Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Uma noite, voltando para casa, trazia tanto
sono que não dei corda ao relógio. Pode ser também que a vista de uma senhora
que encontrei em casa do Comendador T... contribuísse para aquele esquecimento;
mas estas duas razões destroem-se. Cogitação tira o sono e o sono impede a
cogitação; só uma das causas devia ser verdadeira. Ponhamos que nenhuma, e
fiquemos no principal, que é o relógio parado, de manhã, quando me levantei,
ouvindo dez horas no relógio da casa.
Morava então (1893) em uma casa de pensão no
Catete. Já por esse tempo este gênero de residência florescia no Rio de
Janeiro. Aquela era pequena e tranquila. Os quatrocentos contos de réis
permitiam-me casa exclusiva e própria; mas, em primeiro lugar, já eu ali
residia quando os adquiri, por jogo de praça; em segundo lugar, era um
solteirão de quarenta anos, tão afeito à vida de hospedaria que me seria
impossível morar só. Casar não era menos impossível. Não é que me faltassem
noivas. Desde os fins de 1891 mais de uma dama, — e não das menos belas, —
olhou para mim com olhos brandos e amigos. Uma das filhas do Comendador
tratava-me com particular atenção. A nenhuma dei corda; o celibato era a minha
alma, a minha vocação, o meu costume, a minha única ventura. Amaria de
empreitada e por desfastio. Uma ou duas aventuras por ano bastavam a um coração
meio inclinado ao ocaso e à noite.
Talvez por isso dei alguma atenção à senhora
que vi em casa do Comendador, na véspera. Era uma criatura morena, robusta,
vinte e oito a trinta anos, vestida de escuro; entrou às dez horas, acompanhada
de uma tia velha. A recepção que lhe fizeram foi mais cerimoniosa que as
outras; era a primeira vez que ali ia. Eu era a terceira. Perguntei se era
viúva.
— Não; é casada.
— Com quem?
— Com um estancieiro do Rio Grande.
— Chama-se?
— Ele? Fonseca, ela Maria Cora.
— O marido não veio com ela?
— Está no Rio Grande.
Não soube mais nada; mas a figura da dama
interessou-me pelas graças físicas, que eram o oposto do que poderiam sonhar
poetas românticos e artistas seráficos. Conversei com ela alguns minutos, sobre
coisas indiferentes, — mas suficientes para escutar-lhe a voz, que era musical,
e saber que tinha opiniões republicanas. Vexou-me confessar que não as
professava de espécie alguma; declarei-me vagamente pelo futuro do país. Quando
ela falava, tinha um modo de umedecer os beiços, não sei se casual, mas
gracioso e picante. Creio que, vistas assim ao pé, as feições não eram tão
corretas como pareciam a distância, mas eram mais suas, mais originais.
CAPÍTULO
2
De manhã tinha o relógio parado. Chegando à
cidade, desci a Rua do Ouvidor, até à da Quitanda, e indo a voltar à direita,
para ir ao escritório do meu advogado, lembrou-me ver que horas eram. Não me
acudiu que o relógio estava parado.
— Que maçada! exclamei.
Felizmente, naquela mesma Rua da Quitanda, à
esquerda, entre as do Ouvidor e Rosário, era a oficina onde eu comprara o
relógio, e a cuja pêndula usava acertá-lo. Em vez de ir para um lado, fui para
outro. Era apenas meia hora; dei corda ao relógio, acertei-o, troquei duas
palavras com o oficial que estava ao balcão, e indo a sair, vi à porta de uma
loja de novidades que ficava defronte, nem mais nem menos que a senhora de
escuro que encontrara em casa do Comendador. Cumprimentei-a, ela correspondeu
depois de alguma hesitação, como se me não houvesse reconhecido logo, e depois
seguiu pela Rua da Quitanda fora, ainda para o lado esquerdo.
Como tivesse algum tempo ante mim (pouco
menos de trinta minutos), dei-me a andar atrás de Maria Cora. Não digo que uma
força violenta me levasse já, mas não posso esconder que cedia a qualquer
impulso de curiosidade e desejo; era também um resto da juventude passada. Na
rua, andando, vestida de escuro, como na véspera, Maria Cora pareceu-me ainda
melhor. Pisava forte, não apressada nem lenta, o bastante para deixar ver e
admirar as belas formas, mui mais corretas que as linhas do rosto. Subiu a Rua
do Hospício, até uma oficina de oculista, onde entrou e ficou dez minutos ou
mais. Deixei-me estar a distância, fitando a porta disfarçadamente. Depois saiu,
arrepiou caminho, e dobrou a Rua dos Ourives, até à do Rosário, por onde subiu
até ao Largo da Sé; daí passou ao de São Francisco de Paula. Todas essas
reminiscências parecerão escusadas, senão aborrecíveis; a mim dão-me uma
sensação intensa e particular, são os primeiros passos de uma carreira penosa e
longa. Demais, vereis por aqui que ela evitava subir a Rua do Ouvidor, que
todos e todas buscariam àquela ou a outra hora para ir ao Largo de São
Francisco de Paula. Foi atravessando o largo, na direção da Escola Politécnica,
mas a meio caminho veio ter com ela um carro que estava parado defronte da
Escola; meteu-se nele, e o carro partiu.
