Missa Dollar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Era conveniente ao romance que o leitor
ficasse muito tempo sem saber quem era Miss
Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que
encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou
apresentar-lhes Miss Dollar.
Se o leitor é rapaz e dado ao gênio
melancólico, imagina que Miss Dollar
é uma inglesa pálida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo à flor
do rosto dois grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranças
loiras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma criação de
Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britânico, com que se alimenta a
liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss
Dollar deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; se
souber o português deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o
leite devem ser a alimentação de semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns
confeitos e biscoitos para acudir às urgências do estômago. A sua fala deve ser
um murmúrio de harpa eólia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação,
a sua morte um suspiro.
A figura é poética, mas não é a da heroína do
romance.
Suponhamos que o leitor não é dado a estes
devaneios e melancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez será uma
robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos
vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom
copo, esta Miss Dollar preferirá um
quarto de carneiro a uma página de Longfellow, coisa naturalíssima quando o
estômago reclama, e nunca chegará a compreender a poesia do pôr-do-sol. Será
uma boa mãe de família segundo a doutrina de alguns padres-mestres da
civilização, isto é, fecunda e ignorante.
Já não será do mesmo sentir o leitor que
tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso.
Para esse, a Miss Dollar
verdadeiramente digna de ser contada em algumas páginas, seria uma boa inglesa
de cinquenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando
ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance
verdadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se não tivesse óculos verdes e um
grande cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéu
de linho em forma de cuia, seriam a última demão deste magnífico tipo de
ultramar.
Mais esperto que os outros, acode um leitor
dizendo que a heroína do romance não é nem foi inglesa, mas brasileira dos
quatro costados, e que o nome de Miss
Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica.
A descoberta seria excelente, se fosse exata;
infelizmente nem esta nem as outras são exatas. A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher
robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a
proverbial perspicácia dos leitores; Miss
Dollar é uma cadelinha galga.
Para algumas pessoas a qualidade da heroína
fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de não ser mais que uma cadelinha galga, teve
as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este
livro. O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas
dos anúncios as seguintes linhas reverberantes de promessa:
Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na
noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss
Dollar. Quem a achou e quiser levar à Rua de Mata-cavalos no... receberá
duzentos mil-réis de recompensa. Miss
Dollar tem uma coleira ao pescoço fechada por um cadeado em que se leem as
seguintes palavras: De tout mon coeur.
Todas as pessoas que sentiam necessidade
urgente de duzentos mil-réis, e tiveram a felicidade de ler aquele anúncio,
andaram nesse dia com extremo cuidado nas ruas do Rio de Janeiro, a ver se
davam com a fugitiva Miss Dollar.
Galgo que aparecesse ao longe era perseguido com tenacidade até verificar-se
que não era o animal procurado. Mas toda esta caçada dos duzentos mil-réis era
completamente inútil, visto que, no dia em que apareceu o anúncio, já Miss Dollar estava aboletada na casa de
um sujeito morador nos Cajueiros que fazia coleção de cães.
CAPÍTULO
2
Quais as razões que induziram o Dr. Mendonça
a fazer coleção de cães, é coisa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse
simplesmente paixão por esse símbolo da fidelidade ou do servilismo; outros
pensavam antes que, cheio de profundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que
era de boa guerra adorar os cães.
Fossem quais fossem as razões, o certo é que
ninguém possuía mais bonita e variada coleção do que ele. Tinha-os de todas as
raças, tamanhos e cores. Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe
morria ficava melancólico. Quase se pode dizer que, no espírito de Mendonça, o
cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o
cão, e o mundo será um ermo.
O leitor superficial conclui daqui que o
nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os
outros; gostava de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas
rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero. De flores gostava
também; mas gostava delas nas plantas em que nasciam: cortar um jasmim ou
prender um canário parecia-lhe idêntico atentado.
Era o Dr. Mendonça homem de seus trinta e
quatro anos, bem apessoado, maneiras francas e distintas. Tinha-se formado em
medicina e tratou algum tempo de doentes; a clínica estava já adiantada quando
sobreveio uma epidemia na capital; o Dr. Mendonça inventou um elixir contra a
doença; e tão excelente era o elixir, que o autor ganhou um bom par de contos
de réis. Agora exercia a medicina como amador. Tinha quanto bastava para si e a
família. A família compunha-se dos animais citados acima.
Na memorável noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltava Mendonça para casa
quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. A cadelinha entrou a
acompanhá-lo, e ele, notando que era animal sem dono visível, levou-a consigo
para os Cajueiros.
Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente
a cadelinha, Miss Dollar era
realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raça; os
olhos castanhos e aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade deste
mundo, tão alegres e serenos eram. Mendonça contemplou-a e examinou
minuciosamente. Leu o dístico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-se
finalmente de que a cadelinha era animal de grande estimação da parte de quem
quer que fosse dono dela.
— Se não aparecer o dono, fica comigo, disse
ele entregando Miss Dollar ao moleque
encarregado dos cães.
Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendonça planeava
um bom futuro à nova hóspede, cuja família devia perpetuar-se na casa.
O plano de Mendonça durou o que duram os
sonhos: o espaço de uma noite. No dia seguinte, lendo os jornais, viu o anúncio
transcrito acima, prometendo duzentos mil-réis a quem entregasse a cadelinha
fugitiva. A sua paixão pelos cães deu-lhe a medida da dor que devia sofrer o
dono ou dona de Miss Dollar, visto
que chegava a oferecer duzentos mil-réis de gratificação a quem apresentasse a
galga. Consequentemente resolveu restituí-la, com bastante mágoa do coração.
Chegou a hesitar por alguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de
probidade e compaixão, que eram o apanágio daquela alma. E, como se lhe
custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôs-se a levá-lo ele
mesmo, e para esse fim preparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito a mesma
operação, saíram ambos de casa com direção a Mata-cavalos.
