Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O capitão tinha três filhas, duas ainda meninas, Alba e Vera, e a
mais velha já moça, Celina. A primeira contava apenas cinco anos, a segunda
dez, a terceira quinze. Haviam nascido no mar e assinalava-as a singularidade
de terem a separá-las umas das outras, em idade, períodos iguais de tempo. Eram
lindas, três sereias, como ele a
rir-se costumava chamá-las, jubiloso e feliz no seu grande afeto de pai,
aludindo humoristicamente, não só ao nascimento delas a bordo, em pleno Oceano,
como à sua vida de marítimo.
Alto e forte, musculoso e de ombros largos, cheio, sem ser
propriamente gordo, de olhos e cabelos negros, porte ereto e naturalmente
airoso, com um falar grosso e rouco, suave e áspero ao mesmo tempo, meio
carregado e cantado, como o dos portugueses das ilhas, apesar de brasileiro e
catarinense, Brás Romano — tal o nome do capitão — era um desses netunos morenos das nossas costas do sul
que tripulam os navios da grande e pequena cabotagem, como capitães ou pilotos,
contramestres ou marinheiros, moços de câmara ou de convés, e que impressionam
a todos pela robustez e saúde, pela opulência do temperamento e do sangue, pela
destreza, decisão e bravura invencíveis que mantêm e com que se batem com o
pélago, desde a mais tenra juventude à mais proveta velhice. Casara com uma
robusta rapariga da Brusque, pequena vila do interior, que fora outrora colônia
alemã, no Estado de Santa Catarina. Realizara-se essa união havia quatro
lustres. Ele era então muito novo — um mocetão de rosto oval ornado apenas de
um buço. Beirava talvez, nesse tempo, os seus dezessete anos. Com uma infância
reclusa passada em viagens contínuas, entre as bordas balouçantes dos barcos,
isolada do convívio da família e das rodas de escolares ou rapazio das ruas,
fora de todas as cenas e alvoroços da vida de terra, pois dos três anos em
diante, já órfão de mãe, saíra com o pai para bordo, crescendo e vivendo entre
as imensas solidões azuis do Oceano e do Céu, mostrava, em mocinho, quando
aparecia na sociedade, o embaraço, o desestramento, a ingenuidade das naturezas
solitárias, segregadas longamente do atrito social. Mas apesar disso e do seu
andar balançado, à maruja, as raparigas do Itajaí e da Brusque não sabiam ou
não podiam resistir aos seus sorrisos atraentes e aos seus olhares meigos e
amorosos que tinham o quer que fosse do mistério das velas, da aventura das
viagens, do fosforejar das ondas. E fora isso decerto que lhe fizera merecer a
dedicação e o amor de Ana Wilmer — assim se chamava a esposa — moça
teuto-brasileira, perfeita beleza, saxônia, de pele branca de açucena e
profusos cabelos cor de ouro. Experimentara por ela tal paixão que chegara em
pouco ao casamento. Andava nessa época numa pequena sumaca do Itajaí, a Sereia, onde tivera o seu primeiro
comando. Casado, levara logo a amada descendente das valquírias renanas para
bordo desse barco, onde lhe nasceram os primeiros filhos — os únicos varões do
casal — Rodolfo e Carlos, ambos mortos de uma febre maligna, numa longa
travessia oceânica, a bordo da galera Aurora,
em viagem para a Alemanha. — E como Ana ainda chorava ao memorar essa manhã
negra de lágrimas, nos escarcéus da Biscaia, quando os vira para sempre
sumirem-se, amortalhadinhos em lona, nas águas azuis do Mar! — Fora à volta
dessa terrível viagem, em que passara quase dois anos em terras estranhas, que
lhe nascera Celina, desde então, e ainda agora, o maior encanto da sua vida,
sobretudo por se parecer extraordinariamente com a esposa quando tinha aquela
idade e a vira, à vez primeira, já lá iam vinte anos, em casa do velho
Wilmer...
