11/14/2017

Onda (Conto), de Machado de Assis


Onda
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 Onda

Na pia chamara-se Aurora; Onda era o nome que lhe deram nos salões.

Por quê? A culpa era dela e de Shakespeare; dela, que o mereceu; de Shakespeare, que o aplicou à instabilidade dos corações femininos.

Tinha um coração capaz de abrigar seiscentos cavaleiros em dia de temporal, e até sem temporal. Batessem-lhe à porta, que a hospitaleira castelã abria sem maior indagação. Dava ao peregrino água para os pés, pão alvo e vinho puro para o estômago, leito macio e aquecido para o corpo. Mas, depois disto, fechava-se muito bem fechada em sua alcova, e, rezando a Deus pela paz dos viajantes alojados, dormia tranquila em seu leito solitário.

De tais facilidades em dar asilo a uns, mesmo quando outros ainda estavam sob o teto hospitaleiro, é que lhe nasceu a denominação que serve de título a estas páginas.

Pérfida como a onda, disse um dia um dos enganados, vendo-a passar em um carro e indo parar à porta do Wallerstein.

O nome pegou.

Ora, vejamos, em minha imparcialidade de historiador, se esta denominação lhe quadrava.

Coitadinha! não precisava muito tempo para ler-lhe nos olhos, adivinhar-lhe os gestos, traduzir-lhe nos sorrisos, a vivacidade, a dissimulação, a afabilidade que constituem o tipo da moça namoradeira.

Via-se que ela conhecia a fundo esta arte de atrair e prender os corações e as vontades com um simples volver de olhos, um simples meneio de leque.

Dera-lhe Deus uma beleza que era a sua base de operações. Não é que a beleza seja absolutamente necessária. Sei de alguém que reconheceu uma mulher cujas feições examinadas, uma por uma, não tinham traço algum de beleza; mas que sabia mover uns olhos que Deus lhe deu e de que ela, seja dito em honra da verdade, fazia um mau uso. Tão mau, que este alguém em questão, depois de se apaixonar por eles, achou-se um dia sem coração e sem futuro...

Se era assim com aquela, o que não seria com esta, que, além de um par de olhos vivíssimos, formosíssimos, eloquentíssimos, possuía as verdadeiras formas de beleza feminina?

Onda sabia que tinha os olhos bonitos: volvia-os a cada momento; sabia que possuía mãos de princesa: concertava os cabelos de minuto a minuto; sabia que possuía uns dentes e uma boca divinos: sorria a propósito de cada coisa; sabia que os seus pés eram dos mais perfeitos: procurava não sujar o vestido quando descia do carro.

De modo que, amigos ou estranhos, pobres ou ricos, poetas ou prosas, velhos ou moços, todas as criaturas que pertenciam ao sexo do autor e do leitor destas linhas, ficavam fascinados, presos, apaixonados.

Ela cuidava extremamente de pôr em relevo a sua beleza mediante os inventos da arte. Era assinante dos melhores jornais de modas e freguesa das melhores casas de novidades elegantes. Distinga-se porém: a minha heroína era casquilha para ser namoradeira, o que é alguma coisa diferente da casquilha por casquilhice. Se me é lícito aplicar uma fórmula séria, direi que há entre as duas espécies a diferença que vai do princípio de arte pela arte ao princípio de arte pela moral.

Onda sabia que o espírito do homem deixa-se prender facilmente pelos atrativos artificiais juntos aos atrativos naturais, e não deixava de aumentar pela cifra da elegância a unidade da beleza com que a natureza a dotara.

Acrescente-se a isto, que Onda possuía um gosto apuradíssimo. Mesmo na escolha dos mais simples trajares revelava-se nela a discrição, o acerto, a boa mão, para usar de uma expressão popular.

Ora, não se resiste facilmente a quem reúne tantos predicados; e se a simples
presença bastava para prender, o que não era quando aquela boca se abria, como uma taça de mel do Himeto, e destilava, não digo palavras, gotas de pura ambrosia do céu?

Assim que, naquelas guerras de amor, a presença era o primeiro ataque, a palavra a batalha campal. Ninguém saía delas são e salvo; saía-se ferido, e, o que é mais, sem esperanças de chegar a coronel. O tempo dava alguma confiança aos que se enamoravam dela em virtude de uma reflexão que lhes parecia justa; e era que nem toda a vida Onda faria de sua beleza uma simples rede para passatempo. Esta esperança fortificava as coragens e inspirava as constâncias. O próprio tempo os ia desenganando até a hora em que se deu o episódio que vou narrar em poucas palavras.

