
A Viúva de Sobral
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO
1
—... Mas estás com pressa?
— Alguma.
— Em todo caso, não vais salvar o pai da
forca.
— Pode ser.
— Explica-te.
— Explico-me.
— Mas explica-te refrescando a goela. Queres
um sorvete? Vá, dois sorvetes. Traga dois sorvetes... Refresquemo-nos, que
realmente o calor está insuportável. Estiveste em Petrópolis?
— Não.
— Nem eu.
— Estive no Pati do Alferes, imagina por quê?
— Não posso.
— Vou...
— Acaba.
— Vou casar.
Cesário deixou cair o queixo de assombro,
enquanto o Brandão saboreava, olhando para ele, o gosto de ter dado uma
novidade grossa. Vieram os sorvetes, sem que o primeiro saísse da posição em
que a notícia o deixou; era evidente que não lhe dava crédito.
— Casar? repetiu ele afinal, e o Brandão
respondeu-lhe com a cabeça que sim, que ia casar. Não, não, é impossível.
Estou que o leitor não sente a mesma
incredulidade, desde que considera que o casamento é a tela da vida, e que toda
a gente casa, assim como toda a gente morre. Se alguma coisa o enche de
assombro é o assombro de Cesário. Tratemos de explicá-lo em cinco ou seis
linhas.
Viviam juntos esses dois rapazes desde os
onze anos, e mais intimamente desde os dezesseis. Contavam agora vinte e oito.
Um era empregado no comércio, outro da alfândega. Tinham uma parte da vida
comum, e comuns os sentimentos. Assim é que ambos faziam do casamento a mais deplorável
ideia, com ostentação, com excesso, e para afirmá-lo, viviam juntos a mesma
vida solta. Não só entre eles deixara de haver segredo, mas até começava a ser
impossível que o houvesse, desde que ambos davam os mesmos passos, de um modo
uníssono. Começa a entender-se o espanto do Cesário.
— Dá-me a tua palavra que não estás
brincando?
— Conforme.
— Ah!
— Quando eu digo que vou casar, não quero
dizer que tenho a dama pedida; quero dizer que o namoro está a caminho, e que
desta vez é sério. Resta adivinhar quem é.
— Não sei.
— E foste tu mesmo que me levaste lá.
— Eu?
— É a Sobral.
— A viúva?
— Sim, a Candinha.
— Mas?...
Brandão contou tudo ao amigo. Cerca de
algumas semanas antes, Cesário levara-o à casa de um amigo do patrão, um
Viegas, comerciante também, para jogar o voltarete; e ali acharam, pouco antes
chegada do Norte, uma recente viúva, D. Candinha Sobral. A viúva era bonita,
afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram em achar singulares. Os
olhos, porém, eram o menos. O mais era a reputação de mau gênio que esta moça
trazia. Disseram que ela matara o marido com desgostos, caprichos, exigências;
que era um espírito absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro
cantos de um império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece,
ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no rosto;
Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão notara-lhe nas
narinas o indício da teima e da perversidade. Duas semanas depois tornaram a
encontrar-se os três, conversaram, e a opinião radicou-se. Eles chegaram mesmo
à familiaridade da expressão: — má rês, alma de poucos amigos, etc.
Agora entende-se, creio eu, o espanto do
amigo Cesário, não menos que o prazer do Brandão em dar-lhe a notícia. Entende-se,
portanto, que só começassem a tomar os sorvetes para não vê-los derretidos, sem
nenhum deles saber o que estava fazendo.
— Juro que há quinze dias não era capaz de
cuidar nisto, continuava o Brandão; mas os dois últimos encontros,
principalmente o de segunda-feira... Não te digo nada... Creio que acabo
casando.
— Ah! crês!
— É um modo de falar, é certo que acabo.
Cesário acabou o sorvete, engoliu um cálice
de cognac, e fitou o amigo, que
raspava o copo, amorosamente. Depois fez um cigarro, acendeu-o, puxou duas ou
três fumaças, e disse ao Brandão que ainda esperava vê-lo recuar; em todo caso,
aconselhava-lhe que não publicasse desde já o plano; esperasse algum tempo.
Talvez viesse a recuar...
— Não, interrompeu Brandão com energia.
— Como, não?
— Não recuo.
Cesário levantou os ombros.
— Achas que faço mal? pergunta o outro.
— Acho.
— Por quê?
— Não me perguntes por quê.
— Ao contrário, pergunto e insisto. Opões-te
por causa de ser casamento.
— Em primeiro lugar.