Naquele tempo ainda o Barão do Amazonas não
tinha salvo a independência das repúblicas platinas mediante a vitória de
Riachuelo, nome com que depois a Câmara Municipal crismou a Rua de
Mata-cavalos. Vigorava, portanto, o nome tradicional da rua, que não queria
dizer coisa nenhuma de jeito.
A casa que tinha o número indicado no anúncio
era de bonita aparência e indicava certa abastança nos haveres de quem lá
morasse. Antes mesmo que Mendonça batesse palmas no corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os pátrios
lares, começava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e guturais que,
se houvesse entre os cães literatura, deviam ser um hino de ação de graças.
Veio um moleque saber quem estava; Mendonça
disse que vinha restituir a galga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que
correu a anunciar a boa nova. Miss Dollar,
aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se
Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltou
dizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala.
Na sala não havia ninguém. Algumas pessoas,
que têm salas elegantemente dispostas, costumam deixar tempo de serem estas
admiradas pelas visitas, antes de as virem cumprimentar. É possível que esse
fosse o costume dos donos daquela casa, mas desta vez não se cuidou em
semelhante coisa, porque mal o médico entrou pela porta do corredor surgiu de
outra interior uma velha com Miss Dollar
nos braços e a alegria no rosto.
— Queira ter a bondade de sentar-se, disse
ela designando uma cadeira à Mendonça.
— A minha demora é pequena, disse o médico
sentando-se. Vim trazer-lhe a cadelinha que está comigo desde ontem...
— Não imagina que desassossego causou cá em
casa a ausência de Miss Dollar...
— Imagino, minha senhora; eu também sou
apreciador de cães, e se me faltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar...
— Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é de minha
sobrinha.
— Ah!...
— Ela aí vem.
Mendonça levantou-se justamente quando
entrava na sala a sobrinha em questão. Era uma moça que representava vinte e
oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que
anunciam velhice tardia e imponente. O vestido de seda escura dava singular
realce à cor imensamente branca da sua pele. Era roçagante o vestido, o que lhe
aumentava a majestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe
todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda um belo tronco de mármore
modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos e naturalmente ondeados
estavam penteados com essa simplicidade caseira, que é a melhor de todas as
modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como uma coroa doada pela
natureza. A extrema brancura da pele não tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe
fizesse harmonia e contraste. A boca era pequena, e tinha uma certa expressão
imperiosa. Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os
olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.
Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a
sua vida; disseram-lhe que existiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos
célebres de Gonçalves Dias; mas até então os olhos verdes eram para ele a mesma
coisa que a fênix dos antigos. Um dia, conversando com uns amigos a propósito
disto, afirmava que se alguma vez encontrasse um par de olhos verdes fugiria
deles com terror.
— Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes
admirado.
— A cor verde é a cor do mar, respondeu
Mendonça; evito as tempestades de um; evitarei as tempestades dos outros.
Eu deixo ao critério do leitor esta
singularidade de Mendonça, que de mais a mais é preciosa, no sentido de Molière.
CAPÍTULO
3
Mendonça cumprimentou respeitosamente a
recém-chegada, e esta, com um gesto, convidou-o a sentar-se outra vez.
— Agradeço-lhe infinitamente o ter-me
restituído este pobre animal, que me merece grande estima, disse Margarida
sentando-se.
— E eu dou graças a Deus por tê-lo achado;
podia ter caído em mãos que o não restituíssem.
Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadelinha, saltando do regaço da velha, foi ter
com Margarida; levantou as patas dianteiras e pôs-lhas sobre os joelhos;
Margarida e Miss Dollar trocaram um
longo olhar de afeto. Durante esse tempo uma das mãos da moça brincava com uma
das orelhas da galga, e dava assim lugar a que Mendonça admirasse os seus
belíssimos dedos armados com unhas agudíssimas.
Mas, conquanto Mendonça tivesse sumo prazer
em estar ali, reparou que era esquisita e humilhante a sua demora. Pareceria
estar esperando a gratificação. Para escapar a essa interpretação desairosa,
sacrificou o prazer da conversa e a contemplação da moça; levantou-se dizendo:
— A minha missão está cumprida...
— Mas... interrompeu a velha.
Mendonça compreendeu a ameaça da interrupção
da velha.
— A alegria, disse ele, que restituí a esta
casa é a maior recompensa que eu podia ambicionar. Agora peço-lhes licença...
As duas senhoras compreenderam a intenção de
Mendonça; a moça pagou-lhe a cortesia com um sorriso; e a velha, reunindo no
pulso quantas forças ainda lhe restavam pelo corpo todo, apertou com amizade a
mão do rapaz.
Mendonça saiu impressionado pela interessante
Margarida. Notava-lhe principalmente, além da beleza, que era de primeira água,
certa severidade triste no olhar e nos modos. Se aquilo era caráter da moça,
dava-se bem com a índole de médico; se era resultado de algum episódio da vida,
era uma página do romance que devia ser decifrada por olhos hábeis. A falar
verdade, o único defeito que Mendonça lhe achou foi a cor dos olhos, não porque
a cor fosse feia, mas porque ele tinha prevenção contra os olhos verdes. A
prevenção, cumpre dizê-lo, era mais literária que outra coisa; Mendonça
apegava-se à frase que uma vez proferira, e foi acima citada, e a frase é que
lhe produziu a prevenção. Não mo acusem de chofre; Mendonça era homem
inteligente, instruído e dotado de bom senso; tinha, além disso, grande
tendência para as afeições românticas; mas apesar disso lá tinha calcanhar o
nosso Aquiles. Era homem como os outros, outros Aquiles andam por aí que são da
cabeça aos pés um imenso alcanhar. O ponto vulnerável de Mendonça era esse; o
amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos; sacrificava uma situação a
um período arredondado.
Referindo a um amigo o episódio da galga e a
entrevista com Margarida, Mendonça disse que poderia vir a gostar dela se não
tivesse olhos verdes. O amigo riu com certo ar de sarcasmo.
