O último
dia de um poeta
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
São nove horas da manhã.
Entra-me o sol vivo e ardente pelas frestas
das venezianas. Parece que me convida a deixar o leito, e como que a reviver.
Reviver! é esta a palavra: reviver quando estou certo de que poucos dias ou
apenas horas me separam da sepultura. Não parece um escárnio da morte? Não
parece que para melhor sentir o que vou perder, deixando a vida, quer a morte
que eu toque pela última vez os tesouros da felicidade que me ficam na terra?
Melhor fora, decerto, para minha perfeita
contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com o seu aspecto mais
sombrio e aflitivo. Então cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um pesadelo e
uma angústia, e que ia respirar os ares puros de uma vida sem igual.
Depois...
CAPÍTULO
2
Abramos a janela.
Oh! como está bonito o dia! O céu azul, o sol
afogueado, a folhagem palpitando de alegria agita-se ao sopro de um vento
plácido e suave. Estas trepadeiras enchem-me o quarto de perfume; lá vejo o
tanque calmo e límpido em que eu me banhava em pequeno. É o mesmo ainda. As
paredes de pedra têm um aspecto mais venerável, mas tudo isso, aquela murta que
o rodeia, aquelas roseiras que ali brotam e enfloram sem cuidado de ninguém,
tudo isso me lembra o tempo de minha meninice.
Mais longe vejo a mangueira grande, onde eu
passava as tardes, abraçado ao balanço rústico que meus irmãos impeliam no meio
da gritaria geral.
A verdura, a água, a árvore, a flor, tudo me
lembra a dita do tempo em que sem cuidados nem remorsos eu só cuidava em ser
feliz e amar os meus.
Aonde foi agora esse tempo? Passou como
passaram as folhas de todos estes arbustos; mas os arbustos, se perderam umas
ganharam outras, e nem houve, neste abençoado clima, espaço algum entre a queda
das primeiras e o abrir das últimas. Só em mim, ilusões e esperanças que me
caíram uma vez, não me renasceram mais, e eu fiquei, como tronco árido e seco,
chorando o que fui, chorando o que sou, chorando o que hei de ser.
Mas o que dói é esta alegria universal, esta
placidez com que a natureza vem assistir à minha morte, garrida e alegre como
se fora um espetáculo. Ó mãe cruel, que não honras a morte de teus filhos com
uma lágrima de dor e um suspiro de mágoa... Parece que te apraz criá-los para matá-los,
produzi-los com uma ilusão, absorvê-los com um desengano, verdadeira condenação
dos que não aguardavam esse desengano e acreditaram nessa ilusão...
Também eu te mereci esta ironia? também. Que
outro absorveu mais essa ilusão do que eu? Que outro sorriu mais à ideia do
desengano do que eu? Tens direito, ó natureza, a vestires hoje as tuas melhores
galas para assistir, não a morte da alma, essa já morreu, mas a do corpo, que
se vai finar miseravelmente como um inseto pisado pela dama distraída!
CAPÍTULO
3
Sinto-me fraco.
Vou sentar-me.
Esta cadeira alta, forrada de couro, molde
antigo, foi de meu finado avô. Feliz homem que pôde chegar à mais avançada
idade e só morrer quando o mundo lhe começava a ser pesado. Todas as glórias da
vida, gozou-as na plena liberdade de um espírito que se não acovardava e de um
coração que não sentia o espinho da desilusão. Essa impavidez serviu-lhe de
amparo; com essa segurança inteira é que atravessou os anos, sem nada deixar do
que levava, porque também levava muito pouca coisa.
Tenho defronte de mim um espelho. Vejo ali
refletida metade do corpo; tenho vontade de ir ver o resto. Que feições
apresentarei hoje? Serão as mesmas quebradas e mortais de ontem? Serão as
mesmas animadas e vivas de há três dias? Uma ou outra coisa, que importa isso?
O espinho da morte sinto eu dentro de mim agudo, dilacerante, mortal... Que
valem as feições? Esperanças ou terrores para o moribundo, sintomas ou provas
para a ciência. Nada mais.
Sinto passos. Abre-se a porta. É minha mãe!
CAPÍTULO
4
— Ah! minha mãe!
— Que tens? Estás melhor?
— Não sei. Talvez que sim.
— Deixa dar-te um beijo; estás muito melhor...
Olha-te ao espelho.
O espelho responde-me como minha mãe. Estou
muito melhor; minhas feições são outras. Como que renasço. Principalmente esta
visita de minha mãe é que me dá vida... Oh! se eu morresse longe dela! tudo se
altera, tudo se corrompe, tudo se desnatura, mas o amor daqueles que nos deram
o ser, esse nunca; é o amor por excelência: o amor que preside ao berço, vela
na infância, ama na mocidade e consola nas desilusões como estas em que me vou
do mundo.
Tudo se alegrou à entrada de minha mãe.
Coitada! tem os olhos vermelhos de chorar: foi por mim. Lágrimas sinceras as
que ela derramou! Nestas creio. Saltam espontâneas dos olhos quando o coração
já se acha demasiado cheio; e só corações tais se podem encher desse modo.
Como ela me olha! Parece que procura
adivinhar nas minhas feições a hora da nossa eterna separação! Não, não nos
abandonemos à dor; a mesma separação pede agora toda a efusão dos sentimentos,
toda a expansão das almas...
— Meu filho, não sentes vontade de passear?
— Não, minha mãe. Quero passar hoje o dia
inteiro no meu quarto. É dia de descanso. Não é hoje Natal? Quero hoje viver no
pleno repouso do espírito. Demais, esta janela põe-me em comunicação com a
natureza. Como está bonito o dia! É em honra do nascimento do Salvador, não? E
virá o desejado de todas as gentes. É do profeta.
Minha mãe sentou-se e fez-me sentar ao pé de
si.
— Meu filho, disse-me ela, serás capaz de
viver? Deixarás de ajudar com o teu desânimo a ação da moléstia que te consome?
Ah! por mim te peço, por teu pai...
— Em que ajudo eu a minha moléstia, minha
mãe? Não estou alegre? Olhe, já fiz a minha saudação ao sol. É bom sinal o sol.
Eu sempre o adorei como o olhar profundo de Deus. Ele basta para me dar vida.
Não morrerei hoje, decerto. Hei de morrer no dia em que alguma nuvem cobrir o
astro do dia. Então as sombras me levarão às sombras. Acredite...
— Oh! não fales em morrer.
— É mau?
— É triste, meu filho.
— Não é. Quero ser filósofo o meu tanto.
Olhemos a morte como ela deve ser olhada: livramento e não aniquilamento. Ah! é
que realmente sofro...
Minha mãe abraçou-me. Senti que duas lágrimas
me corriam pelas faces. Essas lágrimas eram já resultados de uma recordação que
me acabava de atravessar o espírito. Minha mãe leu em minha alma.
