. Como o som da arpa de Ossian, alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras, aquele coçar de alma afrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as mãos, confrangidas em forma de garra, espalmaram-se flexíveis, os braços, hirtos e erguidos, despenharam-se mortais ao longo do tronco e a cabeça, sonolenta, baloiçou à direita, depois à esquerda, depois pendeu de chofre para diante e resultou, quase ao bater sobre os joelhos, semelhante ao judeu martirizado pela Santa Inquisição, quando, ao descer pendurado da polé, a corda, atada mais curta que o espaço médio entre o chão e a roldana, o desconjuntava, retendo-o subitamente alguns palmos acima do pavimento. Assim se desconjuntou aquela máquina de sono, e Gabriel abriu seis vezes a boca, engradou-a com outras tantas cruzes, esfregou os olhos com a parte anterior do canhão da jaqueta, mirou por entre os sacos os dois velhos, embasbacou de ver ali o prior e, sem tugir nem mugir, pôs-se a escutar o diálogo que se travava entre ambos.

Qual este foi e o seu desfecho sabe-o o leitor tão bem como eu. Apenas o prior se despediu, encaminhando-se pela encosta abaixo, Bartolomeu, recolhendo as setenta peças que ele deixara sobre a arca das maquias, pôs logo tudo em movimento, e Gabriel, por cuja falta, naquele primeiro ímpeto, o moleiro não dera, teve arte de se confundir com os outros moços que entravam e saíam, sem que o amo nem por sombras suspeitasse que havia uma terceira pessoa sabedora do importante negócio que se acabava de compor e sobre o qual, no meio do seu mandar e ralhar e lidar, já a ambição lhe ia alevantando na fantasia muitos castelos de vento.

Segredo em boca de rapaz, outros dizem de mulher (eu, por decência e pelos meus princípios, sustento a moção relativa aos rapazes), é manteiga em nariz de cão. Ele, na verdade, contou-o com variantes para mais e para menos, mas contou-o, que é o caso. E a quem o havia de ir meter no bico. À pessoa que mais interessada supunha na história; à Sr. Perpétua Rosa, mas pedindo-lhe pela alma das suas obrigações e pela fortuna da sua Bernardina que não dissesse nada, porque o patrão, se tal soubesse, era capaz de esganá-lo. Prometeu-lho Perpétua Rosa; jurou-o e trejurou-o. Pulava a boa velha de contente, e a primeira vez que levou roupa à cidade fez das fraquezas forças a trouxe de mimo a Gabriel e um pião novo, uma gaiola de grilos, coisa de espavento, e uma abada de castanhas do Maranhão e de figos passados, com que o bom do rapaz se regalou de pôr a boca numa lástima. E o mais é que teve palavra. Apenas contou o caso a duas ou três freguesas antigas de Lisboa e à Tia Jerônima, com quem desde a mestra, podia dizer-se era unha com carne. Aqui é que foram as ânsias. Pelos domingos tiram-se os dias santos. A ama do prior fez-se fula quando tal ouviu. A lanceta que sangrara a meio do forro da escada aparecia finalmente; e a Tia Jerônima, sem lhe importar o ver a mortificação da pobre Perpétua Rosa, desabafou à sua vontade; mas, passado o primeiro estouro da dor, levou do seu brio nunca mais tornar a bulir nesta desagradável matéria.

