10/04/2017

Um gênio que era um santo (Conto), de Eça de Queirós


Um gênio que era um santo

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Em Coimbra, uma noite, noite macia de abril ou maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava. 

A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta, rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens, embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.

Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII – mas um bardo, um bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura, e 

...os transcendentes recantos 
Aonde o bom Deus se mete, 
Sem fazer caso dos Santos 
A conversar com Garrett!

 Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo: 

– É o Antero!..

Deus conversava com Garrett. Depois, se bem me lembro, conversava com Platão e com Marco Aurélio. Todo o Céu era uma radiante academia. Os santos mais ilustres, os Agostinhos, os Ambrósios, os Jerônimos, permaneciam fora, pelos pátios divinos, sumidos numa névoa subalterna, como plebe imprópria a penetrar no concílio dos filósofos e dos poetas. Mas o escravo Epíteto aparecia, ainda coberto das cicatrizes do látego e dos ferros – e Deus estendia ao escravo Epíteto a sua vasta mão direita, donde se esfarelava o barro com que ele fabrica os astros...

Epíteto, meu amigo, 
Quero ouvir o teu ditame 
E aconselhar-me contigo...

Então, perante este Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida. 

Intimidade, porém, com aquele que eu depois chamava “Santo Antero”, só verdadeiramente começou na manhã em que o visitei, com muita curiosidade e muita timidez, na sua casa do Largo de São João. Era o hereditário quarto da velha Coimbra, com as portas rudemente besuntadas de azul, o teto alto de madeira fusca, e a cal das paredes riscada por todas as cabeças de lumes-prontos que em cinquenta anos ali se tinham raspado, com preguiça, para acender a torcida de azeite, à hora triste em que toca a “cabra”. A um canto um leito de ferro, num alinho rígido. Diante da janela a banca de Coimbra dos meus tempos, tábua de pinho sobre quatro pés toscos, onde uma Bíblia, um Virgílio, o caderno de papel, o maço de cigarros, pousavam numa ordem curta e árida. E no meio desta quietação das coisas, e de todo o azul e todo o ouro da manhã de maio que entravam pelas janelas, Antero, batendo com grossos sapatos o soalho mal aplainado, parecia um leão, cheio de desordem interior e de sanha. O “olá!” que me atirou foi perfeitamente rugido. Que dor ou que afronta lhe eriçavam assim a juba loura? Abrira um gavetão, e tirava de dentro cartas, papéis, ferozmente, como se arrancasse entranhas. Num arremesso empurrou para a mesa uma pobre cadeira caduca onde se abateu com amargura – e começou então a destruir as cartas e os papéis de um modo estranho, que me maravilhou. Dobrava cada folha ao meio, esmeradamente: depois, violento e certeiro, ainda a dobrava em quarto; depois com uma atenção sombria, ainda a dobrava em oitavo. Sob a unha raivosa achatava as dobras: – e, empunhando uma faca como um ferro de vingança e morte, cortava os papéis finamente, fazendo com dois golpes pequenos maços bem enquadrados, que ia amontoando numa resma nítida e fofa. E todo este lento, paciente trabalho de precisão e simetria, o continuava com um modo revolto e trágico. Fascinado, surdi do vão da janela onde me refugiara, e parando a borda da mesa:

– Oh Antero, quanta ordem você tem na destruição! 

Ele dardejou sobre mim dois olhares devoradores. Depois considerou, ainda enrugado, a pilha acertada dos papéis cortados, e um sorriso, aquele sorriso de Antero que era como um sol nascente, iluminou, fez toda clara e rósea a sua boa face onde havia um não sei quê de filósofo de Alexandria e de piloto do Báltico:

– O ritmo – murmurou – é necessário mesmo no delírio. 

E com efeito, naquela alma estética, sempre as angústias mais desordenadas se moldaram em formas perfeitas.

***

Foi isto, creio eu, em 1862 ou 1863. Antero já publicara a “Beatrice”, talvez mesmo o “Fiat Lux”; – e todos conheciam, ainda manuscritas, as “Odes Modernas”. Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos domínios da inteligência, o Príncipe da Juventude. E com razão – porque ninguém resumia com mais brilho os defeitos e as qualidades daquela geração, rebelde a todo o ensino tradicional, e que penetrava no mundo do pensamento com audácia, inventividade, fumegante imaginação, amorosa fé, impaciência de todo o método, e uma energia arquejante que a cada encruzilhada cansava.

Coimbra vivia então numa grande atividade, ou antes num grande tumulto mental. Pelos caminhos de ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França) torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um Sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos reis; e Balzac, com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o Universo; e Por, e Heine, e creio já que Darwin, e quantos outros! Naquela geração nervosa, sensível e pálida como a de Musset (por ter sido talvez como essa concebida durante as guerras civis) todas estas maravilhas caíam à maneira de achas numa fogueira, fazendo uma vasta crepitação e uma vasta fumaraça! E ao mesmo tempo nos chegavam, por cima dos Pirenéus moralmente arrasados, largos entusiasmos europeus que logo adotávamos como nossos e próprios, o culto de Garibaldi e da Itália redimida, a violenta compaixão da Polônia, retalhada, o amor à Irlanda, a verde Erin, a esmeralda céltica, mãe dos santos e dos bardos. Pisada pelo Saxônio!...

Nesse mundo novo que o Norte nos arremessava aos pacotes, fazíamos por vezes achados bem singulares: – e ainda recordo o meu deslumbramento quando descobri esta imensa novidade – a Bíblia! Mas a nossa descoberta suprema foi a da Humanidade. Coimbra de repente teve a visão e a consciência adorável da Humanidade. Que encanto e que orgulho! Começamos logo a amar a Humanidade, como há pouco, no ultrarromantismo, se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar. Por todos os botequins de Coimbra não se celebrou mais senão essa rainha de força e graça, a Humanidade. E como num meridional de vinte anos, lírico de raiz, todo amor se exala em canto – não houve moço que não planeasse um grande poema cíclico para imortalizar a Humanidade. O do meu vizinho era a “Lira” – uma desmedida lira de ouro enchendo os espaços, e cada corda encarnando uma idade humana, onde os imensos dedos de Deus, alternadamente, desferiam sons de glória e sons de martírio. Do meu poema não recordo nem o tema nem o título, e apenas que deveria abrir por uma tremenda invocação à Índia, aos Árias, à sua marcha sublime desde Gau até Septa-Sindhu! Não éramos todavia inteiramente desregrados e vãos – porque se o fim de toda a cultura humana consiste em compreender a humanidade, já é um louvável começo discorrer sobre ela em poemas mesmo pueris. E outro bom sinal do despertar do espírito filosófico era a nossa preocupação ansiosa das origens. Conhecer os princípios das civilizações primitivas constituía então, em Coimbra, um distintivo de superioridade e elegância intelectual. Os Vedas, o Maabarata, o Zendavestá, os Edas, os Niebelungen, eram os livros sobre que nos precipitávamos com a gula tumultuosa da juventude que devora, aqui, além, um trecho mais vistoso, sem ter a paciência de se nutrir com método. Formoso tempo, todavia, esse, em que eu, ignorante, mas amando religiosamente a ciência dos outros, perguntava a um camarada, com os olhos esbugalhados de respeito e santa inveja: – “O menino, já conheces bem a Caldeia?” E nem por isso éramos menos alegres e fantasistas. O nosso mote, como a nossa vida, todo se encerrava naqueles dois belos versos:

A galope, a galope, ó Fantasia, 
Plantemos uma tenda em cada estrela! 

E em cada estrela plantávamos uma tenda, onde dormíamos e sonhávamos um instante, para logo a erguer, galopar para outra clara estrela, porque éramos verdadeiramente, por natureza, ciganos do ideal. Mas o ideal nunca o dispensávamos, e nem as sardinhas assadas das tias Camelas nos saberiam bem se não lhes juntássemos, como um sal divino, migalhas de metafísica e de estética; A pândega mesmo era idealista. Ao segundo ou terceiro decilitro de carrascão rompiam os versos. O ar de Coimbra, de noite, andava todo fremente de versos. Por entre os ramos dos choupos, mal se via com a névoa das nossas quimeras... Outra das ocupações espirituais a que nos entregávamos, era interpelar Deus. Não o deixávamos sossegar no seu adormecido infinito. Às horas mais inconvenientes, às três, quatro da madrugada, sobre a Ponte Velha, no Penedo da Saudade, berrávamos por Ele, só pelo prazer transcendente de atirar um pouco do nosso ser para as alturas, quando não fosse senão em berros. Com um intenso poder de idealização revestíamos todos os entes, os mais triviais, de beleza ou de grandeza, de poesia ou de terror, no desejo inconsciente de que a realidade correspondesse ao nosso sonho. Inventávamos gênios – de quantas tricanas fizemos Ofélias! Antero, ainda nos últimos anos, se lamentava por ter conservado este vício imaginativo de criar fantasmas, por nós gerados para gastar sobre eles a abundância do nosso entusiasmo, ou sobre eles cevar santas indignações. O pobre Napoleão III foi para essa nossa Coimbra um Nero, um Anticristo: tal escoliasta, destro em argumentar, tomava logo as proporções augustas de um Santo Tomás de Aquino, que nos deslumbrava: o bom Castilho passou por um opressor das inteligências, de cujas mãos caía a treva sobre o mundo, e que estorvava o caminhar dos tempos! Mas nada pinta melhor este engano de espírito do que a admiração, o espanto, inspirados por certo lente de Teologia, ainda moço, de face chupada e amarela, a quem nós atribuíamos um patética revolta contra os dogmas, não sei que sublimidade herética, e estranhas práticas de misticismo sensual. Era um teólogo de costumes quietos, que lia Balmes e sofria do fígado. Pois corria pelos cenáculos que este padre sombrio, todas as noites, colocava uma Bíblia aberta sobre os seios nus da sua amante, e à luz de uma tocha se repastava das amarguras do “Eclesiastes”! E todos nós acreditávamos com inveja nesta Bíblia, nestes seios, nesta tocha... Assim era essa geração.