A vida tem suas encruzilhadas, como outros
caminhos da terra. Naquele momento achei-me diante de uma assaz complicada, mas
não tive tempo de escolher direção, — nem tempo nem liberdade. Ainda agora não
sei como é que me vi dentro de um tílburi, é certo que me vi nele, dizendo ao
cocheiro que fosse atrás do carro.
Maria Cora morava no Engenho Velho; era uma
boa casa, sólida, posto que antiga, dentro de uma chácara. Vi que morava ali,
porque a tia estava a uma das janelas. Depois, saindo do carro, Maria Cora
disse ao cocheiro (o meu tílburi ia passando adiante) que naquela semana não
sairia mais, e que aparecesse segunda-feira ao meio-dia. Em seguida, entrou
pela chácara, como dona dela, e parou a falar ao feitor, que lhe explicava
alguma coisa com o gesto.
Voltei depois que ela entrou em casa, e só
muito abaixo é que me lembrou de ver as horas, era quase uma e meia. Vim a
trote largo até à Rua da Quitanda, onde me apeei à porta do advogado.
— Pensei que não vinha, disse-me ele.
— Desculpe, doutor, encontrei um amigo que me
deu uma maçada.
Não era a primeira vez que mentia na minha
vida, nem seria a última.
CAPÍTULO
3
Fiz-me encontradiço com Maria Cora, na casa
do Comendador, primeiro, e depois em outras. Maria Cora não vivia absolutamente
reclusa, dava alguns passeios e fazia visitas. Também recebia, mas sem dia
certo, uma ou outra vez, e apenas cinco a seis pessoas da intimidade. O
sentimento geral é que era pessoa de fortes sentimentos e austeros costumes.
Acrescentai a isto o espírito, um espírito agudo, brilhante e viril. Capaz de
resistências e fadigas, não menos que de violências e combates, era feita, como
dizia um poeta que lá ia à casa dela, “de um pedaço de pampa e outro de
pampeiro”. A imagem era em verso e com rima, mas a mim só me ficou a ideia e o
principal das palavras. Maria Cora gostava de ouvir definir-se assim, posto não
andasse mostrando aquelas forças a cada passo, nem contando as suas memórias da
adolescência. A tia é que contava algumas, com amor, para concluir que lhe saía
a ela, que também fora assim na mocidade. A justiça pede que se diga que, ainda
agora, apesar de doente, a tia era pessoa de muita vida e robustez.
Com pouco, apaixonei-me pela sobrinha. Não me
pesa confessá-lo, pois foi a ocasião da única página da minha vida que merece
atenção particular. Vou narrá-la brevemente; não conto novela nem direi
mentiras.
Gostei de Maria Cora. Não lhe confiei logo o
que sentia, mas é provável que ela o percebesse ou adivinhasse, como todas as
mulheres. Se a descoberta ou adivinhação foi anterior à minha ida à casa do
Engenho Velho, nem assim deveis censurá-la por me haver convidado a ir ali uma noite.
Podia ser-lhe então indiferente a minha disposição moral; podia também gostar
de se sentir querida, sem a menor ideia de retribuição. A verdade é que fui
essa noite e tornei outras; a tia gostava de mim e dos meus modos. O poeta que
lá ia, tagarela e tonto, disse uma vez que estava afinando a lira para o
casamento da tia comigo. A tia riu-se; eu, que queria as boas graças dela, não
podia deixar de rir também, e o caso foi matéria de conversação por uma semana;
mas já então o meu amor à outra tinha atingido ao cume.
Soube, pouco depois, que Maria Cora vivia
separada do marido. Tinham casado oito anos antes, por verdadeira paixão.
Viveram felizes cinco. Um dia, sobreveio uma aventura do marido que destruiu a
paz do casal. João da Fonseca apaixonou-se por uma figura de circo, uma chilena
que voava em cima do cavalo, Dolores, e deixou a estância para ir atrás dela.
Voltou seis meses depois, curado do amor, mas curado à força, porque a
aventureira se enamorou do redator de um jornal, que não tinha vintém, e por
ele abandonou Fonseca e a sua prataria. A esposa tinha jurado não aceitar mais
o esposo, e tal foi a declaração que lhe fez quando ele apareceu na estância.
— Tudo está acabado entre nós; vamos
desquitar-nos.
João da Fonseca teve um primeiro gesto de
acordo; era um quadragenário orgulhoso, para quem tal proposta era de si mesma
uma ofensa. Durante uma noite tratou dos preparativos para o desquite; mas, na
seguinte manhã, a vista das graças da esposa novamente o comoveu. Então, sem
tom implorativo, antes como quem lhe perdoava, entendeu dizer-lhe que deixasse
passar uns seis meses. Se ao fim de seis meses, persistisse o sentimento atual
que inspirava a proposta do desquite, este se faria. Maria Cora não queria
aceitar a emenda, mas a tia, que residia em Porto Alegre e fora passar algumas
semanas na estância, interveio com boas palavras. Antes de três meses estavam
reconciliados.
