10/02/2017

Vingança (Conto), de Humberto de Campos


Vingança

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

Vingança (Conto)

Quando o caboclo Amâncio tomou por arrendamento as últimas quatro estradas de seringueiras do major Nataniel, Francisco das Chagas, cearense chegado há três anos do Canindé, já se achava estabelecido nas quatro outras que lhe ficavam vizinhas, e que faziam parte, todas, do seringal "Bom Sucesso". As madeiras que ele ia sangrar haviam descansado dois cortes e deviam dar bastante leite naquele verão. Essa vantagem ia custar-lhe, todavia, duplo trabalho inicial, com a limpa dos vãos obstruídos pela vegetação, e com a construção de outra barraca, por haver tombado, já, transformando-se em um monte de palha podre, aquela em que vivera o seu antecessor. Levantá-la-ia, entretanto, no mesmo lugar, para aproveitar o porto e os pés de cará, tornados selvagens pelo abandono. Dois dias de foice, desbastando os arbustos novos, poupar-lhe-iam quatro semanas de machado.

Ao fim de uma quinzena, quando as chuvas deixaram de fustigar a floresta, e o rio começou a baixar, estava o Amâncio na sua barraca de bossu a paxiuba, cujas paredes e cobertura de palha nova, a transformavam, quando batida de sol, em uma caixa de ouro, arrepiada de arabescos bizarros. Amarrada à frondosa e torta gameleira do porto, a "montaria" dançava ao sabor da correnteza e do vento, afrouxando e esticando a corda. E na barraca, ou no terreiro, a Mariana, cantarolando ininteligivelmente o dia todo, e a encher com a sedução bárbara do sexo aquele verde palmo do Deserto.

A mudança, do seringal "Maranguape" para o "Bom Sucesso", a que se abalançara o Amâncio, fora involuntariamente causada pela rapariga. Legitimamente casada, por um padre em desobriga, com o velho índio Martinho, ficara, quando este morreu, em mãos do mulato Isidoro, que assumira perante o coronel Dondon, proprietário das estradas que o índio ocupava, a responsabilidade da dívida do defunto. Quando o mulato foi assassinado pelo preto Leôncio, o coronel Dondon recolheu a rapariga ao barracão, como garantia da conta do finado. E como ele, Amâncio, possuía saldo na casa, ficou com a Mariana, e, para evitar a continuação das relações estabelecidas entre ela e o coronel, encerrou as suas transações com este, e mudou de patrão, levando a cabocla.

Mariana não era, positivamente, nem bonita, nem moça. Índia de raça pura, era gorda, e baixa, com a mesma largura nos ombros e nos quadris, e devia andar pelos quarenta anos. O rosto redondo, sombreado e gorduroso, apresentava uma testa estreita, coroada de cabelos lisos e luzidios, que lhe desciam até à cintura. Tinha nariz chato, e olhos pequenos e negros, ligeiramente convergentes. A boca de tamanho regular e lábios finos, deixava em exposição, quando ria, as gengivas arroxeadas, em cuja orla corria uma fieira de dentes pontiagudos, cortados em bico de serra. Vestia, quase sempre, por gosto hereditário, saia e casaco de chita vermelha, os quais, anunciando-a de longe, davam a impressão de uma guará de penas rubras, pousando na proa das "montarias" ou pescando à beira do rio. Não tinha beleza nem graça. Mas era mulher, naquelas regiões em que há uma para dois mil homens, e, só por isso, era desejada, e por ser desejada, vivia contente, exprimindo o seu contentamento em melopeias, cujas palavras só ela entendia.

Achava-se o Amâncio instalado, já, há uma semana, na sua barraca nova, quando, uma tarde, o Chagas passou pelo seu porto, remando sozinho. A Mariana estava à margem do rio, de cócoras, lavando roupa, e, como de costume, cantarolando para si mesma. A saia, arregaçada até os joelhos, deixava à mostra as pernas morenas e grossas, iguais e sólidas como dois toros de madeira cortados no mesmo tronco. Ao defrontar o porto, levou o cearense a mão ao chapéu de carnaúba, em sinal de respeito. A cabocla respondeu ao cumprimento, e continuou a esfregar a roupa, mas sem olhar para o sabão. O jacumã do seringueiro roncou forte, rasgando a água. E quando a "montaria" do Chagas desapareceu na curva do rio, em que as margens eram dois muros de vegetação compacta, Mariana ainda esfregava o mesmo punho de camisa. Os seus olhos tortos acompanhavam o remador como dois novelos de linha preta cujas pontas se achassem amarradas à popa da embarcação, a qual, na sua marcha, os fosse pouco a pouco desenrolando.

