Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
— Padrinho, vosmecê assim fica cego.
— O quê?
— Vosmecê fica cego; lê que é um desespero.
Não, senhor, dê cá o livro.
Caetaninha tirou-lhe o livro das mãos. O padrinho
deu uma volta, e foi meter-se no gabinete, onde lhe não faltavam livros;
fechou-se por dentro e continuou a ler. Era o seu mal; lia com excesso, lia de
manhã, de tarde e de noite, ao almoço e ao jantar, antes de dormir, depois do
banho, lia andando, lia parado, lia em casa e na chácara, lia antes de ler e
depois de ler, lia toda a casta de livros, mas especialmente direito (em que
era graduado), matemáticas e filosofia; ultimamente dava-se também às ciências
naturais.
Pior que cego, ficou aluado. Foi pelos fins
de 1873, na Tijuca, que ele começou a dar sinais de transtorno cerebral; mas,
como eram leves e poucos, só em março ou abril de 1874 é que a afilhada lhe
percebeu a alteração. Um dia, almoçando, interrompeu ele a leitura para lhe
perguntar:
— Como é que eu me chamo?
— Como é que padrinho se chama? repetiu ela
espantada. Chama-se Fulgêncio.
— De hoje em diante, chamar-me-ás Fulgencius.
E, enterrando a cara no livro, prosseguiu na
leitura. Caetaninha referiu o caso às mucamas, que lhe declararam desconfiar
desde algum tempo, que ele não andava bom. Imagine-se o medo da moça; mas o
medo passou depressa para só deixar a piedade que lhe aumentou a afeição.
Também a mania era restrita e mansa; não passava dos livros. Fulgêncio vivia do
escrito, do impresso, do doutrinal, do abstrato, dos princípios e das fórmulas.
Com o tempo chegou, não já à superstição, mas à alucinação da teoria. Uma de
suas máximas era que a liberdade não morre onde restar uma folha de papel para
decretá-la; e um dia, acordando com a ideia de melhorar a condição dos turcos,
redigiu uma constituição, que mandou de presente ao ministro inglês, em
Petrópolis. De outra ocasião, meteu-se a estudar nos livros a anatomia dos
olhos, para verificar se realmente eles podiam ver, e concluiu que sim.
Digam-me se, em tais condições, a vida de
Caetaninha podia ser alegre. Não lhe faltava nada, é verdade, porque o padrinho
era rico. Foi ele mesmo que a educou, desde os sete anos, quando perdeu a
mulher; ensinou-lhe a ler e escrever, francês, um pouco de história e
geografia, para não dizer quase nada, e incumbiu uma das mucamas de lhe ensinar
crivo, renda e costura. Tudo isso é verdade. Mas Caetaninha fizera quatorze
anos; e, se nos primeiros tempos bastavam os brinquedos e as escravas para diverti-la,
era chegada a idade em que os brinquedos perdem de moda e as escravas de
interesse, em que não há leituras nem escrituras que façam de uma casa
solitária na Tijuca um paraíso. Descia algumas vezes, raras, e de corrida; não
ia a teatros nem bailes; não fazia nem recebia visitas. Quando via passar na
estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animais,
e deixava-a ir com eles, ficando-lhe o corpo, ao pé do padrinho, que continuava
a ler.
Um dia, estando na chácara, viu parar ao
portão um rapaz, montado numa bestinha, e ouviu que lhe perguntava se era ali a
casa do doutor Fulgêncio.
— Sim, senhor, é aqui mesmo.
— Podia falar-lhe?
Caetaninha respondeu que ia ver; entrou em
casa, e foi ao gabinete, onde achou o padrinho remoendo, com a mais voluptuária
e beata das expressões, um capítulo de Hegel. — Mocinho? Que mocinho? —
Caetaninha disse-lhe que era um mocinho vestido de luto.
— De luto? repetiu o velho doutor fechando
precipitadamente o livro; há de ser ele.
Esquecia-me dizer (mas há tempo para tudo)
que, três meses antes, falecera um irmão de Fulgêncio, no Norte, deixando um
filho natural. Como o irmão, dias antes de morrer, lhe escrevera recomendando o
órfão que ia deixar, Fulgêncio mandou que este viesse para o Rio de Janeiro.
Ouvindo que estava ali um mocinho de luto, concluiu que era o sobrinho, e não
concluiu mal. Era ele mesmo.