— Mas, doutor, disse-lhe ele, não compreendo
essa prevenção; eu ouço até dizer que os olhos verdes são de ordinário núncios
de boa alma. Além de que, a cor dos olhos não vale nada, a questão é a
expressão deles. Podem ser azuis como o céu e pérfidos como o mar.
A observação deste amigo anônimo tinha a
vantagem de ser tão poética como a de Mendonça. Por isso abalou profundamente o
ânimo do médico. Não ficou este como o asno de Buridan entre a selha d’água e a
quarta de cevada; o asno hesitaria, Mendonça não hesitou. Acudiu-lhe de pronto
a lição do casuísta Sánchez, e das duas opiniões tomou a que lhe pareceu provável.
Algum leitor grave achará pueril esta
circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável
deles. Provará com isso que tem pouca prática do mundo. Os almanaques
pitorescos citam até à saciedade mil excentricidades e senões dos grandes
varões que a humanidade admira, já por instruídos nas letras, já por valentes
nas armas; e nem por isso deixamos de admirar esses mesmos varões. Não queira o
leitor abrir uma exceção só para encaixar nela o nosso doutor. Aceitemo-lo com
os seus ridículos; quem os não tem? O ridículo é uma espécie de lastro da alma
quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra
espécie de carregamento.
Para compensar essas fraquezas, já disse que
Mendonça tinha qualidades não vulgares. Adotando a opinião que lhe pareceu mais
provável, que foi a do amigo, Mendonça disse consigo que nas mãos de Margarida
estava talvez a chave do seu futuro. Ideou nesse sentido um plano de
felicidade; uma casa num ermo, olhando para o mar ao lado do ocidente, a fim de
poder assistir ao espetáculo do pôr-do-sol. Margarida e ele, unidos pelo amor e
pela Igreja, beberiam ali, gota a gota, a taça inteira da celeste felicidade. O
sonho de Mendonça continha outras particularidades que seria ocioso mencionar
aqui. Mendonça pensou nisto alguns dias; chegou a passar algumas vezes por
Mata-cavalos; mas tão infeliz que nunca viu Margarida nem a tia; afinal
desistiu da empresa e voltou aos cães.
A coleção de cães era uma verdadeira galeria
de homens ilustres. O mais estimado deles chamava-se Diógenes; havia um galgo que acudia ao nome de César; um cão d’água que se chamava Nelson; Cornélia
chamava-se uma cadelinha rateira, e Calígula
um enorme cão de fila, vera-efígie do grande monstro que a sociedade romana
produziu. Quando se achava entre toda essa gente, ilustre por diferentes
títulos, dizia Mendonça que entrava na história; era assim que se esquecia do
resto do mundo.
CAPÍTULO
4
Achava-se Mendonça uma vez à porta do
Carceller, onde acabava de tomar sorvete em companhia de um indivíduo, amigo
dele, quando viu passar um carro, e dentro do carro duas senhoras que lhe
pareceram as senhoras de Mata-cavalos. Mendonça fez um movimento de espanto que
não escapou ao amigo.
— Que foi? perguntou-lhe este.
— Nada; pareceu-me conhecer aquelas senhoras.
Viste-as, Andrade?
— Não.
O carro entrara na Rua do Ouvidor; os dois
subiram pela mesma rua. Logo acima da Rua da Quitanda, parara o carro à porta
de uma loja, e as senhoras apearam-se e entraram. Mendonça não as viu sair; mas
viu o carro e suspeitou que fosse o mesmo. Apressou o passo sem dizer nada a
Andrade, que fez o mesmo, movido por essa natural curiosidade que sente um
homem quando percebe algum segredo oculto.
Poucos instantes depois estavam à porta da
loja; Mendonça verificou que eram as duas senhoras de Mata-cavalos. Entrou
afoito, com ar de quem ia comprar alguma coisa, e aproximou-se das senhoras. A
primeira que o conheceu foi a tia. Mendonça cumprimentou-as respeitosamente.
Elas receberam o cumprimento com afabilidade. Ao pé de Margarida estava Miss Dollar, que, por esse admirável
faro que a natureza concedeu aos cães e aos cortesãos da fortuna, deu dois
saltos de alegria apenas viu Mendonça, chegando a tocar-lhe o estômago com as
patas dianteiras.
— Parece que Miss Dollar ficou com boas recordações suas, disse D. Antônia (assim se chamava a tia de Margarida).
— Creio que sim, respondeu Mendonça brincando
com a galga e olhando para Margarida.
Justamente nesse momento entrou Andrade.
— Só agora as reconheci, disse ele
dirigindo-se às senhoras.
Andrade apertou a mão das duas senhoras, ou
antes apertou a mão de Antônia e os dedos de Margarida.
Mendonça não contava com este incidente, e
alegrou-se com ele por ter à mão o meio de tornar íntimas as relações
superficiais que tinha com a família.
— Seria bom, disse ele a Andrade, que me
apresentasses a estas senhoras.
— Pois não as conheces? perguntou Andrade
estupefato.
— Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu
sorrindo a velha tia; por ora quem o apresentou foi Miss Dollar.
Antônia referiu a Andrade a perda e o achado
da cadelinha.
— Pois, nesse caso, respondeu Andrade,
apresento-o já.
Feita a apresentação oficial, o caixeiro
trouxe a Margarida os objetos que ela havia comprado, e as duas senhoras
despediram-se dos rapazes pedindo-lhes que as fossem ver.
Não citei nenhuma palavra de Margarida no
diálogo acima transcrito, porque, a falar verdade, a moça só proferiu duas
palavras a cada um dos rapazes.
— Passe bem, disse-lhes ela dando as pontas
dos dedos e saindo para entrar no carro.