— Não te esquecerás disso?
Minha resposta foi muda. Levantei-me, fui a
uma mesa e beijei um ramo de flores secas, o ramo dela, o ramo fatídico, o ramo
destruidor. É ali que está a minha morte, ali e não na moléstia. Sinto que é
assim.
Depois de alguns instantes de silêncio, minha
mãe levantou-se e veio a mim.
— Meu filho, disse ela, deixa que eu arrede
por algum tempo estas flores. Quando estiveres bom dar-te-ei de novo. Mas agora
de que te servem?
— Não, disse eu, as flores ficam. Não fazem
mal a ninguém.
— Fazem-te mal.
— A mim? Pobres flores!...
Minha mãe insiste, mas eu recuso. As flores
ficam no meu quarto...
Meio-dia...
CAPÍTULO
5
Acabo de ler duas páginas dos Salmos de Davi.
O rei-poeta consolou minha alma. É destas consolações que eu preciso, destas
que preparam o espírito para a eternidade...
Hoje de manhã acusava a natureza por vir
garrida e alegre assistir talvez ao meu último dia. Como estava o meu coração!
A dor desvaira e eu não sei o que penso nem o que digo. Mas a verdade é uma; a
verdade é esta grande verdade. Ó infinito, é enfim para ti que eu vou, como
gota de água desviada que se recolhe ao oceano! Disse há pouco para consolar
minha mãe, mas disse o que realmente é: a morte é livramento, não é
aniquilamento. Sinto que há dentro de mim uma coisa que anseia por livrar-se
desta prisão para lançar-se na eternidade e no infinito. Grande, suave,
consoladora esperança! Sem ti, que fora o passamento senão a maior dor e o
maior suplício? Mas, deixar o mundo com a esperança de que aos olhos mortais se
abre mundo novo, tão outro que não este, mundo em que a virtude resplandecerá e
a paz eterna compensará as atribulações da vida!
Alegra-me, comove-me, alvoroça-me a ideia de
que não vou todo à sepultura; e que ali, à porta do cemitério só ficará de mim
o que há de pior em mim mas que o espírito, a luz desta lâmpada a que tão cedo
vai escasseando o óleo, há de remontar ao foco da grande luz.
Deixarei saudades? Deixo; mas o tempo as
consolará, e a esperança de que dia surgirá em que o consórcio moral das
criaturas se realizará ante o trono de Deus, deve ser a grande esperança dos
que ficam e dos que vão.
Assim que, ó minha mãe, se em nossa passagem
no mundo nos separamos um pouco, não será mais do que para costear uma
montanha, até que, rasgando-se aos nossos olhos nova fonte de luz, possamos
entrar para sempre unidos no seio do absoluto.
CAPÍTULO
6
Uma hora da tarde.
Creio que adormeci um pouco.
Tive um sonho.
Sonhei que assistia à minha coroação na
posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para merecer os aplausos dos homens? Gastei
a minha mocidade... em quê? Aqui entra a parte sombria do meu sonho. Gastei a
minha mocidade em amar, com as forças vivas do meu coração, a quem provou que
me não merecia.
Embalde procuro desviar de meu espírito esta
lembrança que me acabrunha e me leva à sepultura.
Pobres flores aquelas! Lembra-me o lado feliz
da história da minha mocidade. São as relíquias do tempo da fé pura e da paz do
espírito. Naquele tempo eu a julgava um anjo. E era-o. Não sei que demônio a
perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir no espírito. Desde aí perdi o ideal
para ganhar a morte. Nem podia ser de outro modo.
Ah! Carlota!...
Tenho uma ideia. Vou fazer uma coisa que
chamarei o meu testamento. É a revista dos meus papéis. Queimarei o que for
inútil; deixarei o que puder dar de mim alguma ideia, não à posteridade, mas
aos meus amigos. Eles não sabem talvez nada do amigo que lhes morre.
Cerremos um pouco estas cortinas. O sol
queima demais. Assim é melhor. Meu Deus, como estão estas gavetas! Dissera-se
que há aqui a matéria de vinte poemas... Talvez. Que sou eu próprio senão um
poema trágico?
Deitemos isto fora, que não presta: cartas de
alguns indivíduos que se diziam amigos meus, no princípio, no meio e no fim.
Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se,
não se diz... Mas a que vem esta filosofia? Deitemos fora, simplesmente, estas
cartas.
Aqui estão uns versos: As margaridas. Ah!
foram versos que eu escrevi quando ela me deu aquelas flores... São versos do
bom tempo. Devo guardá-los? Para quê? Não, não servem; eram talvez bonitos; mas
cantavam a mentira, endeusavam a falsidade... Não prestam.
Mais versos... São fragmentos de um poema
humorístico: Os solidéus. É do tempo da Academia. Diziam todos que era esta a
minha veia. Talvez fosse. Mas as circunstâncias mudam tudo, o gênio, o caráter
e as tendências; e o homem de ontem nem sempre é o de hoje, como o de hoje nem
sempre é o de amanhã. Foi o que me sucedeu. Se eu tivesse direito a uma
biografia ou a um elogio histórico dava este ponto ao escritor para estudar e
desenvolver.
Este poema, se eu tivesse acabado, havia de
agradar, talvez. Tem por assunto o aparecimento do solidéu e o açodamento com
que toda a gente deitou-se a imitá-lo para cobrir, mesmo aos seculares, as
coroas que tivessem. O padre Simão era o meu herói em cuja boca punha eu muitas
coisas boas de serem lidas... Devia tê-lo acabado. Infelizmente ficou no
primeiro canto. De que serve mais? Não presta...
Uma carta de Carlota. Foi das primeiras. É
apaixonada. Ainda me lembra do júbilo em que fiquei quando a recebi. Parecia
doido. Minha mãe não compreendia a alegria de que eu estava possuído e receava
pela minha razão. Tranquilizei-a contando-lhe tudo, as minhas esperanças, os
meus projetos...
Cuidas, escrevia-me Carlota, que há frieza em
mim? Oh! não creias! Amo-te como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei em
ti o corpo vivo dos meus sonhos de moça infeliz. Como te não hei de amar? Fria
eu? Sou reservada, porque é preciso sê-lo. Meu tio destinou-me a um homem que
eu aborreço; mas teima nisso e eu não tenho querido romper de uma vez. Tenho
esperança de convertê-lo à razão. Mas se julgas que por prova do meu amor devo
deixar e acompanhar-te, fala, eu sou tua escrava. Acredita, meu poeta, que eu
te amo como ainda não amou mulher alguma. — Tua escrava!