Em torno dela, negra e dura como uma muralha, pesando, dando sobre as almas, estava a Universidade. Por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral até Celas, se erguia ela, com as suas formas diferentes de comprimir, escurecer as almas: – o seu autoritarismo anulando toda a liberdade e resistência moral; o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha; o seu literalismo, representado na horrenda sebenta, na exigência do ipsis verbis, para quem toda a criação intelectual é daninha; o seu foro, tão anacrônico como as velhas alabardas dos verdeais que o mantinham; a sua negra torre, donde partiam, ressuscitando o precetto da Roma jesuítica do século XVIII, as badaladas da “cabra” por entre o voo dos morcegos; a sua “chamada”, espalhando nos espíritos o terror disciplinar de quartel; os seus lentes crassos e crúzios, os seus Britos e os seus Neivas, o praxismo poeirento dos seus Pais Novos, e a rija penedia dos seus Penedos! A Universidade, que em todas as nações é para os estudantes uma Alma Mater, a mãe criadora, por quem sempre se conserva através da vida um amor filial, era para nós uma madrasta amarga, carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu cúmplice, tornava a chave das carreiras. Verdadeira chave dos campos, no dizer francês, abrindo para a independência, para a vida e para a beleza das coisas naturais. No meio de tal Universidade, geração como a nossa só podia ter uma atitude – a de permanente rebelião. Com efeito, em quatro anos, fizemos, se bem me recordo, três revoluções, com todos os seus lances clássicos, manifestos aos pais, pedradas e vozearias, uma pistola ferrugenta debaixo de cada capa, e as imagens dos reitores queimadas entre as danças selváticas. A Universidade era, com efeito, uma grande escola de revolução: – e pela experiência da sua tirania aprenderíamos a detestar todos os tiranos, a irmanar com todos os escravos. O nosso entusiasmo pela Polônia nascia de nos sentirmos oprimidos como ela por um czar de borla e capelo, que se chamava Basílio. Aqueles de nós que hoje leiam uma História da Vida e da Sociedade em Roma, nos fins do século XVIII, quando toda a cultura livre era vedada, e a banalidade tinha a estima do Governo por ser uma condição da docilidade, e os melhores bens se obtinham pela intriga e o favoritismo, e se educava o homem para a baixeza, e a independência se arrancava como erva venenosa, e a polícia intervinha até na maneira de atar a gravata, e não se permitia aos cidadãos andar fora de casa depois das Ave-Marias – julga ver a escura imagem da vida universitária há trinta anos, quando se impunha ao estudante, com a batina de padre, a regra canônica do Gesu. E era por nos sentirmos envolvidos numa opressão teocrática, que, além de pendermos para o jacobinismo, tendíamos, por puro acinte de rebeldia, para o ateísmo. De sorte que a Universidade, ultraconservadora e ultracatólica, era não só uma escola de revolução política, mas uma escola de impiedade moral.

Antero resumiu, com desusado brilho, o tipo do acadêmico revolucionário e racionalista: e daí começou a sua popularidade – e a sua lenda. Não recordo, nem sei se é histórica, essa temerária noite, em que ele, durante uma trovoada, e de relógio na mão, intimou Deus a que o partisse com um raio, dentro de sete minutos, no caso de existir. Desconfio do altivo episódio. Antero não tinha relógio; a sua exegese era já muito fina para assim confundir as maneiras de Jeová com as de Júpiter: – e, se lançou o desafio satânico, foi rindo alegremente do excesso da sua fantasia. Mas é certo que ele se afirmou sempre como o grão-capitão das nossas revoltas, desde aquela que derrubou o bom tirano Basílio, até à que nos levou para o Porto, uma noite, entre archotes, ganindo a “Marselhesa”. Todos os “Manifestos ao País”, que a tradição nos impunha no começo destas sedições, saíam da pena de Antero: – porque já ele era, além da melhor ideia da Academia, o seu melhor verbo. E enfim foi ele ainda que se rebelou contra outro e bem estranho despotismo, o da Literatura Oficial, na tão famosa e tão verbosa Questão Coimbrã, já não é fácil, depois de tantos séculos, relembrar os motivos dogmáticos por que se esgadanharam as duas literaturas rivais, de Coimbra e de Lisboa. O velho Castilho, contra quem se ergueram então tantas lanças e tantos folhetos, não se petrificara realmente numa forma literária que pusesse estorvo à delgada corrente do espírito novo. Fora, é verdade, trovador e bardo; mas renovara o naturalismo clássico com as suas traduções de Virgílio; e passara para a nossa língua Molière, um dos mais nobres avós da família psicóloga. Todas estas almas diversas (é certo) as moldava dentro de uma vernaculidade arcádica que as deformava: mas a sua arte de escrever era polida, e houve dignidade e beleza no seu prolongado amor das Letras e das Humanidades. (Seriam hoje úteis, entre nós, um ou dois Castilhos.) Em todo o caso, relativamente a Antero de Quental e a Teófilo Braga, o vetusto árcade mostrou intolerância e malignidade, deprimindo e escarnecendo dois escritores moços, portadores de uma ideia e de uma expressão próprias, só porque eles as produziam sem primeiramente, de cabeça curva, terem pedido o selo e o visto para os seus livros à Mesa Censória, instalada sob a seca olaia do seco cantor da “Primavera”.

O protesto de Antero foi portanto moral, não literário. A sua faiscante carta “Bom Senso e Bom Gosto” continuava, nos domínios do pensamento, a guerra por ele encetada contra todos os tiranetes, e pedagogos, e reitores obsoletos, e gendarmes espirituais, com que topava ao penetrar, homem livre, no mundo que queria ser livre. Para Teófilo Braga, essa luta coimbrã foi essencialmente uma reivindicação do espírito crítico; para os outros panfletários, todos literatos ou aliteratados, uma afirmação de retórica; – para Antero, de todo alheio ao literatismo, um esforço da consciência e da liberdade. Por isso o seu ataque sobretudo nos impressionou, não só pelo brilho superior da sua ironia, mas pela sua tendência moral, e pela quantidade de revolução que continha aquela altiva troça ao déspota do purismo e do léxico. Castilho, armado da sua férula, e tendo a pretensão de dar com ela palmatoadas nas almas, aparecia aos nossos olhos criadores de fantasmas, como um verdadeiro monstro: Antero, crivando de setas de ouro os flancos vernáculos do monstro, foi para nós como um sagitário libertador. Eu digo “nós”, uso este plural de casta nobre, unicamente porque nos simul in Garlandia fuimus, nos mesmos bancos nos sentamos, sob o mesmo luar devaneamos. De resto, eu era meramente um ator do Teatro Acadêmico (pai nobre), e rondava em torno destas revoluções, destas campanhas, destas filosofias, destas heroicidades ou pseudo-heroicidades, como aquele lendário moço de confeiteiro que assistiu à tomada da Bastilha com o seu cesto de pastéis enfiado no braço, e quando a derradeira porta da fortaleza feudal cedeu, e a velha França findou, deu um jeito ao cesto leve, e seguiu, assobiando a “Royale”, a distribuir os seus pastéis.

Mas era um devoto (o termo não é excessivo) do poeta das “Odes Modernas”. Todos, desde então, esperamos dele a renovação de um mundo, do nosso pequeno mundo, para nós imenso – e imenso na verdade, porque uma simples alma é um vasto mundo, e a sua renovação, no sentido da justiça ou da bondade, uma vasta obra. Antero era não só um chefe – mas um Messias. Tudo nele o marcava para essa missão, com um relevo cativante: até a bondade iniciadora do seu sorriso, até aquela grenha cor de ouro fulvo, que flamejava por cima das multidões. E havia já com efeito hábitos messiânicos nesse bando de discípulos que o acompanhavam através de Coimbra, de capa solta, enlevados na sua palavra. Essa luminosa palavra de Antero era uma das suas magníficas forças de atração. Ninguém jamais possuiu um Verbo de tanta solidez, harmonia, finura e brilho. Todo o século XVIII considerou como um dos maiores regalos da inteligência, o ouvir Diderot conversando. Foi um dos encantos no nosso tempo ouvir conversar Antero. Em Coimbra a sua veia vibrava em pleno esplendor. Era uma lira, a lira divina de sete cordas, em que não interessava e deslumbrava menos que as outras a corda de bronze do sarcasmo. Sarcasmo que nada encerrava de triste ou de amargo, como o de um Quevedo. Antero, mesmo troçando e amaldiçoando, era um ateniense: e à sua ironia convinha, mais que a de nenhum outro ironista, o nobre epíteto homérico de alada. Os seus ditos abriam, através da sua geração, grandes sulcos luminosos – e puros. 

