Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A pensão familiar “Boa Vista”
ocupava uma grande casa da praia do Flamengo, muito feia de fachada, com dois
pavimentos, possuindo bons quartos, uns nascidos com o prédio e outros que a
adaptação ao seu novo destino fizera surgir com a divisão de antigas salas e a
amputação de outros aposentos.
Tinha boas paredes de sólida
alvenaria de tijolos e pequenas janelas de portadas de granito e linha reta,
que olhavam para o mar e para uma rua lateral, à esquerda.
A construção devia datar de cerca
de sessenta anos atrás e, nos seus bons tempos, certamente possuiria, como
complemento, uma chácara que se estendia para o lado direito e para os fundos,
chácara desaparecida, em cujo chão se erguem atualmente prédios modernos, muito
pelintras e enfezados, ao lado da velha, forte e pesadona edificação dos outros
tempos.
Os aposentos e corredores da
obsoleta moradia tinham uma luz especial, uma quase penumbra, esse toque de
sombra do interior das velhas casas, no seio da qual flutuam sugestões e
lembranças.
O prédio sofrera acréscimos e
mutilações. Da antiga chácara, das mangueiras que a “viração” todas as tardes
penteava a alta cabeleira verde, das jaqueiras, de ramos desorientados, das
jabuticabeiras, dos sapotizeiros tristes, só restava um tamarineiro no fundo do
exíguo quintal, para abrigar nos posmerídios de canícula, sob os ramos que
caíam lentamente como lágrimas, algum hóspede sedentário e amoroso da sombra
maternal das grandes árvores.
O grande salão da frente — a sala
de honra das recepções e bailes — estava dividido em fatias de quartos e dele
só ficara, para lembrar o seu antigo e nobre mister, um corredor acanhado, onde
os hóspedes se reuniam, após o jantar, conversando sentados em cadeiras de
vime, ignobilmente mercenárias.
Dirigia a pensão Mme. Barbosa,
uma respeitável viúva de seus cinquenta anos, um tanto gorda e atochada, amável
como todas as donas de casas de hóspedes e ainda bem conservada, se bem que
houvesse sido mãe muitas vezes, tendo até em sua companhia uma filha solteira,
de vinte e poucos anos por aí, Mlle. Irene, que teimava em ficar noiva, de onde
em onde, de um dos hóspedes de sua progenitora.
Mlle. Irene, ou melhor: Dona
Irene escolhia com muito cuidado os noivos. Procurava-os sempre entre os
estudantes que residiam na pensão, e, entre estes, aqueles que estivessem nos
últimos anos do curso, para que o noivado não se prolongasse e o noivo não
deixasse de pagar a mensalidade à sua mãe.
Isto não impedia, entretanto, que
o insucesso viesse coroar os seus esforços. Já fora noiva de um estudante de
direito, de um outro de medicina, de um de engenharia e descera até um de
dentista sem, contudo, ser levada à presença do pretor por qualquer deles.
Voltara-se agora para os
empregados públicos e toda a gente na pensão esperava o seu próximo enlace com
o senhor Magalhães, escriturário da alfândega, hóspede também da “Boa Vista”,
moço muito estimado pelos chefes, não só pela assiduidade ao emprego como pela
competência em coisas de sua burocracia aduaneira e outras mais distantes.
Irene caíra do seu ideal de
doutor até aceitar um burocrata, sem saltos, suavemente; e consolava-se
interiormente com essa degradação do seu sonho matrimonial, sentindo que o seu
namorado era tão ilustrado como muitos doutores e tinha razoáveis vencimentos.
Na mesa, quando a conversa se
generalizava, ela via com orgulho Magalhães discutir gramática com o doutor
Benevente, um moço formado que escrevia nos jornais, levá-lo à parede e
explicar-lhe tropos de Camões.
E não era só nesse ponto que o
seu próximo noivo demonstrava ser forte; ele o era também em Matemática, como
provava questionando com um estudante da Politécnica sobre geometria e com o
doutorando Alves altercava sobre a eficácia da vacina, dando a entender que
conhecia alguma coisa de medicina.
Não era, pois, por esse lado do
saber que lhe vinha a ponta de descontentamento. De resto, em que pode
interessar a uma noiva o saber do noivo?
Aborrecia-lhe um pouco a pequenez
do Magalhães, verdadeiramente ridícula e, ainda por cima, o seu canhestrismo de
maneiras e vestuário.