No momento em que Onda, completando vinte e cinco anos, pareceu chegar à idade razoável de passar do capricho ao amor sério e digno, apareceu na intimidade da família desta misteriosa donzela um rapaz, que meses antes chegara de uma longa viagem à Europa à custa de um tio desembargador.

Antes de pisar o reino da nova Diana já Ernesto (é o nome do herói) sabia com quem ia lidar. Meia dúzia de logrados tiveram cuidado de instruí-lo da alcunha e das qualidades da moça.

Ernesto, depois de ouvir as narrações e as imprecações de todos, puxou uma fumaça, e brandindo um chicotinho de junco, olhou para os seis e disse-lhes:

— Não quero argui-los de fraqueza ou inépcia; mas façamos uma aposta: o que perdem se eu conseguir domar essa gentil pantera?

— Ora! exclamaram em coro os seis ministros decaídos.

— Isso não é responder.

Um dos interlocutores respondeu:

— Mas é impossível domá-la! disse um que era poeta.

— Impossível? exclamou Ernesto. Meus amigos, se Penélope não tivesse pressentimento de que, mais tarde ou mais cedo, Ulisses lhe apareceria em casa, não fiaria tanto, e em vez de sustentar a tantos pretendentes, sustentaria apenas um, o que era mais acertado, no duplo ponto de vista da economia e do coração. Onda, como lhe chamam, espera sem dúvida Ulisses que sou eu, e os vai iludindo até que eu apareça para entrar na posse do direito que a natureza me conferiu. Esta é a verdade...

Cada qual dos seis pretendentes desenganados tinha consciência de ter feito os últimos esforços, consciência em que entrava um tanto de fatuidade; mas tinham isso, e foi por isso que, quando Ernesto acabou de falar, responderam todos com a mais estrondosa gargalhada.

A fatuidade falara em primeiro lugar no espírito de Ernesto; a gargalhada ofendeu-lhe o amor-próprio; insistiu, já sério, ou antes com aquele riso especial que em nossa língua se exprime tão bem pelo riso amarelo; depois de dez minutos de renhida discussão, assentou-se que, no caso de vitória, Ernesto teria direito às seguintes prendas:

Um jantar no Hotel de Europa.

Um cavalo.

Um mês de verão em Petrópolis.

Uma assinatura do Teatro Lírico.

Um milheiro de charutos de Havana.

Saldar todos os credores.

Um manuscrito de Voltaire.

Esta última aposta era do poeta que se gabava de possuir muitos manuscritos de homens célebres, e que, declarando o que perderia, teve cuidado de fazer observar que perderia mais que todos.

No caso em que Ernesto fosse derrotado pagaria aos outros, coletivamente, um lauto banquete.

Nisto despediram-se.

Ernesto estava compenetrado da situação. Perder era correr-se de vergonha, sobretudo depois do tom em que falara e da confiança que mostrava ter em si. Outras razões aduzia ainda: ganhar era, não só envergonhar a tantos, como ainda entrar de cabeça alta na posse de uma mulher formosa e de uma fortuna regular.

Já por esta reflexão fica o leitor instruído de que Ernesto não era homem de dar uma polegada de si ao ideal. Uns através dos olhos da mulher queriam ver a alma; Ernesto enxergou simplesmente uma bolsa recheada. Este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma descoberta, nem eu me dou por Arquimedes. Aponto simplesmente mais este traço do nosso herói.

Ora, o nosso herói, pesadas as coisas, ficou determinado a entrar em combate.

"Qu'allait-il faire dans cette galère?" perguntaria Geronte.

O caso é que foi.

A primeira coisa que Ernesto resolveu no seu espírito foi não ceder um palmo ao encanto de Onda. Era o melhor meio para operar melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo menos, criar as mesmas vantagens da inimiga.

Não nos demoremos, leitor, com as primeiras cenas deste namoro, que nos não adiantam nada. Saltemos uns vinte dias e cheguemos a uma tarde de junho em que Onda, em companhia de duas amigas, espera a visita de Ernesto.

Depois de certa espera anuncia-se a chegada do herói. Onda recebe-o com o melhor dos seus sorrisos.

Ernesto, contente de si, cumprimentou o mais graciosamente que podia a bela e as amigas, e depois, com uma graça que procurava ser natural, assentou-se na cadeira que Onda lhe indicara com um gesto.

