Maria ou Vinte Anos Depois
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Hélas! tel est ton sort, tel est ma
destine
Lamartine
CAPÍTULO 1: O RAPTO
Where art
thou, son of my love?
Ossian
Aprazíveis
são as montanhas da Gávea. É de sobre suas pedras elevadas, esses rochedos
enormes que sobejam às suas encostas, e de em torno às suas florestas, que se
descobre a imensidade do Oceano Atlântico, que perde-se no infinito, lá onde
assenta-se a base azulada da abóboda do céu e rara vela branqueja como o atiati
que esvoaça, asas imóveis que nem trepidam, de sobre a superfície as águas; lá
onde se perde o pensamento cansado de divagar...
O sol doura
com seus raios animadores o fastígio das montanhas que fumegam aqui e ali, com
as covas dos carvoeiros, coroadas de penedos e restos de florestas, de matos e
de capoeiras.
A brisa
matutina abana levemente a ramagem dos bosques engrinaldados, agita os
verdejantes leques das palmeiras, desce pelas encostas das montanhas, sussurra
nos vales profundos, e encrespando brandamente a lisura das águas marítimas,
vai levar ao nauta, cansado de respirar a viração impregnada de sabor marinho,
os perfumes das flores agrestes que convidam à vida.
Os pássaros,
com suas plumas variadas em cores, adejam pelos ares como nuvem de flores que
as auras arrancam às grinaldas das florestas e levam balouçando sobre suas
asas.
O sabiá
gorjeia placidamente, a paca percorre o abaulado do monte e o escamoso tatu
vaga pela margem desses veios de cristalinas águas que tão mesquinhos por aí
serpejam em tempos deverão, enquanto que o carvoeiro entoa suas endechas de
amor e de esperança.
De enquando a enquando ouve-se o trovão do
arcabuz que os ecos das montanhas repetem de maneira assombrosa, precedidos dos
latidos dos cães; as aves espantam-se, há uma pausa como se parasse a criação;
— é o silêncio na natureza!
Pouco depois
tudo entrou em sua ordem. O sabiá prossegue em seus sonoros gorjeios. O
carvoeiro entoa seus cantares. Ouvem-se de momento em momento sons compassados.
E o ruído dos golpes do machado do lenhador que derriba o tronco das árvores
anosas.
Aí no meio
das florestas elevava-se, como outras muitas, uma tosca choupana da varas
tecidas e barreadas, e coberta de palhas; era a choupana de Maria, a filha do
carvoeiro, que não tinha mais que três repartimentos, uma sala acanhada, o
aposento onde dormia e a cozinha; algumas gaiolas com pássaros do local, alguns
registros de santos da sua maior devoção, e rosários pendiam das paredes
esbroadas; toscos trastes formavam toda a mobília. No solar dessa choupana era
que ela uma manhã, de olhos fitos na terra, pranteava, ao lado de uma menina
que distraidamente olhava para as árvores.
Aí, sentada,
com os cabelos esparsos pelos ombros, os olhos em lágrimas que serpejavam— Ihe
pelas faces amorenadas, mas coradas como a tez delicada do jambo, um braço
cruzado sobre o peito e a mão sustentando o outro em que apoiava a cabeça, ela
sofria, que sua dor era grande, e de entre-vezes um suspiro, que se desenlaçava
do coração, desprendia-se-lhe dos lábios envolto em soluços; era um suspiro de
saudade que perdia-se nos ares e que talvez só fosse respondido pelo vagido
débil e fraco de um menino.
Um homem,
cujo aspecto representava ter mais de sessenta anos de idade, trazendo uma vara
na mão, na qual se apoiava quando tinha de vingar o escabroso da montanha,
aproximou-se. Amenina correu para ele com um suspiro nos lábios, pegou-lhe na
destra, levou a mão à boca e lhe imprimiu um beijo. Maria ergueu-se, foi ao seu
encontro, tomou essa mesma mão, beijou-a, inundando-a de fios de lágrimas que
desprenderam-se-lhe dos olhos.
— Minha
filha! exclamou ele como que admirado.
— Ah! meu
pai, roubaram-mo, roubaram-mo! disse ela na maior desesperação.
— O quê,
minha filha?
— Ah vós nem
vedes que ele aqui não vos espera para beijar a vossa mão, sorrindo-se pendente
de meus braços?
— É
possível!
—
Roubaram-mo, roubaram-mo.
— Quando?
— Esta noite
passada.
— E como?
— Senti um
ruído, e eram as portas da choupana que abatiam-se aos golpes dos machados! Vi
vultos que aproximavam-se de junto de meu leito, e eram os roubadores que mo
vinham buscar! Ouvi vagidos que me cortavam a alma, e era ele que chorava
levado por eles! Desatinada, louca, furiosa, ergui-me, saltei, corri a ele. Eis
que lançam-se dois vultos sobre mim e me retêm em seus braços de ferro, contra
os quais lutei embalde.
— E por que
não gritaste?
— Suas mãos
sufocaram-me as vozes na garganta.
— E depois?
— Fugiram,
desapareceram, levando meu filho consigo e deixando-me a sós com Clara,
desconsolada, aflita e sem saber de mim.
O velho entrou para a choupana, sentou-se e
conservou-se pensativo por algum tempo; depois, sacudindo a cabeça, ergueu os
olhos para Maria que, em pé, imóvel, se conservava a seu lado.
— Não é
hoje, perguntou ele, que deve chegar o teu marido?
— Hoje?
balbuciou ela, olhando para a parede, onde havia traçado com carvão um risco
horizontalmente, e cortado por outros perpendiculares e de diferentes tamanhos;
ah! ajuntou, eu perdi a conta!
— É hoje;
não há dúvida, e aqui não houve senão prevenção; José Feliciano bem to havia
pedido, não lho entregaste, e ele pois lançou mão da violência para havê-lo;
lembrou-se que hoje devia chegar o teu marido e não quis que ele viesse
achar-te com um menino que, segundo todas as probabilidades, não lhe podias
apresentar como seu filho.