Essas três filhas do capitão eram a great attraction do lúgar Feliz
para os passageiros que nele andavam entre as nossas cidades marítimas,
nesse tempo de há quarenta anos passados, em que existia apenas um ou outro
paquete a vapor e os veleiros mercantes cruzavam, como os steamers de hoje — pequenos ou grandes — cheios de gente e de
alegria pelas costas do Brasil. No seu gênero, o Feliz era das poucas embarcações da carreira do Recife, Rio de
janeiro e Rio Grande que dispunham de boa câmara e camarins confortáveis para a
instalação de passageiros isolados ou com família. Todos por isso o procuravam
e também pela circunstância de ter o capitão Brás Romano o seu modesto e
honrado lar dentro do próprio navio, oferecendo assim comodidades especiais às
senhoras, o que só se encontrava então em duas quilhas mais dessa carreira — no
brigue Atlântico, do comando do José
da Mota, e no magnífico patacho Lima I,
do comando do João Esteves, capitães esses que traziam igualmente a bordo as esposas.
Mas esses navios haviam sido fretados para o estrangeiro e, ao momento, o
primeiro estava no Prata e o segundo na Guiana Inglesa, onde tinham ido levar
carregamentos. De sorte que o Feliz era
agora único e nas viagens que fazia andava atopetado de passageiros.
No entanto, desta vez, parecia ter diminuído a grande afluência
dos viajantes. Mas o fato era perfeitamente explicável, não só por ocorrer esta
viagem no belo mês do Natal em que ninguém se despega do lar senão em extrema
necessidade, como porque o navio, por urgência da carga, não tocara na Bahia
nem no Rio de Janeiro. Ainda assim trazia vinte e dois passageiros, o que, para
um barco a vela, já significava alguma coisa, mesmo naquela época.
Os passageiros, como em geral os que viajam em primeira classe,
eram pessoas da melhor sociedade. Constavam eles de três negociantes gaúchos
que vinham de liquidar os negócios feitos durante o ano no Recife; do famoso
estancieiro e capitalista pelotense Sebastião Vinhas que, tendo ido
propositalmente a Pernambuco assistir à formatura de um filho, o Alfredo, muito
ancho e orgulhoso, volvia agora com ele à família, onde o seu doutor ia ser recebido com um semanário de banquetes e
bailes; um velho general reformado, pertencente à brava estirpe guerrilheira dos
Mena Barreto e que fizera com brilho a campanha da Cisplatina no primeiro
quartel do século, tanto como a dos Farrapos em 1835, e que fora ver, à capital
pernambucana, o seu vigésimo trineto, gozando assim o condão de poder dizer a
qualquer de suas netas casadas, como na frase popular caracterizadora dos
longevos: minha neta dá cá o teu neto; seis outros oficiais de linha — dois
majores, três capitães e um alferes — transferidos para os corpos do sul; e a
família Simas, composta de um velho casal, quatro moças, três meninas e um
rapazito de sete anos, muito magrinho e anêmico, mas tão vivo e espiado que
parecia ter nove. Sem falar no jovem e gentil Alfredo Vinhas e no casquilho e
irresistível alferes Carlos Magno Romeu — um nome mavórtico e romântico ao mesmo
tempo! —, o nervo da graça, do entusiasmo e da alegria a bordo era essa
simpática e atraente família, cujo chefe, o velho Simas, como em geral lhe
chamavam, havendo deixado o cargo de inspetor da Tesouraria de Fazenda do
Recife para ir assumir igual posto na de Porto Alegre, era uma dessas criaturas
felizes que, apesar das desilusões e desenganos da Vida, apesar de
septuagenário e com os cabelos alvíssimos, logram manter até a morte um
espírito mansueto, folgazão e juvenil. Pois bem, no seio da família, já de si
perenemente ruidosa e cantante, ele era como um encanto a mais — entretendo e
alegrando constantemente a todos com as suas anedotas irresistíveis e,
particularmente, com as langorosas modinhas baianas que à noite cantava, na
câmara ou na tolda, ao som do seu cavaquinho.
As filhas mais velhas do Simas, a começar pela Maria José, a
primogênita, e a acabar na Laura, que tinha apenas doze anos, mas se mostrava
já bastante taluda, quase uma moça — eram umas raparigas alegres,
engraçadíssimas, folionas como o pai, e mal haviam posto o pé no navio, como já
não enjoavam, pelas frequentes viagens que tinham, de sul a norte em toda a
costa brasileira, não pararam mais com brinquedos, jogos e diversões de toda a
ordem, que sabiam como ninguém imaginar e pôr em prática, deliciando a todos a
bordo. Elas e as irmãzinhas menores, todas morenas e pálidas, esguias e
voadoras — tão leves eram de movimentos! —formavam um perfeito contraste físico
com as alvas, robustas e louras filhas do capitão. Mas, espiritual e moralmente,
pareciam irmãs, tal a similitude de gênios, gostos, predileções e ideais.