Mas sobretudo se impunha pela sua autoridade moral. Antero era então, como sempre foi, um refulgente espelho de sinceridade e retidão. De nascença a sua alma viera toda limpa e branca, e quando Deus a recebeu, encontrou-a decerto tão limpa e branca como lha entregara. Nunca, através da vida, tomou um caminho escuro ou oblíquo: com a face levantada, como um sol, rompia a passos direitos e sonoros: – e, se topava com um desses muros que constantemente se erguem nas estradas humanas, ou o demolia ou retrocedia, mas nunca condescendeu no ladear com astúcia, mesmo quando para além reluzisse o tesouro que a sua ideia ou o seu sentimento apeteciam. Antero foi um caráter heroicamente íntegro. E não se necessitava, para lho reconhecer, uma longa e penetrante intimidade: – a sua lealdade magnífica resplandecia toda nos seus olhos claros, como uma luz santa às portas de um sacrário. O granito, o cristal, tudo o que é límpido, tudo o que é sólido, eram menos límpidos e sólidos que a sua amizade Apesar de algum ceticismo e muita ironia, tropeçou simplesmente em grossos enganos, porque o espírito translúcido não previa, nunca se lembrava do dolo e da falsidade. Naquele erudito pessimista houve sempre um inocente. A justiça era nele ingênita. Assim era a verdade.

Que dizer da sua bondade? Por um constante aperfeiçoamento, ela chegou, nos últimos tempos, a ser perfeita. Mas já na idade ligeira e romanesca de Coimbra era imensa – e se manifestava por uma alegria magnânima. O “claro riso dos heróis”, que Michelet raramente encontrou na História e que o arrebatava, foi o riso de Antero. Riso generoso do ser que ama todos os seres, e que, pelo menos dentro desse amor, acha que o mundo é ótimo, e se sente soberbamente otimista e doce. Ele teve a caridade nos anos em que, por se não conhecerem ainda as misérias do coração e do mundo, nunca se é caridoso: – e nele foi natural e simples, não como a da juventude neo-evangélica (que, agora, por Paris e Londres, languidamente ensina o Bem), sugada, ou antes decorada, na “Vida de São Francisco de Assis”. Nessas mesmas pugnas, nessas derrocações de Bastilhas em que parecia feroz, a sua bondade andava toda inquieta enquanto a sua cólera trabalhava. Como o sagitário antigo, apenas despedia do grande arco a grande frecha, atirava largamente um passo para diante – mas era já com o desejo de ir curar a ferida que o seu dardo rasgara. Quando, depois do encerramento tão bruto das Conferências do Casino, ele esmagou o considerável marquês de Ávila sob aquela “Carta” de tão alegre, picante e patrício desdém, soube, por um amigo, que o pobre marquês se magoara até se lhe umedecerem os olhos com uma acerada alusão à origem do seu nome de Ávila. Antero angustiado, com os olhos também úmidos, correu à “Revolução de Setembro” a gritar “errei! errei!”, e a imprimir uma retratação apiedada que consolasse o velho... 

Toda esta alma de santo morava, para tornar o homem mais estranhamente cativante, num corpo de Alcides. Antero foi, na sua juventude, um magnífico varão. Airoso e leve, marchava léguas, em rijas caminhadas que se alongavam até à mata do Buçaco: com a mão seca e fina, de velha raça, levantava pesos que me faziam gemer a mim, ranger todo, só de o contemplar na façanha: jogando o sabre para se adestrar, tinha ímpetos de Roldão, os amigos rolavam pelas escadas, perante o seu imenso sabre de pau, como mouros desbaratados: – e em brigas que fossem justas o seu murro era triunfal. Conservou mesmo até à idade filosófica este murro fácil: e ainda recordo uma noite na Rua do Ouro, em que um homem carrancudo, barbudo, alto e rústico como um campanário, o pisou, brutalmente, e passou, em brutal silêncio... O murro de Antero foi tão vivo e certo, que teve de apanhar o imenso homem do lajedo em que rolara, de lhe limpar a lama da rabona, e de o amparar até uma botica, onde lhe comprou arnica, o consolou, citando Golias e outros gigantes vencidos. No Garrano, nas Camelas, um prato com três dúzias de sardinhas e uma canada do “tinto” não o assustavam, nem lhe pesavam. Pelo contrário! Depois, em face da Lua, na Ponte ou pelo Choupal, as suas cabriolas pelos céus da metafísica eram mais fulgentes e destras. 

***

Já porém, no meio destas qualidades esplêndidas que lhe garantiam uma vida forte, e superiormente feliz, existia um fermento de dor. Bem se descobre ele em alguns dos sonetos desses anos, que são (como todos os seus sonetos) sublimes notas postas à margem de uma alma que se interroga. Já então o ditoso Antero, tão prodigamente dotado por Deus, se considerava um filho abandonado de Deus: já o mundo lhe parece perder a cor, e ele próprio a perde também, devendo para sempre ficar pálido e triste: e a beleza que então lhe aparece não a goza plenamente, porque ela lhe lembra outra, transcendente e de mais puros gozos. O seu presente é uma atormentada aspiração ao futuro – mas o que é o futuro, senão sombra movediça e mentirosa? Ele, tão seguido, tão amado, erguido como chefe por uma juventude feita à sua imagem, já se sente solitário entre turbas vãs: e os braços, que a sorte lhe deu tão fortes e movidos por uma alma tão alta, já se prepara para os cruzar com melancolia.

Todavia, em volta dele, esse era o tempo de um otimismo universal. Nas duas grandes nações pensantes, que o inspiravam, triunfava o otimismo – lírico em França, filosófico na Alemanha, mas em ambas rosado e risonho. Todos os hegelianistas prussianos eram, creio eu, otimistas: – e Pelletan, para cá do Reno, convidava o homem, tornado onisciente e onipotente pelo progresso, a afirmar soberbamente, e cantando, a sua realeza sobre os Céus. Decerto já existiam desiludidos: mas era ainda o antigo desiludido do século XVIII, o Candide, depois de reconhecer que no mundo a melhor ocupação, a única que não resulta em logro, consiste em plantar quietas saladas num murado e frondoso quintal. Ainda então não safra da sua hospedaria de Frankfurt o bom Schopenhauer, bem penteado, de calças cor de flor de alecrim, para tirar das mãos de Candide a enxada e o regador, e lhe provar que a sabedoria realmente consiste em entrar num convento de trapistas, ou, como um yoghi hindu, em jazer rigidamente sob a mangueira de Lovelane, meditando a inanidade e o mal das coisas. Ninguém então, do Reno para cá, lera ainda Schopenhauer. E um no seu quarto de Frankfurt, metodicamente, tomando o seu chocolate, outro em Coimbra, atormentadamente, porque é poeta e meridional, chegando ao mesmo resumo, num raciocinado, no outro soluçado: 

 Que sempre o mal pior é ter nascido! 

Daqui provinham certos modos de Antero ainda então inexplicáveis – dias de tristeza e esparsa cólera, um querer e não querer entrechocados, entusiasmos que logo escarnecia, bocados de vida que deixava sumir em fumo, e esses apetites de solidão, esses períodos de trapismo artificial em que desaparecia, se embrenhava sozinho pelas espessuras do Buçaco. O espírito de sociabilidade, é certo, sempre nele triunfava; e também essa alegria, de raízes vivazes, subsistente sob as névoas do mais denso desalento, e que mesmo depois, nos piores dias, reaparecia – apenas ele se encontrasse entre camaradas de espírito congênere, e crepitasse o lume das controvérsias. Mas, já nesse tempo de Coimbra, Antero, por momentos, perante a face mais florida de juventude e saúde, pensava na caveira.