Brandão sorriu.
— E por causa da noiva, concluiu ele. Já
esperava por isso; estás então com a opinião que ambos demos logo que ela
chegou da província? Enganas-te. Também eu estava; mas mudei...
— E depois, continuou Cesário, falo por um
pouco de egoísmo; vou perder-te...
— Não.
— Sim e sim. Ora tu!... Mas como foi isso?
Brandão contou os pormenores do negócio;
expôs minuciosamente todos os seus sentimentos. Não a pedira ainda, nem havia
tempo para tanto; a própria resolução não estava formulada. Mas tinha por certo
o casamento. Naturalmente, louvou as qualidades da namorada, sem convencer ao
amigo, que, aliás, entendeu não insistir na opinião e guardá-la consigo.
— São simpatias, dizia ele.
Saíram depois de longo tempo de conversação,
e separaram-se na esquina. Cesário mal podia crer que o mesmo homem, que
antipatizara com a viúva e dissera dela tantas coisas e tão grotescas, quinze
dias depois estivesse apaixonado ao ponto de casar. Puro mistério! E resolvia o
caso na cabeça, e não achava explicação, não se tratando de um criançola, nem
de uma descomunal beleza. Tudo por querer achar, à força, uma explicação; se
não a procurasse, dava com ela, que era justamente nenhuma, coisa nenhuma.
CAPÍTULO
2
Emendemos o Brandão. Contou ele que os dois
últimos encontros com a viúva, aqui na corte, é que lhe deram a sensação do
amor; mas a verdade pura é que a sensação só o tomou inteiramente no Pati do
Alferes, de onde ele acaba de chegar. Antes disso, podia ficar um pouco
lisonjeado das maneiras dela, e ter mesmo alguns pensamentos; mas o que se
chama sensação amorosa não a teve antes. Foi ali que ele mudou de opinião a
respeito dela, e se deixou cair nas graças de uma dama, que diziam ter matado o
marido com desgostos.
A viúva Sobral não tinha menos de vinte e
sete anos nem mais de trinta; ponhamos vinte e oito. Já vimos o que eram os
olhos; — podiam ser singulares, como eles diziam, mas eram também bonitos.
Vimos ainda um certo jeito da boca, mal aceito ao Cesário, enquanto as narinas
o eram ao Brandão, que achou nelas o indício da teima e da perversidade. Resta
mostrar a estatura, que era muito elegante, e as mãos, que nunca estavam
paradas. No baile não lhe notou o Brandão esta última circunstância; mas no
Pati do Alferes, na casa da prima, familiarmente e a gosto, achou que ela movia
as mãos sempre, sempre, sempre. Só não atinou com a causa, se era uma
necessidade, um sestro, ou uma intenção de mostrá-las, por serem lindas.
“Não, pensou ele no segundo dia, não é para
mostrá-las; essa preocupação não se compadece com a maldade do gênio...”
No terceiro dia, começou o Brandão a
perguntar onde estava a maldade do gênio de D. Candinha. Não achava nada que
pudesse dar indício dela; via-a alegre, dada, conversada, ouvindo as coisas com
muita paciência, e contando anedotas do Norte com muita graça. No quarto dia,
os olhos de ambos andaram juntos, não se sabendo unicamente se foram os dele
que procuraram os dela, ou vice-versa; mas andaram juntos. De noite, na cama, o
Brandão jurava a si mesmo que era tudo calúnia, e que a viúva tinha mais de
anjo que de diabo. Dormiu tarde e mal. Sonhou que um anjo vinha ter com ele e
lhe pedia para trepar ao céu; trazia a cara da viúva. Ele aceitou o convite; a
meio caminho, o anjo pegou das asas e cravou-as na cabeça, à laia de pontas, e
carregou-o para o inferno. Brandão acordou transpirando muito. De manhã,
perguntou a si mesmo:
— Será um aviso?
Evitou os olhos dela, durante as primeiras
horas do dia; ela, que o percebeu, recolheu-se ao quarto e não apareceu antes
do jantar. Brandão estava desesperado, e deu todos os sinais que podiam
exprimir o arrependimento e a súplica do perdão. D. Candinha, que era uma
perfeição, não fez caso dele até à sobremesa; à sobremesa começou a mostrar que
podia perdoar, mas ainda assim o resto do dia não foi como o anterior. Brandão
deu-se a todos os diabos. Chamou-se ridículo. Um sonho? Quem diabo acredita em
sonhos?
