
Diana
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Em certo dia do mês de março do ano da graça de 1868 encontravam-se na Rua do Ouvidor, cidade do Rio de Janeiro, dois rapazes, ambos acompanhados de um criado carregando as respectivas malas.
— Luís!
— Alberto!
— Que é isso?
— A que horas chegas!
— Não pôde ser mais cedo. Venho do caminho de
ferro neste momento. Mas tu, chegas também de Minas, ou partes para lá?
— Não chego nem vou para lá. Vou para o Rio
Grande. Está a sair o vapor.
— Que volta tão repentina é essa?
— Assim é preciso.
— Isto só pelo diabo. Se eu soubesse de
semelhante coisa tinha vindo mais cedo.
— De lá te escreverei. Adeus!
— Adeus!
E os dois amigos, depois de se abraçarem,
separaram-se, tomando um para a hospedaria, outro para a Praia dos Mineiros.
Alberto foi fazendo consigo as reflexões
seguintes:
— Que diabo leva o Luís ao Rio Grande tão
repentinamente? este rapaz tem o juízo a arder...
Tempos depois Alberto recebia a seguinte
carta de Porto Alegre, escrita pelo amigo Luís.
Luís a Alberto.
Prezado amigo,
Só agora te escrevo porque só agora me é dado
dispensar alguns minutos.
Se fosses alguma destas susceptibilidades que
tantas vezes encontrei, dava-te outra razão, mentirosa decerto, mas suficiente
para acalmar-te o espírito e consolar-te o coração.
Mas prefiro a verdade. Eu te conheço, tu me
conheces, nós nos conhecemos.
Queres então saber que motivo me trouxe ao
Rio Grande tão repentinamente? Um motivo simples: receber um legado. Tive
notícia de que meu padrinho morrera e me deixara em testamento certa quantia
assaz avultada para colocar-me acima das atribulações da vida.
Que tal? É ou não uma tigela de maná que me
veio do céu? Eu bem te dizia muitas vezes que tinha fé na minha estrela, e que
estava certo de que não havia de ganhar fortuna pela simples posição de
advogado provinciano.
Mas já te ouço dizer contigo mesmo: Que
tivesse um legado, concebe-se; mas que fosse ele próprio arrecadá-lo, isto é
que eu acho esquisito.
Respondo à tua reflexão:
Podia dar procuração a alguém e ficar
comodamente na corte à espera que lá me fosse ter às mãos a quantia legada por
aquele chorado padrinho. Se não fiz isto foi por virtude de uma cláusula que o
meu referido padrinho incluiu no testamento.
Esta cláusula é a seguinte:
Este legado só será entregue ao meu afilhado
Luís depois que ele tiver, por virtude dos próprios esforços, descoberto em
certo lugar, situado na casa tal, em Pelotas, um segredo que lá conservo.
Deves compreender que eu não podia, estando
na corte, descobrir o segredo de Pelotas.
Por isso embarquei apenas recebi a notícia.
Muitas vezes te falei neste padrinho como o
mais singular e extravagante dos padrinhos. Sobre a condição que ele punha
tinha eu a curiosidade de saber qual era esta nova excentricidade do velho.
E parti.
Ainda não fui a Pelotas, mas tratei de
indagar que casa era aquela e quem residia lá. Disseram-me que a casa era
propriedade de meu padrinho e estava vazia há cinco anos.
Isto aguçou a minha curiosidade.
Decididamente temos um mistério neste
negócio.
O que sobretudo me causa ainda maior assombro
é não haver na cláusula a designação em que lugar da casa se acha o segredo.
Será nas salas, nas alcovas, no terreiro, no teto ou no chão? Não sei. Mas o
legado vale a pena, e eu tenho forças e tenacidade para levar a obra ao cabo.
Disponho-me a partir dentro de alguns dias,
munido de instrumentos e acompanhado do meu guasca.
De tudo o que ocorrer dar-te-ei conta.
Adeus. Não sejas preguiçoso. Escreve-me.
