Anedota do Cabriolé
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Cabriolé está aí, sim, senhor, dizia o preto que viera à matriz de São José chamar o vigário para sacramentar dois moribundos.
A geração de hoje não viu a entrada e a saída
do cabriolé no Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o cab e o tílburi vieram para o rol dos
nossos veículos de praça ou particulares. O cab
durou pouco. O tílburi, anterior aos dois, promete ir à destruição da cidade.
Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com
o cavalo e o cocheiro em ossos, esperando o freguês do costume. A paciência
será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que
brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O
arqueólogo dirá coisas raras sobre os três esqueletos. O cabriolé não teve
história; deixou apenas a anedota que vou dizer.
— Dois! exclamou o sacristão.
— Sim, senhor, dois; nhã Anunciada e nhô
Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! continuou o preto
a gemer, andando de um lado para outro, aflito, fora de si.
Alguém que leia isto com a alma turva de
dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia deveras, ou se queria picar a
curiosidade do coadjutor e do sacristão. Eu estou que tudo se pode combinar
neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não descreio que
ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso, nem o coadjutor nem
o sacristão lhe perguntavam nada.
Não é que o sacristão não fosse curioso. Em
verdade, pouco mais era que isso. Trazia a paróquia de cor; sabia os nomes às
devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos pais, as prendas e os recursos de
cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as
virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades das
viúvas. Pesquisava tudo; nos intervalos ajudava a missa e o resto. Chamava-se
João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão.
“Que Pedrinho e que Anunciada serão esses?”
dizia consigo, acompanhando o coadjutor.
Embora ardesse por sabê-los, a presença do
coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando
para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo silêncio e piedade que
ele. Assim foram andando. O cabriolé esperava-os; o cocheiro desbarretou-se, os
vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto o padre e o sacristão
entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O preto desandou o
caminho a passo largo.
Que andem burros e pessoas na rua, e as
nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas cabeças, se os têm. A do
sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca do Nosso— Pai, embora
soubesse adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não era
acerca da hora, — oito e quarto da noite, — aliás, o céu estava claro e a lua
ia aparecendo. O próprio cabriolé, que era novo na terra, e substituía neste
caso a sege, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês,
a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.
“Há de ser gente nova, ia pensando o
sacristão, mas hóspede em alguma casa, decerto, porque não há casa vazia na
praia, e o número é da do Comendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se
nunca ouvi?... Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas
então mandariam cabriolé? Este mesmo preto é novo na casa; há de ser escravo de
um dos moribundos, ou de ambos.”
Era assim que João das Mercês ia cogitando, e
não foi por muito tempo. O cabriolé parou à porta de um sobrado, justamente a
casa do Comendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas
embaixo com velas, o padre e o sacristão apearam-se e subiram a escada,
acompanhados do Comendador. A esposa deste, no patamar, beijou o anel ao padre.
Gente grande, crianças, escravos, um burburinho surdo, meia claridade, e os
dois moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao fundo.
Tudo se passou, como é de uso e regra, em
tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã Anunciada também, e o
coadjutor despediu-se da casa para tornar à matriz com o sacristão. Este não se
despediu do Comendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dois eram parentes
seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que
vivia em Campinas; uma história terrível... Os olhos de João das Mercês
escutaram arregaladamente estas duas palavras, e disseram, sem falar, que
viriam ouvir o resto — talvez naquela mesma noite. Tudo foi rápido, porque o
padre descia a escada, era força ir com ele.
Foi tão curta a moda do cabriolé que este
provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anedota, que vou
acabar já, tão escassa foi ela, uma anedota de nada. Não importa. Qualquer que
fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de vida para o
sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a sobrepeliz, e
a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a pé, rua acima,
praia fora, até parar à porta do Comendador.
Em caminho foi evocando toda a vida daquele
homem, antes e depois da comenda. Compôs o negócio, que era fornecimento de
navios, creio eu, a família, as festas dadas, os cargos paroquiais, comerciais
e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve mais que um passo ou
dois. A grande memória de João das Mercês guardava todas as coisas, máximas e
mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão completas que nem o
próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais. Sabia-as como o
padre-nosso, isto é, sem pensar nas palavras; ele rezava tal qual comia,
mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse
rezar três dúzias de padre-nossos seguidamente, João das Mercês os diria sem
contar. Tal era com as vidas alheias; amava sabê-las, pesquisava-as,
decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória.
Na paróquia todos lhe queriam bem, porque ele
não enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era
preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida de Antônio e Antônio a de José. O
que ele fazia era ratificar ou retificar um com outro, e os dois com Sancho,
Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com todos. Assim é que enchia as horas
vagas, que eram muitas. Alguma vez, à própria missa, recordava uma anedota da
véspera, e, a princípio, pedia perdão a Deus; deixou de lho pedir quando
refletiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrifício, tão
consubstanciados os trazia em si. A anedota, que então revivia por instantes,
era como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem fica sendo a mesma,
e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era dele, valia
mais do que ele pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da
paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa; era um dos seus atos de
viver.
Quando chegou à casa do Comendador, tinha
desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal.
Não pensou em sair cedo, por mais aflita que fosse a ocasião, e nisto a fortuna
o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe
vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo estado dos moribundos. A
esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que
era por pouco tempo; ia passando e lembrara-se de saber se os enfermos tinham
ido para o céu, — ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao
Comendador seria ouvido por ele com interesse.
