11/03/2017

Miss Sarah (Conto), de Virgílio Várzea


Miss Sarah

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I 
Foi numa manhã alegre de Março que Miss Sarah chegou ao campo, em companhia de seu velho pai, o bom sir John Callander. Vinha em busca de melhoras para a sua saúde, havia meses abalada: um resfriamento, uma noite de dezembro, à saída de um baile, após algumas voltas de valsa; na rua, esquecera-se de voltar a gola de seu grosso casaco de pelúcia, e não se enrolara bem no xale. Chegara a casa já com febre, uma pontinha de tosse, a cabeça pesada. Despira-se, agasalhara-se logo, tomando remédios, cercada de todos os cuidados. Melhorara um pouco, mas a tosse continuava, uma tosse seca, que a afligia muito ao deitar-se. Chamaram então o dr. Duarte, médico da casa, um velhinho já trêmulo, todo branco e enrugado, antigo clínico na província, com uma grande nomeada. O doutor examinou-a, auscultou-a, e declarara sorrindo: “que não era nada, uma constipaçãozinha, havia de passar...” Mas Miss Sara emagrecia, perdia as cores, definhava. Sir Callander, que era louco pela filha, inquieto, sobressaltado com aquele abatimento em que a ia afundar-se, já não ia ao Consulado, passando as horas junto dela, a animá-la a acariciá-la extremosamente. Até que um dia o velho médico dissera: “Que era melhor ir para o campo, andar ao sol, respirar o bom ar das montanhas. Melhoraria, voltaria outra. Lá havia a saúde eterna, ali estava, talvez, a morte!...”

Então, o inglês, sem perda de tempo, aterrorizado com as últimas palavras do doutor, mal fizera as malas e um rancho opulento, tomou um bote e, no dia seguinte, pela madrugada, partia com a filha para Canasvieiras, onde um íntimo lhe oferecera a sua propriedade. A viagem fora costa a costa, e durara apenas horas, porque a embarcação, muito veleira, o alto latino inclinado, voava na aragem fresca do sul. Durante a travessia, Miss Sara nada sofrera. Deliciara-a o espetáculo maravilhoso do sol, nascendo a Leste, do seio do oceano, entre véus de bruma argêntea, como um balão de nácar; o aspecto risonho e variado das paisagens litorais, densas e verdes, fugindo a um bordo; o correr das velas, cortando as ondas espumantes; a construção recolhida e humilde das alvas povoações mais amigas do mar. E recordava-se saudosamente de certas aldeias da Escócia, à beira d'água, por onde andara em criança...

O sol já ia alto, inundando tudo de ouro, quando o bote chegou à praia. Miss Sarah, agora mais alegre, sorria, sorvendo a longos haustos o ar oxigenado e puro dos campos.

II
A casa que habitavam sir John Callander e a filha, havia semanas, era uma das melhores do lugar. Fora construída numa encosta suave, entre um vasto laranjal, num alto, de onde se avistava uma volta da estrada real, branca e arenosa, descendo para o Rio Vermelho. Um pequeno atalho, pedregoso e barrento, cavado na verdura basta, como um grande arranhão de arado, sai do lado da habitação e vai ligar-se, lá embaixo, ao largo caminho da freguesia, correndo entre espinheiros tufados. O prédio é de pedra — um antigo casarão de velho senhor de escravos — muito amplo, de grossas paredes laterais recentemente emboçadas e caiadas, tendo na frente seis janelas pequenas e acachapadas, de um metro de altura, os portais verdes envidraçados, olhando para um largo terreiro de lajes cimentadas, onde outrora as colheitas secavam fumegando ao sol. Cobrindo o edifício inteiro um imenso telhado de quatro águas, com um puxado grande aos fundos; formando a antiga cozinha patriarcal, em que, à noite, se reunia a negrada doméstica — crioulas robustas e entroncadas, de grandes mamas túmidas, alimentando as crias. E mais distante, para trás, trepando o morro, os alicerces esboroados já, e invadidos de hera, da vasta senzala, onde se recolhiam, outrora, depois da faina das redes e das roças, como uma manada de gado, os hércules de ébano da lavoura. Em frente, a esplêndida amplidão dos campos, num verdor tropical eterno, renovado todas as primaveras por uma nova força ciclópica e torrencial de seiva, na perpétua possança e rejuvenescência, da Terra. Ao fundo, a montanha empinada, com o longo e alto dorso recortado no Azul, e os declives e as chapadas retalhados pelas culturas de tons verdes graduados...