— João, disse-lhe a mulher no dia seguinte ao
da reconciliação, você deve ver que o meu amor é maior que o meu ciúme, mas
fica entendido que este caso da nossa vida é único. Nem você me fará outra, nem
eu lhe perdoarei nada mais.
João da Fonseca achava-se então em um
renascimento do delírio conjugal; respondeu à mulher jurando tudo e mais alguma
coisa. Aos quarenta anos, concluiu ele, não se fazem duas aventuras daquelas, e
a minha foi de doer. Você verá, agora é para sempre.
A vida recomeçou tão feliz, como dantes, —
ele dizia que mais. Com efeito, a paixão da esposa era violenta, e o marido
tornou a amá-la como outrora. Viveram assim dois anos. Ao fim desse tempo, os
ardores do marido haviam diminuído, alguns amores passageiros vieram meter-se
entre ambos. Maria Cora, ao contrário do que lhe dissera, perdoou essas faltas,
que aliás não tiveram a extensão nem o vulto da aventura Dolores. Os desgostos,
entretanto, apareceram e grandes. Houve cenas violentas. Ela parece que chegou
mais de uma vez a ameaçar que se mataria; mas, posto não lhe faltasse o preciso
ânimo, não fez tentativa nenhuma, a tal ponto lhe doía deixar a própria causa
do mal, que era o marido. João da Fonseca percebeu isto mesmo, e acaso explorou
a fascinação que exercia na mulher.
Uma circunstância política veio complicar
esta situação moral. João da Fonseca era pelo lado da revolução, dava-se com
vários dos seus chefes, e pessoalmente detestava alguns dos contrários. Maria
Cora, por laços de família, era adversa aos federalistas. Esta oposição de
sentimentos não seria bastante para separá-los, nem se pode dizer que, por si
mesma, azedasse a vida dos dois. Embora a mulher, ardente em tudo, não o fosse
menos em condenar a revolução, chamando nomes crus aos seus chefes e oficiais;
embora o marido, também excessivo, replicasse com igual ódio, os seus arrufos
políticos apenas aumentariam os domésticos, e provavelmente não passariam dessa
troca de conceitos, se uma nova Dolores, desta vez Prazeres, e não chilena nem
saltimbanca, não revivesse os dias amargos de outro tempo. Prazeres era ligada
ao partido da revolução, não só pelos sentimentos, como pelas relações da vida
com um federalista. Eu a conheci pouco depois, era bela e airosa; João da
Fonseca era também um homem gentil e sedutor. Podiam amar-se fortemente, e
assim foi. Vieram incidentes, mais ou menos graves, até que um decisivo
determinou a separação do casal.
Já cuidavam disto desde algum tempo, mas a
reconciliação não seria impossível, apesar da palavra de Maria Cora, graças à
intervenção da tia; esta havia insinuado à sobrinha que residisse três ou
quatro meses no Rio de janeiro ou em São Paulo. Sucedeu, porém, uma coisa
triste de dizer. O marido, em um momento de desvario, ameaçou a mulher com o
rebenque. Outra versão diz que ele tentara esganá-la. Quero crer que a verídica
é a primeira, e que a segunda foi inventada para tirar à violência de João da
Fonseca o que pudesse haver deprimente e vulgar. Maria Cora não disse mais uma
só palavra ao marido. A separação foi imediata; a mulher veio com a tia para o
Rio de Janeiro, depois de arranjados amigavelmente os interesses pecuniários.
Demais, a tia era rica.
João da Fonseca e Prazeres ficaram vivendo
juntos uma vida de aventuras que não importa escrever aqui. Só uma coisa
interessa diretamente à minha narração. Tempos depois da separação do casal,
João da Fonseca estava alistado entre os revolucionários. A paixão política,
posto que forte, não o levaria a pegar em armas, se não fosse uma espécie de
desafio da parte de Prazeres; assim correu entre os amigos dele, mas ainda este
ponto é obscuro. A versão é que ela, exasperada com o resultado de alguns
combates, disse ao estancieiro que iria, disfarçada em homem, vestir farda de
soldado e bater-se pela revolução. Era capaz disto; o amante disse-lhe que era
uma loucura, ela acabou propondo-lhe que, nesse caso, fosse ele bater-se em vez
dela; era uma grande prova de amor que lhe daria.
— Não te tenho dado tantas?
— Tem, sim; mas esta é a maior de todas, esta
me fará cativa até à morte.
— Então agora ainda não é até à morte?
perguntou ele rindo.
— Não.
Pode ser que as coisas se passassem assim.
Prazeres era, com efeito, uma mulher caprichosa e imperiosa, e sabia prender um
homem por laços de ferro. O federalista, de quem se separou para acompanhar
João da Fonseca, depois de fazer tudo para reavê-la, passou à campanha
oriental, onde dizem que vive pobremente, encanecido e envelhecido vinte anos,
sem querer saber de mulheres nem de política. João da Fonseca acabou cedendo;
ela pediu para acompanhá-lo, e até bater-se, se fosse preciso; ele negou-lho. A
revolução triunfaria em breve, disse; vencidas as forças do governo, tornaria à
estância, onde ela o esperaria.
