Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A pequenina igreja de Santa
Engrácia estava quase despovoada de fiéis, que se iam retirando, um a um,
molhando os dedos na água benta, quando o Onofre penetrou no templo,
desconfiado, chapéu na mão, camisa para fora da calça, à maneira da terra,
procurando falar a padre Lourenço, que se achava, no momento, arrumando a
paramenta eclesiástica na pequena cômoda da sacristia. Ao ver o caboclo,
afamado em toda a vila pela sua desenvoltura, o sacristão, o Zezinho, correu ao
seu encontro, levando na mão, pingando cera, o apagador de velas com que
abafava, naquele instante, as últimas luzes do altar-mor.
— Que é que você quer, Onofre? —
indagou o sacrista. — Quer falar com "seu" vigário?
— Chame ele! — respondeu o
caboclo, soturno.
Cinco minutos depois, após as
explicações preliminares, estava o desordeiro ajoelhado diante do
confessionário, torcendo o chapéu nos dedos, com o cabelo a cair, em cachos
revoltos, sobre a testa e sobre os olhos.
— Qual é o pecado de que se
acusa, meu filho? — indagou o sacerdote, bondoso, procurando conduzir com jeito
aquela ovelha bravia.
O caboclo baixou a cabeça, e
confessou:
— Eu não matei, nem roubei
ninguém, não, "seu vigaro". Meu pecado é um pecadinho de nada. É uma
porcariazinha de pecado que nem presta p'ra dizê.
— Conte, filho; conte sempre! —
animou o padre.
Onofre tomou fôlego, e principiou
a narrar:
— O'ie, "seu" vigaro,
foi assim. Eu tinha brigado com o Chico Julião, da Lagoa Funda, e jurei tomá um
desforço, dando as tripa dele p'r'os urubu cumê. Ontem, de tardinha, me armei,
e fui fazê o serviço. Ele tava na porta da casa com a muié e os fio dando cumê
p'r'os bicho meúdo. Eu me apiei e avancei p'ra ele disposto a matá; mas fiquei
tão penalizado, "seu" vigaro, com a vista da famia, daquela fiarada
que ia ficá sem pai, que, em vez de matá o infiliz, só meti a pontinha da faca
no couro dele, um pedacinho de nada. O cabra deu um pulo p'ra riba, e lá ficou
vivo, só com um arranhãozinho na costela, feito p'ra amedronta. "Seu"
vigaro acha que isso é pecado?
Padre Lourenço tomou uma pitada,
assoou-se, com estrondo, no lenço de Alcobaça, que lhe tirava todas as dúvidas,
e obtemperou, convicto:
— É pecado, sim, meu filho; é
pecado tão grande como o de morte!
— Mas eu não matei,
"seu" vigaro! protestou o caboclo.
— Não importa. Houve o
pensamento, a ideia de matar. É o que vale, meu filho, é a intenção!
Onofre baixou a cabeça, humilde,
e o padre continuou:
— Eu vou dar-lhe uma
penitenciazinha, você não torne a cair noutra.
Assoou-se, de novo, e explicou:
— Você vai rezar quarenta e oito
padre-nossos, setenta ave-marias, e setenta salve-rainhas. Antes de sair, porém
você vai pôr, ali, no cofre das almas, uma prata de dez tostões.
E levantando-se:
— Vá! O caboclo ergueu-se, pôs o
chapéu debaixo do braço, exumou do bolso da calça uma prata de dez tostões que
lá dormia, encaminhou-se para o cofre, que ficava perto da porta, e, jeitoso,
começou a fricionar, com a moeda, a entrada da caixa, sem deixar, entretanto,
que ela escapulisse para dentro. Feito isso, ia meter de novo a prata na
algibeira, quando padre Lourenço, que o observava, gritou-lhe, de longe:
— Psiu! Que é isso? Vai levando o
dinheiro?
O caboclo voltou-se, da porta, e
protestou, com um risinho canalha:
— Uê! A "tenção" não
vale?
E ganhou a rua.
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