Ficando sós, saíram também os dois rapazes e
seguiram pela Rua do Ouvidor acima, ambos calados. Mendonça pensava em
Margarida; Andrade pensava nos meios de entrar na confidência de Mendonça. A
vaidade tem mil formas de manifestar-se como o fabuloso Proteu. A vaidade de
Andrade era ser confidente dos outros; parecia-lhe assim obter da confiança
aquilo que só alcançava da indiscrição. Não lhe foi difícil apanhar o segredo
de Mendonça; antes de chegar à esquina da Rua dos Ourives já Andrade sabia de
tudo.
— Compreendes agora, disse Mendonça, que eu
preciso ir à casa dela; tenho necessidade de vê-la; quero ver se consigo...
Mendonça estacou.
— Acaba! disse Andrade; se consegues ser
amado. Por que não? Mas desde já te digo que não será fácil.
— Por quê?
— Margarida tem rejeitado cinco casamentos.
— Naturalmente não amava os pretendentes,
disse Mendonça com o ar de um geômetra que acha uma solução.
— Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu
Andrade, e não era indiferente ao último.
— Houve naturalmente intriga.
— Também não. Admiras-te? É o que me
acontece. É uma rapariga esquisita. Se te achas com força de ser o Colombo
daquele mundo, lança-te ao mar com a armada; mas toma cuidado com a revolta das
paixões, que são os ferozes marujos destas navegações de descoberta.
Entusiasmado com esta alusão, histórica
debaixo da forma de alegoria, Andrade olhou para Mendonça, que, desta vez
entregue ao pensamento da moça, não atendeu à frase do amigo. Andrade
contentou-se com o seu próprio sufrágio, e sorriu com o mesmo ar de satisfação
que deve ter um poeta quando escreve o último verso de um poema.
CAPÍTULO
5
Dias depois, Andrade e Mendonça foram à casa
de Margarida, e lá passaram meia hora em conversa cerimoniosa. As visitas
repetiram-se; eram porém mais frequentes da parte de Mendonça que de Andrade.
D. Antônia mostrou-se mais familiar que Margarida; só depois de algum tempo
Margarida desceu do Olimpo do silêncio em que habitualmente se encerrara.
Era difícil deixar de o fazer. Mendonça,
conquanto não fosse dado à convivência das salas, era um cavalheiro próprio
para entreter duas senhoras que pareciam mortalmente aborrecidas. O médico
sabia piano e tocava agradavelmente; a sua conversa era animada; sabia esses
mil nadas que entretêm geralmente as senhoras quando elas não gostam ou não
podem entrar no terreno elevado da arte, da história e da filosofia. Não foi
difícil ao rapaz estabelecer intimidade com a família.
Posteriormente às primeiras visitas, soube
Mendonça, por via de Andrade, que Margarida era viúva. Mendonça não reprimiu o
gesto de espanto.
— Mas tu falaste de um modo que parecias
tratar de uma solteira, disse ele ao amigo.
— É verdade que não me expliquei bem; os
casamentos recusados foram todos propostos depois da viuvez.
— Há que tempo está viúva?
— Há três anos.
— Tudo se explica, disse Mendonça depois de
algum silêncio; quer ficar fiel à sepultura; é uma Artemisa do século.
Andrade era cético a respeito de Artemisas;
sorriu à observação do amigo, e, como este insistisse, replicou:
— Mas se eu já te disse que ela amava
apaixonadamente o primeiro pretendente e não era indiferente ao último.
— Então, não compreendo.
— Nem eu.
Mendonça desde esse momento tratou de
cortejar assiduamente a viúva; Margarida recebeu os primeiros olhares de
Mendonça com um ar de tão supremo desdém, que o rapaz esteve quase a abandonar
a empresa; mas, a viúva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe
recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que ele a
olhava como toda a gente.
Amor repelido é amor multiplicado. Cada
repulsa de Margarida aumentava a paixão de Mendonça. Nem já lhe mereciam
atenção o feroz Calígula, nem o
elegante Júlio César. Os dois
escravos de Mendonça começaram a notar a profunda diferença que havia entre os
hábitos de hoje e os de outro tempo. Supuseram logo que alguma coisa o
preocupava. Convenceram-se disso quando Mendonça, entrando uma vez em casa, deu
com a ponta do botim no focinho de Cornélia,
na ocasião em que esta interessante cadelinha, mãe de dois Gracos rateiros, festejava a chegada do doutor.
Andrade não foi insensível aos sofrimentos do
amigo e procurou consolá-lo. Toda a consolação nestes casos é tão desejada
quanto inútil; Mendonça ouvia as palavras de Andrade e confiava-lhe todas as
suas penas. Andrade lembrou a Mendonça um excelente meio de fazer cessar a
paixão: era ausentar-se da casa. A isto respondeu Mendonça citando La
Rochefoucauld:
"A ausência diminui as paixões medíocres
e aumenta as grandes, como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras."
A citação teve o mérito de tapar a boca de
Andrade, que acreditava tanto na constância como nas Artemisas, mas que não
queria contrariar a autoridade do moralista, nem a resolução de Mendonça.
CAPÍTULO
6
Correram assim três meses. A corte de Mendonça
não adiantava um passo; mas a viúva nunca deixou de ser amável com ele. Era
isto o que principalmente retinha o médico aos pés da insensível viúva; não o
abandonava a esperança de vencê-la.
Algum leitor conspícuo desejaria antes que
Mendonça não fosse tão assíduo na casa de uma senhora exposta às calúnias do
mundo. Pensou nisso o médico e consolou a consciência com a presença de um
indivíduo, até aqui não nomeado por motivo de sua nulidade, e que era nada
menos que o filho da Sra. D. Antônia e a menina dos seus olhos. Chamava-se
Jorge esse rapaz, que gastava duzentos mil-réis por mês, sem os ganhar, graças
à longanimidade da mãe. Frequentava as casas dos cabeleireiros, onde gastava
mais tempo que uma romana da decadência às mãos das suas servas latinas. Não
perdia representação de importância no Alcazar; montava bons cavalos, e
enriquecia com despesas extraordinárias as algibeiras de algumas damas célebres
e de vários parasitas obscuros. Calçava luvas da letra E e botas nº 36, duas
qualidades que lançava à cara de todos os seus amigos que não desciam do nº 40
e da letra H. A presença deste gentil pimpolho, achava Mendonça que salvava a
situação. Mendonça queria dar esta satisfação ao mundo, isto é, à opinião dos
ociosos da cidade. Mas bastaria isso para tapar a boca aos ociosos?