Parece que até aqui nada há que destoe de uma
história ingenuamente romanesca: temos um velho lunático, uma mocinha solitária
e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho. Para não descer da
região poética em que nos achamos, deixo de dizer que a mula em que o Raimundo
veio montado, foi reconduzida por um preto ao alugador; passo também por alto
as circunstâncias da acomodação do rapaz, limitando-me a dizer que, como o tio,
à força de viver lendo, esquecera inteiramente que o mandara buscar, nada havia
em casa preparado para recebê-lo. Mas a casa era grande e abastada; uma hora
depois, estava o rapaz aposentado num lindo quarto, donde podia ver a chácara,
a cisterna antiga, o lavadouro, basta folha verde e vasto céu azul.
Creio que ainda não disse a idade do hóspede;
tem quinze anos e um ameaço de buço; é quase uma criança. Logo, se a nossa
Caetaninha ficou alvoroçada, e as mucamas andam de um lado para outro, espiando
e falando do "sobrinho de sinhô velho que chegou de fora", é porque a
vida ali não tem outros episódios, não porque ele seja homem feito. Essa foi
também a impressão do dono da casa; mas, aqui vai a diferença. A afilhada não
advertia que o ofício do buço é virar bigode, ou, se pensou nisso, fê-lo tão
vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. Não assim o velho Fulgêncio.
Compreendeu este que havia ali a massa de um marido, e resolveu casá-los; mas
viu também que, a menos de lhes pegar nas mãos e mandar que se amassem, o acaso
podia guiar as coisas por modo diferente.
Uma ideia traz outra. A ideia de os casar
pegou por um lado com uma de suas opiniões recentes. Era esta que as
calamidades ou os simples dissabores nas relações do coração provinham de que o
amor era praticado de um modo empírico; faltava-lhe a base científica. Um homem
e uma mulher, desde que conhecessem as razões físicas e metafísicas desse
sentimento, estariam mais aptos a recebê-lo e nutri-lo com eficácia, do que
outro homem e outra mulher que nada soubessem do fenômeno.
“Os meus pequenos estão verdes, dizia ele
consigo: tenho três a quatro anos diante de mim, e posso começar desde já a
prepará-los. Vamos com lógica; primeiro os alicerces, depois as paredes, depois
o teto... em vez de começar pelo teto... Dia virá em que se aprenda a amar como
se aprende a ler... Nesse dia...”
Estava atordoado, deslumbrado, delirante. Foi
às estantes, desceu alguns tomos, astronomia, geologia, fisiologia, anatomia,
jurisprudência, política, linguística, abriu-os, folheou-os, comparou-os,
extratou daqui e dali, até formular um programa de ensino. Compunha-se este de
vinte capítulos, nos quais entravam as noções gerais do universo, uma definição
da vida, demonstração da existência do homem e da mulher, organização das
sociedades, definição e análise das paixões, definição e análise do amor, suas
causas, necessidades e efeitos. Em verdade, as matérias eram crespas; ele
entendeu torná-las dóceis, tratando-as em frase corriqueira e chã, dando-lhes
um tom puramente familiar, como a astronomia de Fontenelle. E dizia com ênfase
que o essencial da fruta era o miolo, não a casca.
Tudo isso era engenhoso; mas aqui vai o mais
engenhoso. Não os convidou a aprender. Uma noite, olhando para o céu, disse que
as estrelas estavam brilhando muito; e o que eram as estrelas? acaso sabiam
eles o que eram as estrelas?
— Não, senhor.
Daqui a iniciar uma descrição do universo era
um passo. Fulgêncio deu o passo, com tal presteza e naturalidade, que os deixou
encantados e eles pediram a viagem toda.
— Não, disse o velho; não esgotemos tudo
hoje, nem isto se entende bem senão devagar; amanhã ou depois...
Foi assim, sorrateiramente, que ele começou a
executar o plano. Os dois alunos, assombrados com o mundo astronômico,
pediam-lhe todos os dias que continuasse, e, posto que no fim dessa primeira
parte Caetaninha ficasse um tanto confusa, ainda assim quis ouvir as outras
coisas que o padrinho lhe prometeu.
Não digo nada da familiaridade entre os dois
alunos, por ser coisa óbvia. Entre quatorze e quinze anos a diferença é tão
pequena, que os portadores das duas idades, não tinham mais que dar a mão um ao
outro. Foi o que aconteceu.