Um leve enrubrecimento coloriu as faces de
Maria, que levou o lenço aos olhos, mais para ocultar seu rosto que para limpar
as lágrimas, e cujo disfarce todavia procurou; o velho se calara, e por grande
espaço reinou na choupana o silêncio da solidão, onde tudo se ouve, exceto a
voz humana, até que entrou um escravo, estendeu sobre a mesa um pano de algodão
rusticamente trançado, porém alvo como o dia, e perfumado com o delicioso aroma
da erva de São João, e sobre ele espalhou alguma louça grosseira:
...........................pobre
mesa
Onde não tine a rica porçolana,
Nem cansa aos olhos trêmulo reflexo
De burnida colher, de refulgente
Britânico saleiro................
Onde não tine a rica porçolana,
Nem cansa aos olhos trêmulo reflexo
De burnida colher, de refulgente
Britânico saleiro................
Mas onde
fumegava o café, cujo aroma suave se expandia agradavelmente, enquanto que
alguns beijus branqueavam sobre a toalha. O velho e a menina assentaram-se em
torno, e Maria conservou-se de pé.
Tocavam o fim do almoço quando sentiram o
tropel de um cavalo, que mais se aproximava.
— Alguém se
avizinha, disse Pedro Rodrigues.
— É um
cavaleiro.
— E vem
direito a nossa choupana.
— É Gaetano,
ajuntou o velho levantando-se e dirigindo-se para a porta.
— É ele
mesmo, murmurou ela.
— Quem,
minha mãe?
— Teu pai,
minha filha.
Gaetano apeou-se, beijou a mão ao velho, beijou
sua filhinha, apertou sua esposa em seus braços e entrou para a choupana.
—
Descansemos por um pouco, disse ele se atirando sobre um tosco assento.
— E enquanto
descansas, ajuntou Pedro Rodrigues, eu me vou por aí a lançar uma vista de
olhos às minhas carvoeiras.
— E não
voltareis?
— Depois,
depois, para conversarmos.
Cobriu-se Pedro Rodrigues com o desabado
chapéu e se foi arrimado ao seu bordão.
— Não vos
quereis despir? perguntou Maria a Gaetano.
— Não,
respondeu ele, que tenho ainda que ir dar contas a José Feliciano, de seus
negócios e para nunca mais meter-me em outros.
— E então
pelo quê?
— Por
motivos que depois saberás.
— Pois bem,
contar-me-eis e eu vos escutarei quando quiserdes, no entanto podeis almoçar.
— Tomarei
café, pouco, e comerei então na volta até mais fartar; mas tens um não sei quê
de triste em teu semblante, um não sei quê de pesado em tuas palavras, que
muito estranho.
— E eu
sempre não fui assim?
— Não,
Maria, não, disse ele sorrindo, sem dúvida saudades minhas...
E ela suspirou; serviu-o de café, e um momento
depois Gaetano seguia caminho da Tijuca, montado em seu cavalo. Triste, aflita
e silenciosa conservara-se Maria; apenas lá de vez em quando soltava um gemido,
um gemido terrível que se desprendia do peito; — era a lembrança cruel de seu
filho que lho arrancava —, a lembrança cruel de seu filho que tanto a
atormentava.
À tarde veio o velho jantar com ela; depois
caminharam pelo abaulado do monte e foram sentar-se na relva, sob a copa de uma
laranjeira; o ar estava embalsamado de suas flores. Bela trepadeira se apoiando
sobre seus galhos cingia-a de seus brandos liames, misturando sobre rubros
jasmins com as flores simbólicas da virgindade. Aí num raminho, entre o enlace
de verduras floridas, tinha o beija-flor fabricado o seu ninho de fofas painas,
e guarnecido-o exteriormente com a casca da árvore, como que para não ser
facilmente conhecido, e aí mesmo, do casulo que tecera a lagarta, se desprendia
a borboleta como envolta em pintadas e longas roupas, de que pouco e pouco se foi
desembaraçando; depois ergueu-se, como duas pétalas de flores agrestes,
agitou-as, e, levada pelo vento, parecia uma flor aérea. Lá em cima de um galho
que se debruçava de sobre a água, se embalançava o guará revestido de negras
penas, contempla sua imagem no cristal da água estanque, como se recordando das
belas cores que já tivera. Outra avezinha, não menos interessante, se acolhe à
sua pousada de barro, semelhante a esses edifícios árabes, de abóbodas, e com
formas circulares; entra a porta, e vai branda e suavemente pousar no seu
colchão de moles palhinhas, e enquanto preside à incubação da nova prole,
estende a garganta pela janela de sua pousada para escutar o amante, que
empoleirado no raminho enche os ares de trinados. E ela contemplava em silêncio,
lembrando-se que cedo desumana mão roubar-lhe-ia essa tão querida prole;
lembrava-se e suspirava.
— Ah sempre
a suspirar, disse Pedro Rodrigues, desde que o sol se eleva até que a noite
cai, desde que a noite cai até que o sol se eleva!
— É que meu
peito, lhe voltou ela, é como essas carvoeiras, que aí fumegam dia e noite, que
pelo fumo dão a conhecer o fogo intenso que as devora.
— Sim, mas
tu deves procurar a distração.
— A
distração? É o pesar, o pesar que como o fel da morte se me derramou no mais profundo
do coração.
— Sim, que
teus desgostos passados, e agora o roubo de teu filho, te devem motivar grande
pesar, o que aproveita porém chorá-lo assim tão continuadamente? E não tens aí
no âmago do coração, de envolta com esse fel, que te azeda os dias da
existência, pressentimento que te diz que ele é feliz? Que alma haverá por mais
maligna que seja, que ouse de fazer mal a uma criancinha? E quem rouba uma
criança aos cuidados maternais senão para entregá-la a outros cuidados?
— A uma
madrasta, não é assim?
— Embora,
antes mil vezes uma madrasta, quando a mãe não pode dizer sinceramente: “Este é
meu filho! “ Mais alardeada vai a honra nas aparências, que mesmo na própria
honra; é dissimulação, mas de que se compõe a vida? E quantas madrastas não há
que dão boa educação?