Alberto leu e releu esta carta. Sorriu à ideia
de que Luís se achava envolvido em um mistério de romance. Ele sabia que o
padrinho do advogado era um homem excêntrico, desta longa família que se
ramifica por todas as raças e todos os países.
Direi em duas palavras quem eram os dois
amigos.
Luís, advogado provinciano, como ele próprio
diz, tinha tomado grau na faculdade de São Paulo e tinha vindo advogar na
corte. Fazia um ano que se achava aí sem ter conseguido nome nem fortuna.
Alguma coisa que trouxera ia-se já gastando e o legado do padrinho veio na
melhor ocasião.
Alberto, natural do Rio de Janeiro, era
advogado, como ele, sem nome e sem fortuna, como ele filho da academia de São
Paulo, havendo em tanta harmonia e identidade uma única diferença: era o legado
do padrinho de Luís.
A viagem a Minas feita por Alberto era por
motivo de ir colher informações minuciosas para servir em processo.
O encontro de ambos já o leitor teve notícia
no começo destas linhas.
***
Alberto não respondeu à carta de Luís por não
ter certeza do lugar em que estaria este, se em Porto Alegre, se em Pelotas.
Esperou que da parte do amigo lhe chegassem
comunicações necessárias.
Mas esperou em vão.
No fim de dois meses resolveu escrever uma
carta em duplicata, mandando uma para cada uma das cidades onde Luís podia ser
encontrado.
A carta de Alberto dizia assim:
Alberto a Luís.
— Resolvi escrever-te depois de esperar em
vão uma carta tua. Esta vai em duplicata, uma para Porto Alegre, outra para
Pelotas. Onde quer que estejas lá te há de achar.
Devo crer que estejas em Pelotas, e que o
silêncio se explique pelas ocupações em que estás realmente com a procura desse
segredo do teu finado padrinho.
Eu já sabia de quanta excentricidade era
capaz esse sujeito, mas esta é de mestre, e eu não atino com o fim de toda esta
meada.
Por isso mesmo é que é segredo.
O que for soará.
Peço-te que não te esqueças, se for possível,
de me comunicares os progressos do trabalho, e, quando chegar a ocasião, a
natureza do segredo que faz condição do legado.
Segredo em casa que se não abre há cinco anos...
deve ser coisa misteriosa!
Olha lá; não vás esbarrar com alguma daquelas
surpresas das fantasias alemãs... Quem sabe se o teu padrinho não tinha
comércio com o diabo?
Disse uma tolice, perdoa-me.
Enfim, escreve-me. Sou curioso, como uma
criança. Dize-me o que houver e continua a votar-me aquela amizade antiga.
Alberto escreveu as duas cartas,
subscritou-as e remeteu-as para o correio.
Feito o que, esperou resposta.
Daí a algum tempo recebeu uma carta de Luís.
Dizia ele:
Luís a Alberto.
— É segredo e segredo do diabo. Mas não é por
ora o que pensas. O do padrinho ainda está por descobrir, pela razão de que
ainda não fui a Pelotas. E não penses que é porque não possa. Não; tenho podido
ir. Mas que me prende? perguntas tu.
Vais saber.
Prende-me um anjo...
Não te rias, lê até o fim.
Prende-me um anjo com formas de mulher. Ou
anjo ou o diabo, que tanto importa esta criatura que conseguiu transtornar-me a
razão e fazer do meu coração uma verdadeira ruína a respeito de todos os outros
sentimentos.
Amo, meu Alberto, amo!
A primeira vez que a vi foi em uma noite...
ah! até agora só a tenho visto à noite, pelo que já lhe pus um nome simbólico:
Diana.
Mas, como dizia, foi em uma noite que a vi
pela primeira vez, noite de sexta, noite de luar, noite de sedução: estava
linda, como a irmã que então atravessava a planície celeste, calma e suave,
influindo amor, inspiração, poesia...
Dessa noite para cá fiquei perdido. Bem sabes
como nasce o amor; é de súbito. Eu senti que naquele momento o anjo encarregado
de escrever no céu a minha biografia (porque eu acredito que há anjos biógrafos
ao céu) adicionou ao capítulo do amor o nome de Diana.
