Anedota
Pecuniária
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Chama-se Falcão o meu homem. Naquele dia —
quatorze de abril de 1870 — quem lhe entrasse em casa, às dez horas da noite,
vê-lo-ia passear na sala, em mangas de camisa, calça preta e gravata branca,
resmungando, gesticulando, suspirando, evidentemente aflito. Às vezes, sentava-se;
outras, encostava-se à janela, olhando para a praia, que era a da Gamboa. Mas,
em qualquer lugar ou atitude, demorava-se pouco tempo.
— Fiz mal, dizia ele, muito mal. Tão minha
amiga que ela era! tão amorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal...
Ao menos, que seja feliz!
Se eu disser que este homem vendeu uma
sobrinha, não me hão de crer; se descer a definir o preço, dez contos de réis,
voltar-me-ão as costas com desprezo e indignação. Entretanto, basta ver este
olhar felino, estes dois beiços, mestres de cálculo, que, ainda fechados,
parecem estar contando alguma coisa, para adivinhar logo que a feição capital
do nosso homem é a voracidade do lucro. Entendamo-nos: ele faz arte pela arte,
não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo! Ninguém
lhe vá falar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, nem mesa fina, nem
carruagem, nem comenda. Não se ganha dinheiro para esbanjá-lo, dizia ele. Vive
de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação. Vai muitas vezes à
burra, que está na alcova de dormir, com o único fim de fartar os olhos nos
rolos de ouro e maços de título. Outras vezes, por um requinte de erotismo
pecuniário, contempla-os só de memória. Neste particular, tudo o que eu pudesse
dizer, ficaria abaixo de uma palavra dele mesmo, em 1857.
Já então milionário, ou quase, encontrou na
rua dois meninos, seus conhecidos, que lhe perguntaram se uma nota de cinco
mil-réis, que lhes dera um tio, era verdadeira. Corriam algumas notas falsas, e
os pequenos lembraram-se disso em caminho. Falcão ia com um amigo. Pegou
trêmulo na nota, examinou-a bem, virou-a, revirou-a...
— É falsa? perguntou com impaciência um dos
meninos.
— Não; é verdadeira.
— Dê cá, disseram ambos.
Falcão dobrou a nota vagarosamente, sem
tirar-lhe os olhos de cima; depois, restituiu-a aos pequenos, e, voltando-se
para o amigo, que esperava por ele, disse-lhe com a maior candura do mundo:
— Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz
gosto ver.
Era assim que ele amava o dinheiro, até à
contemplação desinteressada. Que outro motivo podia levá-lo a parar, diante das
vitrinas dos cambistas, cinco, dez, quinze minutos, lambendo com os olhos os
montes de libras e francos, tão arrumadinhos e amarelos? O mesmo sobressalto
com que pegou na nota de cinco mil-réis, era um rasgo sutil, era o terror da
nota falsa. Nada aborrecia tanto, como os moedeiros falsos, não por serem
criminosos, mas prejudiciais, por desmoralizarem o dinheiro bom.
A linguagem do Falcão valia um estudo. Assim
é que, um dia, em 1864, voltando do enterro de um amigo, referiu o esplendor do
préstito, exclamando com entusiasmo: — "Pegavam no caixão três mil
contos!" E, como um dos ouvintes não o entendesse logo, concluiu do
espanto, que duvidava dele, e discriminou a afirmação: — "Fulano quatrocentos,
Sicrano seiscentos... Sim, senhor, seiscentos; há dois anos, quando desfez a
sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos; mas suponhamos quinhentos..."
E foi por diante, demonstrando, somando e concluindo: — "Justamente, três
mil contos!"
Não era casado. Casar era botar dinheiro
fora. Mas os anos passaram, e aos quarenta e cinco entrou a sentir uma certa
necessidade moral, que não compreendeu logo, e era a saudade paterna. Não
mulher, não parentes, mas um filho ou uma filha, se ele o tivesse, era como
receber um patacão de ouro. Infelizmente, esse outro capital devia ter sido
acumulado em tempo; não podia começá-lo a ganhar tão tarde. Restava a loteria;
a loteria deu-lhe o prêmio grande.