— Na estância, não, respondeu Prazeres;
espero-te em Porto Alegre.
CAPÍTULO
4
Não importa dizer o tempo que despendi nos
inícios da minha paixão, mas não foi grande. A paixão cresceu rápida e forte.
Afinal senti-me tão tomado dela que não pude mais guardá-la comigo, e resolvi
declarar-lha uma noite; mas a tia, que usava cochilar desde as nove horas
(acordava às quatro), daquela vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, é
provável que eu não alcançasse falar; tinha a voz presa e na rua senti uma
vertigem igual à que me deu a primeira paixão da minha vida.
— Senhor Correia, não vá cair, disse a tia
quando eu passei à varanda, despedindo-
me.
— Deixe estar, não caio.
Passei mal a noite; não pude dormir mais de
duas horas, aos pedaços, e antes das cinco estava em pé.
— É preciso acabar com isto! exclamei.
De fato, não parecia achar em Maria Cora mais
que benevolência e perdão, mas era isso mesmo que a tornava apetecível. Todos
os amores da minha vida tinham sido fáceis; em nenhum encontrei resistência, a
nenhuma deixei com dor; alguma pena, é possível, e um pouco de recordação.
Desta vez sentia-me tomado por ganchos de ferro. Maria Cora era toda vida;
parece que, ao pé dela, as próprias cadeiras andavam e as figuras do tapete
moviam os olhos. Põe nisso uma forte dose de meiguice e graça; finalmente, a
ternura da tia fazia daquela criatura um anjo. É banal a comparação, mas não
tenho outra.
Resolvi cortar o mal pela raiz, não tornando
ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns dias largos, duas ou três semanas.
Busquei distrair-me e esquecê-la, mas foi em vão. Comecei a sentir a ausência
como de um bem querido; apesar disso, resisti e não tornei logo. Mas, crescendo
a ausência, cresceu o mal, e enfim resolvi tornar lá uma noite. Ainda assim
pode ser que não fosse, a não achar Maria Cora na mesma oficina da Rua da
Quitanda, aonde eu fora acertar o relógio parado.
— É freguês também? perguntou-me ao entrar.
— Sou.
— Vim acertar o meu. Mas, por que não tem
aparecido?
— É verdade, por que não voltou lá à casa?
completou a tia.
— Uns negócios, murmurei; mas, hoje mesmo
contava ir lá.
— Hoje não; vá amanhã, disse a sobrinha. Hoje
vamos passar a noite fora.
Pareceu-me ler naquela palavra um convite a
amá-la de vez, assim como a primeira trouxera um tom que presumi ser de
saudade. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho Velho. Maria Cora
acolheu-me com a mesma boa vontade de antes. O poeta lá estava e contou-me em
verso os suspiros que a tia dera por mim. Entrei a frequentá-las novamente e
resolvi declarar tudo.
Já acima disse que ela provavelmente
percebera ou adivinhara o que eu sentia, como todas as mulheres; referi-me aos
primeiros dias. Desta vez com certeza percebeu, nem por isso me repeliu. Ao
contrário, parecia gostar de se ver querida, muito e bem.
Pouco depois daquela noite escrevi-lhe uma
carta e fui ao Engenho Velho. Achei-a um pouco retraída; a tia explicou-me que
recebera notícias do Rio Grande que a afligiram. Não liguei isto ao casamento,
e busquei alegrá-la; apenas consegui vê-la cortês. Antes de sair, perto da
varanda, entreguei-lhe a carta; ia a dizer-lhe: “Peço-lhe que leia”, mas a voz
não saiu. Vi-a um pouco atrapalhada, e para evitar dizer o que melhor ia
escrito, cumprimentei-a e enfiei pelo jardim. Pode imaginar-se a noite que
passei, e o dia seguinte foi naturalmente igual, à medida que a outra noite
vinha. Pois, ainda assim, não tornei à casa dela; resolvi esperar três ou
quatro dias, não que ela me escrevesse logo, mas que pensasse nos termos da
resposta. Que estes haviam de ser simpáticos, era certeza minha; as maneiras
dela, nos últimos tempos, eram mais que afáveis, pareciam-me convidativas.
Não cheguei, porém, aos quatro dias; mal pude
esperar três. Na noite do terceiro fui ao Engenho Velho. Se disser que entrei
trêmulo da primeira comoção, não minto. Achei-a ao piano, tocando para o poeta
ouvir; a tia, na poltrona, pensava em não sei que, mas eu quase não a vi, tal a
minha primeira alucinação.
— Entre, Sr. Correia, disse esta; não caia em
cima de mim.
— Perdão...
Maria Cora não interrompeu a música; ao
ver-me chegar, disse:
— Desculpe, se lhe não dou a mão, estou aqui
servindo de musa a este senhor.
Minutos depois, veio a mim, e estendeu-me a
mão com tanta galhardia, que li nela a resposta, e estive quase a dar-lhe um
agradecimento. Passaram-se alguns minutos, quinze ou vinte. Ao fim desse tempo,
ela pretextou um livro, que estava em cima das músicas, e pediu-me para dizer
se o conhecia; fomos ali ambos, e ela abriu-mo; entre as duas folhas estava um
papel.