Até este dia Ernesto tinha procedido muito elementarmente: fazia um louvor à beleza de Onda entre dois suspiros que magoavam à força de parecerem magoados. Era, na opinião de Ernesto, o primeiro meio, o mais natural, o mais próprio. O que é certo é que, depois de alguns dias, Onda lhe parecera decidida a aceitá-lo. Mas não seria fingimento? dizia consigo Ernesto; e concluindo pela afirmativa, procurou empregar todas as suas armas, de maneira que não só pudesse aferir a sinceridade dos sentimentos da moça, mas ainda inspirar-lhe sentimentos verdadeiramente sinceros e profundos.

Ora, eis aqui como ele estreou a conversa:

— Já sei que está com saudades de mim?

— Ande lá, respondeu Onda, ainda bem que é o primeiro a fazer o capítulo da própria acusação.

— Sou criminoso.

— Talvez, não... Mas sabe por que tive saudades?

— Porque não venho aqui há cinco dias.

— Bem. E por que não veio?

Dizendo isto Onda cravou em Ernesto um desses olhares que, procurando animar uma resposta, deixam o espírito em perplexidade e confusão.

Ernesto esteve dois minutos sem responder, mas também sem desviar os seus olhos dos olhos da moça.

É que aquele olhar era de fogo grego que Onda guardara para a ocasião oportuna. Depois de uma ausência de cinco dias, parecendo que a presa se escapava, cumpria prendê-la de modo que não lhe desse mais ocasião de tão longos esquecimentos.

Esse olhar era tudo. Derrubaram-se os projetos de Ernesto: vinha com a intenção de experimentar o ciúme da moça, trazia já redigida a mentira que servia de arma, mas tudo se lhe esqueceu, tudo se inutilizou.

Sem desviar os olhos de Onda, Ernesto balbuciou estas palavras:

— Estive doente...

— Doente? Com efeito, está pálido.

Ernesto lançou rapidamente os olhos para um espelho e reparou que estava realmente pálido.

Mas esta palidez não resultava de moléstia alguma, ou antes resultava de uma moléstia que só agora se manifestava em toda a sua ação.

Onda estava segura de seu triunfo. Via o efeito que produzia no espírito de Ernesto e comprazia-se nessa vitória que tão voluntariamente adiara. O essencial era convencer a Ernesto que ela o amava. Ora, o tom das suas palavras, a magia do seu olhar, faziam entrar no espírito do moço esta convicção.

Depois de duas horas de conversa, em que o tempo pareceu correr mais rapidamente do que costumava, para Ernesto entende-se, Onda estendeu graciosamente a mão esquerda para Ernesto e perguntou-lhe:

— Vai ao Teatro Lírico?

— Oh! com certeza!

Ernesto não se pôde furtar a um desejo de tomar alguma coisa do tesouro que se lhe oferecia. Levou a mão de Onda aos lábios e imprimiu-lhe um beijo apaixonado.

— Deste beijo, pensava Ernesto, pode nascer a minha ventura. Talvez até hoje ninguém ousasse a isto.

E na verdade, Onda pareceu estremecer sentindo os lábios do moço na pele alva e fina da sua mão de princesa.

Quanto às duas amigas, essas voltaram o rosto e não puderam esconder um sorriso, ao ver a figura de Ernesto e a graça cortesã com que ele se curvou e beijou a mão de Onda.

Ernesto saiu com os sentidos exaltados, o coração palpitante, as ideias confusas; estava definitivamente namorado, e, o que é mais, pensava ele, tinha agarrado a bela fugitiva.

À noite foi ao Teatro Lírico. Charton, que então fazia as delícias do público fluminense, cantava nesse dia uma das suas melhores criações. O teatro estava cheio; todos aplaudiam a artista com sincero entusiasmo; nessa noite não cantava a competidora de Charton, a Emmy Lagrua; e, como é sabido, os frequentadores do teatro tinham-se dividido em dois partidos extremados, fogosos, mais fogosos e extremados que os partidos episcopais no concílio de Nicéa.

Só Ernesto não se filiava a nenhum partido; o único objeto de partido para ele fulgia em um camarote da 2ª ordem. Onda estava esplêndida nessa noite. De sua cadeira Ernesto assestava quase constantemente o seu binóculo contra o camarote. Onda, que acompanhava todos os gestos e movimentos de Ernesto, fitava o olhar nos vidros do binóculo do moço e deixava errar nos lábios um sorriso fascinador.