Apenas se viram, uniram-se e estimaram-se como velhas camaradas. Depois a vida
de bordo, muito junta e sempre à fala, fazendo que todos se vejam num tête-à-tête contínuo, e se cruzem, e se
acotovelem a cada passo pelos mesmos lugares, as fizera fraternizarem ainda
mais. Fora com tão doces brincos e folguedos, sob uma esplêndida bonança, que
esta viagem do Feliz se tornara,
sobre todas, agradável e amena, desde a saída do porto até ao ponto do litoral
onde estavam agora, na altura do Arvoredo, à entrada norte da ilha de Santa
Catarina, que já começava a desdobrar-se vagamente, por estibordo, a oeste,
numa saudosa e recortada mancha azul de altos montes perdidos numa névoa longínqua...
Diariamente, as Simas, apenas a manhã alvorava, iam buscar ao
camarim as raparigas de bordo; e, todas elas, de mãos dadas, nervosas e
lépidas, como corças ou aves marinhas, surgiam no tombadilho, numa tão grande
grazinada de vozes frescas e festivas que dir-se-iam uma estranha revoada de
andorinhas felizes, invadindo triunfalmente o navio. Espalhavam-se então por
entre os passageiros — e era uma esfuziada geral de ditos, gracejos, risadas
que não cessavam, nem sob os mais fortes balanços, senão já pela noite, quando
os faróis de esmeralda e rubi começavam de arder nas enxárcias, rastilhando de
cores luminosas as vagas; ou quando o sino de bordo, pendendo à proa do
castelo, tocava a silêncio, anunciando o primeiro quarto das desoras, em
badaladas metálicas, de uma alacridade borbulhante e aérea de campanário
festivo, a princípio, mas depois perdendo-se na noite e no Mar numa infinita
plangência...
Mas, nessa tarde, as Simas não tinham subido para a tolda logo
após o jantar como os outros passageiros. Notava-se que, pela primeira vez,
nessa viagem, o tombadilho não retinia animadamente, alegremente, ao
palratório, aos ditos e risadas femininas, em que viera envolvido até horas
antes. E embora ali estivesse a Celina, com a Alba e a Vera, mais as três
meninas do Simas que tinham menos de dez anos — a Inês, a Flora e a Lívia — com
o canicinho do irmão, o Zeca, agora
entretido lá para a proa, junto a um grupo de marinheiros que jogavam o dominó
no convés — havia um grande silêncio, apenas uma ou outra vez cortado pelas
gargalhadas das crianças, as quais, nessa ocasião, mostravam-se mais quietas
que de costume, parecendo poupar-se então, elas próprias, às corridinhas e
garrulices ruidosas de sempre. Depois, como Celina fora postar-se a um dos
recantos da borda, ao pé do espelho da popa, por entre a ré do homem do leme,
onde quase não iam os passageiros, que em geral se acomodavam nos bancos ou
cadeiras de lonas que ficavam junto ao mastro da gata ou ao longo das gaiutas,
as rapariguitas ali se retinham também, sentadas no chão, a jogar a Argolinha, todas com as pequeninas mãos
estendidas, abertas, de palmas para baixo, nas tábuas do salto, enquanto uma
delas, a graciosa Lívia, com os seus olhinhos verdes muito vivos na face
morena, corria beliscos sobre o dorso de cada uma daquelas mãozinhas, recitando
os versos tradicionais da antiquíssima diversão infantil:
Um e dois, e argolinha:
Finca o pé na pampolinha...