— Se ao
menos eu tivesse exemplo...
— Tu o tens
em ti mesmo; essa que cuidou de tua infância, essa que mil vezes verteu
lágrimas por ti, não era tua mãe, mas sim uma moça desses arrabaldes; era por
uma manhã; senti chorar, e eras tu, minha filha, que jazias à minha porta.
— Coitada!
não era minha mãe, e morreu desgraçadamente por mim!
— O
desgosto!
— Sim, o
desgosto, ocasionado por mim! E minha mãe?
— Silêncio!
Seu nome e sua existência são um segredo.
— E meu pai?
— Tu és
minha filha.
— Pobre de
mim, que desde o berço que a desgraça me persegue!
— E a mim?
Porventura nasci para consumir meus anos nos rústicos trabalhos e tosco trato
de carvoeiro? A demanda!... Maldita hora da vida em que meti-me em tal!
— São
pecados próprios ou herdados que nós pagamos com a existência de miseráveis
pobrezas.
— Enfim,
minha filha, roguemos a Deus, já que a sua misericórdia é infinita, a sua
proteção para Henrique.
Levantaram
ambos os olhos para o céu, e pareciam que imploravam a proteção divina, no
entanto a noite adiantava-se envolta em véus de trevas, e o céu se obscurecia
com a aglomeração de negras nuvens; a tempestade bramando, lá se erguia do
infinito das águas, medonha e ameaçadora; apressaram-se pois em deixar esses
lugares, chamaram por Clarita, que andava a formar ramalhetes de flores
agrestes, que soem crescer por essas montanhas enchendo os ares de seus
perfumes esquisitos, e tomando-a pela mão caminharam; seguiu Pedro Rodrigues
via da sua choupana, e sua filha entrou com a sua neta na sua pobre e velha
choça, silenciosa, atormentada, não já por um pensamento, mas por dois: — seu
filho e sua mãe!
E a
tempestade era terrível! Distinguia-se distintamente uma linha que dividia o
oceano; era a chuva que caía em catadupas, que se despenhava da Ponta Grossa
com murmúrio, e através de seus véus de cristais se descortinava a outra parte
imensa das águas marítimas límpidas e refletindo o sereno azul da abóboda
celeste, e uma vela branqueava nesse azul, como o alcião pousado e imóvel sobre
as ondas. De momento em momento um clarão rápido refrangia-se nos chuveiros;
fitas de fogo avermelhadas, como cordões de sangue, desprendiam-se das nuvens,
cruzavam-se nos ares, emaranhavam-se nos bosques e desapareciam; então troava o
trovão, com seu som de voz horrendo, então rugia o mar funebremente em seus
arquejos; as árvores, trêmulas de horror, com suas frontes desgrenhadas,
pareciam gigantes que dançavam ao som do furacão que sibilava horrivelmente; os
ecos repetiam uns após outros, em cadência infernal, o cântico da destruição!
Só o gigante da Gávea, imóvel no meio de suas montanhas, com seu dístico
misterioso, parecia zombar da tempestade. Estreitada Maria com sua Clarita,
orava, prostrada ante uma imagem de sua devoção; palavras místicas, cheias de
unção, se desprendiam de sua boca, e a filhinha abraçada com o ramo de flores,
repetia palavra por palavra as suas orações.
Era noite e
a tempestade ainda durava. Cansada de esperar por seu esposo, recolheu-se ela a
seu leito, com sua filha, que já dormia com o ramo de flores apertado ao peito.
E aí sobre o leito, em joelhos, mãos postas e olhos erguidos para o céu,
encomendou a alma ao Senhor e pediu a sua proteção para seu filho, o seu
inocentinho Henrique, e depois caiu sobre as palhas de seu leito e adormeceu.
Dormia
pesado sono; pesado como de um pesadelo; pesado, que mais fadiga é que repousar
o dormi-lo, quando a despertaram repetidas pancadas na porta e latidos de cães,
que depois se aquietaram; e a chuva caía ainda saltitando sonoramente no sapé
da palhoça.
— Quem bate
aí?
E o murmúrio
da chuva que se despenhava, e o sibilo do vento que passava.
— É o vento,
disse ela consigo, voltando-se para o outro lado, como que para dormir de novo,
mas as pancadas na porta se renovaram.
— Quem bate
aí? interrogou ela pela segunda vez.
— Gaetano;
abre, Maria.
Levantou-se,
feriu fogo, acendeu a torcida da candeia, abriu a porta, e Gaetano entrou se
desenvolvendo do ponche umedecido da chuva, e o arremessou sobre uma tripeça,
sacou a faca das botas e lançou-a sobre a mesa.
— Pensava
que não vínheis hoje.
— E
entretanto aqui estou.
— Apanhastes
muita chuva?
— O ponche
está ensopado.
—
Recolhestes o cavalo à estrebaria?
— Sim, mas
não o desarreei, que talvez ainda saia.
— Hoje?
— E por que
não? Por agora estou fatigado, quero descansar algum tanto; tenho fome, quero
comer alguma coisa.
— Temos um
resto do jantar, disse ela estendendo um pano sobre a mesa; é um quarto de
paca, alguma farinha e um pouco de vinho.
Sentou-se
Gaetano à mesa e se pôs a comer como um faminto, a mais fartar, e a beber como
um sequioso, a mais não poder, e sua consorte a seu lado, pouco distante,
olhava para ele tristemente.
—
Aproxima-te disse ele, que tenho que dizer-te.
— Eis-me
junta de ti, respondeu ela, arrastando uma banca e sentando-se.
— É uma
história que te quero contar.
— Ouvi-la-ei
com prazer.
— Sim, bom é
que te distraias da melancolia que te pesa sobre as faces e do silêncio que te
prende os lábios.
— Começai.
CAPÍTULO 2: UM CONTO
In vain, alas, in vain!