Ernesto sabia que o sorriso era para ele, e subia proporcionalmente ao sétimo céu.

Mas seria Ernesto o único cortesão da beleza de Onda que se achava no teatro? Outros havia que, de diversos pontos da sala, como outros tantos observadores astronômicos, estudavam a marcha e a beleza daquele planeta. No fim do primeiro ato convenceram-se todos de que havia na sala um preferido.

— Quem será? foi a primeira pergunta que cada qual fez a si.

E a resposta mental que para eles mesmos deram a esta pergunta foi:

— É natural que ele vá ao camarote.

E todos, caminhando por vias diversas e separadamente, chegaram quase ao mesmo tempo a um mesmo ponto: o camarote de Onda.

Eram três. Ernesto completava o número de quatro. Foi o último que entrou, radiante e feliz.

Quando entrou viu os três competidores, que ele já conhecia, conversando alegremente com a esquiva dama.

Por que alegremente?

Onda, ao primeiro que apareceu e que a censurara com meias palavras, respondeu:

— Pelo indiferente, ri-se; pelo escolhido... sente-se.

O pretendente sentiu bater-lhe o coração violentamente.

A tia de Onda, que se achava no camarote, não ouviu a conversa, nem que ouvisse lhe prestaria atenção.

Casquilhice.

Ao segundo despeitado Onda respondeu com um olhar significativo, como aquele que abatera Ernesto; ao terceiro poupou os olhos para poder falar a mão graciosa cujos músculos pareciam outros tantos fios elétricos.

De modo que, supondo-se cada qual mais feliz que o outro, enchia-se de certa vaidade e olhava com sincera compaixão para os outros.

E mais que todos Ernesto, que entrou no camarote com aquela confiança de quem sabe que causa uma grande satisfação, tão grande como seria grande o aborrecimento que os outros causariam.

E nenhum, depois de meia hora de conversação, mudava de parecer. Onda sabia conservar no espírito de cada um a convicção da sua preferência: uma palavra ambígua, um meneio de leque, um olhar, um gesto, tudo lhe eram armas para combater a dúvida e afirmar a fé no coração dos seus adoradores.

O resto da noite passou-se do mesmo modo, repetindo-se as visitas e confirmando cada um no espírito do outro a opinião de que era néscio e importuno.

No fim do espetáculo foi Ernesto que teve a honra de acompanhar Onda ao carro. Ia de cabeça alta, lançando um olhar de desdém para todos, e dirigindo-se frequentemente a Onda, que lhe respondia com suma graça e volubilidade.

Junto aos últimos degraus da escada da porta lateral que dá para a Rua dos Ciganos estavam os seis amigos da aposta, risonhos e interrogativos.

Ernesto viu-os, cumprimentou-os levemente e dirigiu-se para a porta. Um dos outros competidores trazia a velha tia de Onda e apressou-se a descartar-se dela fazendo-a entrar na carruagem. Depois, Ernesto conduziu a moça, fê-la entrar e ia dizer duas palavras de despedida quando sentiu que lhe ficara na mão o lenço de cambraia da formosa Onda.

Antes que o menor sinal de admiração a comprometesse, Onda estendeu a mão a Ernesto e disse-lhe com voz doce e insinuante:

— Até amanhã!

— Até amanhã!

A tia também repetiu, entre dois bocejos, as duas palavras:

— Até amanhã!

Mas Ernesto já ali não estava. Beijar o lenço, metê-lo na algibeira do paletó e correr para os amigos que o esperavam à porta do teatro, foi uma e a mesma coisa.

— Bravo! bravo! repetiram em coro os amigos.

Ernesto não sabia que dizer. Olhava para todos com um sorriso quase alvar, tal era o estado em que o deixara a inesperada ventura da dádiva do lenço.

— É minha! pensava ele.

— Então ganhaste a aposta? perguntaram os outros.

— Não sei: esperem. Quero declarar-lhes a vitória completa no dia em que puder apelar para o reconhecimento da igreja.

— Ah! ah! então casas-te?

— Por que não? Oh! meus amigos, mais tarde ou mais cedo hei de acabar por aí. Sinto em mim a bossa conjugal. Ninguém foge à sina. Ora, se há de ser com outra, por que não há de ser com esta? Não lhes disse eu que era o Ulisses desta Penélope? Verão se acertei. O que é certo é que, como o pai de Telêmaco, tive meus naufrágios, e no fim de tantas atribulações aguardo a felicidade doméstica. Trato agora de flechar os pretendentes. Meus caros, a confiança e a coragem são tudo. Chénier tem razão:

.............. Ami, reprends courage,
Toujours le ciel glacé ne souffle point l'orage.
Le ciel, d'un jour à l'autre, est humide ou serein.