Esta expressão matou-me. Escrava! isto é,
dependia de mim, vivia de mim, por mim, para mim. Era o amor como eu o
compreendia, como a minha alma ardente o desejava: o amor escravidão, o amor
que não faz valer direitos, nem vontades, nem caprichos. Viver assim um do
outro, pelo outro, para o outro, tal era o modo do amor que pode resgatar a
pequenez moral dos homens, em que o interesse e o cálculo frio substituíram
todos os sentimentos generosos e magnânimos. Este ideal encontrara eu em
Carlota; como não ficaria contente? Mas depressa...
Guardemos esta carta. Há de ficar ao lado
desta outra, tão diversa, contraste tamanho que assusta e repugna, irrita e
admira; reverso da medalha; face sombria depois da face brilhante; ponto
corrompido depois do ponto são. Ou não: a primeira era a rede do engano: o
fundo moral daquela mulher está na última, negro, repulsivo, mas verdadeiro.
Era toda má.
Que me respondia ela às minhas exprobrações?
... O que deve fazer é fugir de mim. Se é
real esse amor que me diz ter, dou-lhe de conselho que mude de terra, de modo
que longe dos olhos fique-lhe eu longe do coração, o que será uma fortuna para
nós ambos. Isto é fácil e proveitoso. Quanto aos juramentos que me recordou,
respondo que eu mereceria censura se fizesse de mim tão infalível que nunca
errasse. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro, reconhecendo que foi erro e
dizendo francamente que a leviandade é que teve parte nessas promessas tão
puerilmente solenes. Pense nisto, e verá se não é assim. Console-se e anime-se,
é o que lhe tenho a dizer...
A carta continua; é toda no mesmo sentido; a
impudência e a crueldade. Ah! se tu soubesses, Carlota, o que me fizeste e
fazes ainda sofrer!...
Sinto passos. É o médico. Fechemos a gaveta.
CAPÍTULO
7
— Bom dia, doutor.
— Viva, meu doente.
— Como me acha?
— A julgar pelas feições, melhor. Como passou
a noite?
— Assim, assim.
— Mas por que não está deitado?
— Não posso. E nem quero. Seria incivilidade
esperar a minha grande visita deitado numa cama.
— Que visita?
— A morte.
— Ora!
— Com certeza. Há de dizer-me que não. É o
que se diz a todos os doentes. Parece que isto os anima. Mas se os anima,
descuida-os; e é exatamente o que não me acontece. Estava eu agora cuidando de
arranjar uns papéis, a fim de que nada me fique por arranjar quando eu mudar de
domicílio...
— Deixe essas ideias.
— Entristece-se? Que faria quando eu lhe
contasse a ideia que eu tive ontem?
— Que ideia foi?
— Foi a de mandar aprontar e medir eu mesmo o
meu caixão...
— Faz um favor?
— Qual? doutor.
— Não fale assim.
— É fácil.
— Não fale, porque não só isso atrasa-lhe a
cura, como ainda há de entristecer
sua mãe.
— Mas eu não lhe digo nada...
— Não basta não dizer. É preciso mesmo nem
falar. As mães são zelosas dos filhos, porque são mães. Muitas vezes andam a
ouvir às portas, para ter certeza do estado dos filhos. Querem surpreendê-los
na plena confiança que lhes dá a ausência delas...
Tive uma suspeita: cuidei que minha mãe
estivesse à porta.
Levantei-me e fui à porta. Não estava.
O doutor esperou-me sorrindo:
— Não está, mas podia estar, disse.
Voltei a sentar-me ao lado do doutor.
— Ouça bem, continuou ele, esta cisma
constante de que há de morrer, estes trabalhos que tem e as suas forças atuais
não comportam, tudo isso torna-o pior. Não vê como está ansiado...
— É a comoção.
— Já estava quando eu entrei. Ora pois, não
pense mais em coisas tão lúgubres, e sobretudo não se ocupe de coisa alguma.
Vamos lá: tomou os remédios?
— Tomei.
— E então?
— Ontem não senti melhoras algumas; agora
estou melhor um pouco, apesar da ânsia.
— Ânsia é por culpa sua... Aposto que esteve
a escrever versos.
— Não.
— Nem deve ocupar-se com isso. Há de ser
bonito se escreve alguma poesia em que fale da morte e do que vai deixar, e
depois de três meses fica-me aí são como um pero...
Minha resposta foi sorrir-me.
— Ande deitar-se um pouco.
— Para quê?
— Porque a minha visita é mais longa hoje que
de costume, e eu não quero que se canse. Vá deitar-se, deite-se e conte-me uma
história.
— Obedeço. Que história quer?
— Uma história de meninos. As três cidras, O
príncipe formoso...
Refleti um pouco e respondi:
— Contar-lhe-ei uma história interessante! um
pouco velha, mas instrutiva.
CAPÍTULO
8
Conheci um rapaz, poeta como eu, e como eu
crente, a mais não poder ser, nas melhores ilusões desta vida.
Não era rico, devia viver por si; todavia,
pôde alcançar meio de preparar-se para uma profissão literária. Foi estudar.
Tinha ao lado das ilusões grande bom senso, e a ele deveu correr os primeiros
anos de seus estudos sem cair nos laços do amor. Teve algumas fantasias, mas fantasias
simplesmente, que começavam e acabavam na mesma noite. A sorte preparara-lhe...
Abre a boca, doutor? A história o adormece?
— Não; pode continuar.
— A sorte preparara-lhe um golpe profundo,
para castigá-lo do critério com que soube fugir às tentações que encontrou.
Depois de muitas circunstâncias que não vêm ao caso, achou-se diante de uma
mulher. Imagine o doutor que essa mulher era bela. Imagine mais, que estava em
circunstâncias especialmente romanescas. Acabava de perder o marido que na
idade de dezesseis anos seus pais lhe tinham obrigado a tomar. Contava então
vinte e dois, e a morte daquele homem, se não lhe matou a alma, porque a alma
não se achava ligada a ele, deu-lhe certa tristeza e arrancou-lhe algumas
lágrimas, o que era nela um fundo de honestidade e pureza.
O que é porém certo é que, à semelhança de
uma criatura que deixa a prisão em que estivera detida por longos anos, ela
reapareceu ao mundo, assombrada e abatida.
Era uma viúva que se achava ainda solteira.
Buscava uma alma para casar. Apareceu-lhe o poeta. Força da fatalidade os
impeliu um para o outro. Parece que mesmo um para o outro se tinham conservado,
ela na prisão que lhe armaram os pais, ele na torre de marfim de sua sossegada
isenção. Mas viram-se e amaram-se. Naturalmente, pergunta-me, com que amor se
amaram? Foi com o verdadeiro amor, o amor que consorcia desde a primeira hora
as almas, as vontades e os pensamentos para nunca mais se separarem. Nunca
mais! Logo mais verá que não foi assim! Vai-se embora, doutor?