Não que ela fosse muito alta,
como se pode supor; porém, algo mais do que ele, era Irene fina de talhe, longa
de pescoço, ao contrário do futuro noivo que, grosso de corpo e curto de pescoço,
ainda parecia mais baixo.
Naquela manhã, quando já se ia em
meio dos preparativos do almoço, o tímpano elétrico anunciou estrepitosamente
um visitante.
Mme. Barbosa, que superintendia
na cozinha o preparo da primeira refeição dos seus hóspedes, àquele apelo da
campainha elétrica, de lá mesmo gritou à Angélica:
— Vá ver quem está, Angélica!
Essa Angélica era o braço direito
da patroa. Cozinheira, copeira, arrumadeira e lavadeira, exercia
alternativamente cada um dos ofícios, quando não dois e mais a um só tempo.
Muito nova, viera para a casa de Mme. Barbosa ao tempo em que esta não era
ainda dona de pensão; e, em companhia dela, ia envelhecendo sem revoltas, nem
desgostos ou maiores desejos.
Confidente da patroa e, tendo
visto crianças todos os seus filhos, partilhando as alegrias e agruras da casa,
recebendo por isso festas e palavras doces de todos, não se julgava bem uma
criada, mas uma parenta pobre, a quem as mais ricas haviam recolhido e posto a
coberto dos azares da vida inexorável.
Cultivava por Mme. Barbosa uma
gratidão ilimitada e procurava com o seu auxílio humilde minorar as
dificuldades da protetora.
Tinha guardado uma ingenuidade e
uma simplicidade de criança que, de modo algum, diminuíam a atividade pouco
metódica e interesseira dos seus quarenta e tantos anos.
Se faltava a cozinheira, lá
estava ela na cozinha; se bruscamente se despedia a lavadeira, lá ia para o
tanque; se não havia cozinheira e copeiro, Angélica fazia o serviço de uma e de
outro; e sempre alegre, sempre agradecida à Mme. Barbosa, dona Sinhá, como ela
chamava e gostava de chamar, não sei por que irreprimível manifestação de
ternura e intimidade.
A preta andava lá pelo primeiro
andar na faina de arrumar os quartos dos hóspedes mais madrugadores e não ouviu
nem o tinir do tímpano, nem a ordem da patroa. Não tardou que a campainha
soasse outra vez e desta, imperiosa e autoritária, forte e rude, dando a
entender que falava por ela a própria alma impaciente e voluntariosa da pessoa
que a tocava.
Sentiu a dona da pensão que o
estúpido aparelho lhe queria dizer qualquer coisa importante e não mais esperou
a mansa Angélica. Foi em pessoa ver quem batia. Quando atravessou o “salão”,
reparou um instante na arrumação e ainda ajeitou a palmeirita que, no seu pote
de faiança, se esforçava por embelezar a mesa do centro e fazer gracioso todo o
aposento.
Prontificou-se em abrir a porta
envidraçada e logo encontrou um casal de aparência estrangeira. Sem mais
preâmbulos, o cavalheiro foi dizendo com voz breve e de comando:
— Mim quer quarto.
Percebeu Mme. Barbosa que lidava
com ingleses e, com essa descoberta, muito se alegrou porque, como todos nós,
ela tinha também a imprecisa e parva admiração que os ingleses, com a sua
arrogância e língua pouco compreendida, souberam nos inspirar. De resto, os
ingleses têm fama de dispor de muito dinheiro e ganham duzentos, trezentos,
quinhentos mil-réis por mês, todos nós logo os supomos dispondo dos milhões dos
Rothschild.
Mme. Barbosa alegrou-se,
portanto, com a distinção social de tais hóspedes e com a perspectiva dos
extraordinários lucros, que certamente lhe daria a riqueza deles. Apressou-se
em ir pessoalmente mostrar a tão nobres personagens os cômodos que havia vagos.
Subiram ao primeiro andar e a
dona da pensão apresentou com os maiores gabos um amplo quarto com vista para a
entrada da baía — um rasgão na tela mutável do oceano infinito.
— Creio que servirá este. Aqui
morou o doutor Elesbão, deputado por Sergipe. Conhecem?
— Oh, não, fez o inglês,
secamente.
— Mando pôr uma cama de casal...
Ia continuando Mme. Barbosa,
quando o cidadão britânico interrompeu-a, como se estivesse zangado:
— Oh! Mim não é casada. Miss
aqui, meu sobrinha.