Morreu-lhe o irmão, e três meses depois a
cunhada, deixando uma filha de onze anos. Ele gostava muito desta e de outra
sobrinha, filha de uma irmã viúva; dava-lhes beijos, quando as visitava;
chegava mesmo ao delírio de levar-lhes, uma ou outra vez, biscoitos. Hesitou um
pouco, mas, enfim, recolheu a órfã; era a filha cobiçada. Não cabia em si de
contente; durante as primeiras semanas, quase não saía de casa, ao pé dela,
ouvindo-lhe histórias e tolices.
Chamava-se Jacinta, e não era bonita; mas
tinha a voz melodiosa e os modos fagueiros. Sabia ler e escrever; começava a
aprender música. Trouxe o piano consigo, o método e alguns exercícios; não pôde
trazer o professor, porque o tio entendeu que era melhor ir praticando o que
aprendera, e um dia... mais tarde... Onze anos, doze anos, treze anos, cada ano
que passava era mais um vínculo que atava o velho solteirão à filha adotiva, e
vice-versa. Aos treze, Jacinta mandava na casa; aos dezessete era verdadeira
dona. Não abusou do domínio; era naturalmente modesta, frugal, poupada.
— Um anjo! dizia o Falcão ao Chico Borges.
Este Chico Borges tinha quarenta anos, e era
dono de um trapiche. Ia jogar com o Falcão à noite. Jacinta assistia às
partidas. Tinha então dezoito anos; não era mais bonita, mas diziam todos
"que estava enfeitando muito". Era pequenina, e o trapicheiro adorava
as mulheres pequeninas. Corresponderam-se, o namoro fez-se paixão.
— Vamos a elas, dizia o Chico Borges ao
entrar, pouco depois de ave-marias.
As cartas eram o chapéu de sol dos dois
namorados. Não jogavam a dinheiro; mas o Falcão tinha tal sede ao lucro, que
contemplava os próprios tentos, sem valor, e contava-os de dez em dez minutos,
para ver se ganhava ou perdia. Quando perdia, caía-lhe o rosto num desalento
incurável, e ele recolhia-se pouco a pouco ao silêncio. Se a sorte teimava em
persegui-lo, acabava o jogo, e levantava-se tão melancólico e cego, que a
sobrinha e o parceiro podiam apertar a mão, uma, duas, três vezes, sem que ele
visse coisa nenhuma.
Era isto em 1869. No princípio de 1870 Falcão
propôs ao outro uma venda de ações. Não as tinha; mas farejou uma grande baixa,
e contava ganhar de um só lance trinta a quarenta contos ao Chico Borges. Este
respondeu-lhe finamente que andava pensando em oferecer-lhe a mesma coisa. Uma
vez que ambos queriam vender e nenhum comprar, podiam juntar-se e propor a
venda a um terceiro. Acharam o terceiro, e fecharam o contrato a sessenta dias.
Falcão estava tão contente, ao voltar do negócio, que o sócio abriu-lhe o
coração e pediu-lhe a mão de Jacinta. Foi o mesmo que, se de repente, começasse
a falar turco. Falcão parou, embasbacado, sem entender. Que lhe desse a
sobrinha? Mas então...
— Sim; confesso a você que estimaria muito
casar com ela, e ela... penso que também estimaria casar comigo.
— Qual, nada! interrompeu o Falcão. Não,
senhor; está muito criança, não consinto.
— Mas reflita...
— Não reflito, não quero.
Chegou a casa irritado e aterrado. A sobrinha
afagou-o tanto para saber o que era, que ele acabou contando tudo, e
chamando-lhe esquecida e ingrata. Jacinta empalideceu; amava os dois, e via-os
tão dados, que não imaginou nunca esse contraste de afeições. No quarto chorou
à larga; depois escreveu uma carta ao Chico Borges, pedindo-lhe pelas cinco
chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não fizesse barulho nem brigasse com o
tio; dizia-lhe que esperasse, e jurava-lhe um amor eterno.