Pessimismo, sobretudo nos seus começos, não vai sem inação; – e a inação é verdadeiramente a sua primeira e ligeira forma. Se tudo no mundo conduz a desilusão e poeira – como se podem considerar, sem riso e sem compaixão, esses rijos esforços que cuidam revolver mundos, quando estão meramente remexendo fumo? Daí essas indiferenças, desprendimentos, bruscas desistências da energia, que, da parte de Antero, surpreendiam e contristavam os seus amigos. Durante a grande Questão Coimbrã, quando mais ressoante rolava a briga contra a Troia literária de Castilho, ele, o nosso invencível Aquiles –um dia desaparece... Era um abandono, pactuara o herói secretamente com Príamo? Assim o pensaram os Acaios fanáticos. Não! Fugira para a Figueira, com saudades da solidão e do mar. Que importância podia ter essa rixa de literaturas e vaidades para quem, desde os dezoito anos e dos primeiros versos, viera sempre desdenhando alegremente a superstição da glória e das letras? De resto todo o esforço em Antero era acompanhado pelo sentimento secreto e divertido da sua inanidade; – e a ironia nele andava sempre ao lado da ação, soltando o seu assobio malicioso. Para quê, meus amigos? tudo é fumo e em fumo se espalha!... Esta universal desilusão, este escuro e mudo Nada para onde correm, como para um mar, todos os desejos humanos, não era todavia afirmada por Antero com amargura – antes com uma resignação risonha. “O Amor e o Bem (ensina ele então, ou parece ensinar) não se realizam nesta vida contingente e escrava, e só na outra, na absoluta, quando o espírito atinja perfeição e liberdade... No entanto, amigos, vamos aceitando as aparências imperfeitas deste mundo onde há bosques, roseiras, artes delicadas, e as mulheres entreabrem amorosamente a sua porta, e um curto heroísmo por vezes enobrece as cidades, e até se pode colher um fugitivo gozo com um cesto de laranjas e uma guitarra, de tarde, num barco, por este Mondego acima... “Assim este homem, em cuja alma iam enegrecendo as nuvens de uma áspera tormenta intelectual, era ainda para todos, nesses tempos de Coimbra, “da encantada e fantástica Coimbra” de então, um viçoso camarada, cheio de exuberância e fantasia, apaixonado e luminoso, nobre e amigo dos homens, embebendo os olhos francos na beleza das coisas, e tumultuosamente esperando que da revolução e da filosofia altos bens viessem à Terra. Do negro fermento de desilusão e dor, que ele trazia já dentro da alma, só conheciam alguns amigos, a quem ele lia os seus sonetos confessionais, e que ficavam espantados escutando a confissão, e contemplando o homem que a confessava. Desse poeta de face ardente e veia rutilante, todo idealização, todo paixão, metafísico e batalhador, bem se podia esperar uma epopeia, o apostolado de uma religião, longas aventuras sonoras – nunca a passiva dor de um budista aspirando palidamente ao Não-Ser. E a sua vida, com efeito, desde que saiu dessa “encantada e quase fantástica Coimbra”, foi toda de movimento e de força. Antero anda então ansiosamente procurando um emprego para a sua grande alma. Viaja pela Europa Ocidental, ou antes passeia através dela os seus sonhos de liberdade e de justiça, para encontrar algures um mundo que lhes seja congênere e onde os possa plantar e cultivar com magnificência. Atravessa o Atlântico, por puro desejo de espaço e liberdade, num pequeno yacht; e durante semanas de tormenta trabalha descalço na manobra, ou, metido no seu beliche, que as ondas alagam, embrulhado num oleado, relê o “D. Quixote”, com um interesse e uma paixão renovadas, talvez por sentir que nessa grande história da Ilusão está lendo a sua história. Percorre a costa da América, até à Nova Escócia; e aí, um domingo, tem uma visão que nunca esquece, a de uma cidade puritana (Halifax ou Lunenberg), silenciosa, como adormecida no Senhor, toda de tijolo cor-de-rosa sob um céu cor de pérola, com fundas avenidas mais pensativas que as dos Elísios, onde os namorados passeiam, numa mudez de sombras, de dedos enlaçados, de pálpebras baixas, respirando sem outro desejo a flor da sua emoção. Quantas vezes Antero me contava dessa piedosa e suave cidade, e do longo apetite que ela repentinamente lhe dera de quietação eterna! Ao cabo dos grossos mares atlânticos, Deus talvez lha mostrou como um prenúncio do seu destino: uma grande tormenta, depois um grande descanso – e um descanso a que Deus não era alheio.

Enfim Antero volta a Lisboa, encontra o Cenáculo. Encontra o nosso querido e absurdo Cenáculo instalado na Travessa do Guarda-Mor, rente a um quarto onde habitavam dois cônegos, e sobre uma loja em que se agasalhavam, como no curral de Belém, uma vaca e um burrinho. Entre essas testemunhas do Evangelho e esses dignitários da Igreja, rugia e flamejava a nossa escandalosa fornalha de revolução, de metafísica, de satanismo, de anarquia, de boêmia feroz. J. Batalha Reis era o dono do aposento temeroso, e Via Láctea, galego ilustre, o seu servo. Via Láctea dormia pendurado, como um paio, da chaminé da cozinha. As suas ocupações não consistiam em escovar ou varrer. A Via Láctea fora confiada a missão transcendente de espreitar a passagem da Ideia ao longo do rio do Espírito, para nos avisar, e nós corrermos e a prendermos na rede rutilante do Verbo. Durante dois anos, cada dia, a horas de sol e a horas de treva, empurramos nós com fragor a porta da cozinha, e berramos em ânsia: “Via Láctea! Via Láctea! viste enfim a Ideia Pura boiando na corrente espiritual?...” E durante dois anos Via Láctea, de dentro da chaminé ou de sobre a tampa de um caixote, imutavelmente rosnou com uma dignidade triste: "Num bi nada". Aí Antero apareceu numa fria manhã – e foi aclamado. Naquela viela de Lisboa ressuscitou então, por um momento, a “encantada e quase fantástica Coimbra” de que ele sempre conservara uma saudade romântica. Antero, porém, que desembarcara em Lisboa, como um apóstolo do socialismo, a trazer a palavra aos gentílicos, em breve nos converteu a uma vida mais alta e fecunda. Nós fôramos até aí no Cenáculo uns quatro ou cinco demônios, cheios de incoerência e de turbulência, fazendo um tal alarido lírico-filosófico que por vezes, de noite, os dois cônegos estremunhados rompiam a berrar, o burro por baixo zurrava desoladamente, e no céu, sobre os telhados vizinhos, a Lua parava, enfiada. Mas toda a nossa alma se ia nesse alarido, e o vento vão da boêmia a levava, para onde leva as almas descuidadas e as folhas de louro secas... Sob a influência de Antero logo dois de nós, que andávamos a compor uma ópera bufa, contendo um novo sistema do Universo, abandonamos essa obra de escandaloso delírio – e começamos à noite a estudar Proudhon, nos três tomos da “Justiça e a Revolução na Igreja”, quietos à banca, com os pés em capachos, como bons estudantes. Via Láctea começou a varrer. E do Cenáculo, donde, antes da vinda de Antero (que foi como a vinda do rei Artur à confusa terra de Gales), nada poderia ter nascido além de chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos de filosofia fácil, nasceram, mirable dictu, as Conferências do Casino, aurora de um mundo novo, mundo puro e novo que depois, ó dor, creio que envelheceu e apodreceu... 

De resto o Cenáculo estava nas vésperas de se dispersar – porque a cada um de nós, bruscamente (nessa mesma esquina da Travessa do Guarda-Mor) aparecera a Vida, enrugada, de dedo ameaçador, a avisar que ela não é musa ou ninfa que se trate com ligeireza, indiferença, e cantando. Assim aquele cavaleiro que uma noite em Paris, no Pont-Neuf, surgiu perante o senhor D. Gil, do solar de Vouzela, lhe deteve os passos que corriam ao pecado e lhe gritou brandindo a lança: – “Homem, para trás, para o Senhor!” Nós vimos a lança; e saudosamente entre nós murmuramos: – “Irmãos, não mais cavalgadas sobre o dorso macio da quimera, é tempo de irmos a concursos... 

Fomos a concursos. Antero, esse, encontrara Oliveira Martins, que era um pensador, e José Fontana, que era um agitador; e ardentemente penetrara no Movimento Socialista, então iniciado em Lisboa com os fervores e os segredos poéticos de uma religião. Simultaneamente propagava a união ibérica, fundava sociedades operárias, instalava a Associação Internacional, lançava panfletos, conspirava, apostolava. Era, como ele dizia, “um pequeno Lassale”. E, como Lassale, já invadido por um vago mal-estar, no meio da popularidade que o começava a cercar – e a sufocar.

Eu não fui testemunha dessa sua vida militante. Pelo meu turno partira, a percorrer os mundos deste mundo, dos velhíssimos aos novíssimos, da magoada Jerusalém à estridente Chicago. Longe, porém, soube que Antero se afastara inesperadamente da atividade revolucionária. Por quê? Abalara ele, como durante as grossas guerras coimbrãs, para a Figueira, com saudades dos areais e do mar? Não – harmonizara simplesmente a sua conduta e a sua natureza. O elemento natural do espírito de Antero era a abstração filosófica, e só dentro dela respirava e vivia plenamente. Além disso, descendente de uma muito velha família, já ilustre na corte, de Afonso V, ele nunca se desembaraçara de certas hereditariedades de raça e de casta, e conservava, sob a sua vasta humanidade, um não sei quê de antiquado e de estreitamente fidalgo. Enfim, era um superfino artista... Como direi? O artista, o fidalgo, o filósofo, que em Antero coexistiam, não se entenderam bem com a plebe operária. Sempre sincero, lavou as suas mãos, e proclamou que só os Proletários eram competentes para exprimir o pensamento e reivindicar o direito dos Proletários. E amando ainda os homens, mas desistindo de os conduzir a Canaã, subiu com passos desafogados para a sua alta torre bem-amada, a torre da metafísica.