Esta conversa já tinha lugar na rua. Uma parte da noite, em casa de um dos amigos, onde foram todos tomar chá, Ernesto continuou no mesmo falar de segurança, e nos outros, apesar da própria experiência, foi desaparecendo a dúvida para dar lugar a um convencimento que não era isento de despeito.

No dia seguinte Ernesto foi à casa de Onda e voltou de lá mais do que encantado. A noite é boa conselheira; antes de conciliar o sono, Ernesto refletira que a presença do lenço em sua mão poderia ser fortuita, e com este pensamento diminuíram-se-lhe umas boas braças do castelo que ele já construíra em seu espírito. Mas tão feliz era que se enganou na sua presunção. Quando, para sondar a verdade das coisas, disse a Onda que esta deixara cair por descuido o lenço, ela olhou-o fixamente e disse-lhe:

— Lenço é apartamento. Vamos experimentar se nos havemos de separar.

Era positivo.

Ernesto ficou fora de si.

Nessa noite chegando à casa resolveu escrever à moça mostrando-lhe o estado da sua alma.

Deu ordem para que o não incomodassem; mandou fazer café, acendeu um charuto, leu e releu Propércio e Millevoye, e depois de duas horas de incubação intelectual redigiu o seguinte manifesto do coração:

Minha prezada Senhora. — Uma palavra sua vai ser para mim a condenação ou a salvação. Meu coração chegou ao estado de só admitir estas soluções extremas.

Bem sei quão grande é a minha ousadia. Bem sei que pretender o seu amor é aspirar às estrelas do céu, à luz divina da glória eterna; sou talvez indigno de receber das suas mãos a coroa do meu supremo martírio. E se, no meio desta ventura, posso discernir estas coisas, é preciso que o amor que lhe consagro tome proporções tais que me não seja possível conservar no fundo da minha mediocridade.

Amo-a; não cuide, porém, que este amor, semelhante ao amor comum dos homens, fosse apenas o resultado de uma fantasia e a conclusão de um cálculo. Vão. Este amor é caso de vida e de morte; é um desses afetos em que a alma se empenha toda e do qual não pode sair sã e salva.

Desde que a vi, senti que o meu coração tinha encontrado o seu ideal; onde há aí beleza mais admirável, mais rara, mais completa? A antiguidade tinha repartido os diversos modos da beleza nas deusas que inventou. Mas nesta que o meu coração faz glória de amar reúne-se tudo: a majestade de Juno, o recato de Hebe, a beleza de Ciprina, o aspecto virginal das três Graças.

A um coração de poeta, posto que de gênio não o seja eu, tal reunião de encantos não podia passar despercebida; vê-la, foi tornar-se cativo, e cativo desse cativeiro mágico que tem o dom de fazer beijar os ferros e amar a condição. É que cativar-me assim, é libertar-me, é deixar os laços da matéria, é remontar-me à pura região dos gozos desconhecidos.

Em tal estado, a afirmativa ou a negativa é uma sentença de vida ou de morte. Nas suas mãos está fazer de mim um venturoso ou um desgraçado.

Talvez fora melhor que isto que aqui lhe digo no papel fosse expresso de viva voz; mas eu não sei se teria coragem de falar. Longe de seus olhos sinto-me menos acanhado, mais livre, mais próprio para exprimir o estado do meu coração.

Aguardo a sua sentença. — Ernesto.

Apesar de certa incongruência e da aparente afetação desta carta, Ernesto releu-a contente, admirando o belo estilo que até ali não descobrira em si.

Fechou a carta e arranjou meio de fazê-la chegar secretamente às mãos de Onda.

A moça respondeu verbalmente que, no dia seguinte, no sarau que se dava em casa de um tio dela, se entenderia com Ernesto.

Ernesto recebeu com alguma amargura esta resposta. Todavia sempre esperançado preparou-se para o sarau, e lá foi ter.

Antes de ir passou pelos olhos, durante o dia, a cópia da carta com que ficara, e a cada período que lia parecia-lhe que Onda não era capaz de resistir.