Enquanto as crianças assim folgavam, o Alfredo Vinhas, sem que os
companheiros fizessem maior reparo, deixando a roda do general e mais
militares, onde se achava com o alferes Carlos Magno, e onde só se falava de
guerras e coisas de caserna, viera colocar-se ao lado de Celina, a quem entrava
a fazer as mais íntimas confidências, pois fora para isso que lhe solicitara
aquele rendez-vous que a
circunstância da ausência momentânea das Simas e o fato de se acharem à sombra
do latino da gata, que os ocultava de certo modo do resto do tombadilho, muito
favoreciam e propiciavam. Sim, porque o Alfredo e a moça amavam-se havia dois
anos. Começara esse afeto na viagem que ele fizera ao Rio Grande, a bordo do Feliz, nas férias do seu terceiro ano de
direito. Depois crescera e se mantivera cada vez mais intenso, com as
frequentes visitas dele à família do Romano, durante a estadia do navio em
Pernambuco, porquanto, desde aquela viagem até ao presente, nunca mais se dera
a coincidência, sempre desejada mas nunca ocorrida, de estar o lugar de partida
para a sua província quando tinha de embarcar para ali a gozar a pausa dos
estudos, ou quando voltava a Pernambuco a prosseguir nesses mesmos estudos. O
capitão e a esposa sabiam de todo esse amor, homologavam-no com satisfação e
achavam que era uma felicidade para a filha e para a família se isso viesse a
dar em casamento, como tudo prognosticava. O rapaz era distinto e rico. Que
mais queriam e que melhor sorte podia esperar a Celina? E não se lhes dava
aguardar que ele se encarreirasse primeiro, para que aquela afeição alcançasse
o almejado fim. Mesmo porque, nessa recíproca inclinação amorosa, não havia
intimidade — pois era toda cerimoniosa e respeitosa. Além disso, aqueles dois
namorados eram tão sóbrios e parcimoniosos nas manifestações que entre si
trocavam que, apesar da familiaridade e das estreitezas do meio de bordo,
ninguém os surpreendera ainda em nenhuma atitude ou embevecimento que lhes
denunciasse os segredos d'alma. Apenas as Simas, muito observadoras e
pesquisadoras de movimentos e impressões nas fisionomias das pessoas com que se
davam, especialmente entre moços e moças, por certos sorrisos e olhares
trocados às vezes, à mesa, entre Celina e Alfredo, desconfiavam de que eles se
amassem. E andavam louquinhas por apanhar uma certeza. Mal sabiam elas, porém —
como aliás toda a família do Romano — que, à noite, na câmara, quando a
criançada se reunisse para ver a sua árvore
querida e todos entrassem a festejar o Natal (pois estava-se a 24 de
dezembro), o jovem bacharel rio-grandense pediria a Celina em casamento. Nem
fora para a avisar de outra coisa que ele estava agora ali, em entrevista com a
amada, naquele recanto da popa. E as meninas, felizes e distraídas, continuavam
a cantar, com as suas vozes frescas e sonoras, os versos da Argolinha:
Conta bem Manoel João
E recolhe este pezinho
Co'a conchinha desta mão...
Mas apenas Celina acabava de murmurar, trêmula e emocionadamente,
o expressivo e simbólico sim das noivas e o rapaz, embevecido e arrebatado,
depunha-lhe na testa o seu primeiro beijo de noivo, duas das Simas, a Basilissa
e a Laura — enquanto as outras duas irmãs, a Maria José e a Adelaide,
demoravam-se ainda no salão da câmara a ajudar a esposa do Romano a dar a
última demão à árvore que devia, à noite, resplandecer cheia de luzes, de doces
e de bibelôs de mil feitios, fazendo a alegria e o supremo encanto das crianças
de bordo, —a Basilissa e a Laura surgiram de repente junto deles e, numa
matinada que fez logo alvoroçar a criançada, exigiram-lhes intimativamente
pusessem já para ali o segredo daquele
rendez-vous à capucha que, certo,
tinha “um quer que era de extraordinário e solene...”
Celina e Alfredo que não contavam com aquele gracejo inopinado,
apanhando-os em flagrante tête-à-tête amoroso,
que sempre procuravam cuidadosamente evitar mas que naquele instante não fora
possível, ficaram a princípio enleados e mudos, as faces cor de lacre, ante as
endemoninhadas e gentis zombadoras que continuavam a flagelá-los de frente, com
uma verve incessante. Mas como
realmente não podiam ocultar mais a atitude de intimidade destacante em que os
surpreenderam as duas adoráveis indiscretas, tentavam desculpar-se com ilógicas
e inadmissíveis evasivas:
— Não, não há nada. Que tolice! Um mero encontro casual... Então
já não podiam, nem a bordo, um moço e uma moça estar um momento juntinhos? Que
malícia!... Não, assim também não era possível... Então elas que às vezes eram
encontradas a parolar isoladamente, num recanto da borda, com o Carlos Magno,
também estavam no mesmo caso deles. Mas ninguém caçoava, aludia a isso... Por
que, pois, haviam de julgar os demais por um outro prisma?...
As Simas protestaram vivamente:
— Ora deixem-se disso! Não colhe a evasiva! Era o que faltava! Um
caso é muito diferente do outro... Negar assim uma coisa que estava a olhos
vistos, ninguém seria capaz, Virgem Maria! Mas, enfim, a verdade havia de
descobrir-se mais dia menos dia...