Eis a verdade, nua e crua, de como se aventou o se segredo. A alhada da porta da igreja nascida daquelas tafularias tolas do Manuel da Ventosa e da sua companheira, acabou de divulgar o negócio, sem que nisso andasse o fradinho de mão furada, nem os jesuítas, gente de poder misterioso e terrível, nem, finalmente, o judeu-errante, que tantas maravilhas obra atualmente na Terra. Mas, se nisto não entraram os irmãos do quinto voto, nem o caminheiro Ashavero, com as suas sapatas tauxiadas de pregos em cruz e com os seus alforjes de cólera-morbo, entrou, a meu ver, a Providência, mas uma Providência natural e simples nos seus meios, como ela o é sempre, sem milagres nem bruxarias. Pensava o prior que a sua nobre e evangélica generosidade ficasse oculta; pensava Bartolomeu que trevas perpétuas cobrissem a torpe cobiça e a sórdida avareza com que se houvera neste negócio. Vai, que faz Deus? Serve-se de um pobre rapaz, que ninguém tinha em conta de nada, e põe tudo ao olho do sol. E fique desde aqui dito que essa é a moralidade da minha história: a virtude exaltada e o vício punido. Nem mais, nem menos, como desfecho daquelas grandes comédias que, há vinte ou trinta anos, eram as delícias dos nossos pais e a glória dos nossos dramaturgos das três unidades que Deus haja... As três unidades, entenda-se bem; porque os dramaturgos, esses o Senhor no-los conserve, enquanto puder ser, para nosso regalo e consolação.

Quem disse lá que as velhotas, testemunhas dos itens do moleiro com as personagens que mais conjuntas lhe eram, entraram para a igreja e se puseram a ouvir o cantar dos padres, e a música do coreto, e o esbravejar do pregador? Por um óculo! A sombra da sua vítima que fora e que ia ser; à sombra de Bartolomeu, a quem todos abriam caminho para o deixarem aproximar-se do banco dos festeiros, elas atravessaram a mó dos homens, unidos como sardinha em tigela, dos estrados para baixo até o guarda-vento, e chegaram ao meio do mulherio. Haja o apertão que houver, ainda não consta que saloia deixasse de fazer praça para si na, igreja. Verdade é que a Tia Jerônima ia em frente, com a cara de arremeter que Deus lhe dera, e que mais arrabinada se tornara com a anterior refrega. Quem deixaria de dar campo à ama do prior, e, sobretudo, àquela carranca? Seguiam-na os noivos, encolhidos e vergonhosos do escândalo que tinham causado, tornadas em fel e absinto as tão risonhas esperanças que, pouco havia, punham no seu garbo e bizarria; que nisto vêm a acabar muitas vezes as vanglórias do mundo. (Mais moralidade.) Após eles, vinha Perpétua Rosa e após a lavadeira vinha a Verônica do Tiago, padeira gorda, vermelha e reverendaça, a Engrácia Ripa, mulher do fogueteiro da aldeia, magra, alta, cor de enxofre, a Eufrásia Tasquinha, tia do Gabriel, e várias outras, mais anchas ou mais esguias, mais esgrouviadas ou mais repolhudas, que não sou eu nenhum Homero para estar, nem antes nem depois da batalha, a tecer catálogos de guerreiros. “Dê licença!...” “Ai, que me pisou!...” “Perdoe!...” “Não vê?...” Eis o que se ouviu murmurar por alguns instantes. E, no meio daquele mar de cabeças adornadas de lenços de cor, listrados e brancos, avultava a pinha das recém-vindas, que tentavam ajoelhar; pinha semelhante à embarcação rota a ponto de submergir-se, que baloiça vacilante e se atufa lenta mente nas águas. Manuel da Ventosa, que ficara em pé no topo inferior do estrado, sentia apertar-se-lhe o coração, vendo a sua Bernardina no meio daquele caos de capotes e roupinhas, como avezinha do céu no meio de ninhada de sapos. As sedas, o chapéu, as flores, a romeira rangiam, achatavam-se, engorovinhavam-se entalhadas entre aquelas baetas, panos, camelões e durantes, do mesmo modo que, sobre o cadáver da virgem, se achatam e quebram as alvas roupas da inocência e a coroa de rosas, debaixo da terra áspera, pesada, imunda, que o coveiro atira brutalmente sobre os rostos do que foi belo, delicado e puro. “Mas que remédio?” pensava Manuel. “As coisas assim hão de ser sempre porque assim foram desde o princípio do mundo”. Ele, de feito, cria que desde esse tempo existiam missas cantadas, saloias e apertões. Mas, enfim, ajoelharam, persignaram-se, e a festa começou.

