João Fernandes
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Há muitos anos. O sino
de São Francisco de Paula bateu duas horas. Desde pouco mais de meia noite
deixou este rapaz, João Fernandes, o botequim da Rua do Hospício, onde lhe
deram chá com torradas, e um charuto por cinco tostões. João Fernandes desceu
pela Rua do Ouvidor, na esquina da dos Ourives viu uma patrulha. Na da Quitanda
deu com dois caixeiros que conversavam antes de ir cada um para o seu armazém.
Não os conhecia, mas presumiu que fossem tais, e acertou; eram ambos moços,
quase imberbes. Falavam de amores.
— A Rosinha não tem
razão, dizia um; eu conheço muito bem o Miranda...
— Estás enganado; o
Miranda é uma besta.
João Fernandes foi até
à Rua Primeiro de Março; desandou, os dois caixeiros despediam-se; um seguiu
para a Rua de São Bento, outro para a de São José.
— Vão dormir! suspirou
ele.
Iam rareando os
encontros. A patrulha caminhava até o largo de São Francisco de Paula. No largo
passaram dois vultos, ao longe. Três tílburis, parados junto à Escola
Politécnica, aguardavam fregueses. João Fernandes, que vinha poupando o
charuto, não pôde mais; não tendo fósforos, endireitou para um dos tílburis.
— Vamos, patrão, disse
o cocheiro; para onde é?
— Não é serviço, não;
você tem fósforos?
O cocheiro esfriou e
respondeu calado, metendo a mão no bolso para tinir a caixa de fósforos; mas
tão vagarosamente o fez que João Fernandes a tempo se lembrou de lhe cercear o
favor, bastava permitir que acendesse o charuto na lanterna. Assim fez, e
despediu-se agradecendo. Um fósforo sempre vale alguma coisa, disse ele
sentenciosamente. O cocheiro resmungou um dito feio, tomou a embrulhar-se em si
mesmo, e estirou-se na almofada. Era uma fria noite de junho. Tinha chovido de
dia, mas agora não havia a menor nuvem no céu. Todas as estrelas rutilavam.
Ventava um pouco — frio, mas brando.
Que não haja inverno
para namorados, é natural; mas ainda assim era preciso que João Fernandes fosse
namorado, e não o era. Não são amores que o levam rua abaixo, rua acima, a
ouvir o sino de São Francisco de Paula, a encontrar patrulhas, a acender o
charuto na lanterna dos carros. Também não é poesia. Na cabeça deste pobre
diabo de vinte e seis anos não arde imaginação alguma, que forceje por falar em
verso ou prosa. Filosofia, menos. Certo, a roupa que o veste é descuidada, como
os cabelos e a barba; mas não é por filosofia que os traz assim. Convém firmar
bem um ponto; a nota de cinco tostões que ele deu pelo chá e pelo charuto foi a
última que trazia. Não possuía agora nada mais, salvo uns dois vinténs,
perdidos no bolso do colete. Vede a triste carteira velha que ele tirou agora,
à luz do lampião, para ver se acha algum papel, naturalmente, ou outra coisa;
está cheia de nada. Um lápis sem ponta, uma carta, um anúncio do Jornal
do Comércio, em que se diz precisar alguém de um homem para cobrança. O
anúncio era da véspera. Quando João Fernandes foi ter com o anunciante (era
mais de meio-dia) achou o lugar ocupado.
Sim, não tem emprego.
Para entender o resto, não vades crer que perdeu a chave da casa. Não a perdeu,
não a possui. A chave está com o proprietário do cômodo que ele ocupou durante
alguns meses, não tendo pago mais de dois, pelo que foi obrigado a despejá-lo
antes de ontem. A noite passada achou meio de dormir em casa de um conhecido, a
pretexto de ser tarde e estar com sono. Qualquer coisa servia, disse ele, uma
esteira, uma rede, um canto, sem lençol, mas teve boa: cama e almoço. Esta
noite não achou nada. A boa fada das camas fortuitas e dos amigos encontradiços
andaria tresnoitada e dormia também. Quando lhe acontecia alguma destas (não
era a primeira), João Fernandes só tinha dois ou três mil-réis, ia a alguma
hospedaria e alugava um quarto pela noite; desta vez havia de contentar-se com
a rua. Não era a primeira noite que passava ao relento; trazia o corpo e a alma
curtidos de vigílias forçadas. As estrelas, ainda mais lindas que indiferentes,
já o conheciam de longa data. A cidade estava deserta; o silêncio agravava a
solidão.
— Três horas! murmurou
João Fernandes no Rossio, voltando dos lados da Rua dos Inválidos. Agora
amanhece tarde como o diabo.
