10/04/2017

Outro amável milagre (Conto), de Eça de Queirós




Outro amável milagre

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Nesse tempo Jesus ainda não saíra de Galileia, das margens do lago de Genesaré; mas a nova dos seus milagres chegara já a Siquém, cidade rica, entre vinhedos, no país de Samaria. Uma tarde um homem passara com os cabelos ao vento, dizendo que um novo rabi, um novo profeta, andava pelas verdes colinas que vão de Magdala a Cafarnaum, anunciando o advento do Reino de Deus, e, curando todos os males humanos. Enquanto descansava junto ao Poço de Jacó, o homem contou mais que o rabi, num campo ao pé de Cafarnaum sarara o servo de um centurião romano, de longe, e só com murmurar suavemente uma palavra; e noutra tarde, tendo atravessado numa barca de Galileia para a terras dos Gerasenos, onde se fazia a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável, da na sinagoga. E como a gente em redor lhe perguntava se esse era o Messias, e que doçura havia nas suas palavras, o homem ergueu-se, apanhou o cajado, e sem sequer — beber do poço onde bebera Jacó, desapareceu, com os cabelos ao vento, por entre — as rochas, no caminho que levava a Betânia. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho do Hermon, ficara refrescando às almas; e logo a terra pareceu menos dura, e todo o fardo pareceu menos, pesado...

Ora, em Siquém, vivia um velho chamado Obede, senhor de rebanhos, senhor de vinhas, de uma família pontifical, que, desde os antigos cultos de Israel, sacrificava no alto do monte Ebal. Mas um vento abrasador, esse vento de desolação que vem, a voz irada do Senhor, do fundo das terras de Assur, matara as melhores reses dos seus largos rebanhos; e, nas encostas, onde lhe tinham crescido mil pés alegres de vinha, negrejava agora só a esterilidade das urzes. Obede, com a cabeça escondida no manto, lamentava-se à beira dos caminhos.

Depois ouvindo em Siquém falar do rabi de Galileia, que alimentava as multidões, e emendava todas as desgraças humanas, Obede, homem lido, pensou consigo que o rabi seria um desses feiticeiros que maravilhavam a Judeia, como Apolônio, o da voz de bronze, e o sutil Simão de Samaria. Esses, mesmo nas noites escuras, conversavam com as estrelas; e sabiam as palavras que afugentam de sobre as searas os moscardos negros, gerados no lodo do Egito. Jesus, mais poderoso que Apolônio, mais sutil que Simão, sustaria a mortandade dos seus gados e faria reverdecer as suas vinhas... Obede chamou os servos, e ordenou-lhes que fossem buscar o rabi às cidades de Galileia.

Os servos apertaram os cintos de couro — e largaram correndo para o norte, pela estrada das caravanas que conduz a Damasco. Uma tarde avistaram, sobre o poente vermelho, as neves do monte Hermon. Depois o lago de Genesaré resplandeceu diante deles, espelhado, azul-celeste, e calmo na frescura da manhã: um bando lento de cegonhas brancas cortava o céu claro, voando para os lados de Safede; a cidade nova de Gamala tinha um doce brilho de mármore entre as verduras: e a água, transparente e sem murmúrio, banhava os pés das ervas altas dos aloendros em flor. Um pescador que ali desamarrava preguiçosamente a sua barca disse-lhes que o rabi deixara a Galileia, e partira com os discípulos para os lados de Galaade, para onde desce o Jordão. 

Os servos seguiram, correndo, sem repouso, até ao sítio onde o Jordão, mais baixo, tem um largo remanso, e dorme um instante, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Da entrada de uma cabana, feita de rama, um Essênio, coberto de peles de cabra, soturno e selvagem, gritou-lhes que Jesus, sozinho, se afastara para além. Mas aonde era além?

O Essênio, com um gesto brusco, indicou vagamente as montanhas da Judeia, Engaddi, e as fronteiras roxas do reino de Asketh onde se ergue, sinistra sobre o seu rochedo, a cidadela de Makaur.

Mas debalde os servos arquejantes procuraram até ao país de Moabe. Jesus não estava ali. Um dia, já na volta, um escriba, que recolhia a Jericó, passou por eles, montado na sua mula. Os servos de Obede rodearam-no, perguntando-lhe se encontrara um profeta de Galileia que fazia milagres.

O homem da Lei bradou-lhes que nem havia profetas, nem havia milagres fora de Jerusalém, e que só Jeová era forte no seu Templo: e perseguiu-os ainda às pedradas, em nome do senhor de Israel.

Os servos fugiram para Siquém. E grande foi a desconsolação de Obede porque os seus rebanhos morriam, as suas vinhas secavam — e a esse tempo crescia em Samaria, consolador e cheio de promessas divinas, o nome de Jesus de Galileia.

Ora um centurião romano, Públio Sétimo, comandava então o forte que domina o vale por onde se vai a Cesareia e ao mar. Públio era homem próspero, e gozava os favores de Flaco, legado imperial na Síria. Mas, desde tempos, sua filha única, e, infinitamente amada, definhava com um mal estranho, incompreensível mesmo aos esculápios e aos mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a lua, sem se queixar e sem falar ao seu pai, deixava-se finar, sentada na esplanada do forte, sob um velário, olhando melancolicamente os longes azulados do mar de Tiro, por onde ela viera de Itália, numa galera, com soldados.