E insistiam no gracejo, às gargalhadas, chamando para ali a
atenção de todos. Eram invencíveis as Simas.
Eles então tornaram:
— Não, não há nada, repetimos. Mas se julgam que há, hão de ver
logo. Quando romper o Natal e desvendar-se a “árvore”, o “nosso segredo”, se
ele existe, tornar-se-á conhecido...
Elas irromperam então numa gargalhada mais viva, em que também
tomaram parte as meninas:
— Isto sim! isto sim! Falem-nos desse modo... A verdade é o que há
de mais lindo...
E davam parabéns ao rapaz e ainda mais parabéns à Celina.
Mas a tarde, muito azul e cheia de uma luz de ouro límpido,
tinha uma grande serenidade. Não corriam nuvens no alto, mas somente na linha
rasa do horizonte a leste, onde se abria o isolamento, o deserto, a amplidão
sem raias. O sol, descendo lentamente para as bandas de oeste e da costa,
chamejava deslumbrantemente no seu fulvo disco monstruoso, arrastando sobre as
ondas azuis um imenso zaimph de fogo.
Gaivotas alígeras, em revoadas ao longe, picavam a distância cerúlea de
brancuras voadoras. A ilha de Santa Catarina, mais nítida agora à visão, num
rendado pinturesco de montes esmeraldinos, passava lentamente, para o norte, no
correr da singradura. As ondas altas, em bonança, rolavam continuamente para o
sul os seus zimbórios de espuma. Para além, no continente, como que se divisava
tenuemente o colear alteroso da Serra do Mar, aí tão abeirada do Atlântico pela
vasta mancha de um azul mais intenso, transparecendo através do azul da
atmosfera, em que o afastamento e a distância parecem envolver idealmente, para
quem as observa do mar, as massas de terra firme. Todo o grandioso e
imensurável cenário marinho, sob esse maravilhoso e feérico poente, convidava a
viagens longínquas, à Aventura e ao Sonho...
Os passageiros, às bordas, contemplavam num enlevo o magnífico
espetáculo do céu e do mar. Muitos comentavam a sublimidade da tarde, com
opiniões e comparações de toda a ordem, lamentando terem de passar tão suave
Natal longe dos carinhos dos seus. E de todos de bordo, só o capitão, a esposa
e os filhos, agora totalmente reunidos em cima, no meio dos passageiros — pois
a senhora do Romano, apenas concluíra a tarefa da “árvore” na câmara, subira
também para o tombadilho — só eles, verdadeiramente, não experimentavam o
pungir da nostalgia. Nascidos nas vagas e tendo como lar o navio, o oceano e
aquele frágil lenho veleiro, constituíam a sua felicidade na vida.
No entanto o velho Simas e a família, sempre contentes e felizes
onde quer que se achavam, porque poucos como eles tinham o dom do bom humor e
da alegria, diante daquela tarde admirável expandiam-se, como nunca, na mais
viva garrulice. E as filhas — moças e meninas — intranstornavelmente meigas,
inquietas e ruidosas, de uma gentileza e simpatia fundamente comunicativas,
sempre bem acamaradadas e unidas à Celina e às irmãs, voejavam tagarelamente
por toda a tolda, de lá para cá, daqui para ali, a envolverem indistintamente
os passageiros, jovens ou velhos, na esfuziada deliciosa e constante das suas
risadas e ditos.
O nonagenário general divertia-se imenso com elas, lembrando-se do
batalhão de netos, bisnetos e trinetos que tinha e eram a sua idolatria; o
Sebastião Vinhas trocava sempre de bom grado os seus remoquezinhos de vovô com
os motejos de netinhas atrevidas que elas lhe jogavam; os dois majores e os
três capitães, embora casados e homens incultos e de tarimba, pois não eram
oficiais de salão e de estados, gostavam de vê-las grazinar em torno a si, e
riam-se, e até enterneciam-se, às vezes, às
suas brincadeiras e chistes; o simpático alferes Carlos Magno, que tinha
apenas vinte e seis anos e era um
padecente pelo belo sexo, morria-se por elas, principalmente pela Basilissa; os
negociantes gaúchos não lhes eram também indiferentes, florindo-se todos de
frases amáveis para lhes corresponderem aos gracejos; e assim os oficiais de
bordo, o Brás Romano como o seu piloto Noé Cavalheiro, solteirão bem conservado
e viçoso apesar dos seus cinquenta e seis anos, mas que, não se sabia por que,
era adverso ao casamento...