— Na outra noite, quando aqui esteve, deu-me
esta carta; não podia dizer-me o que tem dentro?
— Não adivinha?
— Posso errar na adivinhação.
— É isso mesmo.
— Bem, mas eu sou uma senhora casada, e nem
por estar separada do meu marido deixo de estar casada. O senhor ama-me, não é?
Suponha, pelo melhor, que eu também o amo; nem por isso deixo de estar casada.
Dizendo isto, entregou-me a carta; não fora
aberta. Se estivéssemos sós, é possível que eu lha lesse, mas a presença de estranhos
impedia-me este recurso. Demais, era desnecessário; a resposta de Maria Cora
era definitiva ou me pareceu tal. Peguei na carta, e antes de a guardar comigo:
— Não quer então ler?
— Não.
— Nem para ver os termos?
— Não.
— Imagine que lhe proponho ir combater contra
seu marido, matá-lo e voltar, disse eu cada vez mais tonto.
— Propõe isto?
— Imagine.
— Não creio que ninguém me ame com tal força,
concluiu sorrindo. Olhe, que estão reparando em nós.
Dizendo isto, separou-se de mim, e foi ter com
a tia e o poeta. Eu fiquei ainda alguns segundos com o livro na mão, como se
deveras o examinasse, e afinal deixei-o. Vim sentar-me defronte dela. Os três
conversavam de coisas do Rio Grande, de combates entre federalistas e
legalistas, e da vária sorte deles. O que eu então senti não se escreve; pelo
menos, não o escrevo eu, que não sou romancista. Foi uma espécie de vertigem,
um delírio, uma cena pavorosa e lúcida, um combate e uma glória. Imaginei-me no
campo, entre uns e outros, combatendo os federalistas, e afinal matando João da
Fonseca, voltando e casando-me com a viúva. Maria Cora contribuía para esta
visão sedutora; agora, que me recusara a carta, parecia-me mais bela que nunca,
e a isto acrescia que se não mostrava zangada nem ofendida, tratava-me com
igual carinho que antes, creio até que maior. Disto podia sair uma impressão
dupla e contrária, — uma de aquiescência tácita, outra de indiferença, mas eu
só via a primeira, e saí de lá completamente louco.
O que então resolvi foi realmente de louco.
As palavras de Maria Cora: “Não creio que ninguém me ame com tal força” —
soavam-me aos ouvidos, como um desafio. Pensei nelas toda a noite, e no dia
seguinte fui ao Engenho Velho; logo que tive ocasião de jurar-lhe a prova,
fi-lo.
— Deixo tudo o que me interessa, a começar
pela paz, com o único fim de lhe mostrar que a amo, e a quero só e santamente
para mim. Vou combater a revolta.
Maria Cora fez um gesto de deslumbramento.
Daquela vez percebi que realmente gostava de mim, verdadeira paixão, e se fosse
viúva, não casava com outro. Jurei novamente que ia para o Sul. Ela, comovida,
estendeu-me a mão. Estávamos em pleno romantismo. Quando eu nasci, os meus não
acreditavam em outras provas de amor, e minha mãe contava-me os romances em
versos de cavaleiros andantes que iam à Terra Santa libertar o sepulcro de
Cristo por amor da fé e da sua dama. Estávamos em pleno romantismo.
CAPÍTULO
5
Fui para o sul. Os combates entre legalistas
e revolucionários eram contínuos e sangrentos, e a notícia deles contribuiu a
animar-me. Entretanto, como nenhuma paixão política me animava a entrar na
luta, força é confessar que por um instante me senti abatido e hesitei. Não era
medo da morte, podia ser amor da vida, que é um sinônimo; mas, uma ou outra
coisa, não foi tal nem tamanha que fizesse durar por muito tempo a hesitação.
Na cidade do Rio Grande encontrei um amigo, a quem eu por carta do Rio de
janeiro dissera muito reservadamente que ia lá por motivos políticos. Quis
saber quais.
— Naturalmente são reservados, respondi
tentando sorrir.
— Bem; mas uma coisa creio que posso saber,
uma só, porque não sei absolutamente o que pense a tal respeito, nada havendo
antes que me instrua. De que lado estás, legalistas ou revoltosos?
— É boa! Se não fosse dos legalistas, não te
mandaria dizer nada; viria às escondidas.
— Vens com alguma comissão secreta do
marechal?
— Não.
Não me arrancou então mais nada, mas eu não
pude deixar de lhe confiar os meus projetos, ainda que sem os seus motivos.
Quando ele soube que aqueles eram alistar-me entre os voluntários que combatiam
a revolução, não pôde crer em mim, e talvez desconfiasse que efetivamente eu
levava algum plano secreto do presidente. Nunca da minha parte ouviu nada que
pudesse explicar semelhante passo. Entretanto, não perdeu tempo em
despersuadir-me; pessoalmente era legalista e falava dos adversários com ódio e
furor. Passado o espanto, aceitou o meu ato, tanto mais nobre quanto não era
inspirado por sentimento de partido. Sobre isto disse-me muita palavra bela e heroica,
própria a levantar o ânimo de quem já tivesse tendência para a luta. Eu não
tinha nenhuma, fora das razões particulares; estas, porém, eram agora maiores.