No dia seguinte tratou de recuperar o
perdido, que não era muito, como vimos, tão-somente alguns olhares; alcançou-o
para a noite. No outro estavam as coisas restabelecidas. Ele lembrou-se então
que, durante as horas de frieza, notara nela o mau jeito da boca, o tal, o que
lhe dava indício da perversidade da viúva; mas tão depressa o lembrou, como
rejeitou a observação. Antes era um aviso, passara a ser uma oportunidade.
Em suma, voltou no princípio da seguinte
semana, inteiramente namorado, posto sem nenhuma declaração de parte a parte.
Ela pareceu-lhe ficar saudosa. Brandão chegou a lembrar-se que a mão dela, à
despedida, estava um pouco trêmula; mas, como a dele também tremia, não se pode
afirmar nada.
Só isto. Não havia mais do que isto, no dia
em que ele referiu ao Cesário que ia casar. Que não pensava senão no casamento,
era verdade. D. Candinha voltou para a corte daí a duas semanas, e ele estava
ansioso por vê-la, para lhe dizer tudo, tudo, e pedi-la, e levá-la à igreja.
Chegou a pensar no padrinho: seria o inspetor da alfândega.
Na alfândega, notaram-lhe os companheiros um
certo ar distraído, e às vezes, superior; mas ele não disse nada a ninguém.
Cesário era o confidente único, e antes não fosse único; ele procurava-o todos
os dias para lhe falar da mesma coisa, com as mesmas palavras, e inflexões. Um
dia, dois dias, três dias, vá; mas sete, mas quinze, mas todos! Cesário
confessava-lhe, rindo, que era demais.
— Realmente, Brandão, tu estás que pareces um
namorado de vinte anos...
— O amor nunca é mais velho, redarguiu o
outro; e, depois de fazer um cigarro, puxar duas fumaças, e deixá-lo apagar,
continuava a repetição das mesmas coisas e palavras, com as mesmíssimas
inflexões.
CAPÍTULO
3
Vamos e venhamos: a viúva gostava um pouco do
Brandão; não digo muito, digo um pouco, e talvez muito pouco. Não lhe parecia
grande coisa, mas sempre era mais que nada. Ele fazia-lhe amiudadas visitas e
olhava muito para ela; mas, como era tímido, não lhe dizia nada, não chegava a
planear uma linha.
— Em que ponto vamos, em suma? Perguntava-lhe
o Cesário um dia, fatigado de só ouvir entusiasmos.
— Vamos devagar.
— Devagar?
— Mas com segurança.
Um dia recebeu Cesário um convite da viúva
para lá ir a uma reunião familiar: era lembrança do Brandão, que foi ter com
ele e pediu-lhe instantemente que não faltasse. Cesário sacrificou o teatro
nessa noite, e foi. A reunião esteve melhor do que ele esperava; divertiu-se muito.
Na rua disse ele ao amigo:
— Agora, se me permites franqueza, vou
chamar-te um nome feio.
— Chama.
— Tu és um palerma.
— Viste como ela olhava para mim?
— Vi, sim, e por isso mesmo é que acho que
estás botando dinheiro à rua. Pois uma pessoa assim disposta... Realmente és um
bobo.
Brandão tirou o chapéu e coçou a cabeça.
— Para falar a verdade, eu mesmo já tenho
dito essas coisas, mas não sei que acho em mim, acanho-me, não me atrevo...
— Justamente; um palerma.
Andaram ainda alguns minutos calados.
— E não te parece esplêndida? perguntou o
Brandão.
— Não, isso não; mais bonita do que a
princípio, é verdade; fez-me melhor impressão; esplêndida é demais.
Quinze dias depois, viu-a o Cesário em casa
de terceiro, e pareceu-lhe que ainda era melhor. Daí começou a frequentar a
casa, a pretexto de acompanhar o outro, e ajudá-lo, mas realmente porque
começava a olhá-la com olhos menos desinteressados. Já aturava com paciência as
longas confissões do amigo; chegava mesmo a procurá-las.
D. Candinha percebeu, em pouco tempo, que em
vez de um, tinha dois adoradores. Não era motivo de pôr luto ou deitar fogo à
casa; parece mesmo que era caso de vestir galas; e a rigor, se alguma falha
havia, era que eles fossem dois, e não três ou quatro. Para conservar os dois,
D. Candinha usou de um velho processo: dividindo com o segundo as esperanças do
primeiro, e ambos ficavam entusiasmados. Verdade é que o Cesário, posto não
fosse tão valente, como dizia, era muito mais que o Brandão. De maneira que, ao
cabo de algumas dúzias de olhares, apertou-lhe a mão com muito calor. Ela não a
apertou de igual modo, mas também não se deu por zangada, nem por achada.