Quando, volvidos dois ou três anos, regressei a Lisboa, encontrei o meu amigo estirado numa cama, no quarto mais remoto de uma casa remota, quase numa trapeira, para que não lhe chegassem os ruídos da cidade, morbidamente intoleráveis à sua super-sensibilidade nervosa. Ali, em solidão e imobilidade, Antero estava travando com o seu pensamento uma luta, de que os Sonetos, de 1874 a 1880, são a notação magnífica e dolorosa. E o seu pensamento em breve o arrastara a um pessimismo negro, repassado de desespero. A certeza de morrer levara Antero a indagar mais fundamente a razão de viver: – e, por mais que aprofundasse a existência, ela só lhe aparecia como uma tortura gratuita, confusa, inútil. Pedia ele então à inteligência a explicação da existência. E a sua inteligência, como ele depois contava, toda penetrada do naturalismo, que era a atmosfera onde se desenvolvera, só lhe oferecia a solução naturalista – só lhe podia afirmar que a vida, na sua forma empírica, é a luta obscura de forças obscuras. E na sua forma filosófica e intelectual? Apenas a contemplação egoísta dessas lutas instintivas. Não há pois senão vácuo, confusão e inutilidade universais! É certo que rompe através da neve estéril, revelando as fecundidades subjacentes da terra, surge por vezes do fundo da consciência e espalha por toda ela o seu perfume tímido... Mas não nos prendamos já a essa falsa esperança, porque a flor murchará, apenas entreaberta, e o seu perfume 

no vácuo universal será disperso! 

 A consciência e uma outra ilusão, uma modalidade efêmera, pois que nada de eterno se pode nela realizar. De que serve ter sido, ou procurar ser, justo e bom? Justiça e bondade findam no pó, infecundos como o pó. A vida é um desolado logro. E o melhor é morrer, pois que nos liberta da miséria, da vergonha, do horror da universal falsidade. – Tal era então o sombrio e secreto monólogo de Antero naquele leito estreito – donde ele todavia, quando os seus amigos apareciam, sorria tão alegremente e tão meigamente aos seus amigos.

É que não o deixara nunca o espírito consolante de sociabilidade, e esse adorável bom humor que era nele como um sol imanente por trás de nuvens transitórias, e ainda essa polidez superior, quase transcendente, forma graciosa da caridade, que não lhe consentia alongar por sobre a alma dos outros a sombra dos fantasmas de que a sua andava povoada. Por mais descido e fundo que o seu espírito jazesse, naquele “poço úmido e morno” de que fala num dos seus sonetos, bastava que da borda o chamasse uma voz fraternal para que o seu espírito subisse, com compostura risonha, sem vestígios da treva inferior donde emergia, penetrando logo nas alegrias e cuidados alheios, e tomando um interesse acariciador pelas coisas mesmas que, para ele, na vida, eram mais desinteressantes e vãs. Muito bem me recordo de uma noite em que subi à sua alcova com um velho amigo dele e meu, Carlos Mayer. Antero lá estava, estendido no seu leito, com uma manta por cima dos pés, a face emaciada, e sobre ela espalhada aquela sombra, semelhante a um reflexo de coisas negras, que outrora deu a Dente a reputação de descer cada noite ao Inferno. Pois essa mesma face, num momento, se iluminou de afabilidade e graça fácil. Carlos Mayer andava nessa ocasião envolvido na ciência e cuidados de uma grande indústria de destilação – e a conversa rolou sobre máquinas, processos, fermentos, salários, lucros, milhões. Antero circulava ardentemente dentro daquelas questões de química, mecânica, economia, como se elas constituíssem a paixão suprema dos seus dias solitários. O ar do seu quarto de metafísico ficou em breve mais cheio de cifras, de vozes técnicas, que o de um escritório da City. Depois, talvez porque a esse tempo eu me preocupava com a civilização chinesa, deslizamos a conversar da China. Carlos Mayer atacou rancorosamente o Império Florido. 

Antero, arrojando a manta, exaltou logo o Chinês, e a sua pedagogia, e a sua agricultura, e a sua arte, e a sua sociedade, e a solidez e pureza das suas instituições domésticas – com o saber miúdo e grave de um mandarim. E não era só a erudição que surpreendia, mas o fogoso interesse, como se o seu pensamento habitasse constantemente e só se comprazesse entre a Grande Muralha e o mar Amarelo. E ao mesmo tempo quanta abundância cômica, que finura e firmeza de juízos, que dizer tão luminoso e perfeito!

Já tarde, ao alvorecer, Antero chamara o criado estremunhado para nos acompanhar, quando um de nós lhe perguntou por versos. Como Antero não compunha versos por uma faculdade poética bem cultivada, e apenas certos estados da sua razão e da sua sensibilidade cristalizavam naturalmente em verso, era esta uma interrogação familiar sobre a sua saúde moral. E muito facilmente, como dando uma informação íntima, Antero tirou de entre as folhas de um livro um papel, e leu sem entono amargo ou dolorido, com a simplicidade corredia de uma nota a lápis, aquele seu poema que Oliveira Martins depois salvou da destruição, o “Hino à Manhã”, um dos mais angustiosos lamentos que tem escapado a um forte e altivo coração de homem. Assim podia aquele Antero singular, durante toda uma noite, aplicar à mecânica e à defesa histórica da China um pensamento tão profundamente ferido, tão arquejante ainda das lutas tenebrosas com a Esfinge.


***

Passaram anos em que não vi Antero, instalado então em Vila do Conde. Sabia que o meu amigo estava quase são, quase sereno. Mas foi uma preciosa surpresa, quando, ao fim dessa separação, chegando ao Porto e correndo com Oliveira Martins a Vila do Conde, avistei na estação um Antero gordo, róseo, reflorido, com as lapelas do casaco de alpaca atiradas para trás galhardamente, e abanando na mão a grossa bengala da Índia que em Lisboa eu lhe dera para amparar a tristeza e a fadiga. Era uma regressão, quase o antigo Antero coimbrão, mais amadurecido, mais doce: – apenas, no lugar da fulva grenha flamante e romântica, alvejava um sereno começo de calva socrática. Era sobretudo uma ressurreição moral, à velha maneira de Lázaro, uma miraculosa saída do túmulo pessimista e das sombras da negação. Findara a luta implacável, o seu grande coração, enfim, descansava em paz! 

Como chegara Antero a esse repouso apetecido? Escutando com uma atenção mais grave, mais crente, aquela voz da Consciência, que tanto tempo desconhecera, e que apesar de todos os desenganos e sempre em segredo protesta e afirma o Bem.

 Fora atendendo reverentemente essa doce voz; e conseguindo, por um desesperado esforço do pensamento, penetrar a sua significação; e refazendo, guiado por ela, a sua educação filosófica; e procurando depois a sua confirmação na história, nas doutrinas dos moralistas, nas confissões dos místicos, que ele chegara a descobrir, a compreender bem o fim último e verdadeiro de tudo, não só do homem moral, mas de toda a Natureza, mesmo na sua modalidade física. E essa descoberta é de inefável beleza e contentamento – pois que o fim de tudo é o Bem! O Universo tem por fim o supremo Bem – o Bem é o momento final e augusto de toda a evolução do Universo. 

Possuía pois Antero, enfim, a “sua filosofia”, essa filosofia que ele tantos anos perseguira como deusa esquiva entre selvas duvidosas, e que fora sempre para os seus amigos, alternadamente, motivo de esperança, de desconfiança, de entusiasmo e de sarcasmo... Mas agora Antero alcançara a deusa esquiva. E a lei moral dessa filosofia (de que ele deu na “Revista de Portugal” um esboço eloquente e poético) consistia em renunciar a tudo quanto limita e escraviza o espírito – egoísmo, paixões, vaidades, ambições, contingências, materialidades do mundo, – e em procurar a união do espírito, assim libertado e limpo de todo o pesado lodo terreno, com o seu tipo de perfeição que usualmente se chama “Deus”. Essa união, em que a vontade limitada se dissolve na vontade absoluta, será tanto, mais eficaz quanto mais completa for a renúncia a tudo o que é egoísta, particular, individual. E só pela união com o Ser perfeito, de que essa renúncia é instrumento e condição, se realiza o Bem, o Bem supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e a progressiva santidade.