Justamente acabava de receber uma carta da tia de Maria Cora, dando-me notícias
delas, e recomendações da sobrinha, tudo com alguma generalidade e certa
simpatia verdadeira.
Fui a Porto Alegre, alistei-me e marchei para
a campanha. Não disse a meu respeito nada que pudesse despertar a curiosidade
de ninguém, mas era difícil encobrir a minha condição, a minha origem, a minha
viagem com o plano de ir combater a revolução. Fez-se logo uma lenda a meu
respeito. Eu era um republicano antigo, riquíssimo, entusiasta, disposto a dar
pela República mil vidas, se as tivesse, e resoluto a não poupar a única. Deixei
dizer isto e o mais, e fui. Como eu indagasse das forças revolucionárias com
que estaria João da Fonseca, alguém quis ver nisto uma razão de ódio pessoal;
também não faltou quem me supusesse espião dos rebeldes, que ia por-me em
comunicação secreta com aquele. Pessoas que sabiam das relações dele com a
Prazeres imaginavam que era um antigo amante desta que se queria vingar dos
amores dele. Todas aquelas suposições morreram, para só ficar a do meu
entusiasmo político; a da minha espionagem ia-me prejudicando; felizmente, não
passou de duas cabeças e de uma noite.
Levava comigo um retrato de Maria Cora;
alcançara-o dela mesma, uma noite, pouco antes do meu embarque, com uma pequena
dedicatória cerimoniosa. Já disse que estava em pleno romantismo; dado o primeiro
passo, os outros vieram de si mesmos. E agora juntai a isto o amor-próprio, e
compreendereis que de simples cidadão indiferente da capital saísse um
guerreiro áspero da campanha rio-grandense.
Nem por isso conto combates, nem escrevo para
falar da revolução, que não teve nada comigo, por si mesma, senão pela ocasião
que me dava, e por algum golpe que lhe desfechei na estreita área da minha
ação. João da Fonseca era o meu rebelde. Depois de haver tomado parte no
combate de Sarandi e Cochila Negra, ouvi que o marido de Maria Cora fora morto,
não sei em que recontro; mais tarde deram-me a notícia de estar com as forças
de Gumercindo, e também que fora feito prisioneiro e seguira para Porto Alegre;
mas ainda isto não era verdade. Disperso, com dois camaradas, encontrei um dia
um regimento legal que ia em defesa da Encruzilhada, investida ultimamente por
uma força dos federalistas; apresentei-me ao comandante e segui. Aí soube que
João da Fonseca estava entre essa força; deram-me todos os sinais dele, contaram-me
a história dos amores e a separação da mulher.
A ideia de matá-lo no turbilhão de um combate
tinha algo fantástico; nem eu sabia se tais duelos eram possíveis em
semelhantes ocasiões, quando a força de cada homem tem de somar com a de toda
uma força única e obediente a uma só direção. Também me pareceu, mais de uma
vez, que ia cometer um crime pessoal, e a sensação que isto me dava, podeis
crer que não era leve nem doce; mas a figura de Maria Cora abraçava-me e
absolvia com uma bênção de felicidades. Atirei-me de vez. Não conhecia João da
Fonseca; além dos sinais que me haviam dado, tinha de memória um retrato dele
que vira no Engenho Velho; se as feições não estivessem mudadas, era provável
que eu o reconhecesse entre muitos. Mas, ainda uma vez, seria este encontro
possível? Os combates em que eu entrara, já me faziam desconfiar que não era
fácil, ao menos.
Não foi fácil nem breve. No combate da
Encruzilhada creio que me houve com a necessária intrepidez e disciplina, e
devo aqui notar que eu me ia acostumando à vida da guerra civil. Os ódios que
ouvia eram forças reais. De um lado e outro batiam-se com ardor, e a paixão que
eu sentia nos meus ia-se pegando em mim. Já lera o meu nome em uma ordem do
dia, e de viva voz recebera louvores, que comigo não pude deixar de achar
justos, e ainda agora tais os declaro. Mas vamos ao principal, que é acabar com
isto.
Naquele combate achei-me um tanto como o
herói de Stendhal na batalha de Waterloo; a diferença é que o espaço foi menor.
Por isso, e também porque não me quero deter em coisas de recordação fácil,
direi somente que tive ocasião de matar em pessoa a João da Fonseca. Verdade é
que escapei de ser morto por ele. Ainda agora trago na testa a cicatriz que ele
me deixou. O combate entre nós foi curto. Se não parecesse romanesco demais, eu
diria que João da Fonseca adivinhara o motivo e previra o resultado da ação.
Poucos minutos depois da luta pessoal, a um
canto da vila, João da Fonseca caiu prostrado. Quis ainda lutar, e certamente
lutou um pouco; eu é que não consenti na desforra, que podia ser a minha
derrota, se é que raciocinei; creio que não. Tudo o que fiz foi cego pelo
sangue em que o deixara banhado, e surdo pelo clamor e tumulto do combate.
Matava-se, gritava-se, vencia-se; em pouco ficamos senhores do campo.