A miss por aí baixou os olhos
cheios de candura e inocência; Mme. Barbosa arrependeu-se da culpa que não
tinha, e desculpou-se:
— Perdoe-me... Não sabia...
E ajuntou logo:
— Então querem dois quartos?
A companheira do inglês, até aí
muda, respondeu com calor pouco britânico:
— Oh! sim, senhora!
Mme. Barbosa prontificou-se:
— Tenho, além deste quarto, um
outro.
— Where? perguntou o inglês.
— Como? fez a proprietária.
— Onde? traduziu miss.
— Ali.
E Mme. Barbosa indicou uma porta
quase fronteira à do aposento que mostrara em primeiro lugar. Os olhos do
inglês fuzilaram bruscamente de alegria e, nos de miss, houve um relâmpago de
satisfação. A um tempo, exclamaram:
— Muito bom!
— All right!
Examinaram com pressa os
aposentos e já se dispunham a descer quando, no patamar da escada, se
encontraram com a Angélica. A preta olhou-os demorada e fixamente, com espanto
e respeito; parou extática, como em face de uma visão radiante. À luz mortiça
da claraboia empoeirada, ela viu, naqueles cabelos louros, naqueles olhos
azuis, de um azul tão doce e imaterial, santos, gênios, alguma coisa de
oratório, de igreja, da mitologia de suas crenças híbridas e ainda selvagens.
Ao fim de instantes de muda
contemplação, continuou o seu caminho, carregando baldes, jarros, moringues,
inebriada na visão, enquanto a sua patroa e os ingleses iniciaram a descida,
durante a qual não se cansou Mme. Barbosa de elogiar o sossego e o respeito que
havia na sua casa. Mister dizia — yes;
e miss também — yes.
Prometeram mandar as malas no dia
seguinte e a dona da pensão, tão comovida e honrada com a futura presença de
tão soberbos hóspedes, que nem lhes falou no pagamento adiantado ou fiança.
Na porta da rua, ainda madame se
deixou ficar embevecida, contemplando os ingleses. Viu-os entrar no bonde;
admirou-lhes o império verdadeiramente britânico com que ordenaram a parada do
veículo e a segurança com que se colocaram nele; e só depois de perdê-los de
vista foi que leu o cartão que o cavalheiro lhe dera:
— George T. Mac. Nabs — C. E.
Radiante, certa da prosperidade
de sua pensão, antevendo a sua futura riqueza e descanso dos seus velhos dias,
dona Sinhá, no carinhoso tratamento da Angélica, penetrou pelo interior do
casarão adentro com um demorado sorriso nos lábios e uma grande satisfação no
olhar.
Quando chegou a hora do almoço,
logo que os hóspedes se reuniram na sala de jantar, Mme. Barbosa procurou um
pretexto para anunciar aos seus comensais a boa-nova, a notícia
maravilhosamente feliz da vinda de dois ingleses para a sua casa de pensão.
Olhando a sala, escolhera a mesa
que destinaria ao tio e sobrinha. Ficaria a um canto, bem junto à última
janela, que dava para a rua, ao lado, e à primeira que se voltava para o
quintal. Era o lugar mais fresco da sala e também o mais cômodo, por ficar bem
distante das outras mesas. E, pensando nessa homenagem aos seus novos
fregueses, de pé na sala, encostada à imensa étagère, foi que Mme. Barbosa recomendou ao copeiro em voz alta:
— Pedro, amanhã reserve a “mesa
das janelas” para os novos hóspedes. A sala de jantar da pensão “Boa Vista”
tinha a clássica mesa de centro e
outras pequenas ao redor. Forrada
de papel cor-de-rosa com ramagens, era decorada com umas velhas e empoeiradas
oleogravuras, representando peças de caça, mortas, entre as quais um coelho que
teimava em voltar o ventre encardido para fora do quadro, dando aos fregueses
de Mme. Barbosa sugestões de festins luculescos. Havia também algumas de frutas
e um espelho oval. Era dos poucos compartimentos da casa que não sofrera
alteração o mais bem iluminado. Tinha três janelas que davam para a rua, à
esquerda, e duas outras, com uma porta ao centro, que miravam o quintal, além
das comunicações interiores.