De toda a filosofia de Antero (que sou bem incompetente para interpretar) só quero reter esta linha ética, porque ela o explica nesses anos de paz e de admirável doçura. A vida de Antero em Vila do Conde era então verdadeiramente edificante – e constituía, sem doutrina, um forte ensino moral. O velho Santo Antão no monte Colzin não vivia um viver mais puro, mais entregue ao ideal, à perfeição, à Vida Eterna, do que Antero naquela casa de Vila do Conde, simplificada até ao cenobitismo, e onde por único adorno, além de livros numa estante de pinho, havia flores das sebes em púcaros de barro. Era aquele o retiro muito nu e muito limpo (porque Antero tinha o asseio e a ordem rígida de uma freira velha) de quem alegremente se despojou de tudo quanto embaraça, atravanca a vida de cada dia, para encetar a alta conquista da liberdade moral. Com ele viviam as duas meninas que adotara, “as suas pequenas”, que então ensinava e educava, e que, pelos cuidados da paternidade, o prendiam ainda ocasionalmente à sociedade. Fora desses cuidados ele só se ocupava com o aperfeiçoamento da sua alma, ou, como diria um católico, com a sua “salvação”. Não salvação individual e egoísta, como a dos santos – mas salvação de todos, salvação para todos, penetração lenta no Bem próprio para dele fazer um instrumento do Bem universal. Leituras intermináveis e longamente pensadas; solilóquios constantes de um espírito, que constantemente se confessa para constantemente se corrigir; intensas meditações, em que a sua vida se confundia na vida do Ser, num desejo permanente de sentir na sua consciência de homem latejar a consciência do Universo – eis o abstrato emprego dos seus nobres dias. Outro não era o dos Solitários, nos desertos do Alto Egito, tentando a suprema fusão com Deus. Como regressos ao mundo donde por virtude e mesmo por gosto se não sequestrara, tinha as suas Visitas ao Porto, a Oliveira Martins. Era o que ele chamava as grandes “dissipações”.

Oliveira Martins vivia então na sua linda e recolhida casa das Águas Férreas. Se já houve em Portugal um delicado e grave retiro de estudo e de trabalho, sereno, hospitaleiro, superiormente polido e culto, forte em afeições, fecundo em obras, belo pela consciência e pela ciência, e como espiritualizado pelas correntes de pensamento que nele tão livremente circulavam, foi esse da saudosa casa das Águas Férreas – enquanto não veio bater à porta a Política, disfarçada, trazendo sobre a face torpe a máscara nobre do Civismo. A biblioteca ficava em baixo, abrigada no silêncio propício de vielas desertas: aí viveu Oliveira Martins os seus dias mais doces, e escreveu os seus livros mais fortes, numa regra e concentração de beneditino, cortadas às vezes por tumultuosas inspirações de artista, como, quando ao reviver a “História da República Romana”, durante quarenta horas, sem descanso, sustentado a café, ele foi empurrando com pena magnífica, através das ruas de Roma, da Porta Carmental ao Capitólio, o triunfo de Paulo Emílio. Antero encontrava aí alguns dos seus companheiros de Coimbra, mais amadurecidos, disciplinados pelo trabalho, cada um ancorado na sua pequena Ítaca, mas conservando todos o gosto das viagens incertas pelos mares da Fantasia. A “encantada e fantástica Coimbra” de outros tempos ressurgia, com mais ordem intelectual, um saber mais positivo, e uma outra consciência da vida e da sua seriedade. E, como em Coimbra, Antero era ainda a curiosidade e o encanto daquelas tertúlias, misturadas de alto critério e de belo riso, onde por vezes toda uma metafísica, em plena expansão, tropeçava e desabava sobre a ponta aguda de um calembour. O seguro renovo de saúde, depois das desesperanças da doença, sobretudo a paz filosófica, tinham robustecido a alegria nata de Antero – e dado à sua natureza, até aí alternadamente meiga e violenta, uma serenidade igual e contemplativa como a luz de um belo dia de Outono. Aquelas indignações de insurrecto, em que outrora constantemente o lançavam os seus instintos de superior justiça, e certos laivos persistentes de radicalismo, eram agora raríssimos nele: e as misérias ou vergonhas da política (que em casa de Oliveira Martins, já diretor de A Província, repercutiam com particular intensidade) só causavam a Antero uma compaixão tranquila. Ele, de resto, ainda acreditava então que misérias e erros provinham do vício ou da incompetência da pequena casta política que, através de Lisboa, domina a Nação – e que, no fundo do povo, existia, latente mas intacta, uma grande energia viva, capaz de reconstituir, sob a direção da Virtude e da Capacidade, a ordem na sociedade portuguesa. Mas desse movimento reconstituidor (para que entrevia já os chefes predestinados), Antero só queria ser a testemunha consolada, quando muito o filósofo tutelar. O seu espírito só se interessava pela essência pura das ideias; – e creio que dos seus tempos de propagandista lhe ficara uma pudica repugnância pelo manejo direto dos homens e dos fatos. E todavia ninguém como ele possuía o dom melhor para arrastar homens através de desertos – a força e graça da sedução. Antero nascera pastor de almas – mas um pastor que, infelizmente, não tolerava a grosseria e a materialidade do rebanho.

O seu cuidado, nesse ano formoso em que tanto vivemos nas Águas Férreas, era construir definitivamente a “sua filosofia”, que não queria desenrolar num tratado, mas (como ele dizia, rindo) condensar num catecismo, muito claro, muito simples, todo em aforismos, de quinze ou vinte páginas, que se encadernasse em marroquim, se trouxesse na algibeira como um viático da razão pura. Rindo também, muitas vezes se lamentava de não ter três ou quatro discípulos que iniciasse no seu evangelho, e que, depois de o compreenderem finamente, escrevessem por ele as Epístolas aos Galácios e aos Coríntios. Eu sempre ardentemente me ofereci para ser o seu São Paulo, afrontar os gentílicos, derramar o Verbo. Mas Antero receava que, como artista, eu materializasse as suas ideias em imagens – imagens floridas, cinzeladas, pitorescas, e arrepiadoras portanto para quem, como ele abominava o pitoresco. Creio de resto que Antero não sentia prazer nem utilidade em publicar o seu pensamento. Considerando o estado mental da sociedade portuguesa, ele reconhecia quanto a sua doutrina e as suas conclusões pareceriam incompreensíveis, estranhas, fantasmagóricas. No seu país, Antero era como um exilado de um Céu distante; era quase como um exilado no seu século. Para que, pois, mergulhar na multidão, anunciar uma verdade que a todos se afiguraria um sonho, e um sonho nem ao menos composto com os elementos e os pedaços de realidade que entram sempre no arranjo dos sonhos? Seria o pueril labor do profeta no deserto – enquanto a caravana bebe nos costumados poços, retrilha o costumado trilho, e avança para a costumada Meca, onde morre da costumada peste. Antero era desses que intelectualmente antedatam, e que, quando escrevem, como dizia Stendhal, têm de esperar oitenta anos para serem lidos – e contestados. Por isso preferiu permanecer calado – tendo por consolação entrever “o norte para que se inclina a divina bússola do espírito humano”. Só mais tarde, por um esforço de amizade, para favorecer a “Revista de Portugal”, e também para entreter a solidão espiritual em que o deixara a partida de Oliveira Martins, instalado em Lisboa e na Política, é que Antero esboçou rapidamente algumas ideias, certas tendências do seu espírito, que ele considerava, e com razão (o neo-idealismo crescente da Literatura e da Arte, nestes últimos anos o prova) serem as tendências gerais do espírito filosófico no fim do século XIX.

Antero, com efeito, vivia muito solitário em Vila do Conde – sem mesmo a companhia das suas “pequenas”, que, agora crescidas e necessitando uma educação feminina e doméstica, ele colocara, depois de muito escolher, de muito pensar, no convento das Doroteias. Como regressos ao mundo, “grandes dissipações”, somente lhe restavam as visitas a Luís de Magalhães, à Quinta do Mosteiro. Antero amava a farta lavoura, a forte vida naturalista e sã que enchiam aquela antiga vivenda de frades. Mas sobretudo lhe era doce, e talvez salutar, ver, no meio de vida tão verdadeira e livre, Luís de Magalhães, robusto, exuberante, patriarcal, com aquela sua clara alma onde a alegria repica de matinas a trindades, arando os seus campos e fazendo os seus versos, como outrora Virgílio. Estas visitas, depois a sua solidão, e sobretudo o motivo que a avivara, a definitiva entrada de Oliveira Martins na ação, levaram Antero a considerar com mais atenção, quase com paixão, a política, os seus atos e os seus homens. Sempre intensamente português, nunca alheio ao que interessava a nação, era natural todavia que a política se tornasse para ele uma realidade mais sentida, desde que um nobre amigo, um irmão, passara das ideias para os fatos, e surgia como um reformador, empurrado, aclamado por tantas esperanças puras e crentes. Este novo interesse de Antero não veio senão desmanchar a suave paz intelectual que o envolvia. Seguindo o movimento do mundo político com a curiosidade com que se olha para um mar onde o barco de um irmão anda a manobrar e a rolar – Antero foi recebendo repetidas impressões de tédio e de desesperança. Aquele espírito pacificado, e tão feliz quando contemplava metafisicamente o Universo, porque sentia o fim soberanamente perfeito a que ele marcha na sua evolução – perdia a paz, perdia a felicidade, quando observava o pequeno Portugal, e este curto momento histórico em que ele se debate entre tanta baixeza e miséria moral. É certo que a sua super-sensibilidade de artista; de metafísico e de solitário exageravam essa miséria e essa torpeza. E quando uma tarde, passeando por Lisboa, ele confessava a um amigo, com terror sincero, que em todos aqueles homens que se cruzavam, na fria tarde de Inverno, distinguia nitidamente o signo fatídico da aniquilação iminente, e a ferocidade mal escondida de seres esfaimados que se vão entredevorar – evidentemente estava sofrendo de uma visão e não exercendo o seu destro e lúcido raciocínio. Assim São Pacômio, descendo da alta Tebaida a Alexandria, soltava gritos pelas ruas, porque, sob as túnicas moles e bordadas daqueles alexandrinos votados à sensualidade e à falsa dialética, ele via claramente o pé de bode que revela os demônios. Mas, de resto, a visão de Antero tinha um seguro núcleo de realidade. E pelo exame dessa realidade, a que ele desfazia não somente todos os fios visíveis mas antevia os prolongamentos ainda encobertos, viera a descrer de Portugal, com uma descrença que lhe era angústia. Angústia bem contraditória num grande intelectual, que sentia o mundo, através de todas as aparências perversas, marchar sublimemente para o Bem, supremo e consolante momento da evolução do Ser. Que pode importar uma chaga em corpo, que, por efeito mesmo dessa chaga e da sua decomposição, se está transformando no puro espírito, no anjo? Tais contradições, porém, pululam no misticismo, enchem a história dos Santos do Deserto.