Não brigaram os dois parceiros; mas as
visitas foram naturalmente mais escassas e frias. Jacinta não vinha à sala, ou
retirava-se logo. O terror do Falcão era enorme. Ele amava a sobrinha com um
amor de cão, que persegue e morde aos estranhos. Queria-a para si, não como
homem, mas como pai. A paternidade natural dá forças para o sacrifício da
separação; a paternidade dele era de empréstimo, e, talvez, por isso mesmo,
mais egoísta. Nunca pensara em perdê-la; agora, porém, eram trinta mil
cuidados, janelas fechadas, advertências à preta, uma vigilância perpétua, um
espiar os gestos e os ditos, uma campanha de D. Bartolo.
Entretanto, o sol, modelo de funcionários,
continuou a servir pontualmente os dias, um a um, até chegar dos dois meses do
prazo marcado para a entrega das ações. Estas deviam baixar, segundo a previsão
dos dois; mas as ações, como as loterias e as batalhas, zombam dos cálculos
humanos. Naquele caso, além de zombaria, houve crueldade, porque nem baixaram,
nem ficaram ao par; subiram até converter o esperado lucro de quarenta contos
numa perda de vinte.
Foi aqui que o Chico Borges teve uma
inspiração de gênio. Na véspera, quando o Falcão, abatido e mudo, passeava na
sala o seu desapontamento, propôs ele custear todo o déficit, se lhe desse a sobrinha. Falcão teve um deslumbramento.
— Que eu?...
— Isso mesmo, interrompeu o outro, rindo.
— Não, não...
Não quis; recusou três e quatro vezes. A
primeira impressão fora de alegria, eram os dez contos na algibeira. Mas a ideia
de separar-se de Jacinta era insuportável, e recusou. Dormiu mal. De manhã,
encarou a situação, pesou as coisas, considerou que, entregando Jacinta ao
outro, não a perdia inteiramente, ao passo que os dez contos iam-se embora. E,
depois, se ela gostava dele e ele dela, por que razão separá-los? Todas as
filhas casam-se, e os pais contentam-se de as ver felizes. Correu à casa do
Chico Borges, e chegaram a acordo.
— Fiz mal, muito mal, bradava ele na noite do
casamento. Tão minha amiga que ela era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha...
Fiz mal, muito mal.
Cessara o terror dos dez contos; começara o
fastio da solidão. Na manhã seguinte, foi visitar os noivos. Jacinta não se
limitou a regalá-lo com um bom almoço, encheu-o de mimos e afagos; mas nem
estes, nem o almoço lhe restituíram a alegria. Ao contrário, a felicidade dos
noivos entristeceu-o mais. Ao voltar para casa não achou a carinha meiga de
Jacinta. Nunca mais lhe ouviria as cantigas de menina e moça; não seria ela quem
lhe faria o chá, quem lhe traria, à noite, quando ele quisesse ler, o velho
tomo ensebado do Saint— Clair das Ilhas,
dádiva de 1850.
— Fiz mal, muito mal...
Para remediar o mal feito, transferiu as
cartas para a casa da sobrinha, e ia lá jogar, à noite, com o Chico Borges. Mas
a fortuna, quando flagela um homem, corta-lhe todas as vazas. Quatro meses
depois, os recém-casados foram para a Europa; a solidão alargou-se de toda a
extensão do mar. Falcão contava então cinquenta e quatro anos. Já estava mais
consolado do casamento de Jacinta; tinha mesmo o plano de ir morar com eles, ou
de graça, ou mediante uma pequena retribuição, que calculou ser muito mais
econômico do que a despesa de viver só. Tudo se esboroou; ei-lo outra vez na
situação de oito anos antes, com a diferença que a sorte arrancara-lhe a taça
entre dois goles.
Vai senão quando cai-lhe outra sobrinha em
casa. Era a filha da irmã viúva, que morreu e lhe pediu a esmola de tomar conta
dela. Falcão não prometeu nada, porque um certo instinto o levava a não
prometer coisa nenhuma a ninguém, mas a verdade é que recolheu a sobrinha, tão
depressa a irmã fechou os olhos. Não teve constrangimento; ao contrário,
abriu-lhe as portas de casa, com um alvoroço de namorado, e quase abençoou a
morte da irmã. Era outra vez a filha perdida.