Diana! sabes tu que beleza é esta? Como
encanta, como fascina, como seduz? Tu não sabes nada, pobre lorpa, nessa cidade
de lama e de prosa, cativo da prosa e da lama. Aqui, sim; aqui resido com este
serafim, a luz, a vida, a poesia...
Reli o que tinha escrito até aqui e tive ideia
de rasgar. Não irás tu pensar que eu estou doido ou caí na pieguice? Não creias
nada que não seja isto: amo. É a palavra da criação, diz o poeta das Orientais.
Mas deixe-me contar como foi que eu vi e amei
esta mulher. Costumava eu ir tomar chá em casa do major O... meu parente
afastado, bom velho que possui filhas bonitas e de excelentes qualidades.
Ia às oito horas e voltava à meia-noite para
casa.
Ouvia lá falar muitas vezes da viúva Caldas,
mas nunca prestei maior atenção a essa referência, e ouvia como se não ouvisse.
Uma noite, em que fui mais cedo, disseram-me
as filhas do velho que esperavam a viúva Caldas para tomar chá.
Perguntei quem era essa viúva Caldas que eu
não conhecia. Disseram-me que era a viúva de um homem do Norte que para ali
fora há um ano, o qual tinha falecido cinco meses antes. A viúva desde que eu
lá cheguei andava doente e por isso não tinha ido à casa do major.
Mas achava-se boa e ia lá naquela noite, pela
primeira vez que saía depois da convalescença.
Não se trocou a este respeito uma só palavra
mais.
Daí a bocado, estávamos assentados na chácara
cujo portão dava para uma rua, aparecem a alguma distância uns vultos brancos.
Era a viúva e a mãe.
As moças correram a ir buscá-las e eu
acompanhei-as por delicadeza, não podendo supor que essa viúva Caldas fosse a
mulher destinada a mudar completamente o meu destino.
O luar estava claro, suave, límpido.
Quando me aproximei da viúva e troquei com
ela um olhar, senti uma comoção inexprimível. Estive alguns segundos sem
desviar os olhos dos olhos da moça. Ela também não desviava os seus.
Tudo se preparava para que este encontro
fosse decisivo da minha sorte: a noite era das mais adoráveis noites do Sul.
Conversou-se, tomou-se chá e à meia-noite
fomos eu, o major e as filhas deste, acompanhar as visitas até a casa.
Diana (não quero dar-lhe outro nome) pareceu
não ser indiferente aos sentimentos que me inspirou. Também ela parecia
impressionada, comovida. Pela minha parte não sei se disse coisas acertadas
naquela noite.
Daí para cá já a vi dez vezes, e sempre de
noite. Imagine se a impressão produzida durante a noite podia enfraquecer; tem
aumentado antes com força redobrada.
À quinta noite não me pude ter. Procurei um
instante em que lhe pudesse falar a sós, e declarei-lhe indiretamente o que
sentia por ela. Diana, ou respondesse do mesmo modo, ou fosse ilusão minha, o
que é certo é que me disse algumas coisas indiretas assaz explícitas.
Olhe este espécime da nossa conversação:
Dizia eu:
— Quisera ser um coração viúvo.
— Por quê? perguntou ela.
— Porque os corações viúvos se consolam,
respondi.
— Ah!
E suspirou.
É claro ou não?
Ah! eu creio que estou dizendo alguma
extravagância, mas perdoa-me tu que sabes o que é amar, e conheces o meu
coração nestas matérias.
O que te posso afiançar é que nunca amei como
agora, nem mulher alguma se gabou ainda de possuir o meu coração como esta
possui.
Quem dissera, meu Alberto, que vindo buscar
uma fortuna e um segredo, levaria uma mulher, isto é, outro segredo e outra
fortuna? Não estranhes a frase; estou disposto a casar com Diana, haja o que
houver. É paixão doida...