Campbell
“— Havia na
Gávea, disse Gaetano, certo homem casado, a quem a esterilidade de sua mulher
assegurava que não teria filho algum, de sorte que estavam isentos desses
incômodos que tantagente aprecia; ao menos sendo pobres, de tão ricos que eram,
criam-se felizes, se bem que a mulher desejasse, lá um dia por outro, ter um
filhinho com quem prodigalizasse os seus carinhos, como se o marido não pudesse
servir algumas vezes de criança e diverti-la por alguns momentos; mas enfim,
vamos ao que serve. Indo ele à caça com alguns companheiros, desencaminhou-se e
perdeu-se lá por capoeiras da vizinhança da cascata da Tijuca, e por aí divagou
horas inteiras em procura de alguma picada que o conduzisse a descampado ou
habitação; havia caminho andado dos trilhos embaraçados, quando descobriu um
claro, por onde o sol vinha enfiando seus dourados raios, e saindo e
descobrindo campo, viu ao longe uma como choupana e mais perto um regato que
escoava-se tão agradavelmente, que em suas águas espelhavam-se as flores, as
árvores e penedos de suas margens, e lá num remanso ensombrado por mangueiras
com suas frondosas copas, como zimbório, de verdura, junto de uma pedra que
atravessava a torrente, descortinou que alguém se banhava e aproximou-se;
distinguiu os cabelos espalhados e longos que debruçavam-se-lhe pelo colo que
era de um amorenado gracioso; não havia dúvida, era uma moça, uma moça que ao
vê-lo soltou um grito de surpresa, saltou sobre a pedra, tomou as roupas que aí
deixara, envolveu-se rapidamente nelas e procurou ocultar-se por detrás de um
dos troncos das mangueiras, ao pé do qual se elevavam algumas tiriricas que
mais e mais a favoreceram.
“O caçador
não hesitou nas tentações que sugeriu-lhe o inesperado encontro, e não
respeitando tanta timidez nascida do pundonor, dirigiu-se direito para ela como
a seta disparada do arco; dir-se-ia que ele corria atrás de uma paca, e quanto
mais ele se aproximava, tanto mais a moça tiritava, como tabocas balançadas
pela viração da tarde. Depois retumbou nas selvas um gemido doloroso! Oh a
desgraçada estava perdida para todos os dias de sua vida, para todos!...
Passados nove meses, já quando esse homem se não lembrava dessa moça, que o
acaso tornou vítima de um amor gerado num momento e noutro momento extinto e
talvez para sempre, e a quem ele havia arremessado e com desdém um simples
anel, como que para lembrança da desgraça que ele motivara, eis que ouviu ao
abrir certa manhã a sua porta, descompassados vagidos, e descobriu há pouca
distância, sob uns cafezeiros, uma criancinha envolvida em baetas.
— É teu
filho, bradou-lhe a mulher.
— Não, não,
disse ele, querendo afetar tranquilidade, e eu o juro por...
— Não jures,
atalhou ela; desde os pés até a cabeça que é todo teu retrato!
— Não jures,
que há outras provas que o demonstram.
— E que
provas?
— Olha,
disse ela, o que pende desta fita que ele traz atada ao pescoço; — o anel, que
tu perdeste na caçada!”
Maria corou
olhando para o anel que ela tinha num de seus dedos; não desconheceu Gaetano a
perturbação, disfarçou porém, e lançando vinho ao copo, virou-o de golpe.
— Ou este ou
o de Chipre!
— E depois?
interrogou Maria.
— Ouve-me e
deixa-te de interrupção. — Continuai, disse ela suspirando. Gaetano prosseguiu.
— Esse anel,
voltou-lhe o marido, poderia ter sido achado por alguém.
— E
depositaram-na aqui e com ele! Quê de coincidências!... Pois bem, bradou ela
com arrogância, pois bem, uma faca! Tu me negas a verdade e tua consciência vai
ser em breve dilacerada pelo remorso do homicídio; mas se mo confessas que é
teu filho, cuidarei eu dele, pois estimava mesmo ter uma criança com que me
entretece, uma só, sem mais exemplo... porém, se não é teu filho, já a faca na
garganta, que o degolo.
— Perdão,
disse ele, perdão, que te fui infiel uma hora! Numa hora, em que sacrifiquei
uma donzela ao meu desvario; e o acaso, o encontro, deu-me este filho...
—
Desgraçada! Como chamava-se ela? — Catarina.
— A filha de
Joaquim Antônio?! Desgraçado, desgraçada, desgraçados vós ambos! Por um momento
de loucura, por uma alienação de amor! E entretanto as suspeitas recaíram na
inocência, em quem a destra do pai presumiu, mas em vão, vingar a honra da
filha! Três dias e três noites, sem comer, velando a sós, à espera de sua
vítima, que não era culpada, e uma noite o raio que parte de um punhado de
árvores, o grito que ressoa nos ares, o vulto que foge, e lá mais distante, o
cadáver que cai...
— Perdão,
perdão, clamava ele em joelhos, e silêncio! O mal não tem remédio, e eu farei
penitência, ouvirei três capelas de missas pela alma do morto, assassinado por
minha culpa, e pedirei remissão a Deus de meus pecados.
— Pois bem,
silêncio!... Vê, porém, e acautela-te que não somos só nós que ignoramos essa
fatalidade; quem lançou essa criança à nossa porta, sabe muito bem o que tu és
dela.
E ao curarem
da criança, conheceram que era menina e batizaram-na como o nome de Maria.
Suspirou
Maria e Gaetano prosseguiu.
A uma
escrava, que criava seu filho, deram-na para amamentá-la, e enquanto ela
crescia e desenvolvia-se, o triste do pai passava os dias em orações, as noites
em penitências, e ia à missa todas as segundas-feiras pela alma do finado.