Continuou a olhar para ele. Mentalmente, comparava-os:
“O Cesário sempre é outra coisa; mas também
não há de ser tão fácil de guiar. Se o Brandão não fosse tão comum! é ainda
mais comum que o outro.”
Um dia o Brandão descobriu um olhar trocado
entre o amigo e a viúva. Naturalmente ficou desconsolado, mas não disse nada;
esperou. Daí a dias notou mais dois olhares, e passou mal a noite, dormiu tarde
e mal; sonhou que matara ao amigo. Teve a ingenuidade de contá-lo a este, que
riu muito, e disse-lhe que fosse tomar juízo.
— Você tem coisas! Pois bem; somos concordes
nisto: — deixo de voltar à casa dela...
— Isso nunca!
— Então que queres?
— Quero que me digas, francamente, se gostas
dela, e se vocês se namoram.
Cesário declarou-lhe que era uma simples
fantasia dele, e continuou a namorar a viúva, e o Brandão também, e ela aos
dois, todos com a maior unanimidade.
Naturalmente as desconfianças reviveram, e
assim as explicações, e começaram os azedumes e as brigas. Uma noite, ceando os
dois, de volta da casa dela, estiveram a ponto de brigar formalmente. Mais
tarde separaram-se por dias; mas como o Cesário teve de ir a Minas, o outro
reconciliou-se com ele à volta, e dessa vez não instou para que tornasse a
frequentar a casa da viúva. Esta é que lhe mandou convite para outra reunião; e
tal foi o princípio de novas contendas.
As ações de ambos continuavam no mesmo pé. A
viúva distribuía as finezas com igualdade prodigiosa, e o Cesário começava a
achar que a complacência para com o outro era longa demais.
Nisto apareceu no horizonte uma pequenina
mancha branca; era algum navio que se aproximava com as velas abertas. Era
navio e de alto bordo; — um viúvo, médico, ainda conservado, que entrou a
cortejar a viúva. Chamava-se João Lopes. Já então o Cesário tinha arriscado uma
carta, e mesmo duas, sem obter resposta. A viúva foi passar alguns dias fora,
depois da segunda; quando voltou, recebeu terceira, em que o Cesário lhe dizia
as coisas mais ternas e súplices. Esta carta deu-lha em mão.
— Espero que me não conservará mais tempo na
incerteza em que vivo. Peço-lhe que releia as minhas cartas...
— Não as li.
— Nenhuma?
— Quatro palavras da primeira apenas.
Imaginei o resto e imaginei a segunda.
Cesário refletiu alguns instantes: depois
disse com muita discrição:
— Bem; não lhe pergunto os motivos, porque
sei que me hão de desenganar; mas eu não quero ser desenganado. Peço-lhe uma só
coisa.
— Peça.
— Peço-lhe que leia esta terceira carta,
disse ele, tirando a carta do bolso; aqui está tudo o que estava nas outras.
— Não... não...
— Perdão; pedi-lhe isto, é um favor último;
juro que não tornarei mais.
D. Candinha continuou a recusar; ele deixou a
carta no dunkerque, cumprimentou-a e saiu. A viúva não desgostou de ver a
obstinação do rapaz, teve curiosidade de ler o papel, e achou que o podia fazer
sem perigo. Não transcrevo nada, por que eram as mesmas coisas de todas as
cartas de igual gênero. D. Candinha resolveu dar-lhe resposta igual à das
primeiras, que era nenhuma.
Cesário teve o desengano verbal, três dias
depois, e atribuiu-o ao Brandão. Este aproveitou a circunstância de achar-se só
para dar a batalha decisiva. É assim que ele chamava a todas as escaramuças.
Escreveu-lhe uma carta a que ela respondeu deste modo:
"Devolvo o bilhete que me entregou ontem, por
engano, e desculpe se li as primeiras palavras; afianço-lhe que não vi o resto."
O pobre-diabo quase teve uma congestão.
Meteu-se na cama três dias, e levantou-se resolvido a voltar lá; mas a viúva
tornara a sair da cidade. Quatro meses depois casava ela com o médico. Quanto
ao Brandão e o Cesário, que estavam já brigados, nunca mais se falaram; criaram
ódio um ao outro, ódio implacável e mortal. O triste é que ambos começaram por
não gostar da mesma mulher, como o leitor sabe, se se lembra do que leu.
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