Abotoou o paletó, e
toca a imaginar. Era preciso empregar-se, e bem, para se não expor a não ter
onde encostar a cabeça. Em que lugar dormiria no dia seguinte? Teve ideias
petroleiras. Do petróleo ao incêndio é um passo. Oh! se houvesse um incêndio
naquele momento! Ele correria ao lugar, e a gente, o alvoroço, a polícia e os
bombeiros, todo o espetáculo faria correr o tempo depressa. Sim, podia muito
bem arder uma casa velha, sem morrer ninguém, poucos trastes, e no seguro. Não
era só distração, era também repouso. Haveria um pretexto para sentar-se em
alguma soleira de porta. Agora, se o fizesse, as patrulhas poderiam desconfiar,
ou recolhê-lo como vagabundo. A razão que o levava a andar sempre, sempre, era
fazer crer, se alguém o visse, que ia para casa. Às vezes, não podia continuar,
e parava a uma esquina, a uma parede; ouvindo passos, patrulha ou não,
recomeçava a marcha. Passou um carro por ele, aberto, dois rapazes e duas
mulheres dentro, cantando uma reminiscência de Offenbach.
João Fernandes suspirou; uns tinham carro, outros nem cama... A sociedade é
madrasta, rugiu ele.
A vista dos teatros
azedou-lhe mais o espírito. Passara por eles, horas antes, vira-os cheios e
iluminados, gente que se divertia, mulheres no saguão, sedas, flores, luvas,
homens com relógio no colete e charuto na boca. E toda essa gente dormia agora,
sonhando com a peça ou com os seus amores. João Fernandes pensou em fazer-se
ator; não teria talento, nem era preciso muito para dizer o que estivesse no
papel. Uma vez que o papel fosse bom, engraçado, ele faria rir. Ninguém faz rir
com papéis tristes. A vida de artista era independente; bastava agradar ao
público. E recordava as peças vistas, os atores conhecidos, as grandes
barrigadas de riso que tivera. Também podia escrever uma comédia. Chegou a
imaginar um enredo, sem advertir que eram reminiscências de várias outras
composições.
Os varredores das ruas
começaram a dificultar o trânsito com a poeira. João Fernandes entrou a
desvairar ainda mais os passos. Foi assim que chegou à praia da Glória, onde
gastou alguns minutos vendo e ouvindo o mar que batia na praia com força. Tomou
abaixo; ouviu o ganir de um cão, ao longe. Na rua alguns dormiam, outros
fugiam, outros latiam, quando ele passava. Invejou os cães que dormiam; foi ao
ponto de invejar os burros dos tílburis parados, que provavelmente dormiam
também. No centro da cidade a solidão era ainda a mesma. Um ou outro vulto
começava a aparecer, mas raro. Os ratos ainda atropelavam o noctâmbulo,
correndo de um lado para outro da rua, dando ideia de uma vasta população
subterrânea de roedores, que substituíam os homens para não parar o trabalho
universal. João Fernandes perguntava a si mesmo por que não imitaria os ratos;
tinha febre, era um princípio de delírio.
— Uma, duas, três,
quatro, contou ele, parado no Largo da Carioca. Eram as badaladas do sino de São
Francisco. Pareceu-lhe ter contado mal; pelo tempo deviam ser cinco horas. Mas
era assim mesmo, disse afinal; as horas noturnas e solitárias são muito mais
compridas que as outras. Um charuto, naquela ocasião, seria um grande
benefício; um simples cigarro podia enganar a boca, os dois vinténs restantes
bastavam-lhe para comprar um ordinário; mas onde?
A noite foi inclinando
o rosário das horas para a manhã, sua companheira. João Fernandes ouviu-as de
um relógio, quando passava pela Rua dos Ourives; eram cinco; depois outro
relógio deu as mesmas cinco; adiante, outro; mais longe, outro. — Uma, duas,
três, quatro, cinco, dizia ainda outro relógio.
João Fernandes correu
ao botequim onde tomara chá. Alcançou um café e a promessa de um almoço, que
pagaria à tarde ou no dia seguinte. Conseguiu um cigarro. O entregador do Jornal do Comércio trouxe a folha; ele foi o primeiro a
abri-la e lê-la. Chegavam empregados dos arsenais, viajantes da estrada de
ferro, simples vizinhos que acordavam cedo, e porventura algum vadio sem casa.
O rumor trazia a João Fernandes a sensação da vida; gentes, falas, carroças, aí
recomeçava a cidade e a faina. O dia vinha andando, rápido, cada vez mais
rápido, até que tudo ficou claro; o botequim apagou o gás. João Fernandes
acabou de ler o Jornal à luz do dia.
Espreguiçou-se, sacudiu a morrinha, despediu-se:
— Até logo!
Enfiou pela rua
abaixo, com os olhos no futuro cor de rosa: a certeza do almoço. Não se
lembrara de procurar algum anúncio no Jornal;
viu, porém, a notícia de que o ministério ia ser interpelado nesse dia. Uma
interpelação ao ministério! Almoçaria às dez horas; às onze estaria na galeria
da câmara. Aí tinha com que suprir o jantar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...