Os anos eram
idos, que rápido vai o tempo sem o sentirmos, contados um a um os segundos e
marcados pela mão da morte, e em noite de Natal, em que toda a choupana do
carvoeiro retinia com os sacros hinos entoados por diversas pessoas que ali
concorriam para ver um presépio toscamente levantado no canto da sala, um
malvado procurava todos os meios de sedução para iludir uma menina morena, tão
bela e tão simples, como essas flores sem nome de sua pátria, que desabrocham
recendentes de perfumes. Conseguiu atraí-la ao caramanchão, onde pendiam os
roxos martírios e os pomos verdes e amarelos, e que ficava há pouca distância,
mas seus esforços foram baldios, que essa menina em cujos olhos brilhava a
vivacidade da mocidade, se bem que inexperiente, era ainda muito casta e
cândida para deixar-se levar de suas promessas e ver-se depois desamparada e
infeliz sobre a terra, sem arrimo, e selada com o ferrete da desonra, que a
envergonhasse aos olhos do mundo.
Rico e
poderoso, temido entre os pequenos, como todos esses tiranos e ambiciosos
senhores que por aí avultam, era ele muito altivo e sagaz para recuar ante a
impossibilidade de levar com seus intentos por diante, por mais torpes que
fossem, e pois jurou para logo sobre esse peito que palpitava de inocência e
singeleza, que dia viria em que teria por seu o triunfo.
Ele o jurou,
e assim havia de ser. Tinha ele por administrador de suas terras a um
estrangeiro, natural de Acerenza, na Calábria, a quem prometeu a sua proteção,
terras e dinheiro se quisesse fazer a felicidade de uma menina, que era filha
de um carvoeiro, que ele estimava por sua honradez, pois era homem que já tinha
tido muito de seu, e que depois ficara em miséria, e cuja mulher era muito da
afeição de sua consorte. Nascido em país de indigência, viu o pobre calabrês
pela primeira vez a felicidade sorrir-se-lhe benigna na terra estrangeira,
lembrou-se de seu pai, de sua mãe e irmãozinhos que deixava lá tão longes,
remotos, nas maiores pobrezas, e chorou; chorou, porque o calabrês com a sua
alma de bronze tem também seus sentimentos de homem; aceitou pois a sua
proteção, recebeu uma velha choupana para a sua morada, algumas braças de terra
para lavrar e a mão dessa menina que se lhe prometera por sua companheira.
Por algum
tempo viveu ele feliz, no seio de sua família, vendo-se retratado nas feições
da filhinha que lhe deu Deus, dez meses depois do seu consórcio; cultivando
suas terras, derrubando capoeiras e formando covas de carvão; vivia assim,
quando uma manhã recebeu um recado daquele de cujas terras fora administrador e
a quem era tão obrigado, que o chamava à sua presença para lhe comunicar
notícias de maior interesse.
le o jurou e
assim havia de ser, embora tivessem-se passado tantos meses! Coração danado,
dormia e despertava com a ideia de encher um juramento tão torpe em suas
consequências! Na boa fé dos homens de bem, ei-lo que deixa a choupana, as
terras, as carvoeiras, a esposa e a filhinha, e lá se vai a longes terras a
empregar-se no tráfico de africanos boçais.
E durante a
sua ausência, essa depois que era sua companheira, essa que era mãe de sua
filha, e que havia resistido aos intentos do malvado que pretendeu seduzi-la,
deixava-se levar de suas persuasões, esquecia-se de seu esposo, como se ele já
tivesse baixado à vala dos mortos ou não tivesse de voltar para pedir-lhe conta
de seu procedimento, e tinha um ano depois um filho. Espalhou-se o boato por
toda a parte, como o clarão da tempestade; aquela que a educara como sua filha,
tamanha paixão concebeu que veio a sucumbir dentro em três dias à violenta
febre; mas não a perseguiu o remorso do crime, o pai de seu filho continuou a
ter entrada em casa, e um dia, ei-lo que cessa de vir, porque os dias estavam
contados, e uma manhã eis que essa mulher pérfida acorda despertada pelo ruído
de suas portas, que caem aos golpes do machado e pelos gritos de seu filho que
lhe roubam.
E esse homem
que sabia de tudo quanto se passava em sua choupana durante a demora por
longínquas paragens da costa, pedia nas suas orações a maldição do céu para
José Feliciano, e jurava morte a sua esposa.
— E esse
homem sou eu, Maria! disse ele concluindo a sua fatal história, erguendo-se,
precipitando-se sobre a sua faca e arrastando pelo braço a mísera esposa.
— E esse
homem sou eu!
— Perdão,
exclamou ela.
— E essa
mulher és tu!
— Perdão, em
nome de Deus, perdão! Em vão, em vão, ah, em vão lutei eu, mas fui vencida;
gritei, mas a quem me socorrer? Achei-me a sós com homem tão terrível!... Tua
vingança para ele que não para mim, Gaetano!
— Para ele a
maldição do céu, a minha praga no furor de minha paixão; Deus vingar-me-á! Para
ti a minha desafronta! — a desafronta é — a morte!
— Perdão!
perdão! bradou ela levantando os olhos para o céu e querendo ajoelhar-se, mas
de repente, por um movimento rápido lançou-se, desembaraçando-se de seu
assassino, no aposento, sobre a cama da filhinha. Gaetano tomou a candeia,
seguiu-a, ah, ela abraçava-se com Clarita, banhando-a de suas lágrimas; mas o
implacável calabrês tinha alçado o seu punhal e deixado cair sobre o colo de
sua esposa...
Um grito de
horror que foi longe, um ai de morte que faleceu ao desprender-se dos lábios,
retumbaram por toda a choupana. Gaetano sacava o ferro tinto de sangue ainda
fumante, quando a filha despertando, abriu os olhinhos, e um sorriso lhe roçou
as faces; e estendeu o braço para ele como lhe ofertando o ramalhete de flores.
Eriçaram-se-lhe os cabelos, gelou-se todo, e a candeia escapou-se-lhe da mão e
apagou-se.
Ouviu-se
pouco depois o trotar de um cavalo, o latido de cães e depois um trovão.
Era ele que
se havia perdido entre as trevas da noite, como o relâmpago; era a tempestade
que tinha soltado o último bramido.