E a angústia era tanto mais pungente quanto Antero via o seu grande amigo Oliveira Martins que se debatia, já vacilando, no meio desse mundo por ele considerado de irresgatável torpeza. Hércules partira para limpar as cavalariças de Áugias: Antero animara, acompanhara Hércules até às portas da escura infecção: – e agora o lodo, em vez de diminuir sob o esforço (que se julgara invencível) do filho forte de Zeus, parecia crescer, cada manhã mais espesso, para o imobilizar e sufocar. Desalento amargo para Antero – e repassado de cólera. Quando eu, justamente por esse tempo, o convidava a traçar na “Revista de Portugal” um “Quadro da Sociedade Portuguesa”, ele recusou asperamente, declarando que, a respeito de Portugal, só “podia rugir, vomitar amargores, e esses rugidos e amargores, sem o aliviar, magoariam e contristariam outros”. Era ainda aqui o homem que no meio da grande cólera, não esquece a grande caridade.

Dentro dessa caridade estava já a semente de uma nova e definitiva pacificação. Mas tinha ainda de ser fantasticamente iludido, de criar outro imenso fantasma, para o servir com amor. É seguindo fantasmas, através do “palácio encantado da Ilusão”, que afinal se vem a repousar deliciosamente na paz do Senhor. Essa singular ilusão foi a Liga Patriótica do Norte. Ele próprio lhe chamava “o seu derradeiro fantasma”. Antero acreditou então, e com deslumbrado ardor, em coisas inacreditáveis – na juventude iniciadora; na contrição dos velhos partidos pecadores; na alma quinhentista de Portugal ressurgindo; no despertar de um povo, com a vontade bem consciente, e formulada em comícios, de ser novamente esforçado e grande!

Trazido por uma turba de estudantes, que a força de uma lenda impelia, e que agitavam tochas e bandeiras, deixou o seu retiro de Vila do Conde. Sem ainda saber o que se pedia à sua forte autoridade moral, foi aclamado numa assembleia do Porto, onde os secos burgueses do tristonho burgo se entre tocavam o cotovelo, murmurando com desconfiança: – “Quem é ele?” Era um símbolo. Na casa em que se hospedara, tremulava sobre uma varanda o estandarte de Portugal, anunciando, à velha moda feudal, a presença do senhor da terra, defensor das gentes e dos gados. Tão simbólico era que alguns mais exaltados, ou mais estéticos, estudavam a forma de uma dalmática de doge, toda em veludo e arminhos, com que ele devia presidir às sessões da Liga!... E a Liga, que ainda mal nascera, já findava decomposta. Tão decomposta que dentro dela não restava outro movimento senão o fervilhar dos vermes partidários, Regeneradores e Históricos. Quando se acabaram de elaborar os estatutos, que eram o programa muito complexo da Nova Vida, a Liga já não existia, dispersa, sumida, toda fugida para os hábitos da Vida Velha. Os políticos tinham recolhido aos seus centros: – a juventude que fora arrancar Antero à metafísica, regressara, cansada desse esforço, às banquetas e aos bocks dos cafés da Praça Nova. Na sessão em que se leram os consideráveis estatutos só havia na vastidão dos bancos, quinze membros que bocejavam. E numa outra final, como ventava e chovia, só apareceram dois membros da Liga; o presidente, que era Antero de Quental, e o secretário, que era o conde de Resende. Ambos se olharam pensativamente, deram duas voltas à chave da casa para sempre inútil, e vieram, sob o vento e sob a chuva, acabar a sua noite em Santo Ovídio.

Assim se sumiu a Liga. E, desfeitas as formas revoltas desse estouvado sonho, Antero reentrou numa paz magnífica. Nunca com efeito, como nessa Primavera, quase toda passada em Santo Ovídio, o conheci tão sereno, tão estável na vida, de uma tão diligente e risonha sociabilidade, movendo o espírito dentro de uma liberdade tão rica. Se algum amargor lhe ficara dessa ilusão derradeira, a que tão candidamente se abraçara e que tão chochamente se esvaíra, decerto a sua ironia lho adoçou ou de todo lho dissipou. Foi talvez mesmo um motivo para subir de novo àquelas alturas do pensamento, donde as coisas se avistam na sua essência e verdade intrínsecas, sem que importem os acidentes, as modalidades e as imperfeições transitórias. Ei-lo pois de novo refugiado na impassibilidade subjetiva, na alva torre de marfim. O seu país, é certo, apodrece. Que importa – se o universo todo, onde ele é apenas uma mancha esverdinhada, se move divinamente para o Bem, para a Verdade, e para a Beleza?

A este equilíbrio de alma correspondia então nele uma verdadeira pacificação fisiológica. A não ser por certos cansaços, e pelo hábito de comer como os faquires da Índia uma única vez de sol a sol (o que à nossa voracidade godo-latina se afigura uma deficiência mórbida) Antero possuía todas as facilidades e exterioridades da saúde, começando pelas rosas desabrochadas que lhe resplandeciam em cada face. E neste sossego de alma e de corpo, depois dos tormentos que ambos tinham atravessado, brilhava, com uma luz mais alta e mais visível, a sua excelência moral. Conviver então com Antero foi um encanto e uma educação. Não conheço virtude que ele não exercesse: e com uma graça tão fina e fácil, que a Virtude, através dele, aparecia, não só como a suprema utilidade, mas como a suprema elegância da Vida. A alma de Antero, com efeito, foi sempre superiormente elegante.

Logo os seus modos tinham uma harmonia carinhosa, envolvedora, que era melhor que a boa cortesia social, e que não nascia somente da raça e da cultura, mas do nobre fundo dos instintos, do seu amor e alta caridade humana. Não havia nele nenhum dogmatismo, nem orgulho de casta filosófica; e mesmo sobre doutrinas, e em coisas da sua fé, nunca usava aquela “ponta agressiva da contradição” que todos os teólogos concordam ser a qualidade mais desagradável do Diabo. Era cheio de paciência, de atenção afável, para os seres mais fastidiosos, mais viscosos. Todas as manias e preconceitos o encontravam risonhamente misericordioso. E sem esforço, a cada instante a sua inteligência, acostumada às alturas, descia até às familiaridades da rua, pequeninamente simples com os simples, tão fácil que uma criança podia brincar com ela, semelhante a essa estrela da lenda que era um mundo, e que na cabana da pastorinha vinha prestar os mais humildes serviços, e ser a fagulha que acendia a lenha e a luzinha que tremelejava na candeia. Por isso Antero cativa “toda a sorte e condições de gentes várias”, como diz a Bíblia. Vi lavradores, diplomatas, industriais, toureiros, meros vadios, voltarem da sua companhia gratamente encantados, e cada um louvando nele um dom diverso, qual o bom senso, qual o saber especial, qual a gentil graça, qual a doçura. Tacanhos beatos, de relicário e opa, amavam aquele livre filósofo: e mundanos, de estouvada mundanidade, viviam no entusiasmo daquele asceta. Isto provinha, menos da sua ilimitada aptidão para compreender, que da sua amorável facilidade em se interessar: – e ainda também daquela sua delicada arte, tão rara e benéfica, provando sempre nobre raça e muita humanidade, a arte de “saber escutar”. E não só de escutar, mas de ajudar o pensamento dos outros a surgir dos embaraços da expressão perra, a lançar o seu pequenino brilho: – e assim muitos afirmavam que, conversando com Antero, se sentiam inesperadamente mais inventivos, mais inteligentes... A inteligência era a dele, que, como o generoso sol, feito de ouro candente, tudo doura em redor.

Era tocante como atraía as crianças. Muitas noites em Santo Ovídio, quando junto do fogão Antero conversava, sentado no meio de um divã, na sua atitude costumada, com as pernas cruzadas, as duas mãos cruzadas sobre o joelho magro, surpreendi pequenos de seis e sete anos, que, desviando os olhos de algum livro de estampas, o contemplavam maravilhados. Ele possuía, de resto, a sutil ciência de tratar com crianças, sendo ainda ele próprio como uma criança, porque a sua alma, que tanto vivera pela cogitação, nada perdera da candidez – e era assim ao mesmo tempo muito velha e muito inocente.