Não a descreverei eu. Quem não sabe o que é uma festividade de orago e o que é a missa solene celebrada num templo católico? Há aí alguém, crente ou não crente ria fé que os seus pais lhe ensinaram, que não tenha bem vivos na memória esses dias festivos da sua meninice? Esse culto, que sabe elevar o espírito para o Céu, com as pompas de espetáculo sensual, pompas que, parece, deveriam fazê-lo descer para a Terra? Quem se não lembra daqueles bons dias santos dos doze anos, em que o sol era mais formoso que nos dias de trabalho, sem excetuar a folgada quinta-feira do sueto escolástico?

Quem se não lembra da época em que o nosso pároco era para nós um ente quase divino, porque, pobres crianças, ainda ignorávamos os caminhos por onde esses homens, chamados a uma existência de santa e sublime poesia, sabem vir despenhar-se no charco das misérias e torpezas humanas e revolver-se aí com aqueles de que deviam ser esperança salvação e exemplo? Quem não se recorda com saudade do tempo em que o altar só lhe aparecia a certa distância, com o seu frontal broslado e a sua toalha alvíssima, assoberbado pela catadupa de lumes de um trono, perfumado pelas jarras de flores, envolto de ambiente turvo pelos rolos de fumo raro e pálido do incenso, símbolo do mistério? A quem não murmura ainda nos ouvidos o ritmo monótono e severo do salmear sacerdotal mais acorde com as doces tristezas do coração, que toda a música sentida e dolorosa dos espetáculos cênicos, a que estes, na impotência de o vencer, têm ido humildemente imitar, nas criações dos modernos artistas (porque Meyerbeer, para ser o rei das harmonias, foi invadir o templo)? Quem, finalmente, não refugiu uma vez, cansado de ceticismo, para as memórias infantis das comoções geradas pela religião dos primeiros anos, religião toda de afetos, de inspirações, sem ciência nem raciocínio, os quais, semelhantes ao sal espalhado sobre a Terra, podem fertilizar algum coração, mas esterilizam os mais deles? As impressões indestrutíveis das festas religiosas guardam-nas os que creem, como consolação do passado e como esperança de regozijo futuro, e guardam-nas também os que não creem, no longo crepúsculo da sua alma, como guardamos no Inverno as plantas odoríferas já murchas, que, debaixo do céu pardo e frio, ao pé da veiga nua e da árvore desfolhada, nos recordam o hálito suave dos campos ao pôr do Sol de um dia sereno do Estio.

Eis aí porque não descrevo a festa. Era especular descaradamente com os leitores: era como se ao Bartolomeu se lhe metesse em cabeça ir ensinar o cerimonial romano ao incomparável Fr. Narciso.

E que terá Fr. Narciso, que já escarrou duas vezes, já se assoou quatro, já bufou seis, já arregalou os olhos para o corpo da igreja oito? É que as atenções estão distraídas. Fortes brutos! Uma perfeição de cerimônias, que nem na Capela Sistina no dia da bênção urbi et orbi! “Olha o que lá vai, o que lá vai!”, rosnava ele, cheiro de indignação. “Aquelas endiabradas... Quem vos decepara as línguas tarameleiras! Até aqui! Louvado seja Deus! É demais. Psiu!”

Tinha razão. Era um zunzum na igreja, que quase galgava por cima das rabecas; e mais, chiavam e desafinavam com alma. O arrastado psiu de Fr. Narciso restabeleceu, porém, a ordem, que nem, num motim popular, uma carga de cavalaria.