Enfim o vapor está a partir, não posso
demorar mais a carta. Adeus.
Dentro de poucos dias vou para Pelotas para
ver se descubro que segredo é este de meu padrinho... Olha, se é alguma fortuna
enterrada!
Talvez a felicidade me queira proteger agora
de uma vez. Adeus.
***
Um mês correu ainda entre esta carta e a
terceira remetida por Luís ao amigo Alberto.
Assistiremos eu e o leitor aos fatos que o
advogado narrou na terceira carta.
Basta-nos para isso transportarmo-nos para
Porto Alegre, à casa de Luís, vinte e oito dias depois da segunda carta.
O amor de Luís e Diana (conservemos à moça o
nome que lhe dera o namorado) caminhava às mil maravilhas.
A moça correspondera ao sentimento do rapaz,
ao ponto de receber afetuosamente uma declaração positiva de casamento.
Como sempre se encontrassem em casa do major,
onde Diana ia tomar chá todas as noites, nunca Luís fora a casa dela.
Um dia, porém, em que ele manifestou desejo
de lá ir, Diana disse-lhe que fosse, pediu-lhe, fez até uma intimação.
No meio de tudo isto, o legado e o segredo
tinham ficado esquecidos inteiramente.
Na manhã do dia marcado Luís levantou-se
alegre como andorinha em tempo de verão. Vestiu-se, perfumou-se, encouraçou-se
para todas as comoções e partiu.
Ele levava em mente fazer nesse dia o pedido
à velha. Sabia por boca de Diana que ela olhava esse amor com bons olhos.
Quando se aproximava da porta de Diana tirou
o relógio e viu que se adiantara duas horas. Eram dez e a entrevista devia ter
lugar ao meio-dia.
Quis voltar para esperar a hora
convencionada. Mas a vista do jardim o desanimou. Teve uma tentação: esperar no
jardim que batesse a hora decisiva da sua existência e da sua felicidade.
Hesitou alguns minutos.
Depois, fazendo um esforço, como a porta
estivesse aberta, entrou.
Seus primeiros passos foram de receio. A
areia rangia debaixo dos pés, e podia despertar alguém, o que seria estragar o
romance.
A fortuna deparou-lhe uma espécie de
caramanchel, naturalmente construído pela rama de quatro árvores plantadas em
quadrado.
Luís encaminhou-se para lá.
A casa estava silenciosa; as janelas
fechadas; tudo parecia dormir ainda. Ele sabia que ela se levantava tarde, mas
não pôde supor que às dez horas da manhã ainda estivesse na cama.
É certo que a manhã era das mais frias e
tinha chovido na véspera.
Luís sentou-se em um banquinho de pedra que
havia embaixo do caramanchel.
Descalçou as luvas, guardou-as no bolso,
tirou um cigarro, concertou-o, riscou um fósforo, acendeu o cigarro e começou a
fumá-lo tranquilamente.
Quem o visse não diria que era um homem que
dali a duas horas podia estar casado... em promessa.
Ele mesmo fez algumas reflexões análogas a
esta. Naturalmente chamado ao terreno das ideias próprias de um homem que vai
pedir uma mulher em casamento, Luís deixou-se ficar no campo vasto da fantasia
e da memória.
A fantasia para o futuro, a memória para o
passado.
O passado era a vida malfadada, erma de
afeições, cheia de necessidades. Era a luta dolorosa entre a vida material e as
aspirações do espírito, luta de que, por um lance de sorte, achava-se agora
salvo, podendo gozar de um amor e de uma fortuna.
O futuro era o gozo dessa fortuna e desse
amor. O advogado pintava já na imaginação o que faria quando se visse na posse
de Diana e do legado. Faltava-lhe ainda o segredo que, se não podia ser uma
mulher, podia muito bem ser sua fortuna ainda, o que seria uma fortuna
acumulada.
Nessas explicações do passado e do futuro
lembrou-se do amigo que ficara na corte. Ocorreu-lhe então que de há muito
tempo lhe não escrevia. Não queria de modo algum ser acusado de ingrato, e
resolveu, apenas acabada a entrevista, escrever para o Rio de Janeiro. O vapor
partia no dia seguinte.