Não quis ir cedo. Pareceu-lhe melhor fazer-se esperar e fazer nascer da impaciência uma resposta mais pronta. Só às onze horas compareceu ao sarau.

Dançava-se uma polca.

Onda e um cavalheiro (exatamente um dos pretendentes do Teatro Lírico) faziam as delícias dos apreciadores da polca.

Ernesto, com o coração aos pulos, esperou, encostado a um portal, que a dança acabasse.

E posto que dali a dez minutos a polca se tivesse acabado, tal era a impaciência de Ernesto, que lhe pareceu um século. É que não era só a impaciência, era já o ciúme de vê-la nos braços de outro.

Terminada a polca, Onda, contra as previsões de Ernesto, foi percorrer alguns salões pelo braço do cavalheiro.

Que significava aquilo? Ernesto ficou algum tempo perplexo. Finalmente refletiu que, tendo chegado poucos minutos antes, não podia a moça saber logo da sua presença.

Devia ir falar-lhe.

Dava alguns passos quando um dos amigos da aposta acercou-se dele e pediu-lhe novas do namoro.

Ernesto, procurando sorrir, disse que mais tarde poderia dizer alguma coisa.

— Os outros estão aqui, disse o amigo.

— Todos? perguntou Ernesto.

— Todos.

— Bem, até logo.

E dizendo isto, Ernesto foi-se em procura da mulher que o prendia.

Atravessando uma sala viu dirigir-se para ele o par que procurava. Deteve-se. E para aparentar indiferença e acaso foi a um espelho e aí fingiu consertar os cabelos, com a mão, ao de leve.

Ficava assim de costas para os dois e podia ver no reflexo do espelho se ela reparava nele ou não.

Ora, o que ele viu foi a moça trocar com o cavalheiro um olhar de ternura, e este arrancar-lhe das mãos, que apenas opuseram fraca e doce resistência, uma pequena flor que ela tirara do ramalhete.

Ernesto enfiou.

Após a comoção da cena que acabava de presenciar, outra comoção o tomou: foi a vista do rosto pálido com que ficou.

Os dois passaram.

Ernesto deixou-se cair em um sofá.

Quase a ganhar a batalha, no momento da vitória decisiva, encontrava-se repentinamente no mesmo ponto em que começara as lutas.

Quando passou a primeira comoção veio-lhe à lembrança a carta que escrevera e cuja resposta ia buscar. Mas devia pedi-la depois do que presenciara? E não era a sua posição uma posição ridícula?

Pensando em tudo isto, Ernesto levantou-se e passeou à toa por todas as salas e corredores.

Dançava-se, cantava-se, tocava-se; ele nada via, nada ouvia; via o ridículo e o desdém. Supunha ter metido uma lança em África e descobria agora que era tão medíocre como os outros.

Nestas reflexões amargas andava, quando, ao passar por uma das salas, ouviu a voz de Onda.

A voz partia do vão de uma janela.

Ernesto escondeu-se no vão da janela contígua e procurou cobrir-se entre as cortinas para não ser visto se alguém passasse.

Depois prestou o ouvido à conversação e procurou distinguir as vozes. Não havia voz de homem. Além de Onda, havia uma voz de mulher. Falavam o nome dele. Redobrou de atenção.

— Como és feliz! dizia a voz desconhecida.

— Feliz?

— Ou antes ardilosa!

— Por que ardilosa? Tenho eu culpa que sejam todos os homens de uma mediocridade de espírito incomparável? Divirto-me, nada mais.

— Oh! mas esse, o Ernesto, não é tão medíocre assim...

— Mais que os outros. Tem o que os outros não tinham ou não pareciam ter: a vaidade de agradar por seus encantos.

— Pois este?...

— É o que te digo. Acreditarás tu que foi só depois de muitos dias que me resolvi a prendê-lo como todos? Ao princípio afetava uma indiferença sem igual: parecia alheio a mim, e entretanto eu sabia que ardia por figurar entre os meus adoradores. Hoje é o pior de todos. Se visses a carta que me escreveu!

— Ah! escreveu-te...

— Oh! um regimento de tolices, sem pés nem cabeça, umas coisas já muito velhas e batidas, declarando-me que da minha decisão dependia a felicidade ou a condenação dele. Quer fazer supor que morre se eu responder que não o aceito em meu coração. Que tal?

— Pensei que este meio já se não usava.

— Usa-se, usa-se...

— Mas dize-me cá; não gostas de alguém?

— Por ora, não.

— Mas deveras ninguém te inspirou ainda amor?