— Tenho que fazer.
— Fique, eu lhe peço.
— Com uma condição.
— Qual?
— Não continue essa história.
— Incomoda-se em ouvi-la?
— Um pouco.
— Deixe disso. Não me vê calmo? É verdade que
como os fatos já se passaram há longo tempo, e o meu anjo... já morreu, estou
hoje mais a frio e posso contá-la sem enternecer... E demais, assim ao menos
não pensarei na minha visita, a morte.
— Oh! não, não pense nisso! Vamos lá, conte.
Mas antes disso tome o remédio, sim?
— Sim.
CAPÍTULO
9
Tomei o remédio e continuei:
— Amaram-se pois. É preciso observar que o
poeta tinha sede de amor. Atravessara um deserto, onde as miragens sucediam-se
de hora em hora, e chegava enfim ao oásis da vida, uma fonte, uma relva, uma
palmeira. Determinou não ir adiante e descansou, com a longa caravana das suas
ilusões, sobre a relva, à sombra da palmeira, à beira da fonte... Desculpe esta
linguagem romanesca e oriental: é própria da imaginação exaltada.
Não existiam já os pais da viúva. Existia um
tio que não era nem peixe nem carne; indiferente ao futuro da sua sobrinha como
ao seu próprio. Tinha alguns bens da fortuna, poucos, e que ainda mais exíguos
se tornavam em virtude do jogo largo e desesperado que fazia com eles nas
bancas mais concorridas. A sobrinha tinha ainda menos.
O amor do poeta e da viúva prosseguiu cada
vez com mais força e mais intensidade. Mil projetos, mil planos formavam ambos
na doce intimidade dos seus corações. Eram duas almas sinceramente poéticas.
Viam o resto do mundo pelo prisma do seu amor e da sua fantasia. O lado feio,
real, positivo, da existência aparecia-lhes assim, como se fora tudo dourado
pela luz do céu. Durou esta vida seis meses.
Perguntar-me-á por que se não casaram. É
simples. No meio das suas imaginações não os abandonava certo critério frio e
necessário. O casamento era uma obrigação para que ambos se deviam preparar. O
poeta foi o primeiro a adiantar esta consideração a que a viúva se curvou
convencida. Mas de novo juraram entre si fidelidade sem quebra, e o céu que os
ouviu pareceu neste momento registrar aquele juramento.
Sucedeu, porém, que se apresentou diante do
poeta um rival ao coração da moça. Era um homem de 37 anos, seco de corpo e de
espírito, inteligência acanhada, coração mesquinho, vivendo dos sentidos, e não
dos sentimentos, perfeita reprodução, dizia a moça, do primeiro marido que ela
teve. Chamava-se Venâncio.
Dizia ter fortuna e tinha, razão poderosa do
arrojo com que entrou em liça competindo com o poeta. A moça recebeu-o, não com
frieza, mas com desdém. Valeu-lhe isto uma repreensão do tio, que era amigo do
pretendente e que o achava merecedor de todos os respeitos.
— Mas, meu tio, perguntou ela, sabe que o Sr.
Barroso quer?
— O que é?
— Quer... amar-me.
— Quem te disse isso?
— Desconfio.
— Ora, desconfianças...
— Oh! não me engano; pode ficar certo de que
é assim.
— Sabes que mais? disse o tio. Não te
previnas contra esse homem, respeitável a todos os respeitos. É um caráter
sério, fora dos homens do mundo, capaz de compreender as conveniências, e além
disso possuidor de uma fortuna. Não te rias assim, que é indecente. Eu sei que
as tuas preferências poéticas acham nesta consideração da fortuna uma
consideração sem valor. Isso é criancice. A fortuna é uma das coisas mais
respeitáveis.
— Meu tio, observou ela, não parece estar
muito convencido disso. O tio riu-se e, batendo-lhe na face, acrescentou:
— Já sei por que dizes isso... Mas que
queres? são coisas... Enfim, o que desejo é que não maltrates o Sr. Barroso.
Tudo isso foi referido pela moça ao poeta.
Riram ambos da pretensão e da proteção, e descansaram por esse lado.
Não quero, doutor, entrar nas mil
particularidades do amor entre o poeta e a viúva. Cartas, versos, flores,
ósculos sinceros e castos, tudo isso que se troca entre namorados, todos esses
episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo isso se deu entre os meus
dois heróis.
Estavam próximos de pedirem o necessário
consentimento para que a união legal confirmasse a união moral em que eles
existiam. Marcaram dia, e o poeta dispôs-se a usar das palavras mais brandas e
persuasivas que conhecesse da língua portuguesa para convencer ao tio da sua
amada de que podia fazer a felicidade dela.
Era desnecessário dizer nada à própria mãe,
que desde os primeiros dias do amor do poeta ficou ciente por confissão dele.
Na véspera do dia aprazado, o poeta foi ver a
viúva. Achou-a muito triste. Indagou o motivo dessa tristeza a que não estava
afeito, mas não conseguiu arrancar uma palavra à moça. Respondeu que tinha
dores de cabeça, mas depois de muitas instâncias e com ar de quem não dizia a
verdade.
Passando a falar do pedido em casamento, a
viúva disse ao amante que o adiasse, e quando este lhe perguntou que razões
havia para isso, ela respondeu que lhas comunicaria depois. Aconteceu logo o
que era natural, um pequeno arrufo. E só arrufo, porque ela deu aquela resposta
entre tantos suspiros, com um olhar tão convencido, tão sincero, que o poeta
não pôde, o que lhe seria natural, experimentar maior desgosto.
O doutor sabe o que são arrufos dos
namorados, é chuva miúda da primavera que tão depressa vem como vai. No fim de
alguns minutos tinham voltado às boas, e o poeta despedia-se da viúva com a
convicção de que só uma grande razão faria com que ela adiasse o pedido do
casamento.
Era com efeito uma grande razão, como vai
ver.
Desde aquele dia em diante a viúva mudou.
Mais e mais fria, mais e mais reservada, trazia o espírito do poeta entre a
dúvida e o desespero, entre a mágoa e a esperança. Que se teria passado? Em vão
o rapaz indagava todos os motivos prováveis e possíveis; não podia atinar com a
causa de semelhante transformação.
Enfim, uma noite em que se achavam na casa de
uma terceira pessoa, o poeta pôde falar a sós à viúva. Expôs-lhe francamente o
que sentia e fez um franco interrogatório sobre a tristeza que a moça
apresentava.
As respostas da moça foram ambíguas. O poeta
desesperou.
— Por que me não falarás com franqueza,
Carlota?
— Quer mais franqueza?
— Oh! não zombes! Tu não calculas o que
sofro, nesta incerteza em que me pões. Sê franca, prefiro isso.
— Não sei que te hei de dizer.