Ouvindo tão imprevista
recomendação, os hóspedes todos dirigiram o olhar para ela, cheios de
estranheza, como querendo perguntar quem eram os hóspedes merecedores de tão
excessiva homenagem; mas a pergunta que estava em todos os olhos só foi feita
por dona Sofia. Sendo a mais antiga hóspede e possuindo uma razoável renda em
prédios e apólices, gozava esta última senhora de uma tal ou qual intimidade
com a proprietária. Dessa forma, sem rodeios, suspendendo um instante a
refeição já começada, perguntou:
— Quem são esses príncipes,
madame?
Mme. Barbosa retrucou bem alto e
com certo orgulho:
— Uns ingleses ricos — tio e
sobrinha.
Dona Sofia, que farejava
desconfiada o contentamento da viúva Barbosa com os novos inquilinos, não pôde
evitar um movimento de mau humor: arrebitou mais o nariz, já de si arrebitado,
deu um muxoxo e observou:
— Não gosto desses estrangeiros.
Dona Sofia havia sido casada com
um negociante português que a deixara viúva rica; por isso, e muito
naturalmente, não gostava desses estrangeiros; mas teve logo, para
contrariá-la, a opinião do doutor Benevente.
— Não diga tal, dona Sofia. O que
nós precisamos é de estrangeiros... Que venham... Demais, os ingleses são, por todos
os títulos, credores da nossa admiração.
De há muito, o doutor procurava
captar a simpatia da rica viúva, cuja abastança, famosa na pensão, atraía-o,
embora a vulgaridade dela devesse repeli-lo.
Dona Sofia não respondeu à
contestação do bacharel e continuou a almoçar, cheia do mais absoluto desdém.
Magalhães, no entanto, julgou-se
obrigado a dizer qualquer coisa, e o fez nestes termos:
— O doutor gosta dos ingleses;
pois olhe: não simpatizo com eles... Um povo frio, egoísta.
— É um engano, veio com pressa
Benevente. A Inglaterra está cheia de grandes estabelecimentos de caridade, de
instrução, criados e mantidos pela iniciativa particular... Os ingleses não são
esses egoístas que dizem. O que eles não são é esses sentimentais piegas que
nós somos, choramingas e incapazes. São fortes e...
— Fortes! Uns ladrões! Uns
usurpadores! exclamou o major Melo.
Melo era um empregado público,
promovido, guindado pela República, que impressionava à primeira vista pelo seu
aspecto de candidato à apoplexia. Quem lhe visse o rosto sanguíneo, o pescoço
taurino, não lhe podia vaticinar outro fim.
Morava com a mulher na pensão,
desde que casara as filhas; e, tendo sido auxiliar, ou coisa que valha do
marechal Floriano, guardava no espírito aquele jacobinismo do 93, jacobinismo
de exclamações e objurgatórias, que era o seu modo habitual de falar.
Benevente, muito calmo, sorrindo
com ironia superior, como se estivesse a discutir numa academia, com outro
confrade, foi ao encontro do adversário furioso:
— Meu caro senhor; é lei do
mundo: os fortes devem vencer os fracos. Estamos condenados...
O bacharel usava e abusava desse
fácil darwinismo de segunda mão; era o seu sistema favorito, com o qual se dava
ares de erudição superior. A bem dizer, nunca lera Darwin e confundia o que o
próprio sábio inglês chama de metáforas, com realidades, existências, verdades
inconcussas. Do que a crítica tem oposto aos exageros dos discípulos de Darwin,
dos seus amplificadores literários ou sociais, do que, enfim, se vem chamando as
limitações do darwinismo, ele nada sabia, mas falava com a segurança de
inovador de há quarenta anos passados e ênfase de bacharel recente, sem as
hesitações e dúvidas do verdadeiro estudioso, como se tivesse entre as mãos a
explicação cabal do mistério da vida e das sociedades. Essa segurança,
certamente inferior, dava-lhe força e o impunha aos tolos e néscios; e, só uma
inteligência mais fina, mais apta a desmontar máquinas de embuste, seria capaz
de fazer reservas discretas aos méritos de Benevente. Na pensão, porém, onde as
não havia, todos recebiam aquelas afirmações como ousadias inteligentes, sábias
e ultramodernas.
Melo, ouvindo a afirmação do
doutor, não se conteve, exaltou-se e exclamou:
— É por isso que não
progredimos... Homens há, como o senhor, que dizem tais coisas...
Nós precisávamos de Floriano...
Aquele sim...
O nome de Floriano era para Melo
uma espécie de amuleto patriótico, de égide da nacionalidade. O seu gênio
político seria capaz de fazer todos os milagres, de realizar todos os
progressos e modificações na índole do país.
