O restaurante e os galeões do México
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era uma sala feia. Retangular,
com uma larga porta aberta em um dos ângulos, com uma abertura de claraboia no
centro do teto, a sala do restaurante tinha de improvisada, de inadequada.
Quando entrei, quase todas as mesas estavam ocupadas, contudo Alfredo e eu
logramos encontrar uma a um canto, em que, embora espremidos, como a cana entre
rodas de moinho, nos pusemos a comer. Apesar de cheio, homens e mulheres
continuavam a entrar, e os que andavam por entre as cadeiras e as mesas, a cortejar
com um e a pilheriar com outro, traziam ao restaurante o movimento de uma rua.
Era de ver aquela agitação de chapéus cheios de plumas vivas, brancos uns,
vermelhos outros, verdoengos outros, à baça luz do gás, a faiscar como as
caprichosas penas de um pavão. Depois, os corpetes das mulheres revestidos de
sedas roçagantes, vermelhos, negros, claros, escuros; e quem baixasse o olhar
dos chapéus para o chão correndo através daquela orgia de cores, impressionava
o comer à contemplação de uma ágata lascada. Pelo ambiente quente — embora a
noite fosse fria —, hastilhas de todos os perfumes revoavam, fortes,
inebriantes, capitosos, tal como se nós, num jardim e numa mata fantásticos,
sorvêssemos todas as essências e todos os odores de todas as flores da terra. O
cheiro forte de álcool e o aroma das iguarias punham nesta atmosfera uma nota
sórdida. As fisionomias brilhavam de concupiscência e lascívia. Os homens a
custo se continham em face do público. Abraçavam a meio as mulheres, roçavam
pernas, cruzavam-nas com elas; mas o que mais se admirava era o olhar, o olhar
vítreo, de um só brilho fixo sobre os que as acompanhavam, devoradores,
sequiosos, parecendo armados de dedos sôfregos que apalpassem, que pegassem. As
mulheres, mais indiferentes, acostumadas aos espetáculos, não se emocionavam
aos gestos e às falas dos espectadores. O grave deputado da hora do expediente,
transfigurado, não encontrava na companheira auditório vibrátil para a sua
eloquência; e o severo oficial diluía-se aquele reagente irresistível. Tudo
palavra. Palavras desencontradas, algumas dando a perceber finos e altos
pensamentos, outras em vil calão de espelunca repugnante. Timbres guturais,
nasais, sílabas espanholas, acento francês, sotaque germânico, música de todas
as línguas soavam por aquela sala. Estávamos num compartimento da Torre de
Babel; mas aquela atmosfera de essências e de perfumes mais parecia uma
floresta povoada de aves canoras a balbuciar coisas ininteligíveis mas
agradáveis, doces, acariciadoras. Durante uma hora, embalado naquele ambiente
de ternura, de gozo, de luxo, fui me sentindo acariciado, animado, era como se
friccionassem a pele com veludo. O meu companheiro, até então calado, arriscou:
— Reparas, hein? Estás vendo os
exercícios práticos da legislatura e do comércio.
Quando saímos, eu fiquei no
centro da praça, perto do candelabro de iluminação, à espera de bonde. Um a um,
aos pares, eu os fui vendo sair. Se passavam por mim, eu os via a falar, elas a
dizer: Oh! Si me gusta! Mais soyons
hereux, mon chéri! A la settimana...
Eram vozes em todas as línguas,
em todos os dialetos que eu ouvia; e o português entre eles tinha a pureza, a
inocência de uma virgem, vivia sem interesse nem cálculo e só a perversão dos
outros arrastava-o por aquela sombria noite de crápula.
E de longe quase, nas rutilantes
joias dos seus dedos, eu vi se esvair na sombra da rua em frente aquelas
mulheres grandes, bojudas, enfunadas, empavesadas, como aqueles galeões de
antanho, que por épocas certas do ano levavam para Palos, Vigo e Lisboa as
refulgentes riquezas de Potosí, do México e do Tijuco. Eu os vi todos eles,
arrastados pela brisa, cortando em noite escura a fosforescência dos mares dos
trópicos, a deixar atrás de si uma esteira argêntea, brilhante, faiscante, de
duração momentânea. E, pela manhã, ao alto do mastro, o sol vermelho beijava a
bandeira das quinas de Fernando e Isabel. Só para eles a aragem da tarde
soprava, só para eles o cruzeiro brilhava. E eu vi esses galeões passados
escorregarem no azul fosforescente dos mares dos trópicos, naquelas bojudas
mulheres que desfilavam. Nitidamente, perfeitamente, eu vi-lhes as velas, os
aparelhos da mastreação, a vogar na sombra daquela noite. Hoje, ao contrário de
antes, o sol rubro que se ergue e o merencório beijam várias bandeiras e
escudos, a liberdade do comércio a isso impõe, mas como dantes, os mesmos
perigos as ameaçam, os piratas, os escroques, aqueles cruéis souliers de la mer espreitam-nos e os
seguem, são a febre amarela, o cáften. E naquela noite sombria, talvez com
saudade, as mesmas estrelas assistiram à partida da caravela que levou para os
gastos de Odivelas os primeiros diamantes do Tijuco.
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