CAPÍTULO 3: VINTE ANOS
DEPOIS
........................E para longe,
E bem longe de Clara, como um sonho,
Sumiu-se................
A louca.
Vinte
anos!... Que longo espaço para rápidas e sucessivas mudanças de tempo! Como a
esses guerreiros que moços e robustos partiam para a Palestina e quando
voltavam vinham cansados e cobertos de cãs, que perguntavam: — Onde está meu
pai? — E lhe mostravam o túmulo. Que perguntavam: — Onde está minha mãe? — E
lhes mostravam outro túmulo. Que perguntavam: —Onde está minha casa? — E lhes
mostravam uma árvore. Assim, a quantos se não poderia responder da mesma forma,
se iguais interrogações se dirigissem aos habitantes da Gávea?
Vinte anos
eram idos, vinte anos tinham se sepultado na eternidade do passado, e já nem
vestígios existiam da choupana dessa infeliz Maria, a filha do carvoeiro; se
alguém, que tinha ouvido pronunciar seu nome, narrar suas desgraças e derramado
uma lágrima por ela, perguntava pela sua choupana, uma mão apontava para uma
capoeira.
Subsistia
todavia a choupana do velho Pedro Rodrigues, vinte vezes deteriorada pela mão
do tempo, outras tantas reparada pela mão do homem, até que se aniquilasse de
toda, e, ou outra se alevantasse em seu lugar, ou uma capoeira. Aí, sobre o
solar do albergue, foi que vinte anos depois da catástrofe de Maria, viu
Clarita rebentar sobre a costa o medonho furacão, cujo sopro submergiu diversas
embarcações e desarvorou outras: foi aí que viu um navio impelido pelo furacão,
varar-se pela terra e fazer-se em pedaços que os vagalhões arrebataram como
presas que lhes pertenciam; caindo em joelhos, seus olhos se ergueram para o
céu e ela subiu sua alma a Deus pedindo pelos náufragos; breve, porém, a noite
inundou os ares de trevas, e nada mais pôde ver; consolou-se com orar, ao lado
de seu velho avô e Catarina sua esposa. O dia seguinte ainda não bruxuleava no
horizonte e já os habitantes da Gávea corriam à praia, lá onde esse ribeiro que
se revolve em seu leito de lodo entra no mar, em que se perde, para ver um moço
que dava sinais de vida e que fora pelas ondas rejeitado; leme... mastro...
cabos... tábuas... juncavam a praia... Dizia-se que toda a tripulação e
passageiros, de que esse moço fazia parte, haviam perecido.
Três dias,
quatro dias, cinco dias se passaram e ainda o naufrágio era o assunto das
conversações entre todos os habitantes e em todas as choupanas. Cada qual
apressava-se em contar aos hóspedes as promiscuidades de tão deplorável
acontecimento, e ao viandante se perguntava:
— Já sabeis
do naufrágio?
Era a
novidade do tempo que corria de boca em boca adornada dos atavios das
imaginações por que passava.
Havia o moço
tornado à vida e se restabelecia, quando uma tarde, Pedro Rodrigues encostado a
seu bastão, conduzido por sua esposa, e acompanhado por Clarita, que caminhava
descalça, e cuja fisionomia tinha um não sei quê de beleza e de simplicidade
que encantava, desceram os íngremes trilhos da montanha com o maior cuidado, e
foram bater à porta da choupana a visitar o náufrago.
Ofereceram-lhe
assento e ele assentou-se com a sua esposa e a sua neta ao lado do moço.
— Vinde
visitar-me? perguntou ele.
— É verdade,
meu filho, sou humano e compadeço-me dos náufragos: a todos fecharia a porta da
minha palhoça, menos ao naufragado.
— E já
naufragaste?
— Nunca saí
do Rio de Janeiro.
— Feliz
homem! Nunca entregou-se ao edifício errante, fabricado pelas mãos dos homens e
arremessado às ondas, que rege o aceno de Deus e que em vão o espírito humano
intenta encadeá-las ao jugo de seus domínios, dando leis à terra e pondo freio
aos mares. É a tempestade o aceno de Deus, e contra ela o que aproveita opor
barreiras?
— É assim,
meu filho, disse o velho, e calou-se; vendo porém que o moço nada mais dizia,
prosseguiu: E donde vindes?
— Da Bahia,
donde partimos numa sexta-feira.
— Numa
sexta-feira! Dia aziago para os marítimos.
— Bem
aziago! Ainda não havíamos perdido a terra de vista, que já o sangue do
homicida inundava o convés do bergantim.
— Alguma
desordem?
— Dois
marinheiros, que insultando-se mutuamente, puxaram das facas e atiraram-se um
contra o outro; foi em vão que buscou-se apartá-los; luta renhida, não havia aí
mais que a destruição de um para decidir dela; enfim, um deles caiu sem vida,
ferido a toda a faca, perto da clavícula do lado direito, entre a primeira e a
segunda costela verdadeira, e outro precipitou-se às ondas, que o subverteram.
A essa cena de horror, bradou o mestre com som de voz terrível:
— Agouro!
Agouro!
— Perdemos a
Bahia de vista, e quando começamos a enxergar o Gigante que dorme, o tufão que
rebenta e nos impele sobre a costa!
— E sois
natural da Bahia?
— Não: que
nasci nestas montanhas, a cujas faldas me rejeitaram as ondas como morto.
— E vosso
pai?
— Ah! seu
nome é um segredo! — E vossa mãe?
— Nunca mo
souberam dizer quem era ou não quiseram.
— Tanto
mistério envolve o vosso nascimento!
— Sei apenas
que vi o dia nestas montanhas: ouvi dizer o nome de meu pai, mas jurei não
divulgá-lo; nem eu mesmo nunca vi-o, e vê-lo ou não vê-lo, é o mesmo, que não o
conhecerei; sei que é rico, pois que dele recebi uma educação que não é lá das
piores, e ainda continuo a perceber mesadas por sua conta; e quanto a minha
mãe... Há um mistério, um mistério profundo que em vão tenho sondado... Sem
dúvida sou filho de alguma personagem ilustre pelo seu nascimento, mas não sei
porque me desdenharam de maneira que não conheço meus ascendentes, pois que fui
roubado em tenra idade a minha mãe.
