11/09/2017

Os médicos (Conto), de Humberto de Campos


Os médicos

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Há três ou quatro anos, quando se cuidou, no Rio, da fundação da Casa do Médico, destinada a recolher, na velhice, os numerosos náufragos da profissão, Paulo Araújo e Belmiro Valverde definiram, em interessante memorial, o que é, em verdade, a vida de um apóstolo da Medicina.

Não há, realmente, na terra, profissão economicamente mais ingrata do que a de médico. O indivíduo que entra na loja de um comerciante seu amigo, paga pelo preço comum, ou com pequeno abatimento, a mercadoria de que faz aquisição. O barbeiro não faz a barba gratuitamente a ninguém. O advogado não defende causas sem remuneração, nem o ferreiro conserta de graça a ferramenta dos operários que lhe são íntimos. Ao médico, entretanto, não se faz a mesma justiça. Pelo fato de ser o seu trabalho relativamente leve, e consistir, apenas, em pôr algumas palavras sobre uma folha de papel, acham os clientes que lhes não devem pagar por tão pouco, esquecendo-se que essas palavras, isto é, essa receita, constitui o fruto de vários anos de estudo, de esforço, de experiência, em que foram consumidas diversas dezenas de contos. Porque o médico não gasta aos olhos do cliente, senão um pouco de tinta e uma tira em branco, é o seu trabalho depreciado, especialmente pelos camaradas, pelos amigos, pelos íntimos, que não fariam, jamais, o mesmo, se se tratasse de um engenheiro ou, em esfera mais baixa, de um simples engraxate. E daí o número relativamente grande de médicos que envelhecem na pobreza, e que entram, afinal, no carro escuro da Morte, pela porta de ferro da miséria.

Tomando em consideração esse abuso é que aparecem, de vez em quando, por toda a parte, as reações justas, enérgicas, inteligentes. É conhecida, por exemplo, a história daquela senhora que, pretendendo arranjar uma receita de certo médico ilustre, indagou, ao encontrá-lo:

— Doutor, que é que o senhor faz quando tem tosse?

O médico percebeu o plano e respondeu, grave:

— Tusso, minha senhora!

A reação mais pitoresca e eficaz de que há notícia foi, porém, a de que tomou a iniciativa, há dias, o notável mestre Sr. Dr. Miguel Couto. Certa senhora de fortuna, habituada a tratar-se com o ilustre clínico brasileiro por meio de receitas obtidas de surpresa, resolveu, da última vez, fazer o mesmo cercando-o em plena. Avenida:

— Ó doutor, como está?

— Bem, D. Veneranda; e a senhora, como tem passado?

— Eu? — acudiu a matrona atingindo o ponto a que pretendia chegar. — Eu não estou passando bem, não, doutor.

E logo, em seguida:

— Tenho sentido uma dor aqui, no peito, que responde aqui, no fígado, causando-me uma aflição enorme, que me não deixa dormir. Que é que o doutor acha que seja?

O Dr. Miguel Couto olhou para um lado e para outro na Avenida fervilhante de gente, e ordenou:

— Vamos ver isso, D. Veneranda. Dispa-se!

— Como? — estranhou a velha, recuando.

— Dispa-se, para fazer-lhe um exame, tornou o médico.

A matrona arregalou os olhos, escandalizada, e protestou:

— O senhor pensa que eu sou maluca?

E o Dr. Miguel, no mesmo tom:

— E a senhora não acha que eu tenho o meu consultório no meio da rua?

A velha eclipsou-se.

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