Margarida parecia indiferente às
interpretações do mundo como à assiduidade do rapaz. Seria ela tão indiferente
a tudo mais neste mundo? Não; amava a mãe, tinha um capricho por Miss Dollar, gostava da boa música, e
lia romances. Vestia-se bem, sem ser rigorista em matéria de moda; não valsava;
quando muito dançava alguma quadrilha nos saraus a que era convidada. Não
falava muito, mas exprimia-se bem. Tinha o gesto gracioso e animado, mas sem
pretensão nem faceirice.
Quando Mendonça aparecia lá, Margarida
recebia-o com visível contentamento. O médico iludia-se sempre, apesar de já
acostumado a essas manifestações. Com efeito, Margarida gostava imenso da
presença do rapaz, mas não parecia dar-lhe uma importância que lisonjeasse o
coração dele. Gostava de o ver como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer
de amores pelo sol.
Não era possível sofrer por muito tempo a
posição em que se achava o médico. Uma noite, por um esforço de que antes disso
se não julgaria capaz, Mendonça dirigiu a Margarida esta pergunta indiscreta:
— Foi feliz com seu marido?
Margarida franziu a testa com espanto e
cravou os olhos nos do médico, que pareciam continuar mudamente a pergunta.
— Fui, disse ela no fim de alguns instantes.
Mendonça não disse palavra; não contava com
aquela resposta. Confiava demais na intimidade que reinava entre ambos; e
queria descobrir por algum modo a causa da insensibilidade da viúva. Falhou o
cálculo; Margarida tornou-se séria durante algum tempo; a chegada de D. Antônia
salvou uma situação esquerda para Mendonça. Pouco depois Margarida voltava às
boas, e a conversa tornou-se animada e íntima como sempre. A chegada de Jorge
levou a animação da conversa a proporções maiores; D. Antônia, com olhos e
ouvidos de mãe, achava que o filho era o rapaz mais engraçado deste mundo; mas
a verdade é que não havia em toda a cristandade espírito mais frívolo. A mãe
ria-se de tudo quanto o filho dizia; o filho enchia, só ele, a conversa,
referindo anedotas e reproduzindo ditos e sestros do Alcazar. Mendonça via
todas essas feições do rapaz, e aturava-o com resignação evangélica.
A entrada de Jorge, animando a conversa,
acelerou as horas; às dez retirou-se o médico, acompanhado pelo filho de D.
Antônia, que ia cear. Mendonça recusou o convite que Jorge lhe fez, e
despediu-se dele na Rua do Conde, esquina da do Lavradio.
Nessa mesma noite resolveu Mendonça dar um
golpe decisivo; resolveu escrever uma carta a Margarida. Era temerário para
quem conhecesse o caráter da viúva; mas, com os precedentes já mencionados, era
loucura. Entretanto, não hesitou o médico em empregar a carta, confiando que no
papel diria as coisas de muito melhor maneira que de boca. A carta foi escrita
com febril impaciência; no dia seguinte, logo depois de almoçar, Mendonça meteu
a carta dentro de um volume de George Sand, mandou-o pelo moleque a Margarida.
A viúva rompeu a capa de papel que embrulhava
o volume, e pôs o livro sobre a mesa da sala; meia hora depois voltou e pegou
no livro para ler. Apenas o abriu, caiu-lhe a carta aos pés. Abriu-a e leu o
seguinte:
Qualquer que seja a causa da sua esquivança,
respeito-a, não me insurjo contra ela. Mas, se não me é dado insurgir-me, não
me será lícito queixar-me? Há de ter compreendido o meu amor, do mesmo modo que
tenho compreendido a sua indiferença; mas, por maior que seja essa indiferença
está longe de ombrear com o amor profundo e imperioso que se apossou de meu
coração quando eu mais longe me cuidava destas paixões dos primeiros anos. Não
lhe contarei as insônias e as lágrimas, as esperanças e os desencantos, páginas
tristes deste livro que o destino põe nas mãos do homem para que duas almas o
leiam. É-lhe indiferente isso.
Não ouso interrogá-la sobre a esquivança que
tem mostrado em relação a mim; mas por que motivo se estende essa esquivança a
tantos mais? Na idade das paixões férvidas, ornada pelo céu com uma beleza
rara, por que motivo quer esconder-se ao mundo e defraudar a natureza e o
coração de seus incontestáveis direitos? Perdoe-me a audácia da pergunta;
acho-me diante de um enigma que o meu coração desejaria decifrar. Penso às
vezes que alguma grande dor a atormenta, e quisera ser o médico do seu coração;
ambicionava, confesso, restaurar-lhe alguma ilusão perdida. Parece que não há
ofensa nesta ambição.
Se, porém, essa esquivança denota
simplesmente um sentimento de orgulho legítimo, perdoe-me se ousei escrever-lhe
quando seus olhos expressamente mo proibiram. Rasgue a carta que não pode
valer-lhe uma recordação, nem representar uma arma.
A carta era toda de reflexão; a frase fria e
medida não exprimia o fogo do sentimento. Não terá, porém, escapado ao leitor a
sinceridade e a simplicidade com que Mendonça pedia uma explicação que
Margarida provavelmente não podia dar.
Quando Mendonça disse a Andrade haver escrito
a Margarida, o amigo do médico entrou a rir despregadamente.
— Fiz mal? perguntou Mendonça.
— Estragaste tudo. Os outros pretendentes
começaram também por carta; foi justamente a certidão de óbito do amor.