De repente, o gajeiro grande gritou para ré:
— Um navio a sotavento! Traz proa ao norte, e parece um paquete.
Vai passar borda a borda com o lúgar. E vem corrido que nem um pé de vento...
O Romano pegou logo do binóculo e pôs-se a olhar o vapor por baixo
da amura da gata.
Aumentou então a grazinada entre as moças e meninas, e houve um
alvoroço entre os homens. Todos correram às amuradas a mirar a embarcação à
vista.
Que sensação! Um encontro entre dois ou mais navios em alto mar é
sempre um acontecimento, e acontecimento de grande prazer. Trocam-se sinais de
navegação e afetuosos cumprimentos.
Fala-se pelos porta-vozes de metal reluzente. Oferecem-se recursos
recíprocos. Permutam-se alturas — longitude e latitude. Fazem-se alegres e
respeitosas saudações à bandeira de cada um. Pergunta-se pela saúde dos de
bordo; comunicam-se casos extraordinários, se os há; e dão-se despedidas
saudosas. Mas tudo isso sempre em marcha, sem a menor parada, no encontro fugaz
das singraduras...
Entretanto, nenhum dos passageiros lograra, até aquele momento,
avistar o paquete que vinha ainda muito longe. O Romano, porém, apenas lhe
pusera o binóculo, exclamou:
— É o Princesa de Joinville. Vem do Rio
Grande, ou do Prata, para o Rio de Janeiro. Pela marcha e o escarcéu de espuma
à proa, puxa bem com as suas sete ou oito milhas por hora. E um navio possante
e bonito, apesar de pontaludo...
Mas o lúgar e o vapor caminhavam em rotas opostas: portanto, a
passagem de um pelo outro devia dar-se dentro em pouco. Com efeito, daí a
instantes, o Princesa de Joinville mostrava-se,
em todo o comprimento e pontal, bem em frente ao Feliz, à distância talvez
de uma milha. Era um bonito e grande casco de paquete primitivo, pintado a negro,
armado a iate, com a proa ainda em forma de lótus ou de harpa como a dos navios
à vela, tendo somente a balaustrada da popa, o exterior da câmara e as caixas
das rodas brancas. A câmara ficava em cima, toda corrida de grandes vigias
retangulares. Vinha carregado de passageiros que, de pé ou sentados nos bancos,
no tombadilho, a olhos nus ou a binóculo, observavam curiosamente o lúgar à
sombra dos toldos de lona.
Apenas o vapor começou a enfrentar o Feliz, este içou a bandeira brasileira, saudando-o. De bordo do Princesa corresponderam logo.
Conversou-se um instante, por sinais e galhardetes. Trocaram-se reciprocamente
as procedências e destinos. Não se usou de porta-voz, por causa da distância.
Por último, um e outro arvoraram o sinal de Boa
viagem!
Quando acabaram de falar, já o paquete ia pela alheta do lúgar.
Então um vivo e prolongado apito metálico vibrou de rijo na doçura
da tarde e ficou a ecoar sobre as ondas: era a sereia do vapor. A bandeira brasileira de novo voltou a subir e a
descer ao longo da haste, agora em despedida, à popa de ambos os barcos. E logo
após o Princesa de Joinville se sumia
para o norte, deixando a ondular para o sul, à flor das águas, uma imensa Via
Láctea de espuma...
Anoitecia. As primeiras estrelas entravam já a reluzir miudamente
na abóbada do céu, como uma nuvem sem fim de lantejoulas num vasto manto de
veludo azul escuro. O mar parecia agora de tinta de escrever, apenas aqui e
além cortado, num dobrar de vaga alta, por fosforescentes listrões de
ardentias. Ouvia-se o siflar meigo e nostálgico do vento nas cordoalhas e
mastros, bem assim o marulhar doce e úmido das ondas golfando ao costado.
Acendeu-se o grande farol de luz branca do mastro de proa, acenderam-se os de
luz verde e vermelha das enxárcias de ré e iluminou-se toda a câmara, cujas
claridades esparsas, partindo de vários focos, jorravam no tombadilho, em
grandes malhas irisadas, através os vidros coloridos das gaiutas.
