
Como se
inventaram os almanaques
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Some-te, bibliógrafo! Não tenho nada contigo. Nem contigo, curioso de histórias
poentas. Sumam-se todos; o que vou contar interessa a outras pessoas menos
especiais e muito menos aborrecidas. Vou dizer como se inventaram os
almanaques.
Sabem que o Tempo é, desde que nasceu, um
velho de barbas brancas. Os poetas não lhe dão outro nome: o velho Tempo. Ninguém
o pintou de outra maneira. E como há quem tome liberdades com os velhos, uns
batem-lhe na barriga (são os patuscos), outros chegam a desafiá-lo; outros
lutam com ele, mas o diabo vence-os a todos; é de regra.
Entretanto, uma coisa é barba, outra é coração.
As barbas podem ser velhas e os corações novos; e vice-versa: há corações
velhos com barbas recentes. Não é regra, mas dá-se. Deu-se com o Tempo. Um dia
o Tempo viu uma menina de quinze anos, bela como a tarde, risonha como a manhã,
sossegada como a noite, um composto de graças raras e finas, e sentiu que
alguma coisa lhe batia do lado esquerdo. Olhou para ela e as pancadas
cresceram. Os olhos da menina, verdadeiros fogos, faziam arder os dele só com
fitá-los.
— Que é isto? murmurou o velho.
E os beiços do Tempo entraram a tremer e o
sangue andava mais depressa, como cavalo chicoteado, e todo ele era outro.
Sentiu que era amor; mas olhou para o oceano, vasto espelho, e achou-se velho.
Amaria aquela menina a um varão tão idoso? Deixou o mar, deixou a bela, e foi
pensar na batalha de Salâmina.
As batalhas velhas eram para ele como para os
velhos sapatos. Que lhe importava Salâmina? Repetiu-a de memória, e por
desgraça dele, viu a mesma donzela entre os combatentes, ao lado de
Temístocles. Dias depois trepou a um píncaro, o Chimborazo; desceu ao deserto
de Sinai; morou no sol, morou na lua; em toda parte lhe aparecia a figura de
bela menina de quinze anos. Afinal ousou ir ter com ela.
— Como te chamas, linda criatura?
— Esperança é o meu nome.
— Queres amar-me?
— Tu estás carregado de anos, respondeu ela;
eu estou na flor deles. O casamento é impossível. Como te chamas?
— Não te importe o meu nome; basta saber que
te posso dar todas as pérolas de Golconda...
— Adeus!
— Os diamantes de Ofir...
— Adeus!
— As rosas de Saarão...
— Adeus! Adeus!
— As vinhas de Engaddi...
— Adeus! adeus! adeus! Tudo isso há de ser
meu um dia; um dia breve ou longe, um dia...
Esperança fugiu. O Tempo ficou a olhar,
calado, até que a perdeu de todo. Abriu a boca para amaldiçoá-la, mas as
palavras que lhe saíam eram todas de bênção; quis cuspir no lugar em que a
donzela pousara os pés, mas não pôde impedir-se de beijá-lo.
Foi por essa ocasião que lhe acudiu a ideia
do almanaque. Não se usavam almanaques. Vivia-se sem eles; negociava-se,
adoecia-se, morria-se, sem se consultar tais livros. Conhecia-se a marcha do
sol e da lua; contavam-se os meses e os anos; era, ao cabo, a mesma coisa; mas
não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se nomeavam dias nem meses,
nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa vestígios no ar.
— Se eu achar um modo de trazer presente aos
olhos os dias e os meses, e o reproduzir todos os anos, para que ela veja
palpavelmente ir-se-lhe a mocidade...
Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao
amor, ainda quando ele brota de ruínas. O Tempo inventou o almanaque; compôs um
simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão-somente os dias, as semanas, os
meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva
de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo
que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos
folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia
a língua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no
mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos os não têm ainda hoje,
se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que
estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal.
— Agora, sim, disse Esperança pegando no
folheto que achou na horta; agora já me não engano nos dias das amigas. Irei
jantar ou passar a noite com elas, marcando aqui nas folhas, com sinais de cor
os dias escolhidos.