— E como vos
chamais?
— Henrique.
— Henriquê?
repetiu o velho apoiando-se no bastão e querendo erguer-se. Henrique!
— Porventura
me conheceis?
— Um
momento, meu filho, um momento a sós convosco e sabereis tudo.
— De vós?
— Sim, de
mim, que para estes lugares vim em minha mocidade, e há que tempos vai isso!
Olhai: oitenta e cinco anos hão passado sobre a minha cabeça!
— Que longa
idade!
— Vós sabeis
o nome de vosso pai, pois bem, por ele sabereis que não vos direi senão
verdades; mas antes de começarmos a nossa prática a sós, convém que me digais
se tendes notícia de um cordãozinho de ouro com um signo de Salomão, com que
fostes roubado.
— Basta!
disse Henrique abrindo a camisa e deixando ver o cordão com o signo, que lhe
pendia do pescoço: vós sabeis de tudo!
Abraçou
Henrique o velho octogenário e pediu a todos quantos o rodeavam que lhe
concedessem vagar para a conferência que desejava ter com ele; o que anuíram e
retiraram-se todos para o terreiro, onde conversavam alguns roceiros assentados
ou em pé.
— Ora, e
esta? dizia um deles, quer este homem, minhas senhoras donas, fazer-nos
acreditar coisas impossíveis e até hoje ainda não vistas.
— Não
vistas? Dou-vos minha palavra que vi eu, e vos prometo trazer uma para destruir
tanta incredulidade.
— Diz ele
que a lagarta fabrica o casulo, que do casulo sai a borboleta, que é a própria
lagarta que aí se desenvolve.
— Até aí não
há novidade, acrescentou um dentre eles, cujas brancas lhe alvejavam a cabeça.
— Não há,
exclamaram todos a um tempo.
— Pois sim,
continuava o outro, não há, porém o que eu não creio é que essa borboleta
torne-se dias depois em beija-flor!
— Quê! disse
o velho, será possível que eu ainda não visse semelhante fenômeno! pois olhai
que não é de ontem que datam as minhas caminhadas pelos matos; que me digais
que vistes galhos de cafezeiros transformados em bichos, creio, que vi-o eu,
mas borboletas em beija-flor, bofé que não, meu amigo. E pôs-se a rir.
— Aposto eu
que também negareis que o camboatá anda em terra tão senhor de si como na água,
não é assim?
—
Acreditamos, voltou-lhe o outro, e por que não? Ora, depois da
borboleta-beija-flor, que há mais que admirar...
Risadas
estrondosas cobriram a voz do último que falava; o outro desconfiando pegou em
seu chapéu e retirou-se.
— Vamos ao
café! disse um.
— Ao café!
bradaram todos correndo para a menina, que trazia algumas vasilhas com café,
que se apressaram em tomar.
Enfim, havia
o tempo corrido e já aproximava-se a noite, quando Pedro Rodrigues dando por
finda a entrevista pediu às pessoas que se haviam retirado que entrassem.
Apertou
Henrique a ingênua Clarita em seus braços imprimindo-lhe um beijo naquelas
faces moreninhas.
— Teu irmão,
minha filha, disse o velho.
— Ah, é
este, meu avô, voltou ela apertando-o mais e mais em seus braços, aquele de
quem tantas vezes me falastes? Oh, meu irmão! Quantas e quantas vezes não
repeti teu nome com as lágrimas nos olhos e a dor no coração!
— E talvez
esses instantes, ajuntou ele, fossem aqueles em que meu coração caía de súbito
em abatimento de tristeza e soltava um suspiro involuntário; era um eco que
repetia, era uma corda que ferida após outra dava o mesmo som!
Lançou o
velho a sua bênção à Henrique, e retirou-se; um moleque caminhava ante Pedro
Rodrigues, Catarina e Clarita, com uma vela acesa levando a mão com os dedos
cerrados adiante para que não a apagasse o bafo da noite, e viu-se por algum
tempo essa luz ora desaparecer, ora aparecer por entre a folhagem dos
arvoredos, como a estrela que some-se, que surge entre o véu das nuvens, e que
depois desaparece de toda. E assim iam todas as tardes a visitar o jovem
Henrique, e assim voltavam todas as noites para a choupana, até que
restabelecendo-se o moço, os veio visitar, protestando que todas as vezes que
pudesse viria à Gávea para vê-los.
Abençoou-o o
velho e montando ele num luzido cavalo seguiu caminho da corte; Clarita na
janela, que descobria longe, com a cabeça apoiada no braço, alongava os olhos
pelos trilhos e via de quando em quando, lá entre a ramagem das árvores que
rumorejava o vento, o vulto que balançando ausentava-se mais e mais, e depois
sumiu-se; seus olhos alçaram-se-lhe para o céu, e ela suspirou.
Era um
suspiro de amor e de saudade!
— Se ele não
fosse meu irmão! murmurou ela.
E o cavalo
de Henrique caminhava, ora descendo esses trilhos arrepiados de soltos penedos,
ora subindo, e em breve achou-se na Boa Vista.
Aí sobre
esse alto, donde tudo é belo e grande, rico e majestoso, divisou a cidade do
Rio de Janeiro, com suas torres, com seus edifícios de diferentes formas, mas
mesquinha e pequena nomeio do grandioso espetáculo da natureza que se desdobra
com tanta pompa; aqui o rochedo enorme, coroado de nuvens coloridas pelos
últimos raios do astro do dia, lá uma cadeia prodigiosade montanhas de píncaros
mais ou menos elevados que a órgãos se assemelham e que se estendem como uma
falange de gigantes, sob esse pavilhão imenso, essa abóboda de safira, cujas
nuvens se ensanefam e se tingem de rubro com a luz do sol do ocidente, tendo a
seus pés essas ondas azuladas de um mar de ouro, que como uma campina se
dilata, sorrindo-se ao beijar da brisa vespertina; divisou, mas seus olhos se
voltaram para
...............o cimo da Gávea alcantilada,
Só de vento, de raios e de chuva
Habitado!..............................