Por vezes, ao seu lado, um legionário, de entre as ameias, apontava lentamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena no azul. 

A filha de Sétimo seguia um momento a ave torneando até bater morta sobre as rochas; depois, mais triste e mais pálida, continuava a olhar o mar. 

Então Sétimo, tendo ouvido destes feitiços do rabi, tão potente sobre os espíritos, que curava todos os males, destacou três decúrias de soldados a procurá-lo em todas as cidades da Decápole, na Peteia, e ao longo da costa até Áscalon.

Os soldados meteram os escudos dentro dos sacos de lona: e partiram, fazendo ressoar as sandálias ferradas sobre as lajes das três estradas romanas que se encruzam em Samaria.

De noite as suas armas brilhavam no alto das colinas, entre a vermelhidão dos archotes. De dia penetravam nos casais, rebuscavam a espessura dos pomares; e as mulheres inquietas traziam-lhes figos, e malgas cheias de vinho de Safede, que eles bebiam, às mãos ambas e de um trago, sentados no chão, à sombra dos sicômoros.

Ao passarem nos postos romanos, e dizendo o nome de Sétimo, outros legionários, ou homens das coortes sírias, juntavam-se-lhes, levando no capacete um ramo de oliveira.

Mas pouco a pouco estas inúteis marchas, à busca de um rabi judeu, irritavam-nos; agora faziam parar as caravanas, brutalizavam a gente nos burgos, clamando o nome de Jesus.

Ao avistá-los, os pastores de Idumeia, que dão as reses brancas para o Templo, refugiavam-se à pressa nos montes; e da beira dos eirados das vilas, os velhos sacudiam sobre eles as mãos cheias de maus presságios, invocando a cólera de Elias.

Nas vizinhanças de Hebron arrastaram para fora das grutas os solitários, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar onde se escondia Jesus de Galileia; e a ignorância de dois mercadores, que vinham de Jope com uma carregação de malóbatro, e que não tinham jamais ouvido o nome do rabi de Galileia, foi-lhes contada como um delito e pagaram vinte dracmas ao decurião.

Assim prosseguiram até Áscalon, não encontraram Jesus; e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes.

Uma madrugada, junto a Cesareia, avistaram, sobre um fresco outeiro, um bosque de loureiros onde alvejava recolhidamente o frontão liso de um templo. Um velho, de barbas brancas, vestido de linho alvo, esperava ali, grave e religiosamente, a aparição do Sol.

Os soldados, de baixo, perguntaram-lhe, agitando os ramos de oliveira, se ele sabia de um profeta de Galileia que fazia milagres. O velho, sereno e sorrindo, disse-lhes que não havia profetas, nem havia milagres, e só. Apolo Délfico conhecia o segredo das coisas.

Então devagar, com a cabeça baixa, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram ao forte de Samaria.

E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem se queixar e sem falar ao seu pai — e a fama de Jesus de Galileia ia subindo, iluminando toda a Samaria, como a aurora quando se levanta por trás do monte Hermon. 

Ora, junto a Siquém, num casebre, vivia então uma viúva desgraçada entre todas, que tinha um filho doente com as febres. O chão miserável não estava caiado, nem nele havia enxerga. Na lâmpada de barro vermelho secara o azeite. O grão faltava na arca: o ruído dormente do moinho doméstico cessara, e esta era, em Israel, a evidência cruel da infinita miséria.

A pobre mãe, sentada a um canto, chorava; e, estendida sobre os seus joelhos, embrulhada em farrapos, pálida e tremendo toda, a criança pedia-lhe, numa voz débil como um suspiro, que lhe fosse chamar esse rabi de Galileia de quem ouvira falar junto ao Poço de Jacó, que amava as crianças, nutria as multidões, e curava todos os males humanos, com a carícia das suas mãos. E a mãe dizia, chorando:

— Como queres tu, filho, que eu te deixe, e vá procurar o rabi a Galileia? Obede é rico e tem servos, eu vi-os passar, e debalde buscaram Jesus por areais e cidades, desde Corazim até ao país de Moabe. Sétimo é forte e tem soldados, eu vi-os passar e perguntaram por Jesus sem o achar desde o Hebron até ao mar. Como queres tu que eu te deixe? Jesus está longe, a nossa dor está conosco. E sem dúvida o rabi, que lê nas sinagogas novas, não escuta as queixas de uma mãe de Samaria que só sabe ir orar, como outrora, no alto do monte Gerazim.

A criança, com os olhos cerrados, pálida e como morta, murmurou o nome de Jesus. E a mãe dizia, chorando:

— De que me serviria, filho, partir e ir procurá-lo? Longas são as estradas da Síria, curta é a piedade dos homens. Vendo-me tão pobre e tão só, os cães viriam ladrar-me às portas dos casais. Decerto Jesus morreu; e com ele morreu, uma vez mais, toda a esperança dos tristes. 

Pálida, e desfalecendo, a criança murmurou: Mãe, eu queria ver Jesus de Galileia. E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: — Aqui estou.

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