Houve então grande reboliço e alvoroço entre os passageiros,
principalmente entre as meninas e moças. Iam começar, enfim, ali a bordo, os
festejos de Natal. E as Simas, na sua incomparável jovialidade, inquietas e
borboleteantes como sempre, com as irmãzinhas e as meninas do capitão, já há
muito impacientes pela chegada do noite, para verem a sua “árvore” querida e
ganharem os seus brinquedos, romperam graciosamente a cantar, no meio dos
passageiros entusiasmados, as expressivas e doces quadras antiga, que sonorizam
as praias e campos do sul, pela festas de Natal:
Crianças, moços e velhos
Vinde para a festa ideal,
Ver o Astro dos Evangelhos
Nesta noite de Natal.
Às alegrias do céu
Saltai, correi, folgai bem,
Que Jesus Cristo
nasceu
Lá na aldeia de Belém!
E as Simas e a criançada entraram a descer apressadamente o
tombadilho em direção à câmara. Mas o Romano e a esposa as detiveram à porta,
dizendo-lhes carinhosamente:
— Não, não! Ainda é cedo! Esperem um pouquinho, só um
pouquinho!...
Porque era sempre a mulher do Romano que dirigia a festa de Natal
no seu lar, celebrando-a à alemã. Os alemães costumam armar a árvore de Natal
em segredo, às ocultas das crianças, para lhes fazerem surpresa. O clou da grande festa consiste na
surpresa. As crianças ignoram inteiramente até ao ato do desvendamento da
árvore, como foi ela enfeitada, as proporções que tem, a variedade de doces,
bibelôs e brinquedos que pendem dos
seus ramos rendados. Sem isto a festa não seria completa, não teria graça. Tal
a razão porque fora vedado às Simas e às crianças o ingresso súbito na câmara,
transformada agora em “sala da árvore”. Além disso, era preciso arranjar-se a
mesa de “banquete”, no que àquele instante se ocupavam exclusivamente os
criados de bordo e as criadas da família do capitão, duas germanas alvíssimas e
louras que só falavam a sua língua e que eram origem de frequentes e
interessantes quiproquós que faziam rir a todos.
Mas esses preparativos, já em ultimação, terminaram logo. E ao
repique sonoro e festivo do sino de bordo anunciando a “abertura” do Natal, as
portas da câmara se descerraram de par em par, precipitando-se em primeiro
lugar as Simas com a criançada e, em seguida, os passageiros, num torvelinho e
numa vozeria inefável, para o vasto salão iluminado.
Foi então um deslumbramento e encanto extraordinários, em que as
exclamações jubilosas de todos e a algazarra triunfal das crianças, cruzando-se
de todos os lados, transformavam aquela dependência do navio numa espécie de
barraquinha de feira com luminárias ou numa quermesse noturna de adro florido
do arraial.
O salão da câmara, todo atapetado e com as delgadas colunas de
ferro envoltas em multicores festões de flores de papel, profusamente iluminado
pelas arandelas de metal reluzente, com os porta-cálices a cintilarem como
pedrarias fantásticas, reproduzia-se infinitamente no clarão dos largos
espelhos colocados, de alto a baixo, às amuradas. Na grande mesa do centro,
guarnecida às beiradas por fileiras de pratos de porcelana branca a filetes
doirados, tendo ao meio compoteiras com doces de calda e grandes bolos
tostados, escoltados por um pelotão de garrafas de vinho e cerveja que tinham
brilhos de rubi e topázio, erguia-se, bem ao centro, a bela árvore de Natal, um
pinheiro improvisado e criado pelos hábeis dedos artísticos do carpinteiro de
bordo, mas enramado e pintado de tal modo que parecia natural. Da sua haste
aprumada e central os ramos bracejavam para todos os lados, cheios de uma
multidão de velinhas de cera colorida ardendo em chamas de ouro fumarentas, por
entre uma infinidade de doces secos de todas as formas e de uma completa
coleção de brinquedos, em grande parte reproduzindo, em miniatura toda uma
fauna.
A ménagère daquele lar
flutuante, a boa esposa do Romano, começou então a fazer a distribuição dos
brinquedos chamados da véspera, porque os outros deviam ficar para o dia e os
restantes durar, como os doces secos, até ao dia de Ano — Bom. Às meninas
maiorezinhas tocaram grandes bonecas, mobiliazinhas, minúsculos aparelhos de
jantar ou de chá, trenzinhos de cozinha; às menores, pequenas bonecas,
casinhas, polichinelos, carneirinhos; e ao pequeno Simas, além de muitas outras
coisas, um violinozinho de Nuremberg, porque ele tinha uma decidida vocação
para a música e queria ser virtuose. Carregadas com os seus presentes, e
indizivelmente felizes, as crianças passaram todas para uma outra mesa menor
que ficava ao lado da grande, e entraram no seu festim de Natal sob as vistas
das criadas.
