11/03/2017

História rústica (Conto), de Virgílio Várzea


História rústica

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I 
Era já noite alta quando o Zé Lírio transpôs a porteira, bêbedo a cair. Recolhia das Areias, do engenho do Gaia, ainda àquela hora aceso e ruidoso, onde uma multidão bailava e ria, numa alegria campestre, celebrando as bodas da Josefina, uma das filhas mais novas do velho lavrador. A rapariga casara ao entardecer, sob um poente de púrpura e o dobrar dos canários nas ramagens dos caminhos. O noivo era um primo, ausente desde anos, longe no Rio Grande do Sul, de onde chegara havia semanas a visitar a família. Moreno e robusto, o rapaz encantava, pelo porte hercúleo, o sorriso límpido, o brilho negro dos olhos, a cor quente e viril do rosto tinto pelo sol do mar. Crescera e se fizera homem como remador, no rude serviço da barra, onde ganhara algum dinheiro, passando depois a contramestre de iate. Mal chegara ao sítio, apaixonara-se pelos cabelos dourados da prima, os seus olhos azuis de longos cílios bastos, os dentes alvíssimos, o corpo alto e primaveril, de amplas ancas virginais. A prima correspondera-lhe logo às carícias másculas, abandonando para sempre o Zé Lírio, coitado, que a adorava loucamente, desde muitos anos. E, ajustado o casamento, tudo se consumara naquele sábado.

E ali, agora, numa angústia, na grande dor do coração apunhalado, o Zé Lírio não pôde dar mais um passo: tropeçante, as pernas trêmulas, agarrando-se às varas da estreita cerca que ia dar ao terreiro separando o vasto pasto ao lado, foi-se arrastando até os degraus de pedra da entrada, onde caiu, preso dos soluços e das lágrimas apesar da carga de álcool, a cabeça pendida, numa atitude alquebrada...

II 
Todo aquele dia levara a beber, numa longa inquietação, a cruzar a estrada, por defronte do engenho, onde havia uma animação desusada. Às vezes, sem ninguém o ver, dando volta pela Várzea, metia se no extenso mandiocal da empena, que ia até o campo, e ficava horas e horas a espreitar, agachado sob as ramas verdes tremendo ao vento. Daí, por debaixo das frondes do laranjal e do cafezal em redor, entre os troncos eretos, descortinava as paredes barreadas dos fundos e o terreno arenoso onde a criação se agitava vivamente, cacarejando sob a luz de ocre ardente. Na varanda linguarejava-se, numa algazarra adorável. De vez em quando, raparigas da vizinhança, que tinham ido ajudar os preparativos da festa, e a Josefina, atravessavam, num rumor alegre e chalrando, para os lados da fonte. No cercado da horta, saias brancas engomadas fulguravam ao sol.

Então, enternecido e acometido de dolorosa saudade, entrou a lembrar-se dos tempos felizes em que começou a frequentar o engenho. Fora por umas farinhadas, havia dez anos, tinha ele dezoito. Um dos filhos do Gaia adoecera das bexigas e ele fora ajudar a fornear. Era num inverno de grande geada. Em todos os cantos tiritava-se. E as raparigas, que raspavam a mandioca, logo ao escurecer iam empoitar-se para ao pé do forno, junto às brasas dos toros, cujas labaredas vermelhas e risonhas aqueciam e clareavam a casa, mais que as chamazinhas mortiças das antigas candeias de azeite, ardendo penduradas aos altos paus do aparelho. E a Josefina, que andava ainda pelos doze anos, mas muito desenvolvida, com os seiozinhos nascentes espetando o largo corpete de chita, os lindos olhos de um azul úmido e novo, a cabeça coroada de esplêndidas meadas de ouro caindo-lhe pelas espáduas ebúrneas até a curva deliciosa e escultural dos quadris — entrou a preocupar o seu coração, ainda virgem e são como as estrelas, dominando-o, imprimindo-lhe sensações e sonhos que lhe faziam pulsar mais forte o sangue nas veias. Nascera-lhe então uma grande alegria, uma grande esperança, com estremecimentos nervosos, as impetuosidades meigas dos que acordam para o amor. A rapariga, na intimidade do trabalho e naquele conchego magnífico e constante dos engenhos, pelas invernias bravas, portas fechadas ao leste cortante desde a tardinha olhava-o sempre afetuosamente, sorrindo, admirando-lhe o tórax rijo e socado de roceiro, cujos braços possantes, durante as longas fornadas, moviam a pá sem descanso. Ele olhava-a também, timidamente, furtivamente, numa imensa candura de cão. E todas as noites os seus olhares voavam de um para o outro, com inefável ternura, à luz da fornalha crepitante...