Benevente não lhe deixou muito
tempo e objetou, pondo de lado a parte de Floriano:
— É um fato, meu caro senhor. O
nosso amor à verdade leva-nos a tal convicção. Que se há de fazer? A Ciência
prova.
A palavra altissonante de
Ciência, pronunciada naquela sala mediocremente espiritual, ressoou com
estridências de clarim a anunciar vitória. Dona Sofia virou-se e olhou com
espanto o bacharel; Magalhães abaixou afirmativamente a cabeça; Irene arregalou
os olhos; e Mme. Barbosa deixou de arrumar as xícaras de chá na étagère.
Melo não discutiu mais e
Benevente continuou a exaltar as virtudes dos ingleses. Todos concordaram com
ele sobre os grandes méritos do povo britânico: a sua capacidade de iniciativa,
a sua audácia comercial, industrial e financeira, a sua honestidade, a sua
lealdade e, sobretudo, rematou Florentino: a sua moralidade.
— Na Inglaterra, afirmou este
último, os rapazes se casam tão puros como as raparigas.
Irene enrubesceu ligeiramente e
dona Sofia levantou-se estrepitosamente, arrastando a cadeira em que estava
sentada.
Florentino, hóspede quase sempre
mudo, era um velho juiz de direito aposentado, espiritista convencido, que
vagava no mundo o olhar perdido de quem perscruta o invisível.
Não percebeu que a sua afirmação
havia escandalizado as senhoras e continuou serenamente:
— Lá não há esse nosso
desregramento, essa falta de respeito, essa impudicícia de costumes... Há
moral... O senhor quer ver uma coisa: outro dia fui ao teatro. Quer saber o que
me aconteceu? Não pude ficar lá... Era tal a imoralidade que...
— Que peça era, doutor? — indagou
Mme. Barbosa.
— Não sei bem... Era Iaiá me deixe.
— Ainda não vi, disse
candidamente Irene.
— Pois não vá, menina! fez com
indignação o doutor Florentino. Não se esqueça do que Marcos diz: “Qualquer que
fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe, isto é,
de Jesus”.
Florentino gostava dos Evangelhos
e os citava a cada passo, com ou sem propósito.
Alguns hóspedes levantaram-se,
muitos já se tinham retirado. A sala esvaziava-se e não tardou que o jovem
Benevente se erguesse também e saísse. Antes passeou pela sala o seu olhar de
pequeno símio, cheio de pequeninas espertezas, rematou sentenciosamente:
— Todos os povos fortes, como os
homens, são morais, isto é, são castos, doutor Florentino. Concordo com o
senhor.
Conforme tinham prometido, no dia
seguinte, vieram as malas dos ingleses; mas não apareceram nesse dia na sala de
jantar, nem em outras partes da pensão se mostraram aos hóspedes.
Só no outro dia imediato, pela
manhã, à hora do almoço, foram vistos. Entraram sem descansar o olhar sobre
ninguém; cumprimentaram entre os dentes e foram sentar-se no lugar que Mme.
Barbosa lhes indicou.
Como parecessem não gostar dos
pratos que lhes foram apresentados, dona Sinhá apressou-se em ir receber as
suas ordens e logo se pôs a par de suas exigências e correu à cozinha para as
providências necessárias.
Miss Edith, como se soube mais
tarde chamar-se a moça inglesa, e o tio comiam calados, lendo cada um para o
seu lado, desinteressados de toda a sala.
Vendo dona Sofia os rapapés que a
dona da pensão fazia ao par albiônico, não pôde deixar de dar um muxoxo, que
era o seu modo costumeiro de criticar e desprezar.
Todos, porém, olhavam de soslaio
para os dois, sem ânimo de dirigir-lhes a palavra ou fixá-los mais
demoradamente. Assim foi o primeiro e nos dias que se seguiram. A sala fez-se
silenciosa; as conversas bulhentas cessaram; e, se alguém queria pedir qualquer
coisa ao copeiro, falava baixo. Era como se de todos se tivesse apossado a
emoção que a presença dos ingleses trouxera ao débil e infantil espírito da
preta Angélica.
Os hóspedes acharam neles não sei
o que de superior, de superterrestre; deslumbraram-se e acharam-se de um
respeito religioso diante daquelas banalíssimas criaturas nascidas numa ilha da
Europa ocidental.