Aí se declarara logo em declínio a moléstia de Miss Sarah: o rosado fresco e límpido de outrora voltava a tingir-lhe levemente a ebúrnea palidez doentia; a tosse abrandava, pouco a pouco desaparecendo-lhe o desfalecimento e o spleen que a prostravam. Sentia-se enfim renascer, à plena luz, no seio fecundo e restaurador da boa Natureza. Encantava-a aquela vida simples e descuidosa do sítio, ingênua e doce, venturosa e serena, sem paixões e sem lutas, deslizando sempre, livre e obscura, através das matas e sob o céu puro, como a água cristalina das cachoeiras. Pela manhã, era um acordar alegre no vasto casarão campestre: clarins de pássaros a vibrar vitoriosamente no arvoredo em redor, envolta, com o rumor das charruas; à noite, a doçura de um grande adormecimento, sob as estrelas, abrindo em malhas luminosas no Azul, ou o resplandecimento branco do luar, prateando os lagos e os rios com a sua luz de alvaiade.

Miss Sara, desde os primeiros dias de instalação no sítio, ia todas as manhãs tomar leite, fazendo também um passeio, a pé, ao longo da estrada. Era nas primeiras horas do dia. A luz do sol nascente amarelava os morros, caindo pelas planícies, os vales, os terrenos trabalhados das lavouras. A claridade vivíssima fazia ressaltar o frontão caiado das casas dentre os maciços de verdura. Uma larga orquestração irrompia estridentemente da ramaria espessa flutuando à aragem. Carros chiavam ao longe, desaparecendo nas voltas agrestes dos caminhos. O ar cheirava balsamicamente, saturado das emanações do gado, do carvão das coivaras e da fragrância exuberante das rosas, desabrochando pelos cercados. E todo o céu dourado estava cortado de uma alacridade imensa, na vibração deliciosa das cantigas rústicas...

A rapariga caminhava alegremente, pelo braço do pai, ao esplendor feérico do alvorecer estival. E ambos riam, às gargalhadas, trocando frases carinhosas, muito felizes, no eletrismo das manhãs inefáveis.

Geralmente, à tarde, Miss Sarah e sir Callander faziam uma volta a cavalo, percorrendo os engenhos, os campos e as praias. À noite, na sala do velho casarão todo iluminado, após uma leve leitura de Walter Scott e o chá magnífico, que o antigo criado inglês, o bom Evans, servia, pai e filha recolhiam-se aos seus quartos, trocando o afetuoso beijo costumado e murmurando Good night!

E assim, dia a dia, Miss Sara melhorava.

III 
Março findara, e a moça numa vivacidade borbulhante, sentindo voltar-lhe a adorável comunicabilidade, quase meridional, de escocesa, iniciara relações com as filhas do Luiz Machado, cuja casa ficava perto, na planície, à beira da estrada. As meninas eram muito meigas — a Cristina e a Eulália — por isso fizeram desde logo intimidade. Miss Sarah, muito insinuante, com os seus lindos olhos verdes leais, que deixavam ver até ao fundo a candidez virginal da sua alma, conquistara imediatamente as raparigas, enlaçando-as numa afeição fraternal. E com elas passava quase sempre as manhãs e as tardes. Quando as duas irmãs arrumavam as costuras e os bordados, iam todas para o parapeito do terreiro, palrar.

Aos domingos, apareciam sempre as meninas do Manoel Luís e as do professor Tomas, que iam visitá-las, — e então era toda uma algazarra esplêndida de vozes adoráveis. Algumas vezes também rebentavam por ali os sobrinhos do Machado, em passeio pela freguesia; juntavam-se-lhes outros rapazes e, entre eles, o Balbino, um latagão ruivo, robusto, entroncado, um remador das redes, sardento e de pele dourada. O rapaz era ainda imberbe, mas tinha para as mulheres uma fascinação irresistível e viril de olhares. E Miss Sara, uma ocasião, na praia, vendo um lanço das redes, onde ele estava, de pé, junto a uma canoa de voga, que ia investir contra o mar, a fixá-la, numa grande e muda admiração de fascinado — ficara impressionada pelos seus olhos límpidos, de uma luz amorosa e doce, ardendo, sob cílios escuros, no largo rosto queimado. Os anéis do seu cabelo louro e basto tremiam ao vento, debaixo do largo chapéu de palha; e da sua pessoa, ereta e alta, de uma elegância rústica, desprendia-se uma irradiação poderosa e máscula, nascendo-lhe da beleza dos membros em correção escultural.

Desde então, a inglesinha conservara por ele uma certa simpatia, e a primeira vez que lhe falou ficara um pouco perturbada. E, dia a dia, sem saber como, sentia que aquela impressão ameaçava dominá-la, devido aos encontros contínuos que tinha, agora, com o rapaz. Mas era britânica, e o seu temperamento calmo de europeia do norte, jamais manifestava os abalos tumultuosos, as tempestades violentas de afetos, que tanto sublevam e desvairam o ardente sangue meridional. Amava, mas com um desses amores raciocinados e cultos de anglo-saxônia, os quais, às vezes, à maneira dessas geisers terríveis ocultas no gelo reconditamente, e sem sinais de explosão ou chamas externas, devastam entretanto as almas.