No fim de três semanas pareciam ter sido
criados juntos. Só isto bastava a mudar a vida de Caetaninha; mas Raimundo
trouxe-lhe mais. Não há dez minutos, vimo-la olhar com saudade as cavalgadas de
homens e damas que passavam na estrada. Raimundo matou-lhe a saudade,
ensinando-lhe a montaria, apesar da relutância do velho, que temia algum
desastre; mas este cedeu e alugou dois cavalos. Caetaninha mandou fazer uma
linda amazona, Raimundo veio à cidade comprar-lhe as luvas e um chicotinho, com
o dinheiro do tio — já se sabe — que também lhe deu as botas e o demais aparelhos
masculinos. Daí a pouco era um gosto vê-los ambos, galhardos e intrépidos,
abaixo e acima da montanha.
Em casa, brincavam à larga, jogavam damas e
cartas, cuidavam de aves e plantas. Brigavam muita vez; mas, segundo as
mucamas, eram brigas de mentira, só para fazerem as pazes depois. Era o pico do
arrufo. Raimundo vinha às vezes à cidade, a mandado do tio. Caetaninha ia
esperá-lo ao portão, espiando ansiosa. Quando ele chegava, brigavam, porque ela
queria tirar-lhe os maiores embrulhos, a pretexto de que ele vinha cansado, e
ele queria dar-lhe os mais leves, alegando que ela era fraquinha.
No fim de quatro meses, a vida era totalmente
outra. Pode-se até dizer que só então é que Caetaninha começou a usar rosas no
cabelo. Antes disso vinha muita vez despenteada para a mesa do almoço. Agora,
não só se penteava logo cedo, mas até, como digo, trazia rosas, uma ou duas;
estas eram, ou colhidas na véspera, por ela mesma, e guardadas em água, ou na
própria manhã, por ele, que ia levar-lhas à janela. A janela era alta; mas
Raimundo, pondo-se na ponta dos pés, e levantando o braço, conseguia dar-lhe as
rosas em mão. Foi por esse tempo que ele adquiriu o sestro de mortificar o
buço, puxando-o muito de um e outro lado. Caetaninha chegava a bater-lhe nos
dedos, para lhe tirar tão mau costume.
Entretanto, as lições continuavam
regularmente. Já tinham uma ideia geral do universo, e uma definição da vida,
que nenhum deles entendeu. Assim chegaram ao quinto mês. No sexto, começou a
demonstração da existência do homem. Caetaninha não pôde suster o riso, quando
o padrinho, expondo a matéria, perguntou-lhes se eles sabiam que existiam e por
quê; mas ficou logo séria, e respondeu que não.
— Nem você?
— Nem eu, não, senhor, concordou o sobrinho.
Fulgêncio iniciou uma demonstração em regra,
profundamente cartesiana. A seguinte lição foi na chácara. Chovera muito nos
dias anteriores; mas o sol agora alagava tudo de luz, e a chácara parecia uma
linda viúva, que troca o véu do luto pelo do noivado. Raimundo, como se
quisesse copiar o sol (copiam-se naturalmente os grandes), despedia das pupilas
um olhar vasto e longo, que Caetaninha recebia, palpitando, como a chácara.
Fusão, transfusão, difusão, confusão e profusão de seres e de coisas.
Enquanto o velho falava, reto, lógico, vagaroso,
curtido de fórmulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dois alunos faziam
trinta mil esforços para escutá-lo, mas vinham trinta mil incidentes
distraí-los. Foi a princípio um casal de borboletas que brincavam no ar.
Façam-me o favor de dizer o que é que pode haver extraordinário num casal de
borboletas? Concordo que eram amarelas, mas esta circunstância não basta a
explicar a distração. O fato de voarem uma atrás da outra, ora à direita, ora à
esquerda, ora abaixo, ora acima, também não dá a razão do desvio, visto que
nunca as borboletas voaram em linha reta, como simples militares.
— O entendimento, dizia o velho, o
entendimento, segundo eu já expliquei...
Raimundo olhou para Caetaninha, e achou-a
olhando para ele. Um e outro pareciam confusos e acanhados. Ela foi a primeira
que baixou os olhos ao regaço. Depois, levantou-os, a fim de os levar a outra
parte, mais remota, o muro da chácara; na passagem, como os de Raimundo ali
estivessem, ela encarou-os o mais rapidamente que pôde. Felizmente, o muro
apresentava um espetáculo que a encheu de admiração: um casal de andorinhas
(era o dia dos casais) saltitava nele, com a graça peculiar às pessoas aladas.