— Paciência, se acontecer o mesmo, disse
Mendonça levantando os ombros com aparente indiferença; mas eu desejava que não
estivesses sempre a falar nos pretendentes; eu não sou pretendente no sentido
desses.
— Não querias casar com ela?
— Sem dúvida, se fosse possível, respondeu
Mendonça.
— Pois era justamente o que os outros
queriam; casar-te-ias e entrarias na mansa posse dos bens que lhe couberam em
partilha e que sobem a muito mais de cem contos. Meu rico, se falo em
pretendentes não é por te ofender, porque um dos quatro pretendentes despedidos
fui eu.
— Tu?
— É verdade; mas descansa, não fui o
primeiro, nem ao menos o último.
— Escreveste?
— Como os outros; como eles, não obtive
resposta; isto é, obtive uma: devolveu-me a carta. Portanto, já que lhe
escreveste, espera o resto; verás se o que te digo é ou não exato. Estás
perdido, Mendonça; fizeste muito mal.
Andrade tinha esta feição característica de
não omitir nenhuma das cores sombrias de uma situação, com o pretexto de que
aos amigos se deve a verdade. Desenhado o quadro, despediu-se de Mendonça, e
foi adiante.
Mendonça foi para casa, onde passou a noite
em claro.
CAPÍTULO
7
Enganara-se Andrade; a viúva respondeu à
carta do médico. A carta dela limitou-se a isto:
Perdoo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me
escrever outra vez. A minha esquivança não tem nenhuma causa; é questão de
temperamento.
O sentido da carta era ainda mais lacônico do
que a expressão. Mendonça leu-a muitas vezes, a ver se a completava; mas foi
trabalho perdido. Uma coisa concluiu ele logo; era que havia coisa oculta que
arredava Margarida do casamento; depois concluiu outra, era que Margarida ainda
lhe perdoaria segunda carta se lha escrevesse.
A primeira vez que Mendonça foi a
Mata-cavalos achou-se embaraçado sobre a maneira por que falaria a Margarida; a
viúva tirou-o do embaraço, tratando-o como se nada houvesse entre ambos.
Mendonça não teve ocasião de aludir às cartas por causa da presença de D.
Antônia, mas estimou isso mesmo, porque não sabia o que lhe diria caso viessem
a ficar sós os dois.
Dias depois, Mendonça escreveu segunda carta
à viúva e mandou-lha pelo mesmo canal da outra. A carta foi-lhe devolvida sem
resposta. Mendonça arrependeu-se de ter abusado da ordem da moça, e resolveu,
de uma vez por todas, não voltar à casa de Mata-cavalos. Nem tinha ânimo de lá
aparecer, nem julgava conveniente estar junto de uma pessoa a quem amava sem
esperança.
Ao cabo de um mês não tinha perdido uma
partícula sequer do sentimento que nutria pela viúva. Amava-a com o mesmíssimo
ardor. A ausência, como ele pensara, aumentou-lhe o amor, como o vento ateia um
incêndio. Debalde lia ou buscava distrair-se na vida agitada do Rio de Janeiro;
entrou a escrever um estudo sobre a teoria do ouvido, mas a pena
escapava-se-lhe para o coração, e saiu o escrito com uma mistura de nervos e
sentimentos. Estava então na sua maior nomeada o romance de Renan sobre a vida
de Jesus; Mendonça encheu o gabinete com todos os folhetos publicados de parte
a parte, e entrou a estudar profundamente o misterioso drama da Judéia. Fez
quanto pôde para absorver o espírito e esquecer a esquiva Margarida; era-lhe
impossível.
Um dia de manhã apareceu-lhe em casa o filho
de D. Antônia; traziam-no dois motivos: perguntar-lhe por que não ia a
Mata-cavalos, e mostrar-lhe umas calças novas. Mendonça aprovou as calças, e
desculpou como pôde a ausência, dizendo que andava atarefado. Jorge não era
alma que compreendesse a verdade escondida por baixo de uma palavra
indiferente; vendo Mendonça mergulhado no meio de uma chusma de livros e
folhetos, perguntou-lhe se estava estudando para ser deputado. Jorge cuidava
que se estudava para ser deputado!
— Não, respondeu Mendonça.
— É verdade que a prima também lá anda com
livros, e não creio que pretenda ir à câmara.
— Ah! sua prima?
— Não imagina; não faz outra coisa. Fecha-se
no quarto, e passa os dias inteiros a ler.
Informado por Jorge, Mendonça supôs que
Margarida era nada menos que uma mulher de letras, alguma modesta poetisa, que
esquecia o amor dos homens nos braços das musas. A suposição era gratuita e
filha mesmo de um espírito cego pelo amor como o de Mendonça. Há várias razões
para ler muito sem ter comércio com as musas.
— Note que a prima nunca leu tanto; agora é
que lhe deu para isso, disse Jorge tirando da charuteira um magnífico havana do
valor de três tostões, e oferecendo outro a Mendonça. Fume isto, continuou ele,
fume e diga-me se há ninguém como o Bernardo para ter charutos bons.
Gastos os charutos, Jorge despediu-se do
médico, levando a promessa de que este iria à casa de D. Antônia o mais cedo que
pudesse.
No fim de quinze dias Mendonça voltou a
Mata-cavalos.
Encontrou na sala Andrade e D. Antônia, que o
receberam com aleluias. Mendonça parecia com efeito ressurgir de um túmulo;
tinha emagrecido e empalidecido. A melancolia dava-lhe ao rosto maior expressão
de abatimento. Alegou trabalhos extraordinários, e entrou a conversar
alegremente como dantes. Mas essa alegria, como se compreende, era toda
forçada. No fim de um quarto de hora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do
rosto. Durante esse tempo, Margarida não apareceu na sala; Mendonça, que até
então não perguntara por ela, não sei por que razão, vendo que ela não
aparecia, perguntou se estava doente. D. Antônia respondeu-lhe que Margarida
estava um pouco incomodada.
