

A coberta
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Não há quem não conheça, em todo
o Brasil, a fecundidade da mulher cearense. Terra privilegiada e infeliz, em
que a natureza, ao mesmo tempo, se destrói e se refaz, o Ceará constitui um
caso curiosíssimo pelo modo por que aumenta, no meio das maiores calamidades, a
sua população. À semelhança dos dragões fantásticos dos belos contos medievais,
cujo sangue, ao cair na terra, se transformava em legiões de guerreiros, cada
cearense que tomba de fome ou de sede, rebenta, no ano seguinte, multiplicado
por dez. E daí serem frequentes, em todo o Estado, os casais com vinte, trinta,
e até quarenta filhos, que se espalham depois pelo mundo, honrando pelo
talento, e dignificando pelo trabalho, o glorioso nome do Ceará.
As famílias de prole modesta que
vivem no Sul, compreendem dificilmente como pode uma pobre mãe lidar com uma
tribo tão numerosa. E, no entanto, nada mais fácil para o cearense. Eu conheci,
por exemplo uma senhora daquela procedência, que descobrira um processo
originalíssimo de fiscalizar o seu exército de descendentes. Mãe de dezessete
filhos, de um a quatorze anos, D. Josefa aproximava-se, à tarde, da mesa de
cozinha, e partia, ali, uma ou duas rapaduras. Chamava os filhos e, deixando-os
a comer, ia colocar-se ao lado do único pote d’água que havia na casa. Acossada
pela sede, originada pela absorção do açúcar, a meninada corria, logo, a beber,
enquanto D. Josefa os ia contando:
— Um... dois... três... quatro...
cinco... seis...
E assim por diante, até
dezessete. Se havia apenas dezesseis, a bem-aventurada gambá-humana saía a
procurar, como o pastor da parábola, a ovelha desgarrada.
D. Ifigênia de Medeiros, outra
senhora que a seca de 1918 desterrou do seu Estado natal, possuía, entretanto,
um processo mais simples. Casada em 1898, aos treze anos, com um fazendeiro de
Itapipoca, teve desse consórcio abençoado, que durou seis anos, nove filhos,
sendo quatro meninos e cinco meninas. Contraídas novas núpcias, no mesmo ano da
viuvez (1904), com um tabelião de Sobral, forneceu D. Ifigênia ao Ceará, em
mais cinco anos de matrimônio e caldos de galinha, sete meninas. Viúva pela
segunda vez, casou em 1909 com um agricultor da serra de Uruburetama, a quem
deu cinco meninos e cinco meninas, em nove anos. Perdido este terceiro esposo
em 1918, recusou a fecundíssima senhora seis ou oito pretendentes que lhe
apareceram, preferindo embarcar para o Rio de janeiro, onde se encontra desde
aquele ano.
Apresentado a essa virtuosa nortista,
que vive, hoje, em relativa abundância, perguntei-lhe, curioso, se ela não se
confundia com tanta criança em casa.
— Eu? — atalhou, sorrindo. —
Absolutamente!
E explicou-me o seu processo de
evitar confusões:
— Eu adotei, para comodidade, o
seguinte sistema: os filhos de cada marido usam roupa de uma cor. Os do
primeiro, por exemplo, em número de nove, usam roupa de cor cinzenta.
E chamou para dentro:
— Lili? Iaiá? Amélia? Nenê? Totó?
Bibi? Alfredo? Almerinda?
Aparecida a primeira parte da
tribo, D. Ifigênia continuou:
— Os filhos do meu segundo marido
vestem-se de azul.
E chamou:
— Teté? Lulu? Judith? Ester?
Virgilina? Margarida? Sebastiana?
A segunda turma apareceu.
— Os do meu terceiro marido
trajam amarelo.
E gritou:
— Jequiriçá? Pindoboçú? Coema?
Jaci? Lindóia? Ubirajara? Peri? Iracema? Jacaúna? Guaraciaba?
O terceiro turno surgiu.
Evacuada a sala, D. Ifigênia
sorriu; acrescentando:
— E ainda tem!
— Ainda tem? — exclamei,
espantado.
— Tem, sim!
E entrando para o quarto
contíguo, trouxe, nos braços, um pequenito de três meses.
Esse, nascido no Rio de janeiro,
vinha embrulhadinho numa coberta de retalhos, em que se misturavam o branco, o
azul, o preto, o amarelo, o roxo, o rosa, o pardo, o verde, o encarnado...
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