Durante este longo tempo de espera, Luís
fumou três cigarros, e consultou vinte vezes o relógio.
Os ponteiros corriam lentamente como uma
agonia.
Luís levantava-se, espiava por entre as
folhagens e via as janelas ainda fechadas.
Dar-se-á caso que ainda dormissem ou teriam saído?
Esta pergunta feita a si mesmo trouxe ao
espírito do namorado uma dúvida cruel. Se tivessem saído seria uma desilusão.
Nisto sentiu passos.
Voltou-se para o lado de onde partia o rumor
da areia calcada por pés vagarosos.
Viu dois vestidos de mulher.
Imaginou logo que seriam Diana e sua mãe.
Naturalmente tinham deixado a cama nesse
momento e andavam passeando no jardim, fazendo apetite.
Luís lembrou-se que ouvira algumas vezes a
Diana dizer que tinha este hábito de longos meses.
Melhor, pensou ele, causo-lhes a surpresa de
me verem aqui, e é mais uma prova do amor que dou a Diana.
E comprimiu a respiração para não ser
pressentido e aparecer como nos romances o herói avisado por algum bilhete
misterioso.
As duas aproximavam-se cada vez mais.
Luís deixou que elas se aproximassem bastante
para aparecer então.
Entretanto quis ainda uma vez cravar os olhos
naquela que era já senhora do coração.
Arredou cautelosamente as folhas para melhor
ver e colou os olhos à abertura.
As duas passavam nesse momento.
Luís soltou um grito e recuou.
As mulheres espantadas correram para o
caramanchel; mas, ao mesmo tempo, Diana, mal conheceu o rapaz, correu para
casa.
Ficou a velha diante de Luís.
Qual era a significação do grito do rapaz?
Era que o sonho que durante tantos dias
criara e idealizara desfizera-se ali todo e de uma vez. Diana, a jovem, a bela,
a sedutora mulher que tanto impressionara o advogado, era uma mulher amarela,
sem beleza, sem mocidade; sem encanto algum. Todos os encantos dela eram artifícios
comprados e aplicados diariamente com uma paciência de feia pretensiosa.
Luís nunca a vira senão à noite, porque
Diana, apesar dos artifícios, não queria expor-se à luz meridiana. Ainda assim
pudera passar. Mas, luz do dia, e sem os socorros da arte, caminhando em um
jardim fechado, na plena confiança de quem não esperava àquela hora semelhante
visita, não era feia, era horrenda!
Calcula-se qual não seria o desencanto do
rapaz. Aquele grito fora o grito do amor moribundo.
A velha mãe da viúva, quando viu Luís, ficou
um tanto atrapalhada. Parece que ela era cúmplice nas manhas da vaidosa filha.
Mas, como não se tratasse dela pessoalmente, pôde falar ao rapaz, rindo e sem
ocultar a natural surpresa de encontrá-lo ali.
Luís respondeu que ia visitá-la e esperava a
hora marcada.
A velha convidou-o a entrar, mas o rapaz
pretextou um incômodo, explicando o grito que dera, e despediu-se.
Instâncias, pedidos, rogos, tudo foi inútil.
O rapaz saiu.
Dali para casa os seus passos eram incertos,
como os de um ébrio. Já não era amor que sentia, visto que o amor fora dedicado
à criatura que ele vira à noite e aparentemente bela. Era mal-estar do espírito
que por tanto tempo se iludira.
Quando chegou à casa fez esta reflexão
filosófica:
— Nem sempre os palpites são vãos; se eu não
fosse esperar no jardim não escapava tão milagrosamente ao perigo de carregar
todo o resto de minha vida com um...
Não acabou a reflexão porque nesse momento
apresentou-se-lhe o criado perguntando quando partia para Pelotas.
— Já, respondeu Luís.
***
Tempos depois recebia Alberto na corte a
terceira carta de Luís.
Luís a Alberto.