— Não. Que queres? Fui educada com o recato maior deste mundo; entrando na convivência das outras, e nas distrações nos bailes, não pude logo ao princípio tomar afeição alguma. Foi tempo esse que gastei em duas coisas: em ler e observar. Ora, da leitura adquiri ideias talvez um pouco absurdas, mas enfim adquiri, e fora das quais não compreendo o amor. Gosto de amar e ser amada por inspiração, e com verdadeira paixão. Até aqui nada tenho visto além de uns amores vulgares que não contentam o coração.

— E sabes se algum dia encontrarás?

— Talvez... quem sabe?

— Ah! maliciosa! Aí anda coisa!

— Qual!

— Quem sabe se este último, este de hoje, o da flor?...

Nisto passava um grupo. As vozes calaram-se e Ernesto foi obrigado a coser-se mais com a janela e a cobrir-se com a cortina.

O rapaz suava ouvindo aquelas coisas a seu respeito. Sentia o efeito que se sente ao acordar de um sonho em que se parece estar no cimo de uma montanha, quando realmente se está a três ou quatro palmos do chão.

Não era bem o amor dele que se ressentia; era mais o amor-próprio ferido naquelas palavras com que era tratado.

Depois de uma batalha tão renhida e cuidada, reparava ele que não passara de um joguete aos manejos de uma dama ardilosa e namoradeira.

Quando pôde de novo ouvir a conversa que, aliás, lhe chegava entrecortada e incompleta, já as duas moças tratavam de outro ponto da questão.

— Mas o que pretendes fazer? perguntou a desconhecida.

— É conforme o modo por que ele me falar. Talvez o receba com uma secura tal que ele nunca mais se lembre de mim.

— Não tens pena de perdê-lo?

— Ora, rei morto, rei posto.

— Dize antes: reis mortos, reis postos!

Riram ambas, ambas se beijaram, e dando o braço uma à outra saíram dali como dois anjinhos que acabavam de pedir a Deus por uma alma condenada.

Ernesto, apenas sentiu que elas já estavam longe, saiu do seu esconderijo.

Que iria fazer? Esteve alguns instantes sem tomar determinação alguma. Ainda não tinha falado a Onda; o melhor meio que lhe pareceu era dirigir-se à moça, cumprimentá-la e não tocar no assunto da carta. Depois, se ela viesse de si ao assunto, falar conforme o tom das suas palavras e procurar fugir ao ridículo e à afronta.

Tendo tomado esta resolução, Ernesto caminhou para o salão em busca de Onda. Tocava-se o sinal de uma quadrilha. Ernesto dirigiu-se para Onda com um sangue frio afetado e fez-lhe, o mais gracioso e indiferente que pôde, um cumprimento. Depois convidou-a a dançar.

— E se eu tiver par? perguntou a moça, um pouco admirada da discordância que notava entre a carta e aqueles modos.

— Paciência; esperarei.

— É tão resignado assim?

— Por que não?

Mas os olhos de Onda, com que Ernesto não contava, iam fazendo já o efeito do costume, de modo que a indiferença com que ele viera determinado começou a dar lugar a uma ternura misturada com humildade. Onda respondeu:

— Pois quero dar-lhe uma prova de amizade. Vou roer a corda ao par.

— Oh! isso!

— Por que não? Está dito: vamos dançar.

E, levantando-se, aceitou o braço de Ernesto, que nada pôde responder a estas palavras, tão estranho lhe pareceu aquele procedimento.

Formou-se a quadrilha e ambos dançaram, tendo exatamente por vis-à-vis a companheira de Onda e um dos rapazes da aposta com Ernesto.

É inútil dizer que nenhum cavalheiro alegou a falta de Onda, visto que ela não tinha realmente par aceito para a quadrilha.

Durante a dança os ressentimentos de Ernesto foram desaparecendo cada vez mais. No fim estava quase como na hora em que escreveu a carta.

Terminada a quadrilha foram os dois para o pequeno terraço da casa.

A noite era das mais belas. Esta circunstância serviu de tema para as primeiras palavras de Ernesto, a quem ocorreram no momento as palavras de uma situação de romance que ele lera alguns dias antes.

Enquanto a conversa não passou dessas banalidades, Onda mostrou-se amável a mais não ser. Mas Ernesto, iludido por essas aparências, tendo esquecido perfeitamente a conversa da janela, ousou falar bruscamente na carta e pedir uma resposta.