— Não morreram, nem sei se escaparão; quando
menos, ela creio que morrerá, concluiu Brito.
— Parecem bem mal.
— Ela, principalmente; também é a que mais
padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de
Campinas, há dias.
— Já estavam aqui? perguntou o sacristão,
pasmado de o não saber.
— Já; chegaram há quinze dias, — ou quatorze.
Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença...
Brito interrompeu o que ia dizendo; assim
pareceu ao sacristão, que pôs no semblante toda a expressão de pessoa que
espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a morder os beiços e a olhar
para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito
acabou andando ao longo da sala, enquanto João das Mercês dizia consigo que
havia alguma coisa mais que febre. A primeira ideia que lhe acudiu foi se os
médicos teriam errado na doença ou no remédio; também pensou que podia ser
outro mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia
acompanhando com os olhos o Comendador, enquanto este andava e desandava a sala
toda, apagando os passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá
vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou
fechava. Tudo isso era coisa nenhuma para quem tivesse outro cuidado; mas o
nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando
menos, a família dos enfermos, a posição, o atual estado, alguma página da vida
deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da paróquia.
— Ah! exclamou Brito estacando o passo.
Parecia haver nele o desejo impaciente de
referir um caso, — a “história terrível”, que anunciara ao sacristão, pouco
antes; mas nem este ousava pedi-la nem aquele dizê-la, e o Comendador pegou a
andar outra vez.
João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal
situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e
voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro
nenhum sinal de reprovação do seu gesto; ao contrário, ele parou defronte e
suspirou com grande cansaço.
— Triste, sim, triste, concordou João das
Mercês. Boas pessoas, não?
— Iam casar.
— Casar? Noivos um do outro?
Brito confirmou de cabeça. A nota era
melancólica, mas não havia sinal da história terrível anunciada, e o sacristão
esperou por ela. Observou consigo que era a primeira vez que ouvia alguma coisa
de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas há pouco, eram o
único sinal dessas pessoas. Nem por isso se sentia menos curioso. Iam casar...
Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um
mal na véspera de um bem, o mal devia ser terrível. Noivos e moribundos...
Vieram trazer recado ao dono da casa; este
pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que ele se
despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá ficou cinquenta minutos. Ao cabo,
chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou o Comendador.
— Que lhe dizia eu, há pouco? Quando menos,
ela ia morrer; morreu.
Brito disse isto sem lágrimas e quase sem
tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo. As lágrimas, segundo referiu, eram
do sobrinho de Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em Mata-porcos.
Daí a supor que o sobrinho do Comendador gostasse da noiva do moribundo foi um
instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a ideia por muito tempo; não
era forçoso, e depois se ele próprio os acompanhara... Talvez fosse padrinho de
casamento. Quis saber, e era natural, — o nome da defunta. O dono da casa, — ou
por não querer dar-lho, — ou porque outra ideia lhe tomasse agora a cabeça, —
não declarou o nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam.
— Iam casar...
— Deus a receberá em sua santa guarda, e a
ele também, se vier a expirar, disse o sacristão cheio de melancolia.
E esta palavra bastou a arrancar metade do
segredo que parece ansiava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando
João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou à janela,
e o pedido que lhe fez de jurar, — jurou por todas as almas dos seus que
ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidências alheias,
mormente as de pessoas gradas e honradas, como era o Comendador. Ao que este se
deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo,
a qual era que os dois noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando
souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma notícia abominável...
— E foi?... precipitou-se em dizer João das
Mercês, sentindo alguma hesitação no Comendador.
— Que eram irmãos.
— Irmãos como? Irmãos de verdade?
— De verdade; irmãos por parte de mãe. O pai
é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que
era assim, e eles ficaram fulminados durante um dia ou mais...
João das Mercês não ficou menos espantado que
eles; dispôs-se a não sair dali sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria
todas as demais da noite, velaria o cadáver de um ou de ambos, uma vez que
pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia, embora não fosse da
paróquia.
— E vamos, vamos, foi então que a febre os
tomou?...
Brito cerrou os dentes para não dizer mais
nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora
depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais
fraco, posto que mais esperado, não havendo já de quem o esconder, trouxera a
notícia ao sacristão.
— Lá se foi o outro, o irmão, o noivo... Que
Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que eles se queriam tanto
que, alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canônico do
consórcio, pegaram de si e, fiados em serem apenas meios irmãos e não irmãos
inteiros, meteram-se em um cabriolé e fugiram de casa. Dado logo o alarma,
alcançamos pegar o cabriolé em caminho da Cidade Nova, e eles ficaram tão
pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer.
Não se pode escrever o que sentiu o
sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com dificuldade.
Soube os nomes das pessoas pelo obituário dos jornais, e combinou as
circunstâncias ouvidas ao Comendador com outras. Enfim, sem se ter por
indiscreto, espalhou a história, só com esconder os nomes e contá-la a um
amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos. Fez mais;
meteu-se-lhe em cabeça que o cabriolé da fuga podia ser o mesmo dos últimos
sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e
descobriu que sim. Donde veio chamar-se a esta página a “anedota do cabriolé”.
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