Só de vento, de raios e de chuva
Habitado!..............................
Que ele ia
perder de vista; se voltaram, e duas lágrimas de saudade e de amor lhe desceram
pelas faces.
— Se ela não
fosse minha irmã! murmurou ele. E perdeu a Gávea de vista.
Tinham
decorrido alguns meses, havia-se Pedro Rodrigues separado de sua neta, que ele
tanto estimava, e que entretanto era preciso resignar-se a ajuntar mais este
desgosto aos que já sofrera, vivia pois na companhia dessa Catarina, cuja
afronta reparara, e que era sua inseparável amiga; no acaso da vida, a fortuna
lhe fez deparar com essa alma caritativa que o ajudava a suportar o peso de
oitenta e cinco anos de existência tão cheia de desgostos e dissabores; alguns
meses se haviam decorrido e ainda Henrique não havia voltado para vi-lo visitar
que desde o dia de sua partida não houve saber mais dele; apenas Clarita o
vinha ver quando lhe era dado, e distraí-lo de suas meditações que já não eram
deste mundo, e interromper o fio de suas orações; e suas palavras eram de
consolação para o octogenário, que lhe retribuía com conselhos cheios da
experiência de longa vida, e das virtudes praticadas em emenda de erros que a
idade fogosa da mocidade lhe originara.
Uma noite, a
sós com a sua esposa e um velho negro que ainda o servia, ou, para melhor
dizer, ambos se prestavam mútuos socorros, orava Pedro Rodrigues, todo
compenetrado de ideias sublimes, que ainda rolavam na sua fria imaginação; sua
alma divagando pelo infinito se infundia em místicas e melancólicas meditações,
quando de repente ouviu fora da choupana e há pouca distância, vozes confusas
que se trocavam, ruído de armas que no embate retiniam; trêmulo, chegou-se à
porta, apoiando-se no bastão e distinguiu na diáfana escuridão da noite grupos
cujos vultos se moviam como se lutassem renhidamente; depois sentiu trotar de
cavalo e daí há pouco viu que um cavaleiro que metia o cavalo sobre eles,
entrava na luta. Era em vão que ele os pretendia apaziguar apartando-os; um já
estava por terra e quatro ainda sobre ele procuravam sufocá-lo.
— Quatro
contra um? bradou o cavaleiro sacando uma pistola dos coldres e engatilhando-a
ligeiramente; quatro contra um é a mais infame de todas as cobardias! Ou morrer
pela bala ou separar-vos!
E o raio
partiu sobre o grupo; ao estampido do trovão se ergue o cavalo, joga com o
cavaleiro e desaparece; e um gemido se desprende do meio dos vultos que se
dispersam ficando um prostrado.
Pedro
Rodrigues, sua esposa e o velho negro, em pé na porta da choupana, tiritavam de
medo, se persignavam e rezavam.
— Quem és
tu? interrogou o cavaleiro se aproximando daquele que tinha salvado e que tão
denodadamente lutava braço a braço contra quatro? nunca homem tão só entrou em
luta tão desigual.
— Ah!
respondeu ele com voz de quem agonizava, estou todo coberto de feridas, que me
esfaquearam a fartar! Chegastes tarde, cavaleiro, para salvar-me a vida,
chegastes cedo, porém, para salvar-me a alma e ouvir minha confissão, e
comunicá-la depois a algum sacerdote que me absolva. Metei a mão na minha
algibeira aqui do lado esquerdo e tirai alguns patacões para mandardes dizer
missas para minha salvação.
Ajoelhou-se
o cavaleiro junto do ferido, que começou a sua confissão:
— Eu sou,
disse ele, Gaetano o calabrês...
— Gaetano!
Gaetano o calabrês! exclamou o cavaleiro, que eu salvasse semelhante homem! Tu
és Gaetano, ah, e eu sou aquele menino que fui roubado da tua choupana! Tu és
Gaetano, o assassino da filha do carvoeiro, oh! minha pobre mãe!...
— Quê! vós
sois deveras Henriquê?
— Sim,
Henrique, Henrique Feliciano, que jurou vingança pela morte de sua mãe.
—
Desgraçado, assassinastes a vosso próprio pai!
— A meu pai?
interrogou ele aterrado.
— Sim, vede
aquele cadáver prostrado pelo tiro de pistola que sobre eles disparastes, é
José Feliciano!
— Meu pai!
meu pai!
E Gaetano
revolvia-se, voltando-se sobre si mesmo, rolando pela terra, agarrando-se às
ervas, debatendo-se com as ânsias da morte.
— O crime
puniu o criminoso! Estou vingado! bradou ele soltando o último arranco.
— Meu pai!
meu pai! Assassinei meu pai! clamava o mísero filho sobraçando o cadáver de
José Feliciano, inundado de sangue, e com tal acento de dor e de desespero que
comovia.
— Sim, teu
pai, gritou com voz trêmula e rouca um vulto que trazia uma candeia, cujo
pálido clarão bruxuleava aumentando o horror dessas cenas de sangue; sim, teu
pai, que se tinha casado há dois meses com a tua irmã!
— Justiça de
Deus grande! exclamou Henrique, caindo desmaiado a seus pés.
CAPÍTULO: CONCLUSÃO
No dia 2 de
julho desse ano, certa senhora, acompanhando um velho que arrastava-se a cada
passo que movia, e seguida de outra mais moça e coberta de dó, paravam ante um
cubículo da Santa Casa de Misericórdia e contemplavam tristemente um jovem que
aí estava encarcerado.
— Ah!
exclamou ele, eu matei meu pai!
E terrível
gargalhada desprendia-se-lhe dos lábios.
— Pobre
Henrique, disse a moça enxugando os olhos, está doido!
— Doido!
doido sem mais esperança de salvá-lo, ajuntava o velho com mágoa, e para sempre
doido!...
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