— Dize o que quiseres, inventa, se te parece,
mas dize alguma coisa. Estas respostas ambíguas, estas evasivas transparentes
não me consolam, antes me deitam em pior estado. Não me amas?
— Amo-te.
— Então?...
Esta conversa foi interrompida. Nessa noite
não puderam falar mais a sós.
O poeta saiu desesperado. Sentia que algum
segredo existia no fundo daquela tristeza da moça... A suspeita curvou-se-lhe à
cabeceira e introduziu-lhe no espírito mil ideias negras que foram outros
tantos demônios que fizeram daquela noite uma noite infernal...
O poeta não dormiu. Depois de vãos esforços
levantou-se e foi... escrever versos! triste consolação dos que a natureza
dotou com o gênio da poesia. No fim de uma hora de trabalho em que as estrofes
lhe caíam do bico da pena como lágrimas de dor e de saudade, o poeta tinha
transferido parte de sua alma para o papel. Estava mais calmo, sem estar menos
triste.
Dois dias conservou-se em casa sem falar a
pessoa alguma. De hora a hora esperava uma carta de Carlota. Nada. Ao terceiro
dia, desesperado com o silêncio da viúva, resolveu ir, houvesse o que houvesse,
pedi-la ao tio. Já estava em caminho quando lhe ocorreu a ideia de que sem
completa averiguação dos motivos da tristeza da moça podia expor-se não só ao
desgosto, mas ainda ao desar. Voltou para casa e escreveu uma carta à viúva
pedindo-lhe explicações.
Veio a resposta. Era um desengano. Carlota
respondia que não podia amá-lo, e que se esquecesse dela.
Dizer-lhe o que o poeta sofreu é contar-lhe
muita coisa que deve saber de longa data. Sofreu... o que estou sofrendo. Caiu
enfermo com uma febre violenta. Só daí a um mês se levantou, mas então já tinha
em si o germe de uma enfermidade mais grave que depois o tomou de todo... e há de
levá-lo à sepultura.
Durante a moléstia fez loucuras incríveis.
Tudo o que podia agravar-lhe o estado e encaminhar-lhe a morte, fê-lo com uma
alegria selvagem, mas sincera.
Enfim, restabelecido da febre, mas, como
disse, doente de outra doença, o poeta levantou-se e não teve mão em si.
Resolveu ir procurar a viúva. Queria a todo o transe conhecer as causas da
recusa de Carlota, e sobretudo queria lançar-lhe em rosto a sua perfídia, de
modo a não parecer covarde.
Carlota recebeu-o com um gesto de surpresa.
Foi a ele e perguntou-lhe se já estava bom. Ele descobriu logo o fingimento
daquela solicitude e quis mostrar que não se enganava. Suas exprobrações foram
enérgicas e veementes. Carlota ouviu-o com uma espécie de torpor.
Depois, quando a alma do poeta derramou em
palavras amargas a dor de que estava possuído, veio uma prostração moral, e o
poeta, já mais brando, pediu a Carlota uma explicação da carta que esta lhe
mandara.
Então, a viúva, fingindo um grande esforço,
deu em pleno rosto ao namorado poeta uma resposta que equivalia a um tiro.
Disse-lhe que se ia casar, e com Venâncio.
Afigurava-se ao poeta esta união como tão
monstruosa, que ao princípio não quis acreditar nas palavras de Carlota. Olhou
surpreso para ela, mas surpreso como o homem que não dá crédito, e intimou-lhe
que falasse seriamente.
— Mais seriamente do que falo? perguntou
Carlota.
— Sim, seriamente.
— É isto.
— Pois deveras...
— É verdade.
O rapaz sentiu que lhe faltava o chão debaixo
dos pés. Pareceu-lhe que ia cair em um abismo. É assim que deve ser a vertigem
do náufrago. Como o náufrago, o poeta agarrou-se ao primeiro objeto que
encontrou. Era um sofá. Encostou-se ao sofá e olhou fixo para Carlota.
— Sei que isto lhe há de doer, mas é
necessário...
— Mas ama-o?
— Amo.
— Ah! não diga isso!
— Por que não?
E fazendo esta pergunta a moça mostrou um ar
de desdém que o poeta humilhado, abatido, indignado, não pôde dizer mais
palavra. Foi, com passo incerto e vacilante, buscar o chapéu que se achava
sobre o piano, e cumprimentando a viúva friamente, encaminhou-se para a porta.
A moça deu alguns passos para ele e murmurou:
— Só uma coisa lhe peço.
O poeta deteve-se. Era ainda uma esperança
que lhe surgia no meio daquela amargura e desespero de que enchera sua alma.
Interrogou-a com o olhar. A moça, pregando os olhos no chão, disse:
— Não me queira mal.
— Que não lhe queira mal? Mas isto é zombaria...
Não lhe queira mal!... Acha que me faz um benefício... Não vê que me matou?
— Ah! perdão... mas...
— Ama a outro, não? perguntou o moço com
ironia.
— Amo, respondeu ela, mas de modo que o poeta
antes adivinhou do que ouviu.
CAPÍTULO
10
O moço saiu desesperado da casa de Carlota.
Passaram-se os dias. O mal que o minava foi
tomando proporções maiores, e dentro de pouco tempo declararam-se os tubérculos
pulmonares. É a minha moléstia, como sabe, doutor.
Aos primeiros cuidados que tiveram amigos e
parentes para que se curasse, o poeta recusou peremptoriamente. Ofereceu-se
ocasião de ir a Buenos Aires; não quis; e para não dar a verdadeira razão desta
recusa, disse que tinha esperança de curar-se na terra natal, e que além disso
tinha aversão às viagens marítimas.
Queria morrer? perguntará o doutor. Queria e
quer. Odiava a mulher? Não, amava-a, ainda a ama, tudo que possa dizer e sentir
contra ela, não é senão amor disfarçado. Se não fosse assim, decerto que teria
aceitado a vida que lhe ofereciam às mãos cheias. Mas recusou tudo; aceitou a
moléstia como um bem da Providência.
Pedir-me-á a explicação deste amor por um
monstro, e eu não saberei o que lhe hei de dizer.
Todavia, há um fato que me parece explicar
tudo, e vem a ser: se o amor do poeta fora um desses amores fáceis ou
simplesmente uma dessas afeições que tomam base na vaidade pueril, creio que a
perfídia de Carlota teria ofendido a suscetibilidade, deixando intacto o
coração, porque realmente o coração não se interessa em afeições tais.
Mas o amor do poeta não era esse: era o amor
verdadeiro, o amor único; a traição não podia deixar de aniquilá-lo. Foi o que
sucedeu. Não sou filósofo, doutor; mas afigura-se-me que as coisas se passaram
assim.