"Esta há de fechar-me os olhos",
dizia ele consigo.
Não era fácil. Virgínia tinha dezoito anos,
feições lindas e originais; era grande e vistosa. Para evitar que lha levassem,
Falcão começou por onde acabara da primeira vez: — janelas cerradas,
advertências à preta, raros passeios, só com ele e de olhos baixos. Virgínia
não se mostrou enfadada.
— Nunca fui janeleira, dizia ela, e acho
muito feio que uma moça viva com o sentido na rua.
Outra cautela do Falcão foi não trazer para
casa senão parceiros de cinquenta anos para cima ou casados. Enfim, não cuidou
mais da baixa das ações. E tudo isso era desnecessário, porque a sobrinha não
cuidava realmente senão dele e da casa. Às vezes, como a vista do tio começava
a diminuir muito, lia-lhe ela mesma alguma página do Saint— Clair das Ilhas. Para suprir os parceiros, quando eles
faltavam, aprendeu a jogar cartas, e, entendendo que o tio gostava de ganhar,
deixava-se sempre perder. Ia mais longe: quando perdia muito, fingia-se zangada
ou triste, com o único fim de dar ao tio um acréscimo de prazer. Ele ria então
à larga, mofava dela, achava-lhe o nariz comprido, pedia um lenço para
enxugar-lhe as lágrimas; mas não deixava de contar os seus tentos de dez em dez
minutos, e se algum caía no chão (eram grãos de milho) descia a vela para
apanhá-lo.
No fim de três meses, Falcão adoeceu. A
moléstia não foi grave nem longa; mas o terror da morte apoderou-se-lhe do
espírito, e foi então que se pôde ver toda a afeição que ele tinha à moça. Cada
visita que se lhe chegava, era recebida com rispidez, ou pelo menos com
sequidão. Os mais íntimos padeciam mais, porque ele dizia-lhes brutalmente que
ainda não era cadáver, que a carniça ainda estava viva, que os urubus
enganavam-se de cheiro, etc. Mas nunca Virgínia achou nele um só instante de
mau humor. Falcão obedecia-lhe em tudo, com uma passividade de criança, e
quando ria, é porque ela o fazia rir.
— Vamos, tome o remédio, deixe-se disso,
vosmecê agora é meu filho...
Falcão sorria e bebia a droga. Ela sentava-se
ao pé da cama, contando-lhe histórias; espiava o relógio para dar-lhe os caldos
ou a galinha, lia-lhe o sempiterno Saint—
Clair. Veio a convalescença. Falcão saiu a alguns passeios, acompanhado de
Virgínia. A prudência com que esta, dando-lhe o braço, ia mirando as pedras da
rua, com medo de encarar os olhos de algum homem, encantavam o Falcão.
"Esta há de fechar-me os olhos",
repetia ele consigo mesmo. Um dia, chegou a pensá-lo em voz alta: — Não é
verdade que você me há de fechar os olhos?
— Não diga tolices!
Conquanto estivesse na rua, ele parou,
apertou-lhe muito as mãos, agradecido, não achando que dizer. Se tivesse a
faculdade de chorar, ficaria provavelmente com os olhos úmidos. Chegando à
casa, Virgínia correu ao quarto para reler uma carta que lhe entregara na
véspera uma D. Bernarda, amiga de sua mãe. Era datada de New York, e trazia por
única assinatura este nome: Reginaldo. Um dos trechos dizia assim:
"Vou daqui no paquete de 25. Espera-me
sem falta. Não sei ainda se irei ver-te logo ou não. Teu tio deve lembrar-se de
mim; viu-me em casa de meu tio Chico Borges, no dia do casamento de tua prima..."
Quarenta dias depois, desembarcava este
Reginaldo, vindo de New York, com trinta anos feitos e trezentos mil dollars ganhos. Vinte e quatro horas
depois visitou o Falcão, que o recebeu apenas com polidez. Mas o Reginaldo era
fino e prático; atinou com a principal corda do homem, e vibrou-a. Contou-lhe
os prodígios de negócio nos Estados Unidos, as hordas de moedas que corriam de um
a outro dos dois oceanos. Falcão ouvia deslumbrado, e pedia mais. Então o outro
fez-lhe uma extensa computação das companhias e bancos, ações, saldos de
orçamento público, riquezas particulares, receita municipal de New York;
descreveu-lhe os grandes palácios do comércio...
