O Cônego
ou Metafísica do Estilo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
— "Vem do Líbano, esposa minha, vem do
Líbano, vem... As mandrágoras deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda a
casta de pombos..."
— "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém,
que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..."
Era assim, com essa melodia do velho drama de
Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um
adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em
nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o
dia da conversão pública há de chegar.
Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o
paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta
página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as
línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos
séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de
prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e
liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais
definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará
acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.
Matias, cônego honorário e pregador efetivo,
estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos
de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram
encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com
uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas
instaram tanto, que aceitou.
— Vossa Reverendíssima faz isto brincando,
disse o principal dos festeiros.
Matias sorriu manso e discreto, como devem
sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes
gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de
que pregava ao Evangelho o Cônego Matias "um dos ornamentos do clero
brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade
de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se
meteu a escrever o sermão.
Começou de má vontade, mas no fim de alguns
minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a
meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da
cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil coisas místicas e graves. Matias vai
escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e
polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever
um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem
melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego.
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor
amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que
ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo coisa nenhuma. Opinião
pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso,
leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua
cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à
escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde
nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha,
que, ainda assim, não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu
senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a
sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...
— Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm
sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho
e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.
— Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O
casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não
entendeu nada.
— Confesso que não.
Pois entre aqui também na cabeça do cônego.
Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? é o
substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu
a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..."
E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do
século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta é o sol... ergue-te, lindo
sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao
cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo
idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a libra, que é tudo
o mesmo dinheiro.
Portanto, vamos lá por essas circunvoluções
do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio
chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é
Sílvia que chama por Sílvio.
Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil
e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de coisas velhas e novas! Há
aqui um burburinho de ideias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não
percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e
salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a
um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força
íntima, a que não pode resistir.
De quando em quando, aparece-lhe alguma dama
— adjetivo também — e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por
Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ab eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da
única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à
cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no
eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede
um certo amor nomeado e predestinado.
Agora não te assustes, leitor, não é nada; é
o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá
olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da
janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se
todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos
seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e para diante da janela:
"Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e
pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé
do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os
ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano;
depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos,
encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.
Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si.
Enquanto o cônego cuida em coisas estranhas, eles prosseguem em busca um do
outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro.
Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa
das ideias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem
formas, os germens, e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão
imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e
suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos
também.
Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem
por entre embriões e ruínas. Grupos de ideias, deduzindo-se à maneira de
silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário.
Outras ideias, grávidas de ideias, arrastam-se pesadamente, amparadas por
outras ideias virgens. Coisas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de
um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem
moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que
não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança.
Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas
da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas,
em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um
fastio de coisas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande
unidade impalpável e obscura.
— Vem do Líbano, esposa minha...
— Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém...
Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam
eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia
e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e
sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a
unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão
rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os
obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir.
Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de
manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja
da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e
do desejo.
Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba;
é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do
trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a
ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo.
Justamente agora é que os dois cobiçosos
estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles,
tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias,
disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão,
vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que
fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas,
velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de ideias novas,
debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai,
desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se.
Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou
Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas
remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da
inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto,
firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é
o selo do seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria
morte".
Nisto, o cônego estremece. O rosto
ilumina-se-lhe. A pena, cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com
o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai
pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus
escritos, o que não se sabe.
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