Então o estimável capitão Romano, que todos os anos
invariavelmente mandava vir da Europa para aquela festa um rico e esplêndido
sortimento de tudo quanto havia de melhor em bibelôs, brinquedos e doces secos e cristalizados, fez com que Celina
distribuísse à esposa do Simas e a cada uma de suas filhas um presente, um
mimo, uma lembrança. E imediatamente abancaram todos em torno à grande mesa do
centro, servindo-se de bolos e doces por entre uma conversação alegre, animada,
e cordial, em que os ditos e risos sóbrios dos homens e das duas matronas —a
senhora do Simas e a do Romano —se misturavam admiravelmente às graças vivas e
espontâneas, às risadas meigas e festivas das moças em plena intimidade. A mesa
das crianças afogava, por vezes, os ruídos desta, na sua contínua e infinita
matinada...
Depois, quando à grande mesa da árvore os finos vinhos capitosos
entraram a inundar as largas taças de cristal, o velho Sebastião Vinhas
ergueu-se e, meio trêmulo e numa grande emoção, dirigindo-se ao Romano e à
esposa, pediu-lhes a mão de Celina para seu filho Alfredo, que a amava,
declarando que aquele consórcio ele o considerava, para si e para os seus, uma
honra e uma felicidade.
O capitão e a esposa, com os olhos rasos d'água, igualmente
emocionados, deram então inteiro deferimento àquele solene pedido, fazendo suas
as derradeiras palavras do velho Vinhas:
— Também para nos é uma honra e uma felicidade...
Cobriu a grave frase que envolvia e dispunha do futuro destino de
duas criaturas uma discreta salva de palmas.
E todos, voltando-se para Alfredo e Celina, que estavam sentados
lado a lado, num enlevo e num júbilo sem fim, murmuraram com afeto:
— Parabéns e mil venturas! Parabéns e mil venturas!...
Os noivos, com um significativo mover de cabeça e um certo
embaraço, agradeciam, em voz baixa, quase indistintamente:
— Obrigados! Obrigados!
Mas a noite subia. E, dentro em pouco, a mesa das crianças ficou
deserta, indo cada uma delas, à sua vez, com os seus brinquedos apertados nos
braços, estirar-se, tomada de fadiga ou de sono, para os divãs das amuradas.
E como a primeira hora do grande dia do nascimento de Jesus estava
quase a soar, o capitão e a esposa, os noivos e os passageiros subiram para o
tombadilho, a saudar a maior e mais sublime data de toda a Cristandade.
Um instante após, lá embaixo, na câmara ainda iluminada, onde as
crianças ressonavam serenamente, conservando o último sorriso da alegre vigília
ainda espiritualizado na curva rósea dos lábios, sonhando talvez deliciosamente
com a sua árvore de Natal — o relógio de bordo entrou a badalar, espaçadamente,
a meia-noite.
Imediatamente o comandante deu uma ordem para a proa.
O sino do lúgar entrou a vibrar vivamente, em repiques musicais,
numa alegria de alvorada de calma rompendo o Espaço, triunfal e cor de ouro,
depois de longos dias e noites de medonha borrasca. E, de repente, no meio
dessa esfuziada de notas sonoras e bem ritmadas saudando o Natal, todo o barco
foi envolvido no grande clarão róseo e verde de um fogo de tigelinhas que
iluminava feericamente o convés e a tolda, bem como a zona do mar em torno,
onde as ondas dobravam em cadência, sob o céu radiante de astros, qual um bando
infindo de noivas coroadas de flores de espuma, desfilando ao murmúrio das
águas.
Um embevecimento e emoção incomparáveis avassalaram a todos, até
os próprios marinheiros, incultos e rudes sempre, mas de um coração amoroso e
leal. E então as Simas, com uma voz débil e dolente mas expressiva e suave,
voltaram a cantar, entusiasticamente e em coro, as célebres quadras populares
que tanto sonorizam as praias e campos do sul, pelo tempo do Natal
Crianças, moços e velhos
Vinde para a festa ideal,
Ver o Astro dos Evangelhos
Nesta Noite de Natal.
Às alegrias do céu. Saltai,
Correi, folgai bem,
Que Jesus Cristo
nasceu
Lá na aldeia de Belém!
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