O motivo desta incomparável sedução era a sua bondade, tão luminosa, tão repassada de intelectualidade. Antero nesse tempo, tornado verdadeiramente Santo Antero, irradiava bondade. Como naqueles jardins espirituais celebrados pelos místicos, donde se varreram todas as folhas secas, donde se arrancaram todas as ervas más, muito limpos e enfeitados para receber a visita do Senhor – na alma de Antero, de que ele fora jardineiro cuidadoso, não restava erva má ou folha seca, nem egoísmo, nem soberba, nem intolerância, nem desdém, nem cólera. Só as flores do Bem (de cuja duração e perfume ele outrora duvidara) floriam, e tão lindamente e frescamente que o jardineiro agora repousava, e a cada hora de sol ou de crepúsculo o Senhor podia descer e visitar o seu jardim... Quando muito, aqui, além, numa ponta de folha mais lustrosa, corria uma faísca de ironia.

Mas o sarcasmo, esse, inteiramente o abandonara, como arma de batalha que se deixa enferrujar logo que vem a bela e doce paz. Também o meu santo amigo perdera aquela exuberante veia cômica, que fazia da sua conversa como um seguido estalar de foguetes, enchendo o céu de festivo ruído, de estrelas quase verdadeiras, de sulcos cor de ouro, onde se iam levados o nosso pasmo e os nossos ahs! deleitados. O seu conversar agora era calmo e liso, desadornado de todos os brilhos intensos, de uma elegância muito leve, de uma lucidez muito insinuante, sempre risonho, sempre sociável, e tão naturalmente harmonioso que formaria páginas de uma incomparável prosa, só corri ser transcrito, sem necessidade de lima e arte que o apurasse. A grande obra de Antero, na verdade, foi a sua conversa. O que resta em panfletos, artigos, ensaios, representa tão incompletamente o seu pleno, rico, povoado, fecundo espírito, como secas folhas de árvore entre folhas de papel representam um fundo bosque da Florida. Só os que o escutaram, na intimidade, ficaram conhecendo a prodigiosa abundância, originalidade, finura, profundidade e força do seu pensamento. A antiquada comparação do “relâmpago” iluminando subitamente horizontes, campos, estradas, casais, toda uma vastidão de vida e terra que se não suspeitava sob a escuridão, descreve muito graficamente o efeito intelectual de Antero conversando. E o encanto estava em que todo este deslumbramento era produzido com muita simplicidade – quase com humildade.

Tão fortes qualidades morais fundidas numa graça tão cativante, modos tão suaves e amoráveis servindo uma tal energia pensante, faziam de Antero de Quental uma personalidade magnificamente consoladora. No meio da mediocridade espiritual, e da inconsiderada rudeza dos costumes, e do materialismo argentário, os espíritos delicados encontravam na sua intimidade, e mesmo na sua fugidia convivência, um repouso semelhante ao que o corpo cansado e pisado do calor, do pó dos encontrões de uma feira de gado, recebe ao penetrar na frescura e na elevação de um templo.

Antero possuía uma alma onde, na meiga e intraduzível expressão de França – il faisait très-bon. Por isso todos os intelectuais, que uma vez o encontrassem, lhe conservavam para sempre um sentimento que era misturado de amor e não dissemelhança da devoção. E tínhamos ainda nele um confortante orgulho, pois bem sentíamos que esse homem tão simples, com uma má quinzena de alpaca no Verão, um paletó cor de mel no Inverno, vivendo como um pobre voluntário num casebre de vila pobre, sem posição nem fama, sempre ignorado pelo Estado, nunca invocado pelas multidões, era o elo rijo, o mais rijo elo de fino ouro, que prendia Portugal ao mundo do pensamento. Ora uma nação só vive porque pensa – e pelo que pensa. Cogitat, ergo est. Naquele humilde, pois, que se comprazia entre os humildes, estava a mais larga e mais rica soma da verdadeira vida de Portugal. 

Como aquela noite de Coimbra em que o conheci, era também de Primavera e de luar a noite derradeira que passamos juntos em Santo Ovídio. De tarde andáramos por sob os nobres e seculares arvoredos da quinta. Depois ele descansou no meu quarto, estendido na cama, com o seu cigarro, como nos tempos escolásticos. Pela varanda, orlada de glicínias, aberta sobre os jardins, entrava frescura, paz, o murmúrio dos repuxos dormentes, todo o aroma esparso das rosas de maio. Antero amava aquela velha vivenda patrícia, refúgio excelente para um erudito, ou para um magoado da vida que procurasse um ermo ainda florido e onde a severidade fosse risonha. E assim viemos a conversar desta materialidade dos tempos, e estridor das cidades, e exageração da atividade cerebral, e aspereza das democracias, que começam a empurrar tantos seres sensíveis ou mais imaginativos para a quietação religiosa e para o Deserto moral. Antero pensava que uma forte reação espiritualista e afetiva se seguiria à materialidade deste duro século utilitário e mercenário; – e, rindo, relembrou a sua antiga ideia, a fundação da Ordem dos Mateiros. Estes monges do idealismo teriam por missão o reconstituir, em toda a sua beleza e dignidade primitivas, a vida rural, a mais elevada, porque imolando toda a civilização suntuária, e portanto todos os apetites, e paixões, necessidades falsas que dela derivam, e reclamando apenas o seu bocado de terra, o seu bocado de pão, conquista socialmente a verdadeira liberdade, e através dela se prepara a atingir espiritualmente a verdadeira perfeição. Mas não era esta a obra melhor dos Mateiros. Toda essa reorganização do mundo, na forma de quietos e fecundos hortos, servia de base a uma alta renovação religiosa. Qual? Antero tendia para uma mistura do platonismo e do budismo. Eu preferia que os Mateiros, retomando a grande obra de cultura que fez a conversão do cristianismo católico em cristianismo histórico, a adiantassem, deslocassem o cristianismo da região da história para a região da psicologia, removessem toda a aluvião eclesiástica e teológica, e descobrissem, revelassem o ponto verdadeiramente divino – o estado da consciência de Cristo... Tudo isto ocorria muito familiarmente, sem pompas exegéticas ou filosóficas; e terminamos mesmo por escorregar da filosofia para a fantasia, organizando a Ordem, os seus estatutos, a sua disciplina, o seu traje, o seu cerimonial. Toda a dificuldade foi que, para esta adorável reconstrução da terra e da humanidade, repercorrendo os nossos amigos, só encontramos três Mateiros sérios. E eu próprio, tão delicado, reclamava já confortos, regalias estéticas, e uma poltrona no Deserto. Depois apareceu o conde de Resende, que imediatamente pediu o hábito e a enxada, e ofereceu, para se erguer o primeiro mosteiro, uma das suas terras, Canelas ou Resende.

A velha quinta de Resende parecia a Antero excelente, quase fatídica para uma obra de conquista espiritual – pois sob os seus históricos arvoredos fora educado Afonso Henriques, de entre eles saíra a velar as armas na Sé de Zamora, e, depois, cavaleiro cristão, a bater o Moiro, e a fundar o reino cristão. Aceitamos a quinta com apostólico fervor. Mas o senhor de Resende teve exigências tão epicuristas a respeito do refeitório, que Antero, indignado, apesar da magnífica oferta, o expulsou logo da Ordem como tinhoso, servo irremediável da carne... Assim riamos, brincando com os problemas, entre o aroma das rosas naquela noite de Maio.

Já tarde acompanhei Antero à casa que ele habitava na Rua de Cedofeita. Conversamos sobre os seus planos – porque agora as “pequenas”, crescidas, iam sair das Doroteias, e para as instalar no mundo, devia ele repenetrar no mundo. Pensava pois em voltar à sua ilha, a São Miguel, como sendo um mundo mais sereno, mais puro, mais fácil. Lisboa, para Antero, era uma Nínive revolta e sórdida. Diante da sua porta aberta ainda nos retardamos em pensamentos ligeiros da vida e da sorte. Por fim: – “Adeus, Santo Antero!” – “Velho amigo, adeus!” Ele mergulhou lentamente na sombra do corredor... E não o vi mais, nunca mais!

Foi para São Miguel, para o seu mundo mais doce, mais fácil... Depois uma tarde, como aquele filósofo Demónax, de quem conta Luciano, “concluindo que a vida lhe não convinha, saiu dela voluntariamente, e por isso muito deixou que pensar e murmurar aos homens de toda a Grécia”. O que dele pensam os homens da nossa Grécia, não o sei – pois que de há muito na nossa Grécia uma apagada tristeza traz os homens desatentos e mudos. É morta, é morta a abelha que fazia o mel e a cera! Quem se nutre ainda do gostoso mel? Quem se ilumina com a pura cera? Por mim penso, e com gratidão, que em Antero de Quental, me foi dado conhecer, neste mundo de pecado e de escuridade, alguém, filho querido de Deus, que muito padeceu porque muito pensou, que muito amou porque muito compreendeu, e que, simples entre os simples, pondo a sua vasta alma em curtos versos – era um Gênio e era um Santo.

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