Durante os primeiros tempos de sua moléstia,
o poeta procurou sempre todas as ocasiões em que podia ver Carlota. A custo
puderam contê-lo no dia do casamento da viúva. Ele queria, à força, ir assistir
a esta cena e confundir com a sua presença os desposados.
Onde quer, porém, que pudesse encontrá-la, e
em poucos lugares era, o rapaz ia e não deixava de fixar nessa mulher os olhos
de dor e desespero. Depois, voltava mais doente e mais amante para casa. Houve
uma ocasião em que podia falar-lhe; não quis; entendia poder vê-la; falar-lhe
afigurava-se ao moço que seria condenável.
A moléstia progredia até que se declarou
perigosa. A ciência foi impotente diante do princípio do mal que lavrava, até
que um dia, no dia em que a Igreja celebra o nascimento do Salvador, poucas
horas antes de morrer, o moço contou esta história ao sábio doutor que tratava
dele.
Que me diz a esta história?
CAPÍTULO
11
— Digo que o ouvi a custo. Eu já sabia alguma
coisa, mas não sabia tão completamente. Mas que necessidade tinha de me referir
essas coisas. Olhe, está pior, a tosse está mais forte, vejo-o mais pálido e
abatido. Foi imprudência...
— Não foi. Eu desejava que o doutor ficasse
sabendo de mais uma história destas que de tão vulgares são algumas vezes tão
funestas.
— Mas diga-me...
— O quê, doutor?
— Se as coisas todas que me contou tivessem
uma explicação, explicação razoável, honesta; se em vez de monstro, Carlota
fosse um anjo, viveria?
— Um anjo? do mal!
— Mas enfim...
— Não sei.
— Há de viver. Se alguma coisa houver que o
possa fazer, visto que nem a ciência, nem os conselhos dos amigos podem fazê-lo
sair desse abatimento em que está, acredite que empregarei os meus esforços
para lhe dar esse remédio supremo.
— Veja sempre...
— Eu lhe prometo. Entretanto, ainda uma vez
lhe peço, não se deixe perder nessas recordações angustiosas do passado; seja
homem, e principalmente seja filho!...
— Minha mãe!...
— Seja filho. Lembre-se que ela não poderá
resistir...
— Sinto passos, doutor...
— É ela!
— Oh! minha mãe!
Minha mãe está mais pálida que eu. Interroga
o doutor com o olhar, e este abaixa os olhos. Que haverá entre ambos?
— Onde vai, doutor?
— Vou sair. Até já.
— Volta?
— Volto. Mas espere, tome já este remédio.
— Então, doutor, como acha meu filho?
— Vou consultar alguns colegas e cá virei com
eles. Talvez se possa fazer alguma coisa. Até já. Coragem, meu doente!
São cinco horas da tarde.
CAPÍTULO
12
Minha mãe foi descansar um pouco. Coitada!
passou a noite em claro, e durante todo o dia de hoje não parou um instante.
O doutor ficou de voltar e voltou com mais
dois médicos. Examinaram-me e resolveram que eu não estava tão perigoso como
parecia. Depois assentaram no medicamento que se devia empregar. Uma das
cláusulas que me impõem é ir tomar ares. Não sei se o faça. Eu creio que eles
todos se enganaram acerca do meu estado.
Daqui a pouco estará findo o dia e com ele a
minha vida, talvez. Estou pior. Sinto uma opressão que me incomoda; minha mãe
aconselhou-me que me deitasse, mas eu não posso; quero morrer como homem.
Tenho necessidade de escrever. Quero derramar
a minha última gota de poesia no papel, e deixar ao mundo ao menos uma
lembrança de que fui mártir e poeta. Será este o canto do cisne.
Que direi?
Sinto a cabeça pesada; e o meu espírito mal
pode aplicar-se ao que a minha vontade o solicita. Ah! já nem sou poeta! Musa
ardente dos tempos da felicidade e do sossego, onde paras agora que não vens
reclinar-te, como outrora, à cadeira do teu poeta infeliz?
Alguém chega... Guardemos estes papéis...
Quem é? Minha mãe!...
— Eu e mais alguém, meu filho.
— Quem?
— Tens coragem?
— Por quê, minha mãe?
— Para o que vais ver?
— É a morte?
— É a vida.
— Mande entrar a vida, minha mãe.
CAPÍTULO
13
Olhei, era... era Carlota.
— Carlota!
Recuei até à cama. Vi entrar uma mulher
magra, abatida, doente; com os olhos fundos e ardentes de febre. Vê-se que o
remorso dilacera aquela alma. Vê-se que ela pena os pecados em que caiu.
Parou à porta, e com as mãos magras, mas
ainda belas, comprime o seio ofegante. Tem os olhos baixos como de vergonha.
Parece pregada ao lugar em que ficou.
Nem eu nem ela podemos falar. Minha mãe
toma-lhe a mão e trá-la para junto da janela.
— Não é uma criminosa que vem implorar
perdão, disse-me Carlota.
— Pois quem é?
— Ah! eu não quero perder tempo em longas
explicações... Venho dizer-lhe que se a sua vida depende da declaração de que
eu o amo, pode morrer; porque eu não posso fazer essa declaração. Mas se é
razão para viver a certeza de que, no dia em que o repeli, ainda o amava, e que
casando com aquele que é hoje meu marido eu ainda o tinha na memória, viva;
porque isto é verdade.
— Carlota!
— É verdade. Depois, a consciência do dever
prevaleceu, e eu pude apesar da lembrança, ver que me podia fazer feliz, mas
que, casada com outro, só podia fazer a desgraça de mim mesma.
Dizendo estas palavras Carlota parece animada
por um fogo interior. Será sincera? A franqueza com que falou parece nascer de
uma consciência sincera. Agora, o que me parecia remorso é vergonha, é já outra
coisa; reparo mais, é como que vejo na fronte desta mulher o sinal do martírio
e da dor.
Minha mãe fê-la retirar-se. Eu não sei o que
faço nem onde estou; parece-me que sonho; abro os olhos mais e mais, e corro um
olhar por todos os ângulos do quarto para ver se com efeito estou na realidade.
Vê-la! vê-la ainda, aqui, junto de mim,
sincera, regenerada na minha consciência de um crime que lhe atribuí, oh! meu
Deus! isto é quase a felicidade!
Mas, se o que ela diz é verdade, qual a
explicação de todos estes fatos que tiveram tão funestas consequências?
Carlota adivinha esta interrogação íntima.
Minha mãe fê-la sentar. Depois, tomando um ar de recato e modéstia, Carlota procura
referir todas as circunstâncias do seu casamento.
CAPÍTULO
14
O que ela contou resume-se assim:
Quando, nos seus sonhos de felicidade e de
amor, ela contava unir-se a mim e viver uma vida nova e única, veio transtornar
os seus projetos o tio de quem já falei, e cuja neutralidade nos parecia a
ambos sem contestação.