Da primeira vez Onda não respondeu.

Ernesto insistiu na exigência.

Onda convidou-o a levá-la ao salão.

— Mas a carta?

— A carta? disse ela. Que carta?

— A que eu lhe mandei.

— Ah! ainda não li. Tive tanta coisa em que cuidar ontem.

Ernesto enfiou deveras.

— Não leu?

— Não li.

Ernesto não se pôde ter, e referiu a conversa que ouvira entre Onda e sua amiga. Depois de ouvir a narração que Ernesto matizou de pontos de admiração, Onda contentou-se em responder:

— Foi sonho!

Ernesto não disse palavra ouvindo isto.

Houve entre ambos um momento de silêncio.

Onda encetou conversa sobre coisas diversas. Ernesto mal respondia por monossílabos.

Enfim, Onda pediu a Ernesto que a conduzisse ao salão. Ernesto deu-lhe o braço e disse-lhe que também não se demoraria no baile.

— Mas irá em minha casa amanhã, sim?

— Para quê? Para ouvir a leitura...

E cortou subitamente o que ia dizer.

Mas Onda adivinhou.

— Ora, disse ela. Não falemos mais nisso. Vá, que eu gosto de sua companhia.

Ernesto levou Onda ao salão e saiu sem despedir-se de ninguém.

Estava humilhado.

No dia seguinte, os seis amigos de Ernesto receberam o seguinte bilhete:

Perdi a aposta. Estão convidados a jantar hoje no Hotel de Europa às cinco horas. Enterro o amor. — Ernesto.

Às cinco horas os sete amigos estavam à roda de uma mesa em uma das salas particulares do Hotel de Europa.

— Com que, perdeste? disse um.

— Não te dizíamos nós! acrescentava outro.

— Aprendeste à tua custa, acudia o terceiro.

— Não serás tolo em outra ocasião, observou filosoficamente o quarto.

— São as lides que formam cavalheiros: isto é de um poeta, citava o poeta da reunião.

— O que te vale é que não pareces ter perdido muita coisa do coração neste negócio, dizia o último.

— É verdade, respondia Ernesto, dizes muito bem. Perdi, mas salvei o coração. Meu amor-próprio não deixou de ressentir-se com isto; mas juro que fiz o que era humanamente possível. É que realmente a rapariga é insensível. Pois, olha, posso afirmar que eu conheço o nome aos bois...

Toda a conversa foi por este teor.

E era de ver a alegria sincera com que Ernesto abriu a carteira, no fim do jantar, para saldar a vistosa conta que o caixeiro lhe apresentara.

Devo dizer que o jantar que serviu de funeral ao amor de Ernesto foi dos mais escolhidos.

Duas palavras, em forma de epílogo, para fechar este ligeiro episódio.

Onda prosseguiu nos seus amores fáceis, dando a todos os mesmos desenganos que custaram a Ernesto... um jantar.

Mas enfim, se os namoros passavam, também passava o tempo, e um dia, estando ao espelho, Onda viu que a primeira ruga se lhe desenhava no rosto. Tinha ela então trinta e três anos. A ruga era prematura, mas, fosse ou não, existia, e esta descoberta deu sério cuidado à moça.

Esperar o amor que sonhara pelos romances era arriscar-se, visto que à primeira ruga sucederiam outra e outras.

Era preciso achar marido.

Lançou as vistas a lista dos seus adoradores, já muito diminuída, não porque lhe faltasse a beleza, mas porque lhe sobrava travessura para os arredar.

Entre esses adoradores havia um que pela terceira vez depositava o coração aos pés da bela namoradeira. Da primeira vez era um simples tenente de cavalaria; da segunda era capitão; agora era já major.

Onda resolveu que lhe cumpria assentar praça ao lado do major.

Daí a um mês anunciava-se o seu casamento. O major abençoou a sua insistência e recebeu em matrimônio a esquiva donzela.

Daí para cá Onda tem-se mostrado fiel às armas.

Quando Ernesto e os outros souberam disto fizeram muitos epigramas, alguns desconsolados e sensaborões.

Mas a rapariga casou-se.

Ernesto no fim de dois anos vingou-se de tudo procurando mulher e encontrando uma das mais modestas deste mundo. Os dois casais são felizes; o leitor não menos por ter chegado ao fim deste episódio sem derramar uma lágrima, e eu tanto como o leitor, por ter pingado o ponto final a este escrito, cujo assunto principal é um desvio do espírito das mulheres.

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