Mas decorreram os meses, a mandioca acabou. O trabalho daquele ano findara. A sua paixão, porém, tornara-se mais intensa, e ele, muito estimado pelo Gaia e a família, não saía do engenho, frequentando-o à noite, nas palestras carinhosas dos serões. No ano seguinte, pelas novas farinhadas, já a afeição de ambos tinha uma reciprocidade mais íntima; falavam-se a sós, sem os acanhamentos, as hesitações dos primeiros tempos; e, a certa hora, de dia, davam-se rendez-vous ingênuos à sombra das ramagens, no pomar, ou junto às pedras da fonte, mutuando confidências infinitas, desviando-se os olhares, num embaraço rústico que os tornava escarlates, apesar da frescura que se erguia do espelho verde d'água onde, muitas vezes, o salto inesperado de uma rã os fazia debandar, num temor.

E fora dentro daquela horta, que ele estava agora a contemplar enternecido, que ela lhe dera o primeiro beijo, uma manhã de festa, quando colhia rosas para Nossa Senhora. Ainda lá estava, cobrindo toda uma parte da pequena cerca, erguida vitoriosamente para o céu nos braços frondentes e altos do cinamomo, com as suas inumeráveis corolas amarelas radiando como astros, a velha roseira da Índia que tanto os cobrira com o seu esplendor e fragrância. Como a sua vida correra plácida e feliz, então!...

E, num desfalecimento e numa angústia, rompia a chorar por momentos; depois erguia-se, numa fúria, os olhos raiados de sangue, os punhos cerrados, ameaçando a casa por entre as verduras. E afastava-se, resmungando, num nervosismo, quebrando brutalmente com os pés a rama tenra que lhe impedia o caminho...

III 
À meia tarde, quando começavam a afluir ao engenho os convidados, Zé Lírio encaminhou-se para a venda do Justino, na Rua Velha, por onde tinha de passar o noivado. Nesse momento entravam a se aglomerar à porta os primeiros rapazes para a costumada algazarra da noite. O Zé entrou praguejando, todo sujo, os cabelos emaranhados, chapéu carregado sobre a fronte, as feições amarradas, e, dando “boas tardes” a todos, foi sentar-se a um canto, pedindo cachaça. Tinha a larga face cavada, engelhada, a barba revolta, e os olhos reluziam, negros e inchados nas órbitas, com uma luz desvairada. De repente, recaiu num silêncio e, com o braço apoiado ao balcão, parecia dormitar. Ninguém ousava falar alto, temendo-lhe as amplas espáduas possantes. Apenas alguns, mais afastados, comentavam baixo o “caso” do pobre rapaz, com palavras de compaixão e afeto.

Mas, subitamente, as crianças que andavam a traquinar no terreiro, romperam a gritar, num alarido infantil:

— Olha o casamento! Olha o casamento!

Todos correram para a porta, quando o Zé Lírio ergueu-se, de um salto, de faca em punho, procurando investir para a estrada, aos berros:

— Ah! que os mato!... Canalha!...

Foi uma debandada, uma balbúrdia de mil demônios. Mas o Justino, que tinha uns músculos de touro, um homenzarrão, outrora tropeiro e domador, pulou-lhe em cima, com uma presteza de gato, e agarrou-o de um ímpeto, enlaçando-o pelo tórax e empurrando-o, aos trambolhões, para o fundo da venda.

Agora, de toda a parte acudiam pessoas.

No préstito festivo, enfrentando a casa já de volta da igreja, houve como um frêmito, uma perturbação que o fez estacar, empalidecendo a todos, em presença do motim. O noivo conservava-se, porém, impassível, hercúleo e ereto no seu fraque preto cheio de dobras, mas a seu lado, a noiva parecia trêmula e de cera, sob o tule tênue do véu.