O incômodo de Margarida durou uns três dias;
era uma simples dor de cabeça, que o primo atribuiu à aturada leitura.
No fim de alguns dias mais, D. Antônia foi
surpreendida com uma lembrança de Margarida; a viúva queria ir viver na roça
algum tempo.
— Aborrece-te a cidade? perguntou a boa
velha.
— Alguma coisa, respondeu Margarida; queria
ir viver uns dois meses na roça.
D. Antônia não podia recusar nada à sobrinha;
concordou em ir para a roça; e começaram os preparativos. Mendonça soube da
mudança no Rocio, andando a passear de noite; disse-lho Jorge na ocasião de ir
para o Alcazar. Para o rapaz era uma fortuna aquela mudança, porque
suprimia-lhe a única obrigação que ainda tinha neste mundo, que era a de ir
jantar com a mãe.
Não achou Mendonça nada que admirar na
resolução; as resoluções de Margarida começavam a parecer-lhe simplicidades.
Quando voltou para casa encontrou um bilhete
de D. Antônia concebido nestes termos:
Temos de ir para fora alguns meses; espero
que não nos deixe sem despedir-se de nós. A partida é sábado; e eu quero
incumbi-lo de uma coisa.
Mendonça tomou chá, e dispôs-se a dormir. Não
pôde. Quis ler; estava incapaz disso. Era cedo; saiu. Insensivelmente dirigiu
os passos para Mata-cavalos. A casa de D. Antônia estava fechada e silenciosa;
evidentemente estavam já dormindo. Mendonça passou adiante, e parou junto da
grade do jardim adjacente à casa. De fora podia ver a janela do quarto de
Margarida, pouco elevada, e dando para o jardim. Havia luz dentro; naturalmente
Margarida estava acordada. Mendonça deu mais alguns passos; a porta do jardim
estava aberta. Mendonça sentiu pulsar-lhe o coração com força desconhecida.
Surgiu-lhe no espírito uma suspeita. Não há coração confiante que não tenha
desfalecimentos destes; além de que, seria errada a suspeita? Mendonça,
entretanto, não tinha nenhum direito à viúva; fora repelido categoricamente. Se
havia algum dever da parte dele era a retirada e o silêncio.
Mendonça quis conservar-se no limite que lhe
estava marcado; a porta aberta do jardim podia ser esquecimento da parte dos
fâmulos. O médico refletiu bem que aquilo tudo era fortuito, e fazendo um
esforço afastou-se do lugar. Adiante parou e refletiu; havia um demônio que o
impelia por aquela porta dentro. Mendonça voltou, e entrou com precaução.
Apenas dera alguns passos surgiu-lhe em
frente Miss Dollar latindo; parece
que a galga saíra de casa sem ser pressentida; Mendonça amimou-a e a cadelinha
parece que reconheceu o médico, porque trocou os latidos em festas. Na parede
do quarto de Margarida desenhou-se uma sombra de mulher; era a viúva que
chegava à janela para ver a causa do ruído. Mendonça coseu-se como pôde com uns
arbustos que ficavam junto da grade; não vendo ninguém, Margarida voltou para
dentro.
Passados alguns minutos, Mendonça saiu do
lugar em que se achava e dirigiu-se para o lado da janela da viúva.
Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim
não podia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moça. A
cadelinha apenas chegou àquele ponto, subiu ligeira uma escada de pedra que
comunicava o jardim com a casa; a porta do quarto de Margarida ficava
justamente no corredor que se seguia à escada; a porta estava aberta. O rapaz
imitou a cadelinha; subiu os seis degraus de pedra vagarosamente; quando pôs o
pé no último ouviu Miss Dollar
pulando no quarto e vindo latir à porta, como que avisando a Margarida de que
se aproximava um estranho.
Mendonça deu mais um passo. Mas nesse momento
atravessou o jardim um escravo que acudia ao latido da cadelinha; o escravo
examinou o jardim, e não vendo ninguém retirou-se. Margarida foi à janela e
perguntou o que era; o escravo explicou-lho e tranquilizou-a dizendo que não
havia ninguém.
Justamente quando ela saía da janela aparecia
à porta a figura de Mendonça. Margarida estremeceu por um abalo nervoso; ficou
mais pálida do que era; depois, concentrando nos olhos toda a soma de
indignação que pode conter um coração, perguntou-lhe com voz trêmula:
— Que quer aqui?
Foi nesse momento, e só então, que Mendonça
reconheceu toda a baixeza do seu procedimento, ou para falar mais
acertadamente, toda a alucinação do seu espírito. Pareceu-lhe ver em Margarida
a figura da sua consciência, a exprobrar-lhe tamanha indignidade. O pobre rapaz
não procurou desculpar-se; a sua resposta foi singela e verdadeira.
— Sei que cometi um ato infame, disse ele;
não tinha razão para isso; estava louco; agora conheço a extensão do mal. Não
lhe peço que me desculpe, D. Margarida; não mereço perdão; mereço desprezo;
adeus!
— Compreendo, senhor, disse Margarida; quer
obrigar-me pela força do descrédito quando me não pode obrigar pelo coração.
Não é de cavalheiro.
— Oh! isso... juro-lhe que não foi tal o meu
pensamento...
Margarida caiu numa cadeira parecendo chorar.
Mendonça deu um passo para entrar, visto que até então não saíra da porta;
Margarida levantou os olhos cobertos de lágrimas, e com um gesto imperioso
mostrou-lhe que saísse.
Mendonça obedeceu; nem um nem outro dormiram
nessa noite. Ambos curvavam-se ao peso da vergonha: mas, por honra de Mendonça,
a dele era maior que a dela; e a dor de uma não ombreava com o remorso de
outro.
CAPÍTULO
8
No dia seguinte estava Mendonça em casa
fumando charutos sobre charutos, recurso das grandes ocasiões, quando parou à
porta dele um carro, apeando-se pouco depois a mãe de Jorge. A visita pareceu
de mau agouro ao médico. Mas apenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio.
