10/22/2017

Solteirão (Conto), de Ana de Castro Osório


Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A inesperada morte do velho doutor Mendes fez-me volver os olhos um bom par de anos atrás — a quando criancita gulosa lá ia ver passar as procissões e beber a minha xícara de leite com sopas de biscoitos caseiros.
Essa morte rastejou-me na alma uma pequena sombra de melancolia, não que eu amasse muito esse velho nem que a sua falta seja desventura para alguém,— mas é que os sinos, dobrando numa pardacenta tarde de fevereiro, são de uma tamanha tristeza!...
Com uma persistência dolorosa de choro, as badaladas sucediam-se atirando para o espaço os seus pesados lamentos — únicos que acompanharam o doutor Mendes na sua primeira noite d'além.
Morreu, pobre velho inútil, despertando apenas a irônica piedade que inspiram aqueles cuja alma subalternizada não soube criar uma família nem chegou à consciente bondade dos fortes.
Ninguém o estimava já. Outrora havia inspirado medo como mandão de aldeia; diziam-no vingativo e cruel nos tempos áureos do seu poderio... Por fim, esse poder era uma triste caricatura.
...Porque — eu ainda lhes não disse? — fazem-me tristeza as caricaturas. D. Quixote é para mim mais comovente do que Jocelin.
Em novo fora o doutor Mendes um feliz conquistador de criadas e caseiras, que olhavam agora para os filhos grosseiros e brutais, encarquilhando os olhos cúpidos, julgando-os possíveis herdeiros da bela fortuna do velho. Tudo podia ser; se ele não tinha herdeiros forçados!
E lá ia vivendo, certo em todas as festas, imaginando-se imponente à força de tesura, o bigode branco cortado em escova, a calva luzidia, a face sanguínea. Dava realce às festas — diziam rindo chocarreiramente aqueles que lhe tinham tirado o bastão de comando, deixando-o, mono de palha, para a imposturice da figura.
Estou a vê-lo, o senhor doutor, com a sua casaca pré-histórica, lustrosa, de um feitio único; o lenço de Alcobaça, azul escuro, com pintinhas brancas, a sair dos bolsos; cumprimentando receoso, estendendo apenas dois dedos gordos e vermelhos; soprando contente a cada palavra...
Levava a umbela em todas as procissões e na minha poderosa imaginativa infantil aquilo engrandecia-o a tal ponto que o revia no céu acompanhando as almas purificadas ante o trono de ouro do Padre Eterno.
Se caiu de tão alto no meu conceito, não foi dele a culpa, que impassível continuou ele a sua vida quase hierática entre o incenso dos turíbulos e o cheiro fresco do rosmaninho — eu é que mudei, infelizmente!
Por que não detemos nós a vida; por que não conservamos o nosso espírito na meia alucinação doce da infância? Se vale a pena isto!... Andar a primeira parte da vida a construir altares, a enramalhetá-los, a venerá-los com todo o nosso entusiasmo; gastar outro tanto tempo a destruí-los; e o resto da vida passar a chorá-los! Não, não acho que vá bem assim o mundo! Ou as crianças têm que nascer com a sabedoria dos velhos ou os velhos ficarem com a ingenuidade das crianças. Quanta tristeza se pouparia a certos espíritos por demais vibráteis!... Assim, eu escusava de sofrer vendo a pobre cabeça do velho doutor Mendes, que diziam inteligente, ser agora uma coisa estéril e oca.
O seu risito infantil, em hi, hi, hi, como dava uma prova dos frágeis juízos humanos! E tinha sido terrível em vinganças do tempo dos Cabrais, ele que hoje fazia rir as crianças!
A rodear o idoso doutor Mendes fazia-se uma atmosfera de coisas envelhecidas e desbotadas. A sala de recepção — forrada a panos de Arrhas, com ingênuas cenas da Bíblia, onde as cores já murchas se confundiam e empalideciam suavemente a dar um tom uniforme à filha dos Faraós salvando um esperto Moisés e ao seu terrível pai afogando-se nas justiceiras águas do Mar Vermelho — abria-se lá pelas festas às raras visitas. Impunha respeito com os seus tetos altos, o delgado friso doirado a dividir os panos, as suas doze cadeiras formadas aos lados do sofá incomodo como um potro inquisitorial, o indispensável tremó e espelho a encimá-lo.