— Esta carta há de chegar às tuas mãos poucos
dias antes de mim. Estou em Porto Alegre em preparativos de viagem.
Podia guardar-me para contar-te de viva voz
tudo o que me acontecesse depois da última que te escrevi (há um século?), mas
prefiro dar-te já a grande notícia.
Naturalmente supões que vou chegar à corte
casado com a bela Diana? Engano positivo; vou solteiro, como vim. E vou
explicar-te a razão.
Tive ocasião de ver à luz do sol a mulher que
eu só vira ao clarão da lua ou das velas da sala. Que abismo entre ambas!
Passei do anjo ao dragão! A mulher era feia como um demônio; a noite e a tinta
eram a solução daquela charada viva. Dei graças a Deus quando fiz a descoberta.
À vista te contarei mais detalhadamente o
episódio desta descoberta, que só difere de Colombo em não ser de um novo
mundo, mas de um velho mundo.
Desenganado dos meus amores, decidi partir
para Pelotas.
Este episódio não é menos interessante.
Ouve-me.
Cheguei a Pelotas e fui examinar a casa que
há cinco anos não recebia um bocado de ar. Foram precisos alguns dias para que
pudesse deixar entrar lá alguém.
Quando ficou em estado de receber-me, lá fui
com o meu criado, e preparei tudo para proceder ao exame necessário.
Tive o cuidado de consultar as paredes para
ver se eram ocas e podiam, portanto, encerrar alguma coisa que constituísse o
segredo de que falava meu padrinho.
Nada.
Marquei um dia e começamos os nossos
trabalhos.
Virei e revirei a casa. Comecei por escavar o
chão, mas depois de pesados trabalhos consegui a certeza de que no chão não
havia segredo de qualidade alguma.
Passei às paredes, porque, apesar do exame a
que procedera de começo, podia haver algum ponto em que estivesse o tal
segredo; mas qual!
Supus até que o segredo se achasse na parte
da parede onde se achava pendurado um retrato a óleo de meu padrinho. Nada
havia. Fui ao teto; fiz arrancar tábua por tábua, e depois de longos dias de
exame nada encontrei.
Em resumo, nem as paredes, nem o chão, nem o
teto, nem o quintal, em parte alguma encontrei o segredo de meu padrinho.
Então uma ideia dolorosa assaltou-me o
espírito. Meu padrinho era excêntrico; ora, quem sabe se a maior excentricidade
dele não seria a de me fazer procurar em vão um segredo imaginário, até
convencer-me de que não valia a pena procurá-lo para receber um bocado de
dinheiro?
Isto era muito provável e eu senti-me abalado
com esta ideia.
Mas, passado o primeiro abalo, voltei de novo
às minhas pesquisas. Esmerilhei, foi tudo vão.
Confesso que tive um acesso de matar-me.
Entretanto, era verdade; nada tinha
encontrado; o segredo do meu padrinho fora uma brincadeira. Como ele se havia
de rir naquele momento na eternidade!
Determinei voltar logo e logo para Porto
Alegre, disposto a não receber nada e a voltar para a corte, a fim de começar
de novo a vida de advogado.
Na ocasião em que arranjávamos as malas, vi
que entre os objetos que o meu criado enrolava existia o retrato de meu padrinho.
— Para que trouxeste isso? perguntei eu.
— Eu mesmo não sei, disse o criado.
Tive então uma ideia, súbita.
Tomei o quadro das mãos do criado, e, com o auxílio de uma faca, destas
de que usam os guascas, abri o quadro.
Caiu de dentro um papel dobrado.
Apanhei o papel com a mão trêmula.
Seria aquele o segredo?
Abri o papel e pude ler a custo as letras
apagadas pelo tempo.
Queres saber o que dizia o papel?
Lê:
Conselho a meu afilhado. — Nunca te fies em
aparências.
Se eu tivesse o segredo antes de ver Diana!...
Enfim estou hoje de posse de uma fortuna e de
uma lição que me custaram alguma coisa.
Até breve!
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