O Balbino, porém, desde que a viu pela primeira vez, trazia o coração torturado, preso à sua imagem auroral e loura de Deusa; e quando a encontrava, arrastado pelos amigos até a casa do Machado, era como se um sol estranho se lhe abrisse de repente no coração, envolvendo-lhe o destino e a vida numa irradiação sem igual. Mas, jamais ousou aproximar-se dela, dirigir-lhe a palavra, quando na doce algazarra alegre do terreiro — olhando-a sempre de longe, embevecido, tímido, num imenso embaraço.

Nessas reuniões ao ar livre, que findavam logo à primeira cinza da noite — porque Miss Sarah não podia expor-se ainda ao sereno — era ela a mais chalrante e buliçosa das moças, inventando jogos deliciosos, que se executavam num sonoro alarido, às risadas. Ao lado, junto à porta da pequena habitação, com o Machado e a mulher, em amável confabulação, sir Callander acompanhava, com seu olhar azul e nostálgico, todos movimentos da filha, risonho, enternecido, num alvoroço íntimo de pai, por vê-la já salva às garras tremendas da tuberculose. Desde que perdera a esposa e o filho, a última vez que estivera em Inglaterra, (faziam oito anos), toda a sua afeição e carinhos se concentraram exclusivamente naquela filha adorada, único bem da sua vida desventurosa. Por isso sentia-se profundamente feliz, vendo-a trinar alegremente no meio das amigas, sem mais apreensões e cuidados.

E o dias sucediam-se assim, venturosamente, para Miss Sarah.

Abril esmaltava os prados com todo seu esplendor, enflorescendo os arbustos e as árvores. As boas-noites docemente aromavam o ar, à tardinha, salpicando de pingos de púrpura as cercas, ao longo das estradas. E os dias findavam todos, coroados a oeste pela pompa fantástica e tropical dos crepúsculos dourados.

IV
Junho chegava, com os primeiros frios; mas os dias continuavam hilariantes, cheios de azul e ouro no alto.

Miss Sarah ficara completamente boa; engordara, e agora parecia bem outra, com o seu lindo rosto redondo e as suas largas espáduas. A sua pele, de uma alvura rosada, que o sol do campo levemente dourara, confundia-se com a das camponesas robustas. Estava forte, esbelta e rija como uma estátua. Então sir Callander resolveu regressar à cidade. E toda aquela semana — a última que passavam no lugar — pai e filha a consagraram às pitorescas excursões pelo interior e o litoral.

A véspera da partida, porém, Miss Sara levara-a toda em companhia das meninas do Machado e a despedir-se pela vizinhança, onde se relacionara nos últimos dois meses. Com o seu gênio festivo, de uma simplicidade afetuosa, despertara logo as maiores simpatias entre aquela gente amorável; e, nessa noite, ficara até mais tarde com a Cristina e a Eulália, a palrar, em grandes expansões animadas, do que haviam feito e gozado, desde que travaram amizade. As brincadeiras e os jogos no terreiro foram lembrados, então, minuciosamente e com saudade. E às dez horas, quando tiveram de trocar os últimos beijos e abraços, houve uma imensa confusão de adeuses e lágrimas. Sir John Callander, com a sua imensa bondade, experimentara também uma emoção, ao dar o último shake-hands à boa família do Machado.

Toda a noite Miss Sarah levara a sonhar com a viagem.

V 
No outro dia, cedo, sir Callander e a filha embarcavam.

O sol vinha raiando sobre o mar muito calmo. Velas cruzavam ao longe, com brancuras triangulares. A praia de Canasvieiras tinha uma grande fulguração prateada. As primeiras redes cercavam já para oslados da ilhota; e no rancho do Cosme havia uma aglomeração de homens, deitando as canoas para baixo.

Miss Sarah, da popa da lancha que largava, olhava agora saudosamente os campos e as montanhas afastadas, lembrando-se vivamente das duas amigas e da boa gente que lá ficavam. Percorria com olhos os cômoros e a faixa de areia do porto onde a luz faiscava, quando avistou de repente o Balbino, de pé, contra um varal onde redes secavam. O rapaz olhava fixamente a embarcação, numa atitude nostálgica. Miss Sarah, que o não via há dias, enternecida, lançou-lhe afetuosamente um olhar, acenando-lhe com o seu lenço de cambraia. Ele aprumou-se, como uma estátua, e longamente abanou também com o seu largo chapéu de palha.

Mas a lancha fez-se de vela, deixando uma esteira sinuosa de espuma estendendo-se nas águas...

E ele, olhando-a sempre, sentia como um vago desejo de chorar; continha-se, entretanto, apertando as pálpebras, porque lá do rancho, agora, todos os rapazes o olhavam. Mas afinal as lágrimas rolaram-lhe pelas faces, quando viu sumir-se a vela branca da lancha sobre o mar azulado...

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