11/02/2017

A chuva (Conto), de Virgílio Várzea


A chuva
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Há seguramente três dias que não vivo, que não vejo o sol, nem falo. E ela, a minha adorada Everalda, não veio, não virá mais, decerto. E no entanto, dizia-me na sua carta de uma letra fina e miúda: “Amanhã, quinta-feira, vou. Estou louca por abraçar-te... saudades... não imaginas...”

A chuva tem caído e cai incessante, desventurosamente. O céu, pardacento, de uma claridade esmaecida e igual, jorra a água em fios, como se a passasse por uma peneira gigante.

Um arrepio de sezões anda-me nas carnes e o negro e fundo spleen aristocrático e mylord ataca-me com fúria o coração, onde o fel rebenta em ondas. Tenho as unhas roxas e a pele engelhada, como um cadáver. Sentado, o busto inclinado sobre a mesa da escrita, o braço direito em ângulo, apoiando o rosto, voltado para a janela, os olhos cravados longe, através dos vidros açoitados pelas rijas e sonoras bátegas — aqui estou, mudo e tempestuoso, numa formidanda excitação de nervos e penso profundamente na mais amada das mulheres, sentindo, na sofreguidão imensa de a possuir, uma elétrica nevrose de ferocidade animal, que me incendeia delirantemente.

Debalde intento ler. O meu livro mais querido, O Primo Basílio, o livro extraordinário, que está aberto diante de mim, não me glorifica, nem me atira para o alto.

E quando subitamente me acode ao cérebro, como uma desolação, a ideia de que talvez mentisse a mais amada das mulheres, inflama-me o sangue um furor nefasto e ruge no antro o coração indomado.

Mas não! ouço na escada um fru-fru roçagante, um passo nervoso e miúdo... E os meus lábios, por muito tempo, ficaram colados aos lábios dela.

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