Quando vi que João da Fonseca morrera
deveras, voltei ao combate por instantes; a minha ebriedade cessara um pouco, e
os motivos primários tornaram a dominar-me, como se fossem únicos. A figura de
Maria Cora apareceu-me como um sorriso de aprovação e perdão; tudo foi rápido.
Haveis de ter lido que ali se apreenderam
três ou quatro mulheres. Uma destas era a Prazeres. Quando, acabado tudo, a
Prazeres viu o cadáver do amante, fez uma cena que me encheu de ódio e de
inveja. Pegou em si e deitou-se a abraçá-lo; as lágrimas que verteu, as
palavras que disse, fizeram rir a uns; a outros, se não enterneceram, deram
algum sentimento de admiração. Eu, como digo, achei-me tomado de inveja e ódio,
mas também esse duplo sentimento desapareceu para não ficar nem admiração;
acabei rindo. Prazeres, depois de honrar com dor a morte do amante, ficou sendo
a federalista que já era; não vestia farda, como dissera ao desafiar João da
Fonseca, quis ser prisioneira com os rebeldes e seguir com eles.
É claro que não deixei logo as forças,
bati-me ainda algumas vezes, mas a razão principal dominou, e abri mão das
armas. Durante o tempo em que estive alistado, só escrevi duas cartas a Maria
Cora, uma pouco depois de encetar aquela vida nova, — outra depois do combate da
Encruzilhada; nesta não lhe contei nada do marido, nem da morte, nem sequer que
o vira. Unicamente anunciei que era provável acabasse brevemente a guerra
civil. Em nenhuma das duas fiz a menor alusão aos meus sentimentos nem ao
motivo do meu ato; entretanto, para quem soubesse deles, a carta era
significativa. Maria Cora só respondeu à primeira das cartas, com serenidade,
mas não com isenção. Percebia-se, — ou percebia-o eu, — que, não prometendo
nada, tudo agradecia, e, quando menos, admirava. Gratidão e admiração podiam
encaminhá-la ao amor.
Ainda não disse, — e não sei como diga este
ponto, — que na Encruzilhada, depois da morte de João da Fonseca, tentei
degolá-lo; mas nem queria fazê-lo, nem realmente o fiz. O meu objeto era ainda
outro e romanesco. Perdoa-me tu, realista sincero, há nisto também um pouco de
realidade, e foi o que pratiquei, de acordo com o estado da minha alma: o que
fiz foi cortar-lhe um molho de cabelos. Era o recibo da morte que eu levaria à
viúva.
CAPÍTULO
6
Quando voltei ao Rio de Janeiro, tinham já
passado muitos meses do combate da Encruzilhada. O meu nome figurou não só em
partes oficiais como em telegramas e correspondências, por mais que eu buscasse
esquivar-me ao ruído e desaparecer na sombra. Recebi cartas de felicitações e
de indagações. Não vim logo para o Rio de Janeiro, note-se; podia ter aqui
alguma festa; preferi ficar em São Paulo. Um dia, sem ser esperado, meti-me na
estrada de ferro e entrei na cidade. Fui para a casa de pensão do Catete.
Não procurei logo Maria Cora. Pareceu-me até
mais acertado que a notícia da minha vinda lhe chegasse pelos jornais. Não
tinha pessoa que lhe falasse; vexava-me ir eu mesmo a alguma redação contar o
meu regresso do Rio Grande; não era passageiro de mar, cujo nome viesse em lista
nas folhas públicas. Passaram dois dias; no terceiro, abrindo uma destas, dei
com o meu nome. Dizia-se ali que viera de São Paulo e estivera nas lutas do Rio
Grande, citavam-se os combates, tudo com adjetivos de louvor; enfim, que
voltava à mesma pensão do Catete. Como eu só contara alguma coisa ao dono da
casa, podia ser ele o autor das notas; disse-me que não. Entrei a receber
visitas pessoais. Todas queriam saber tudo; eu pouco mais disse que nada.
Entre os cartões, recebi dois de Maria Cora e
da tia, com palavras de boas-vindas. Não era preciso mais; restava-me ir
agradecer-lhes, e dispus-me a isso; mas, no próprio dia em que resolvi ir ao
Engenho Velho, tive uma sensação de... De quê? Expliquem, se podem, o
acanhamento que me deu a lembrança do marido de Maria Cora, morto às minhas
mãos. A sensação que ia ter diante dela encheu-me inteiramente. Sabendo-se qual
foi o móvel principal da minha ação militar, mal se compreende aquela
hesitação; mas, se considerares que, por mais que me defendesse do marido e o
matasse para não morrer, ele era sempre o marido, terás entendido o mal-estar
que me fez adiar a visita. Afinal, peguei em mim e fui à casa dela.
Maria Cora estava de luto. Recebeu-me com
bondade, e repetiu-me, como a tia, as felicitações escritas. Falamos da guerra
civil, dos costumes do Rio Grande, um pouco de política, e mais nada. Não se
disse de João da Fonseca. Ao sair de lá, perguntei a mim mesmo se Maria Cora
estaria disposta a casar comigo.