Mas para se restabelecer a ordem é necessário haver desordem. Quero ver se também dizem os parvos que esta proposição é uma das minhas esquisitices, ou excentricidades, para lhes falar na sua algaravia. A coisa tinha saído do lugar onde estavam a Tia Jerônima, Perpétua Rosa e Bernardina. Qual coisa? Isso é o que não diz a história. — O que é certo é que era um bisbis que partia do centro para a circunferência, como os círculos concêntricos que encrespam a superfície do lago ao meio do qual se atirou uma pedra, e era ao mesmo tempo um baloiçar de pontas de lenços sobre os cabeções dos capotes, um rir abafado, um sussurro, uma agitação entre o mulherio tal, que atraíra a atenção e logo a cólera de Fr. Narciso. O mais que se pôde perceber foram alguns fragmentos de diálogo entre a Tia Jerônima e a Engrácia do Estanislau fogueteiro.

“Padre-nosso que estais nos Céus”, dizia Engrácia Ripa, deixando correr um dos bugalhos de umas contas da Terra Santa que tinha nas mãos. “Ora essa! — Santificado seja o vosso nome. — Forte tratante! — Venha a nos o vosso reino. — E uma pessoa com a sua aquela de que era um home como se quer! — Seja feita a vossa vontade. — Safa! — Assim na Terra como nos Céus. Com que então, setenta?”

“Entregadinhas! — Ave Maria, gracia plena”, respondeu a Tia Jerônima, que latinizava raivosamente, à força de viver com o prior. “Como lhe hei de dizer — Domisteco — Foi o Demo que o tentou. — Benedites tu...”

Neste ponto, a interessante conversação das duas matronas foi interrompida pelo psiu fulminante de Fr. Narciso. Não podemos dizer sobre que ela versava nem aonde iria dar consigo; e, quando, numa crônica profunda e grave como esta, faltam fundamentos favoráveis para afirmar, é dever do cronista ser sóbrio, ou, antes, abster-se de conjeturas. Direi só que, ao sair a gente da festa, não havia cão nem gato que não soubesse tim-tim por tim-tim a história do Manuel da Ventosa e da Bernardina.

Mais moralidade: é o que eles tiraram das suas tolas tafularias.

Quando o prior saiu da igreja, os rapazes desbarretavam-se, ainda com mais sinais de cortesia e respeito do que era costume; as raparigas afagavam-no com um sorrir e volver de olhos afetuoso, que fazia pensar o bom do pároco. Todos olhavam para ele e falavam em voz baixa. O prior estava zangadíssimo.

Mas, qual foi o seu pasmo ao ver chegarem-se a ele muitos velhos de cabeça branca (eram vários lavradores seus fregueses, honrados pais de família) e beijarem-lhe a mão, com os olhos arrasados de água! Estava fumando. Uma onda se lhe ia, outra se lhe vinha de destampar com tudo aquilo, e pregar uma descompostura solene e por atacado nos velhos, nos rapazes e nas raparigas.

E para isso não lhe faltava metralha. Mas lembrou-se de que era o dia do orago da aldeia e teve mão em si. Só lá perguntava aos seus botões qual seria a causa deste destempero e doidice.

Como havia ele de atinar, se tinha o costume de esquecer-se do bem que fazia, porque, sendo fraco de memória, reservava-a toda para o bem que recebia?

A história do casamento feito pelo velho pároco, conforme depois me contaram (era eu pequeno e lembra-me como se fosse hoje), chegou aos ouvidos do prelado diocesano, o qual disse ao fâmulo do fâmulo do seu secretário, um dia em que se levantou de dormir a sesta com vontade de galhofar, que, na primeira visita que fizesse à diocese, havia de elogiar, publicamente, aquele digno pastor. Nunca, porém, houve ocasião para a primeira visita, porque esta costumeira velha tinha passado já de moda. Eram pieguices só boas para os Bartolomeus dos Mártires e para os Caetanos Brandões; pobres homens, a quem Deus fale na alma, se é que valiam a pena disso.

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