No ajuntamento que se adensara em volta, vozes clamavam:

Não é nada, gente! É o Zé Lírio com a cana!

O préstito recomeçou a sua marcha, enquanto lá nos fundos da venda o rapaz, num desatino e colérico, tentava furiosamente desprender-se dos braços poderosos do outro.

À noite, já de todo acomodado, o Zé Lírio soltara-se para as Areias. A lua cheia mostrava o disco além, por cima dos montes da cachoeira, lavorada e branca como uma salva de prata, voltada para os campos, vertendo um polvilho de claridade. O rio, lá embaixo, no seio chato da planície, estendia uma larga faixa rutilante de níquel, comida aqui e ali pelo mangal denso das margens. Nos maciços de folhagens, cujos cimos escorriam umidade láctea, a brisa álgida do norte gemia melancolicamente. Do alto espaço azulado, as estrelas lançavam cintilações de diamantes em poeiras inumeráveis. E jamais a profundidade dos céus pareceu conter mais densa nuvem de pó luminoso.

O Zé seguia, de cabeça inclinada, pela fita clara e arenosa do caminho correndo entre sebes, ruminando a sua dor no cruel despedaçamento de todo o seu ser. E essa noite admirável, sob a qual caminhava com o desespero no coração, parecia-lhe pungitivamente uma tremenda ironia da Natureza, sempre indiferente e inabalável às coisas humanas!

Ao descer o Caminho Novo, depois da chama de cólera em que ardera, uma nostalgia sem nome varou-lhe a alma, ao avistar ao longe a profusa iluminação do engenho, destacando saudosamente por entre a verdura. Na encruzilhada, quase ao pé da porteira estacou, ao deparar-se-lhe multidão enorme, homens e mulheres que se apinhavam no terreiro, banhado pelas luzes derramando-se das janelas, de onde lhe chegava aos ouvidos o rumor compassado da dança de envolta com os sons roufenhos de uma gaita. Temendo ser visto, ganhou a picada do Bom Jesus em direção à venda do Teixeira, de onde voltou depois, às guinadas, bêbedo, completamente bêbedo. E, cortando pelo imenso vassoural que ia sair defronte do engenho, varou o caminho, onde errou toda anoite, num esmagamento de derrota, a praguejar desesperadamente contra os que não o ouviam, embriagados também nos arruídos da festa. Afinal, numa última e já cansada revolta, tomando o caminho de casa, pela vez derradeira lançou ao vento este brado angustioso e pressago, que longamente ecoou no ar:

— Desgraçados!...

E desapareceu, aos solavancos e aos tombos, sob a luz silenciosa do luar tocando agora o zênite.

IV 
Havia quase um ano que a Josefina abandonara o Zé Lírio, porque ele, desde a morte da mãe, dera em entregar-se à bebida e, em certas ocasiões, desordenava-se, dando que falar no sítio.

A rapariga não o via desde o último coroado no engenho, onde ele, uma noite, muito embriagado, levantara uma rixa, da qual resultou saírem os irmãos feridos e o pai expulsá-lo para sempre, proibindo-lhe as visitas.

Então, profundamente apaixonado com o desprezo em que o lançara a noiva e toda a boa família do Gaia, à qual a bem dizer pertencia, ficara de todo perdido, dando-se abertamente ao álcool. Mas a sua paixão jamais cessara, e ele, embora arredio, andava ao fato de tudo, sabendo dos passos da Josefina. Por isso, desde que lhe disseram do casamento dela com o primo, nunca mais deixara as Areias, rondando o engenho, noite e dia; e naquele sábado, mais do que nunca, os seus pés infatigáveis freneticamente revolveram ali a poeira do caminho.

V 
Agora, à porta de casa, bêbedo e exausto, com o coração despedaçado e vazio, num desmoronamento íntimo de todos os afetos, o Zé Lírio sentia como uma grande enervação inteiriçá-lo, sobre os degraus de pedra. Desfalecido, num acobardamento mortal, ali jazia ainda ao ar gelado da noite. Tudo, em volta, permanecia numa mudez de sacrário. As árvores nem sequer farfalhavam de leve nos campos adormecidos, velados pela dealbação do luar. E nenhum outro som no espaço além do ladrar soturno e rouco dos cães, ao longe.

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