— Creio, disse D. Antônia, que a minha idade
permite visitar um homem solteiro.
Mendonça procurou sorrir ouvindo este
gracejo; mas não pôde. Convidou a boa senhora a sentar-se, e sentou-se ele
também esperando que ela lhe explicasse a causa da visita.
— Escrevi-lhe ontem, disse ela, para que
fosse ver-me hoje; preferi vir cá, receando que por qualquer motivo não fosse a
Mata-cavalos.
— Queria então incumbir-me?
— De coisa nenhuma, respondeu a velha
sorrindo; incumbir disse-lhe eu, como diria qualquer outra coisa indiferente;
quero informá-lo.
— Ah! de quê?
— Sabe quem ficou hoje de cama?
— D. Margarida?
— É verdade; amanheceu um pouco doente; diz
que passou a noite mal. Eu creio que sei a razão, acrescentou D. Antônia rindo
maliciosamente para Mendonça.
— Qual será então a razão? perguntou o
médico.
— Pois não percebe?
— Não.
— Margarida ama-o.
Mendonça levantou-se da cadeira como por uma
mola. A declaração da tia da viúva era tão inesperada que o rapaz cuidou estar
sonhando.
— Ama-o, repetiu D. Antônia.
— Não creio, respondeu Mendonça depois de
algum silêncio; há de ser engano seu.
— Engano! disse a velha.
D. Antônia contou a Mendonça que, curiosa por
saber a causa das vigílias de Margarida, descobrira no quarto dela um diário de
impressões, escrito por ela, à imitação de não sei quantas heroínas de
romances; aí lera a verdade que lhe acabava de dizer.
— Mas se me ama, observou Mendonça sentindo
entrar-lhe n’alma um mundo de esperanças, se me ama, por que recusa o meu
coração?
— O diário explica isso mesmo; eu lhe digo.
Margarida foi infeliz no casamento; o marido teve unicamente em vista gozar da
riqueza dela; Margarida adquiriu a certeza de que nunca será amada por si, mas
pelos cabedais que possui; atribui o seu amor à cobiça. Está convencido?
Mendonça começou a protestar.
— É inútil, disse D. Antônia, eu creio na
sinceridade do seu afeto; já de há muito percebi isso mesmo; mas como convencer
um coração desconfiado?
— Não sei.
— Nem eu, disse a velha, mas para isso é que
eu vim cá; peço-lhe que veja se pode fazer com que a minha Margarida torne a
ser feliz, se lhe influi a crença no amor que lhe tem.
— Acho que é impossível...
Mendonça lembrou-se de contar a D. Antônia a
cena da véspera; mas arrependeu-se a tempo.
D. Antônia saiu pouco depois.
A situação de Mendonça, ao passo que se
tornara mais clara, estava mais difícil que dantes. Era possível tentar alguma
coisa antes da cena do quarto; mas depois, achava Mendonça impossível conseguir
nada.
A doença de Margarida durou dois dias, no fim
dos quais levantou-se a viúva um pouco abatida, e a primeira coisa que fez foi
escrever a Mendonça pedindo-lhe que fosse lá à casa.
Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu
de pronto.
— Depois do que se deu há três dias,
disse-lhe Margarida, compreende o senhor que eu não posso ficar debaixo da ação
da maledicência... Diz que me ama; pois bem, o nosso casamento é inevitável.
Inevitável! amargou esta palavra ao médico,
que aliás não podia recusar uma reparação. Lembrava-se ao mesmo tempo que era
amado; e conquanto a ideia lhe sorrisse ao espírito, outra vinha dissipar esse
instantâneo prazer, e era a suspeita que Margarida nutria a seu respeito.
— Estou às suas ordens, respondeu ele.
Admirou-se D. Antônia da presteza do
casamento quando Margarida lho anunciou nesse mesmo dia. Supôs que fosse
milagre do rapaz. Pelo tempo adiante reparou que os noivos tinham cara mais de
enterro que de casamento. Interrogou a sobrinha a esse respeito; obteve uma
resposta evasiva.
Foi modesta e reservada a cerimônia do
casamento. Andrade serviu de padrinho, D. Antônia de madrinha; Jorge falou no
Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o ato.
D. Antônia quis que os noivos ficassem
residindo em casa com ela. Quando Mendonça se achou a sós com Margarida,
disse-lhe:
— Casei-me para salvar-lhe a reputação; não
quero obrigar pela fatalidade das coisas um coração que me não pertence.
Ter-me-á por seu amigo; até amanhã.
Saiu Mendonça depois deste speech, deixando
Margarida suspensa entre o conceito que fazia dele e a impressão das suas
palavras agora.
Não havia posição mais singular do que a
destes noivos separados por uma quimera. O mais belo dia da vida tornava-se
para eles um dia de desgraça e de solidão; a formalidade do casamento foi
simplesmente o prelúdio do mais completo divórcio. Menos ceticismo da parte de
Margarida, mais cavalheirismo da parte do rapaz, teriam poupado o desenlace
sombrio da comédia do coração. Vale mais imaginar que descrever as torturas
daquela primeira noite de noivado.
Mas aquilo que o espírito do homem não vence,
há de vencê-lo o tempo, a quem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de
que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com ele o coração, veio a
tornar-se efetivo o casamento apenas celebrado.
Andrade ignorou estas coisas; cada vez que
encontrava Mendonça chamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo
o sujeito a quem as ideias ocorrem trimestralmente; apenas pilhada alguma de
jeito repetia-a até a saciedade.
Os dois esposos são ainda noivos e prometem
sê-lo até a morte. Andrade meteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros
da nossa representação internacional. Jorge continua a ser um bom pândego; D.
Antônia prepara-se para despedir-se do mundo.
Quanto a Miss
Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia à rua
foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas
lágrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chácara, à sombra de
uma laranjeira; cobre a sepultura uma lápide com esta simples inscrição: A Miss Dollar.
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