“Não me parece que recuse, embora não lhe
ache maneiras especiais. Creio até que está menos afável que dantes... Terá
mudado?”
Pensei assim, vagamente. Atribuí a alteração
ao estado moral da viuvez; era natural. E continuei a frequentá-la, disposto a
deixar passar a primeira fase do luto para lhe pedir formalmente a mão. Não
tinha que fazer declarações novas; ela sabia tudo. Continuou a receber-me bem.
Nenhuma pergunta me fez sobre o marido, a tia também não, e da própria
revolução não se falou mais. Pela minha parte, tornando à situação anterior,
busquei não perder tempo, fiz-me pretendente com todas as maneiras do ofício.
Um dia, perguntei-lhe se pensava em tornar ao Rio Grande.
— Por ora, não.
— Mas irá?
— É possível; não tenho plano nem prazo
marcado; é possível.
Eu, depois de algum silêncio, durante o qual
olhava interrogativamente para ela, acabei por inquirir se antes de ir, caso
fosse, não alteraria nada em sua vida.
— A minha vida está tão alterada...
Não me entendera; foi o que supus. Tratei de
me explicar melhor, e escrevi uma carta em que lhe lembrava a entrega e a
recusa da primeira e lhe pedia francamente a mão. Entreguei a carta, dois dias
depois, com estas palavras:
— Desta vez não recusará ler-me.
Não recusou, aceitou a carta. Foi à saída, à
porta da sala. Creio até que lhe vi certa comoção de bom agouro. Não me
respondeu por escrito, como esperei. Passados três dias, estava tão ansioso que
resolvi ir ao Engenho Velho. Em caminho imaginei tudo; que me recusasse, que me
aceitasse, que me adiasse, e já me contentava com a última hipótese, se não
houvesse de ser a segunda. Não a achei em casa; tinha ido passar alguns dias na
Tijuca. Saí de lá aborrecido. Pareceu-me que não queria absolutamente casar;
mas então era mais simples dizê-lo ou escrevê-lo. Esta consideração trouxe-me
esperanças novas.
Tinha ainda presentes as palavras que me
dissera, quando me devolveu a primeira carta, e eu lhe falei da minha paixão:
“Suponha que eu o amo; nem por isso deixo de ser uma senhora casada”. Era claro
que então gostava de mim, e agora mesmo não havia razão decisiva para crer o
contrário, embora a aparência fosse um tanto fria. Ultimamente, entrei a crer
que ainda gostava, um pouco por vaidade, um pouco por simpatia, e não sei se
por gratidão também; tive alguns vestígios disso. Não obstante, não me deu resposta
à segunda carta. Ao voltar da Tijuca, vinha menos expansiva, acaso mais triste.
Tive eu mesmo de lhe falar na matéria; a resposta foi que, por ora, estava
disposta a não casar.
— Mas um dia?... perguntei depois de algum
silêncio.
— Estarei velha.
— Mas então... será muito tarde?
— Meu marido pode não estar morto.
Espantou-me esta objeção.
— Mas a senhora está de luto.
— Tal foi a notícia que li e me deram; pode
não ser exata. Tenho visto desmentir outras que se reputavam certas.
— Quer certeza absoluta? perguntei. Eu posso
dá-la.
Maria Cora empalideceu. Certeza. Certeza de
quê? Queria que lhe contasse tudo, mas tudo. A situação era tão penosa para mim
que não hesitei mais, e, depois de lhe dizer que era intenção minha não lhe
contar nada, como não contara a ninguém, ia fazê-lo, unicamente para obedecer à
intimação. E referi o combate, as suas fases todas, os riscos, as palavras,
finalmente a morte de João da Fonseca. A ânsia com que me ouviu foi grande, e
não menor o abatimento final. Ainda assim, dominou-se, e perguntou-me:
— Jura que me não está enganando?
— Para que a enganar? O que tenho feito é
bastante para provar que sou sincero. Amanhã, trago-lhe outra prova, se é
preciso mais alguma.
Levei-lhe os cabelos que cortara ao cadáver.
Contei-lhe, — e confesso que o meu fim foi irritá-la contra a memória do
defunto, — contei-lhe o desespero da Prazeres. Descrevi essa mulher e as suas
lágrimas. Maria Cora ouviu-me com os olhos grandes e perdidos; estava ainda com
ciúmes. Quando lhe mostrei os cabelos do marido, atirou-se a eles, recebeu-os,
beijou-os, chorando, chorando, chorando... Entendi melhor sair e sair para
sempre. Dias depois recebi a resposta à minha carta; recusava casar.
Na resposta havia uma palavra que é a única
razão de escrever esta narrativa: “Compreende que eu não podia aceitar a mão do
homem que, embora lealmente, matou meu marido”. Comparei-a àquela outra que me
dissera antes, quando eu me propunha sair a combate, matá-lo e voltar: “Não
creio que ninguém me ame com tal força”. E foi essa palavra que me levou à
guerra. Maria Cora vive agora reclusa; de costume manda dizer uma missa por
alma do marido, no aniversário do combate da Encruzilhada. Nunca mais a vi; e,
coisa menos difícil, nunca mais esqueci dar corda ao relógio.
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