Nessa tarde, até à noite, Mariana não cantarolou mais. No dia seguinte, porém, ao entardecer, passou a cantar alto, sentiu-se mais contente do que dantes. Soturno e desconfiado, o Amâncio, em quem não haviam desaparecido ainda a agudeza e perspicácia do selvagem primitivo, não custou a adivinhar o que se passava nas horas em que se achava ausente. Rara era a tarde em que não descobria, na ribanceira do porto, marca de uma proa de "montaria". E rara, também, a em que não encontrava a chaleira quente, com os vestígios de que, pouco antes da sua chegada, se tinha feito café. E se os olhos não lhe dissessem essas coisas, a alma lhe teria dito outras equivalentes, pois que, ao chegar à barraca, não encontrava mais as mesmas carícias gulosas, os mesmos abraços vibrantes de animalidade. Antes de descobrir os passos do Chagas na areia molhada do seu porto, ou a terra frouxa do seu terreiro, já o caboclo os havia adivinhado no coração de Mariana. O coração das mulheres que amam em segredo e pecado é como os troncos que têm abelhas: basta que alguém lhes chegue o ouvido para escutar a zoada lá dentro.

Dias depois dessa descoberta, o Amâncio começou a aproximar-se, com boas maneiras, do Francisco das Chagas. Ao encontrá-lo no rio, parava de remar, detinha a marcha da "montaria" e, cofiando no queixo a barbicha escura e rala, punha-se a conversar sobre o tempo, sobre o rendimento das seringueiras, ou sobre a queda crescente do preço da borracha no barracão, dando sinais inequívocos de que lhe era agradável a sua camaradagem. Convidado por mais de uma vez, o cearense começou a frequentar a barraca do Amâncio, com a presença deste, que se mostrava sempre comunicativo e obsequioso, servindo-lhe, conforme a demora, uma xícara de café ou um gole de aguardente. Até que, um dia, ficou combinada entre os dois aquela "espera" aos veados no igarapé dos Mutuns.

— Você vem mesmo, homem de Deus? — indagou o caboclo, como quem duvida.

— Venho, "seu" compadre; eu já não disse? Só se Deus Noss'enhor e São Francisco das Chagas do Canindé não quiserem.

E tocou no chapéu, num sinal de devoção.

Ao entardecer do dia aprazado, armado cada um com o seu rifle e levando a tiracolo a corda com que deviam trazer a caça graúda, meteram-se ambos na "montaria" do Chagas e penetraram, meia légua rio acima, no estreito caminho d'água, remando com lentidão. A floresta começava a mergulhar na noite, e parecia em êxtase para esse mistério. A quietação era absoluta. Ouvia-se o estalar dos ramos secos, a queda dos açaís maduros no espelho d'água, e o ruído dos jacumãs, ferindo a superfície lisa do igarapé. Há uma hora de transição, na selva, em que os animais do dia já se recolheram e em que os da noite ainda não estão acordados. Hora de trégua; hora de armistício dos seres e das coisas selvagens. E era essa hora que soava no relógio imenso da Natureza quando o Chagas e o Amâncio encalharam a "montaria" numa sapopemba, e percorreram os cem metros que os separavam da árvore em cuja fronde se deviam esconder, à espera dos veados que aí vinham comer as frutas miúdas caídas durante o dia. Só um pouco mais tarde, com o aparecimento da primeira estrela, os sapos romperam com a sua orquestra, enchendo a noite de milhões de vozes confusas, como se todos os troncos, todos os galhos, todas as raízes, todas as folhas, se transformassem de súbito em bárbaros instrumentos musicais.

Vencendo a vegetação rasteira e luxuriante das terras baixas e quase alagadas, chegaram os caçadores a um lugar mais alto, onde um bacurizeiro erguia a fronde elegante no meio de outras árvores de porte menor, cujo fruto era particularmente procurado pelos veados da região. Subiram, o Amâncio primeiro, o Chagas em seguida. Escolheram, para refúgio, um galho alto e sólido, aberto em forquilha e afogado em folhagem densa, de outra árvore que invadia com as suas ramagens a sombra do bacurizeiro. E a escuridão envolveu tudo, aumentando os rumores circunstantes.

Escachados no galho escolhido, os dois caçadores trocavam apenas uma ou outra palavra. Sentia-se, porém, que um e outro estendiam por longe os fios do próprio pensamento, à semelhança de cigarras que lançassem o canto através do espaço, levando-o a distâncias que desconhecem. E o pensamento do nordestino errava, às vezes, tão distante dali, que ele nem se apercebia do movimento leve das mãos do companheiro, o qual acabava de amarrar uma das pontas da sua corda ao galho da árvore, e começava a experimentar, entre as folhas, um laço corredio e seguro, que havia na outra extremidade.