Neutral seria, decerto, o bom tio, se uma
circunstância não o impelisse ao passo que deu. Tenho certeza de que ele
gostava de mim e de Carlota, mas a paixão e o vício decidiram as coisas de modo
diferente.
Venâncio era um dos seus parceiros habituais
do jogo. Era rico, e por essa circunstância, talvez, tinha uma felicidade rara.
A água corre para o mar, diz o provérbio. O dinheiro dos parceiros corria para
a algibeira farta de Venâncio.
Até então, isto é, até a hora em que o tio de
Carlota conheceu Venâncio, a boa sorte tinha protegido aquele. Mas Venâncio
apareceu com a sua felicidade inaudita e bem depressa os últimos recursos do
velho se esgotaram. É sabido como o jogo dá certa embriaguez que mais se exalta
com a má fortuna. O tio de Carlota atirou-se às últimas operações. Jogou a
crédito e perdeu. Insistiu e perdeu ainda. Insistiu, insistiu e perdeu sempre.
Recuou a conselho de alguns amigos.
As quantias perdidas ao jogo com Venâncio
perfaziam uma soma avultada. O tio de Carlota achou-se repentinamente em uma
posição difícil. Como pagar-lhe? Escasseados os recursos, nem tinha onde
buscar, ainda por empréstimo, a grossa quantia de que era devedor. Em tal
situação só havia um meio. Pôr termo ao vício que o arruinara e procurar no
trabalho, se fosse possível, o saldo de tão enorme dívida.
Este era o meio razoável, se porventura a lei
do jogo, que é uma lei arbitrária como o próprio vício em que se funda, não o
obrigasse a um prazo breve e fatal.
O tio de Carlota pensou nisto e desanimou.
Era um abismo que tinha diante de si. Os recursos de Carlota, que eram
escassos, não podiam, no caso de generosidade da moça, servir para uma quinta
parte da dívida. Era despojá-la do patrimônio sem proveito.
O desgraçado, sem saber que fazia, sem meios
reais, nem recursos da imaginação, saiu um dia de manhã em direção à casa de
Venâncio.
Devo dizer que, já antes do desastre que fez
de Venâncio um pesadelo para o tio de Carlota, o credor frequentava a casa
deste.
O tio de Carlota entrando em casa de Venâncio
não tinha uma ideia a apresentar; ia conversar e apanhar a primeira ideia que
lhe sugerisse a conversa, ou aceitar o projeto razoável que o credor lhe
indicasse.
Venâncio recebeu o devedor com o mais amável
dos sorrisos nos lábios. Isto animou o desgraçado devedor.
— A que devo a sua visita?
— Não adivinha?
— À dívida?
— É verdade.
— Vem pagá-la? Não havia pressa.
— Não, não venho pagá-la.
— Ah!
Vê-se que este introito não era dos mais animadores.
O tio de Carlota calou-se e mudou de conversa, sendo acompanhado no novo
assunto por Venâncio, que se porfiava em ser o mais amável deste mundo.
Depois de meia hora de conversa sobre coisas
diferentes, Venâncio voltou bruscamente ao assunto da dívida.
O devedor empalideceu.
Que responder?
Os olhos de Venâncio estavam pregados nele, e
quanto mais corriam os minutos, mais vazio se achava o espírito do tio de
Carlota.
Enfim, como era preciso responder alguma
coisa, o pobre homem disse francamente que não podia pagar, e que nem lhe
ocorria o meio para isso.
Venâncio sorriu e respondeu:
— Pois é simples. Há três dias que a fortuna
me desampara, e como velho jogador que é, deve saber que ela tem seus caprichos
e muitas vezes abandona os antigos aliados para acompanhar outros novos. Talvez
que ela hoje esteja do seu lado.
O tio de Carlota estremeceu a esta proposta.
A alma do jogador despertou e sentiu-se arrastada para a banca. Ganhar em dois
minutos tudo o que perdera, ver-se de um só lance aliviado de uma obrigação e
de um peso no espírito, era para o devedor a suprema felicidade.
Não hesitou, senão o tempo necessário ao
espanto que lhe causava a proposta, e levantando-se, com as mãos estendidas
para Venâncio, declarou-lhe alvoroçado que aceitava.
Tudo se preparou para o duelo fatal.
Diante da mesa em que se ia decidir a sua
sorte, o tio de Carlota cobrou novo ânimo.
Venâncio estava frio e tranquilo. Parecia que
não jogava dinheiro, e dinheiro avultado.
O tio de Carlota acompanhou a partida ansioso
e atordoado. Não respirava, com a mão oprimia o coração e com os olhos parecia
querer arrancar do baralho a carta feliz...
Infeliz! a carta que saiu dava ganho a
Venâncio.
O tio de Carlota soltou um grito.
— Quer mais? perguntou friamente Venâncio.
— Não! não!
— Deve-me o dobro.
— Como lhe poderei pagar? Oh! meu Deus!
— Não se aflija, disse o credor. Isto não é
sangria desatada; não lhe exijo agora o pagamento; pode pagar amanhã, depois,
daqui a um mês... e até...
— E até?
— Até nunca.
— Nunca!
— Nunca.
A estranheza das palavras de Venâncio e o ar
frio que ele apresentava fizeram impressão no tio de Carlota.
— Explique-se, disse ele.
— É simples. Há de crer que por muito
exigente que eu fosse nunca poria em sérias dificuldades um tio. A um estranho
é possível, é até certo, mas a um tio... Ora, nada impede que eu seja seu
sobrinho.
O tio de Carlota não compreendeu e não
respondeu.
— Não compreendeu? perguntou Venâncio.
— Meu sobrinho, como?
— Não tem uma sobrinha? perguntou Venâncio.
— Ah!
Venâncio expôs demoradamente a sua pretensão.
Pediu formalmente a mão de Carlota. O tio hesitou ainda, disse-o ao menos
depois à sobrinha, mas este casamento era a sua salvação. Depois, Venâncio
tivera o cuidado de convencê-lo de que ele não era indiferente à viúva. Enfim,
quando saiu da casa de Venâncio, o tio de Carlota deixou-lhe prometida a mão de
sua sobrinha.
Quando esta ouviu de seu tio a proposta de
Venâncio, repeliu-a peremptoriamente. Mas o tio, entre as lágrimas da sua
conveniência, chegou a convencer a pobre moça de que casar com Venâncio era
salvá-lo da desonra. Carlota pediu dilação para refletir. A reflexão foi
contrária ao coração. Carlota aceitou a proposta, não sem exprobrar a seu tio a
funesta paixão que o seduzira a cometer um ato de aviltamento.