Saltitavam piando, dizendo coisas uma à outra, o que quer que fosse, talvez
isto — que era bem bom não haver filosofia nos muros das chácaras. Se não
quando, uma delas voou, provavelmente a dama, e a outra, naturalmente o garção,
não se deixou ficar atrás: esticou as asas e seguiu o mesmo caminho. Caetaninha
desceu os olhos à grama do chão.
Quando a lição acabou, daí a alguns minutos,
ela pediu ao padrinho que continuasse, e, recusando este, tomou-lhe o braço e
convidou-o a dar um giro na chácara.
— Está muito sol, contestou o velho.
— Vamos pela sombra.
— Faz muito calor.
Caetaninha propôs irem continuar na varanda;
mas o padrinho disse-lhe misteriosamente que Roma não se fez num dia, e acabou
declarando que só dois dias depois continuaria a lição. Caetaninha recolheu-se
ao quarto, esteve ali três quartos de hora fechada, sentada, à janela, de um
lado para outro, procurando as coisas que tinha na mão, e chegando ao cúmulo de
ver-se a si mesma, cavalgando, estrada acima, ao lado de Raimundo. De uma vez
aconteceu-lhe ver o rapaz no muro da chácara; mas atentou bem, reconheceu que
era um par de besouros que zumbiam no ar. E dizia um deles ao outro:
— Tu és a flor da nossa raça, a flor do ar, a
flor das flores, o sol e a lua da minha vida.
Ao que respondia o outro:
— Ninguém te vence na beleza e na graça; o
teu zumbir é um eco das falas divinas; mas, deixa-me... deixa-me...
— Por que deixar-te, alma destes bosques?
— Já te disse, rei dos ares puros, deixa-me.
— Não me fales assim, feitiço e gala das
matas. Tudo por cima e em volta de nós está dizendo que me deves falar de outra
maneira. Conheces a cantiga dos mistérios azuis?
— Vamos ouvi-la nas folhas verdes da
laranjeira.
— As da mangueira são mais bonitas.
— Tu és mais linda que umas e outras.
— E tu, sol da minha vida?
— Lua do meu ser, eu sou o que tu quiseres...
Era assim que os dois besouros falavam. Ela
ouviu-os cismando. Como eles desaparecessem, ela entrou, viu as horas e saiu do
quarto. Raimundo estava fora; ela foi esperá-lo ao portão, dez, vinte, trinta,
quarenta, cinquenta minutos. Na volta disseram pouco; uniram-se e separaram-se
duas ou três vezes. Da última vez foi ela que o trouxe à varanda, para
mostrar-lhe um enfeite que julgava perdido e acabava de achar. Façam-lhe a
justiça de crer que era pura mentira. Entretanto, Fulgêncio antecipou a lição;
deu-a no dia seguinte, entre o almoço e o jantar. Nunca a palavra lhe saiu tão
límpida e singela. E assim devia ser; tratava-se da existência do homem,
capítulo profundamente metafísico, em que era preciso considerar tudo e por
todos os lados.
— Estão entendendo? perguntava ele.
— Perfeitamente.
E a lição seguiu até o fim. No fim, deu-se a
mesma coisa da véspera; Caetaninha, como se tivesse medo de ficar só, pediu-lhe
para continuar ou passear; ele recusou uma e outra coisa, bateu-lhe
paternalmente na cara, e foi encerrar-se no gabinete.
"Para a semana", pensava o velho
doutor, dando volta à chave, "para a semana entro na organização das
sociedades; todo o mês que vem e o outro é para a definição e classificação das
paixões; em maio, passaremos ao amor... já será
tempo..."
Enquanto ele dizia isto, e fechava a porta,
alguma coisa ressoava do lado da varanda — um trovão de beijos, segundo
disseram as lagartas da chácara; mas, para as lagartas qualquer pequeno rumor
vale um trovão. Quanto aos autores do ruído nada positivo se sabe. Parece que
um maribondo, vendo Caetaninha e Raimundo unidos nessa ocasião, concluiu da
coincidência para a consequência, e entendeu que eram eles; mas um velho
gafanhoto demonstrou a inanidade do fundamento, alegando que ouvira muitos
beijos, outrora, em lugares onde nem Raimundo nem Caetaninha pusera os pés.
Convenhamos que este outro argumento não prestava para nada; mas, tal é o
prestígio de um bom caráter, que o gafanhoto foi aclamado como tendo ainda uma
vez defendido a verdade e a razão. E daí pode ser que fosse assim mesmo. Mas um
trovão de beijos? Suponhamos dois; suponhamos três ou quatro.
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