A moça, mais que o homem,
inspirava esse respeito. Ela não tinha a fealdade habitual das inglesas de
exportação. Era até bem gentil de rosto, com uma boca leve e uns lindos cabelos
louros, a puxar para o veneziano de fogo. As suas atitudes eram graves e os
seus movimentos lentos, sem preguiça ou indolência. Vestia-se com simplicidade
e discreta elegância.
O inglês era outra coisa: brutal
de modos e fisionomia. Posava sempre de Lorde Nelson ou duque de Wellington;114
olhava todos com desdém e superioridade esmagadora e realçava essa sua
superioridade não usando ceroulas, ou vestindo blusas de jogadores de golfe ou
bebendo cerveja com rum.
Não se ligaram a ninguém na
pensão e todos suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão
superiores.
Nem mesmo à tarde, quando, após o
jantar, vinham todos, ou quase, para a sala da frente, eles se dignavam trocar
palavras com os companheiros de casa. Afastavam-se e iam para a porta da rua,
onde se mantinham geralmente calados: o inglês fumando, com os olhos
semicerrados, como se incubasse pensamentos transcendentes; e Miss Edith, com o
cotovelo direito apoiado no braço da cadeira e a mão na face, olhando as
nuvens, o céu, as montanhas, o mar, todos esses mistérios fundidos na hora
misteriosa do crepúsculo, como se o quisesse absorver, decifrá-lo e tirar dele
o segredo das coisas futuras. Os poetas que passassem no bonde, certamente,
veriam nela uma casta druidesa, uma Veleda, descobrindo naquele instante
imperecível o que havia de ser pelos dias vindouros em fora.
Eram assim na pensão, onde faziam
trabalhar as imaginações no imenso campo do sonho. Benevente julgava-os nobres,
um duque e sobrinha; tinham o ar de raça, maneiras de comando, depósito da
hereditariedade secular dos seus ancestrais, começando por algum vagabundo
companheiro de Guilherme da Normandia; Magalhães pensava-os parentes dos
Rothschild; Mme. Barbosa supunha Mr. Mac. Nabs gerente de um banco, metendo
todos os dias as mãos em tesouros da gruta de Ali Babá; Irene admitia que ele
fosse um almirante, viajando por todos os mares da Terra, a bordo de poderoso
couraçado; Florentino, que consultara os espaços, sabia-os protegidos por um
espírito superior; e o próprio Melo calara a sua indignação jacobina para
admirar as fortes botas do inglês, que pareciam durar a eternidade.
Todo o tempo em que estiveram na
pensão, o sentimento, que a respeito deles dominava os seus companheiros de
casa, não se modificou. Até em alguns cresceu, solidificou-se, cristalizou-se
em uma admiração beata e a própria dona Sofia, vendo que a sua consideração na
casa não diminuía, partilhou a admiração geral.
Em Angélica, a coisa tomara
feição intensamente religiosa. Pela manhã, quando levava chocolate ao quarto da
miss, a pobre preta entrava medrosa, tímida, sem saber como tratar a moça, se
de dona, se de moça, se de patroa, se de minha Nossa Senhora.
Muitas vezes temia
interromper-lhe o sono, quebrar-lhe o sereno encanto do rosto adormecido na
moldura dos cabelos louros. Deixava o chocolate sobre a mesa de cabeceira; a
infusão esfriava e a pobre negra era mais tarde repreendida, em uma algaravia
ininteligível, pela deusa que ela adorava. Não se emendava, porém; e, se
encontrava a inglesa dormindo, a emoção do momento apagava a lembrança da
repreensão. Angélica deixava o chocolate a esfriar, não despertava a moça e era
de novo repreendida.
Em uma dessas manhãs, em que a
preta foi levar o chocolate à sobrinha de Mr. George, com grande surpresa sua,
não a encontrou no quarto. Em começo pensou que estivesse no banheiro; mas
havia passado por ele e o vira aberto. Onde estaria? Farejou um milagre, uma
ascensão aos céus, por entre nuvens douradas; e a miss bem o merecia, com o seu
rosto tão puramente oval e aqueles olhos de céu sem nuvens...
Premida pelo serviço, Angélica
saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do
quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade
dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos. Deixou-a entrar no quarto e, cá
no corredor, mal equilibrando a bandeja nas mãos, a deslumbrada criada murmurou
entre os dentes:
— Que pouca vergonha! Vá a gente
fiar-se nesses estrangeiros... Eles são como nós...
E continuou pelos quartos, no seu
humilde e desprezado mister.
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