Noite alta, já, escutaram, os dois, o urro de uma onça, do lado oposto ao igarapé. E logo duas brasas esverdeadas se acenderam na treva. Duas outras fulgiram, pouco atrás. E a selva como que se calou apavorada, com a presença dos felinos sanguinários e hostis. Aproveitando a atenção com que o companheiro perscrutava a escuridão ameaçadora, o Amâncio aproximou-se dele e, docente, passou-lhe por um dos pés, apertando-o de leve, o laço que havia feito na corda. De súbito, reunindo toda a sua força nos braços, o caboclo levou as mãos ambas aos peitos do cearense, lançando-o fora do galho. Um berro de surpresa e de dor alarmou a solidão, a corda esticou num estalo, o bacurizeiro estremeceu sacudido, e um corpo ficou bailando no ar, no escuro, a pouco mais de dois metros acima do solo. Ao grito apavorado e apavorante do homem, as onças fugiram, espantadas, em saltos elásticos, entre o estrépito seco de galhos e cipós rebentados na passagem.

— Ai!... Ai!... Ai!... Amâncio... Pelo amor de Deus... me salve!... Ai!... ai!... Amâncio, por que você fez isso?... Que é que eu lhe fiz, Amâncio... Ai, meu São Francisco do Canindé!...

Quieto, o caboclo conservou-se calado. Os dois rifles, que se achavam entre a folhagem, estavam nas suas mãos. Podia descer, e ir-se embora; a sua vingança ainda não estava, entretanto, terminada. O Chagas soltou alguns gritos estrangulados, pedindo socorro. Compreendendo, porém, a inutilidade desse esforço naquela solidão em que o homem era a mais estranha das sombras, voltou a gemer, espaçadamente. Estava de cabeça para baixo e, com o deslocamento da perna, impossibilitado de alcançar a corda com as mãos, para salvar-se. E gemia há mais de uma hora quando luziram, de novo, na treva, os olhos da onça. Chagas gritou, para afugentá-la; mas a ameaça, em vez de amedrontar, incentivou o felino, que marchou, agachando-se, na direção do bacurizeiro. Outras onças urraram perto. Seis, oito, dez olhos verdes luziram na escuridão. De súbito, a primeira onça deu um salto, alcançando com os dentes e com uma das patas o corpo do seringueiro. Um grito de terror e de angústia espalhou-se pela mata. Mas as feras não fugiram. Pelo contrário, acorreram em bando, como se tivessem adivinhado, pela voz estrangulada da vítima, que ela estava sem defesa. E foi horrível, então, o que Amâncio presenciou, ou, antes, percebeu, imóvel, do seu esconderijo. As ouças, em saltos enormes, disputavam-se os pedaços da carne do Chagas. Numa dança de corpos que se chocavam no ar, e de urros de raiva, estraçalhavam elas, no espaço, os membros do seringueiro. O galho em que se achava o Amâncio era sacudido, abalado pelas feras, quando estas alcançavam a corda, nos seus saltos rápidos e seguros, que se cruzavam na sombra. Segurando-se para não cair, o caboclo ouvia a queda do sangue na terra, como de um pote pequeno cuja água se derrama. Em certo momento, a corda parou de esticar, e o galho de ser agitado pelos felinos. Arrastando membros inteiros para as moitas próximas, as onças devoravam, rosnando, os pedaços que haviam arrebatado umas às outras. O Amâncio ouvia, perfeitamente, o roer dos ossos. Ao fim de algumas horas, os sapos deixaram de coaxar. As onças, satisfeitas, afastaram-se, para beber e dormir. A selva aquietava-se, como se lhe passassem a mão pelo imenso dorso verde, numa grande carícia voluptuosa. Uma claridade tênue varou as folhas. Pipilou o primeiro pássaro. Outros responderam. Com os dois rifles a tiracolo o Amâncio desceu do bacurizeiro. Ao chegar embaixo, olhou a corda.

Da extremidade desta, preso pelo tornozelo, pendia, sangrento e sujo, esfiapando as cartilagens, o pé esquerdo do Chagas, cuja roupa, reduzida a farrapos estraçalhados e sangrentos, jazia espalhada em torno, entre folhas machucadas e empapadas de sangue, de mistura com fragmentos de carne e pedaços de ossos roídos.

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