Quanto a Venâncio, ela teve o cuidado de
declarar-lhe que impunha uma condição.
— Aceito todas, respondeu Venâncio.
— Faço o sacrifício da minha pessoa, mas
exijo ao menos eu não seja mulher de um jogador.
— Juro-lhe que não será.
E não foi. Uma paixão neutralizou outra.
Venâncio era dessas naturezas escravas da sensualidade, que estimam as
estátuas, não pelo cunho de beleza ideal que elas possam ter, mas pela vista e
exuberância das formas exteriores.
CAPÍTULO
15
Tal foi a história que Carlota me contou.
Quando ela acabou tinha eu o rosto escondido
nas mãos; palpitava-me o coração com uma força desusada. Minha consciência
restituía à infeliz moça os créditos de elevação moral em que a tinha
anteriormente aos tristes acontecimentos de que ela foi vítima. Em vez de um
monstro tinha eu diante de mim uma mártir.
— Se esta simples exposição dos fatos,
disse-me ela, pode torná-lo à vida, viva; eu lhe peço. Viva por sua mãe e para
sua mãe. Se eu ainda o amasse, ou pudesse amá-lo, dir-lhe-ia que vivesse por
mim.
— Tem razão, respondi eu.
E tomando a mão de Carlota, beijei-lhe
respeitosamente. Não era um beijo de amor, era um beijo de gratidão. Depois do
que ela me disse eu sentia que voltava à vida.
— Agora, disse ela, adeus.
E saiu.
Minha mãe não a deixou sair sem cobri-la de
beijos verdadeiramente maternais.
CAPÍTULO
16
26 de dezembro.
São dez horas da manhã.
Passei uma noite tranquila. Tive sonhos
felizes. Sonhei que estava bom e vivia com minha mãe em uma casa retirada do bulício
e da agitação. Voltavam os meus dias de poeta, e eu cantava em estrofes
inspiradas a ventura que me dava a paz do coração e da consciência.
Não sei por quê, esta perspectiva de
felicidade já me não desgosta, e nem já me causa ressentimento a alegria
expansiva e radiante da natureza.
Ao mesmo tempo, a ideia tão poética dessa
vida sossegada e feliz é contrariada pela ideia de que perdi Carlota em virtude
de um contrato fundado sobre o vício. Esta ideia traz-me à vida real, e eu olho
já os sonhos do passado e o desta noite como ilusões sem realidade prática.
A prática é outra coisa. Não transigir com os
desvios dos homens, mas viver preparado para eles, tal é a norma regular que se
me afigura devem ter todas as consciências honestas e previdentes.
Deixar-me seduzir por novas ilusões e
expor-me a novos desenganos e torturas?
É o que farei... se ficar bom.
Ficarei?
O doutor me dirá.
O doutor! É seguramente a ele que eu devo
esta transformação na minha vida. Foi, sem dúvida, ele quem encaminhou aquela
explicação que tão benéfica foi para mim.
Farei tudo o que puder para ficar bom.
Oh! minha mãe! minha mãe!
***
CAPÍTULO
17: EPÍLOGO
Um ano depois, encontravam-se ao pé da
estação do Campo, para tomar o caminho de ferro, dois homens, um moço, o outro
velho. Olham-se e reconhecem-se. Depois entram, compram bilhetes e tomam lugar
em um carro de 1ª classe.
— Para onde vai? pergunta o velho.
— Vou para o Rodeio.
— Também eu.
Acomodaram-se, e, enquanto esperavam a hora,
e não vinha mais ninguém para o mesmo compartimento, trataram de conversar
sobre coisas de sua vida.
— Que faz agora? perguntou o moço ao velho.
— Sou um ex-médico. Vivo do que ajuntei.
— Eu sou um ex-poeta. Vivo do que aprendi.
— Fortuna por fortuna. Mas há uns bons seis
meses que o não vejo. Ora, quem diria que aquele rapaz magro e quase morto se
converteria neste rapagão corado, nédio, robusto... Bem lhe dizia eu.
— Devo-lhe tudo.
— A mim, não.
— Devo-lhe, sim.
— É então ex-poeta?
— Sou. Sou hoje o homem-prosa, vivo
terra-a-terra, livre das quimeras que me atordoaram e nas quais não encontrei
senão dissabores. Quis forçar a ordem das coisas e opor aos sentimentos comuns
a idealidade dos meus sentimentos. Sofri as consequências desta temeridade.
Hoje, se não reneguei o culto da poesia, não faço praça dele, de modo que
aquele dia em que me viu tão desanimado foi, por assim dizer, o último dia de
um poeta.
O doutor olhou para o moço com ar incrédulo.
— Isso é verdade? perguntou.
— Mais que verdade.
— Não pensei que a mudança fosse radical. E
D. Carlota?
— Essa vive, coitada, não sei se como eu.
Nunca mais a vi. Bem sabe que uma barreira nos separava. Mas eu conservo-a
comigo. Perdão, doutor... é a minha ilusão de namorado, de poeta e de rapaz...
mas como vê, é inofensiva.
E o moço tirou um medalhão em que estavam as
margaridas que durante a febre beijava e adorava.
— E sua mãe?
— Oh! essa é feliz! Vive comigo no Rodeio,
onde nada nos perturba a felicidade santa de que gozamos. Pela felicidade que
ela sente vendo-me vivo e são é que avalio a dor suprema que sentiria se eu
morresse. Fiz bem em não morrer.
— Pois, meu amigo, continue a contar com a
minha amizade, que agora é ainda maior. Ame e respeite sua mãe; procure
esquecer os sucessos que motivaram a catástrofe de sua vida, e, sem repudiar a
missão normal que Deus lhe deu, não confie de um mundo frio e egoísta as santas
aspirações da sua jovem inteligência.
— Obrigado, doutor.
Neste momento entrou no carro um casal; o
marido, homem de trinta e oito anos, a mulher... não se podia ver através de um
véu preto que lhe cobria o rosto.
Pouco depois o carro partiu.
A moça, que até então não voltara o rosto,
teve necessidade de fazê-lo para responder a uma pergunta do marido. O marido
achava-se entre ela e o ex-poeta. A moça deu um pequeno grito. Interrogada por
seu marido, respondeu que fora uma dor aguda no coração.
— Há de ser de cansaço, acrescentou ela.
Era Carlota, como já se adivinha.
Durante o resto da viagem nenhum incidente
mais ocorreu. A mulher e o marido conversavam sossegadamente; o ex-poeta e o
ex-médico conversavam do mesmo modo.
Chegando à última estação separaram-se todos.
O doutor prometeu ir jantar à casa do rapaz.
Viram-se ainda muitas vezes, mas o encontro
do vagão foi o último que houve entre o rapaz e Carlota.
---
Imagem:
Revista Tico-Tico, edição de 02/07/1941. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
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