Logo ao entrar no pátio, à noite sempre iluminado esperando problemáticas visitas, uma gélida impressão de silêncio nos envolvia. Subia-se meio receoso a escadaria de pedra, a abrir-se nobremente em dois lanços, como um velho amigo que nos recebe de braços abertos. Essas belíssimas escadas das casas antigas, que dão bem a nota carinhosa do nosso gosto pela hospitalidade, eram mais uma frisante ironia naquele interior fechado, esquecido, só de longe em longe visitado por indiferentes.
Entrava-se a medo na sombria casa e esperava-se, em silêncio, que os donos aparecessem. Passado um tempo, que nos parecia infindável, vinham, as quatro manas — miudinhas, desbotadas elas também, muito parecidas umas com as outras, falando baixo, repetindo todas o que dizia a mais nova, sentenciosamente, a modos de oráculo. Muito devotas, um grande respeito pelo mano doutor, elas lá iam todos os domingos, em carreirinho de formigas, à missa pacata da freguesia. Muito velhitas, com antigos enfeites na cabeça, vestidos de seda passados de modas há tempos imemoriais, lencinhos de renda no pescoço, restos de antiga garridice, cheirando a alfazema e a cânfora.
Como isto vai longe, perdido no montão de saudades que me enchem a memória; e como eu sinto ainda toda a impressão de poeirento, de velhez, que me tomava toda quando as ia visitar cerimoniosamente!
Porque o tempo já ia longe em que a minha inconsciente criancice ousava penetrar sem receio naquele túmulo. O tempo das procissões e do leite frio passara com a minha primeira infância e com as passeatas à igreja para ver as mudanças de toilettes que Nossa Senhora sofria de cada vez que a passeavam procissional e dolorida.
E ainda hoje elas coram e baixam os olhos admirando a imoralidade que vai por esse mundo. — “Tudo perdido, tudo perdido, manas...”— dizia a mais nova, fechando os olhos a cada palavra. — “É verdade, é verdade, é verdade...”— respondiam as três a um tempo. — “Ainda bem que o mano não quis casar!... Nem nós também, que fomos bastante pretendidas!...”— “É verdade, é verdade, é verdade!”— fazia o coro. — “Que modas, santo Deus! Os homens cruzam a perna diante das senhoras e apertam as mãos!! Que gente, que imoralidade!...”— E as outras abanavam a cabeça afirmativamente, enquanto o doutor Mendes, à janela, lia a Nação, escondendo das boas irmãs um sorriso velhaco.
E foi ele, tão corado e gorducho, o primeiro a morrer.
A sua morte dera brado. Murmurava-se: “Afinal não fizera testamento? Pudera! Até na morte fazia partida. Fora sempre assim.”— E lá iam seguindo o enterro, bocejantes, sem nenhuma pena, maçados. Enterro de indiferentes que nenhum respeito contêm no seu aborrecimento.
As pobres irmãs, mirraditas, gemiam frouxos lamentos. Tão velhinhas, tão longe deste mundo — nem gritos já tinham para se lamentar. Era um correr de lágrimas, sem soluços nem febre, um resignado sofrer de pálidos fantasmas.
Por suprema ironia das coisas humanas, até o enterro foi causa de riso. Do antigo mandão de aldeia, que inspirara medo e profundos ódios, apenas restava esse corpo inerte deitado numa eça branca, com a fita do caixão risonhamente branca. Se ele fosse vivo como a levaria imperturbável!...
Mas os sinos lá ao longe tangiam mágoas, que se iam alastrando como nodoa de azeite na pardacenta tarde de um fevereiro triste.
Como é enervante pensar na vida assim, sem interesse pelos outros, sem nenhum grande afeto que nos chore bem alto, a fazer calar todos os risos!...
Nessa paisagem, paralisada pelo inverno, só eu parecia viver— campos de vinha estorcendo os braços esqueléticos, pinhais muito graves no seu eterno verde, o riacho a correr ao fundo do vale, e como gigantesca parede as serras violeta, escarpadas e selvagens... Ao fundo, vaporizando-se no poente, as torres alvas das igrejas lançavam pelo espaço o seu lamentoso dobre: dão!... dão!... dão!...
Uma grande amargura me afogava a alma, vinda dessa paisagem desolada, desse cair da tarde sombria, da lembrança de morte que flutuava no ar — de qualquer coisa enfim que me segredava desalentos e angústias...
A chuva começou de cair miudinha, sem ruído, para o fim da tarde... Que desagradável noite essa primeira que o velho doutor Mendes passou solitário no seu túmulo, guardado pelas sentinelas esguias dos ciprestes!

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