— Realmente, é um grande país, dizia o
Falcão, de quando em quando. E depois de três minutos de reflexão: — Mas, pelo
que o senhor conta, só há ouro?
— Ouro só, não; há muita prata e papel; mas
ali papel e ouro são a mesma coisa. E moedas de outras nações? Hei de
mostrar-lhe uma coleção que trago. Olhe; para ver o que é aquilo basta pôr os
olhos em mim. Fui para lá pobre, com vinte e três anos; no fim de sete anos,
trago seiscentos contos.
Falcão estremeceu: — Eu, com a sua idade, confessou
ele, mal chegaria a cem.
Estava encantado. Reginaldo disse-lhe que
precisava de duas ou três semanas, para lhe contar os milagres do dollar.
— Como é que o senhor lhe chama?
— Dollar.
— Talvez não acredite que nunca vi essa
moeda.
Reginaldo tirou do bolso do colete um dollar e mostrou-lho. Falcão, antes de
lhe pôr a mão, agarrou-o com os olhos. Como estava um pouco escuro, levantou-se
e foi até à janela, para examiná-lo bem — de ambos os lados; depois
restituiu-o, gabando muito o desenho e a cunhagem, e acrescentando que os
nossos antigos patacões eram bem bonitos.
As visitas repetiram-se. Reginaldo assentou
de pedir a moça. Esta, porém, disse-lhe que era preciso ganhar primeiro as boas
graças do tio; não casaria contra a vontade dele. Reginaldo não desanimou.
Tratou de redobrar as finezas; abarrotou o tio de dividendos fabulosos.
— A propósito, o senhor nunca me mostrou a
sua coleção de moedas, disse-lhe um dia o Falcão.
— Vá amanhã à minha casa.
Falcão foi. Reginaldo mostrou-lhe a coleção
metida num móvel envidraçado por todos os lados. A surpresa de Falcão foi
extraordinária; esperava uma caixinha com um exemplar de cada moeda, e achou
montes de ouro, de prata, de bronze e de cobre. Falcão mirou-as primeiro de um
olhar universal e coletivo; depois, começou a fixá-las especificamente. Só
conheceu as libras, os dollars e os
francos; mas o Reginaldo nomeou-as todas: florins, coroas, rublos, dracmas,
piastras, pesos, rupias, toda a numismática do trabalho, concluiu ele
poeticamente.
— Mas que paciência a sua para ajuntar tudo
isto! disse ele.
— Não fui eu que ajuntei, replicou o
Reginaldo; a coleção pertencia ao espólio de um sujeito de Filadélfia.
Custou-me uma bagatela: — cinco mil dollars.
Na verdade, valia mais. Falcão saiu dali com
a coleção na alma; falou dela à sobrinha, e, imaginariamente, desarrumou e
tornou a arrumar as moedas, como um amante desgrenha a amante para toucá-la
outra vez. De noite sonhou que era um florim, que um jogador o deitava à mesa
do lansquenet, e que ele trazia consigo
para a algibeira do jogador mais de duzentos florins. De manhã, para
consolar-se, foi contemplar as próprias moedas que tinha na burra; mas não se
consolou nada. O melhor dos bens é o que se não possui.
Dali a dias, estando em casa, na sala, pareceu-lhe
ver uma moeda no chão. Inclinou-se a apanhá-la; não era moeda, era uma simples
carta. Abriu a carta distraidamente e leu-a espantado: era de Reginaldo a
Virgínia...
— Basta! interrompe-me o leitor; adivinho o
resto. Virgínia casou com o Reginaldo, as moedas passaram às mãos do Falcão, e
eram falsas...
Não, senhor, eram verdadeiras. Era mais moral
que, para castigo do nosso homem, fossem falsas; mas, ai de mim! eu não sou
Sêneca, não passo de um Suetônio que contaria dez vezes a morte de César, se ele
ressuscitasse dez vezes, pois não tornaria à vida, senão para tornar ao
império.
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