Todas tinham almanaques. Nem só elas, mas
também as matronas, e os velhos e os rapazes, juízes, sacerdotes, comerciantes,
governadores, fâmulos; era moda trazer o almanaque na algibeira. Um poeta
compôs um poema atribuindo a invenção da obra às Estações, por ordem de seus
pais, o Sol e a Lua; um astrônomo, ao contrário, provou que os almanaques eram
destroços de um astro onde desde a origem dos séculos estavam escritas as
línguas faladas na terra e provavelmente nos outros planetas. A explicação dos
teólogos foi outra. Um grande físico entendeu que os almanaques eram obra da
própria terra, cujas palavras, acumuladas no ar, formaram-se em ordem,
imprimiram-se no próprio ar, convertido em folhas de papel, graças... Não
continuou; tantas e tais eram as sentenças, que a de Esperança foi a mais
aceita do povo.
— Eu creio que o almanaque é o almanaque,
dizia ela rindo.
Quando chegou o fim do ano, toda a gente, que
trazia o almanaque com mil cuidados, para consultá-lo no ano seguinte, ficou
espantada de ver cair à noite outra chuva de almanaques. Toda a terra amanheceu
alastrada deles; eram os do ano novo. Guardaram naturalmente os velhos. Ano
findo, outro almanaque; assim foram eles vindo, até que Esperança contou vinte
e cinco anos, ou, como então se dizia, vinte e cinco almanaques.
Nunca os dias pareceram correr tão depressa.
Voavam as semanas, com elas os meses, e, mal o ano começava, estava logo findo.
Esse efeito entristeceu a terra. A própria Esperança, vendo que os dias
passavam tão velozes, e não achando marido, pareceu desanimada; mas foi só um
instante. Nesse mesmo instante apareceu-lhe o Tempo.
— Aqui estou, não deixes que te chegue a
velhice... Ama-me...
Esperança respondeu-lhe com duas gaifonas, e
deixou-se estar solteira. Há de vir o noivo, pensou ela.
Olhando-se ao espelho, viu que mui pouco
mudara. Os vinte e cinco almanaques quase lhe não apagaram a frescura dos
quinze. Era a mesma linda e jovem Esperança. O velho Tempo, cada vez mais
afogueado em paixão, ia deixando cair os almanaques, ano por ano, até que ela
chegou aos trinta e daí aos trinta e cinco.
Eram já vinte almanaques; toda a gente
começava a odiá-los, menos Esperança, que era a mesma menina das quinze
primaveras. Trinta almanaques, quarenta, cinquenta, sessenta, cem almanaques;
velhices rápidas, mortes sobre mortes, recordações amargas e duras. A própria
Esperança, indo ao espelho, descobriu um fio de cabelo branco e uma ruga.
— Uma ruga! Uma só!
Outras vieram, à medida dos almanaques.
Afinal a cabeça de Esperança ficou sendo um pico de neve, a cara um mapa de
linhas. Só o coração era verde como acontecia ao Tempo; verdes ambos,
eternamente verdes. Os almanaques iam sempre caindo. Um dia, o Tempo desceu a
ver a bela Esperança; achou-a anciã, mas forte, com um perpétuo riso nos
lábios.
— Ainda assim te amo, e te peço... disse ele.
Esperança abanou a cabeça; mas, logo depois,
estendeu-lhe a mão.
— Vá lá, disse ela; ambos velhos, não será
longo o consórcio.
— Pode ser indefinido.
— Como assim?
O velho Tempo pegou da noiva e foi com ela
para um espaço azul e sem termos, onde a alma de um deu à alma de outro o beijo
da eternidade. Toda a criação estremeceu deliciosamente. A verdura dos corações
ficou ainda mais verde.
Esperança, daí em diante, colaborou nos
almanaques. Cada ano, em cada almanaque, atava Esperança uma fita verde. Então
a tristeza dos almanaques era assim alegrada por ela; e nunca o Tempo dobrou
uma semana que a esposa não pusesse um mistério na semana seguinte. Deste modo
todas elas foram passando, vazias ou cheias, mas sempre acenando com alguma
coisa que enchia a alma dos homens de paciência e de vida.
Assim as semanas, assim os meses, assim os
anos. E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de
versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem.
E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a
oficina da vida.
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