Pai contra mãe
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos
fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à
esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava,
naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde
quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com
frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia
ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.
Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de
padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade
moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.
Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado
no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam
para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum
dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais
do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde
andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa:
“gratificar-se-á generosamente”, — ou “receberá uma boa gratificação”. Muita
vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço,
correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor
da lei contra quem o acoitasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do
tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a
lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações
reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a
pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, — em família, Candinho, — é a
pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu
o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não
aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava
caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era
preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era
carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A
obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao
cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório,
contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros
empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha
ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador
de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o
ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar
outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas
nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras.
Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela
era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não
namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não
tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para
eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que
nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse
o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um
pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum
que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e
ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu
Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e
único. O encontro deu-se em um baile; tal foi — para lembrar o primeiro ofício
do namorado, — tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal
composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais
bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por
inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do
noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era
dado em demasia a patuscadas.
— Pois ainda bem, replicava a noiva; ao
menos, não caso com defunto.
— Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do
casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos
filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
— Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome,
disse a tia à sobrinha.
— Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu
Clara.
Tia Mônica devia ter-lhes feito a
advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela
era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a
propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves,
Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem
esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não
tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é
que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na
eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o
fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou
desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
— Deus nos há de ajudar, titia, insistia a
futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não
houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com
mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha
de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia
já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os
intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
— Vocês verão a triste vida, suspirava ela.
— Mas as outras crianças não nascem também?
perguntou Clara.
— Nascem, e acham sempre alguma coisa certa
que comer, ainda que pouco...
— Certa como?
— Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação,
mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela
advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de
costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
— A senhora ainda não jejuou senão pela semana
santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o
nosso bacalhau...
— Bem sei, mas somos três.
— Seremos quatro.
— Não é a mesma coisa.
— Que quer então que eu faça, além do que
faço?
— Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro
da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um
emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a
ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.
— Sim, mas lá vem uma noite que compensa
tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não
brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como
de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente
alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de
entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar
escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas
sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda.
Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às
pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo
fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força
era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de
coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia
fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a
conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e
de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas
e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor
arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os
escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido
Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um
desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e
deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer
que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos
prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura.
Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a
roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava
a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que
não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe
sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a
serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um
preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe
deram os parentes do homem.
— É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica,
ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências.
Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra
coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício;
seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão
negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até
fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e
necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é
dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
— Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando
um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a
tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos
enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois
jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir,
crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os
olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era
velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara
interveio.
— Titia não fala por mal, Candinho.
— Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou
por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem
tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é
que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor
tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo
cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois
então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à
toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros,
deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas
era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, — crueldade, se
preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido
Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois
foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
— Quem é? perguntou o marido.
— Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de
aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
— Não é preciso...
— Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou
os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha
receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias
não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros.
Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que
faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma
inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
— Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão
no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances
não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como
nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já
velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e
tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de
empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem
de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem
contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não
contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em
casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos
da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte
maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da
crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e
regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,
sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a
deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir
melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram
ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi
enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. “Se
você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos.” Cândido
Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um
menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum
leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite
seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos
fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a
soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma
mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a
pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum
amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e
a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro.
Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da
Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um
farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer
droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves
parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi
mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam
emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e
tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito,
mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe
guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com
o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia.
Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do
menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem
recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que
desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para
casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava,
que lhe cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda
Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
— Hei de entregá-lo o mais tarde que puder,
murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa,
viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam
aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na
direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata
fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a
intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu
ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que
referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a
criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
— Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer
nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher
sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de São José,
Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
— Arminda! bradou, conforme a nomeava o
anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só
quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da
escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves,
com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis
gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas
entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a
soltasse pelo amor de Deus.
— Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se
vossa senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei
tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
— Siga! repetiu Cândido Neves.
— Me solte!
— Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo,
arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja,
compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o
senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, — coisa que, no
estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria
dar açoites.
— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer
filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do
filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não
costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives,
em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta
cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente.
O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá
chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda
ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao
rumor.
— Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
— É ela mesma.
— Meu senhor!
— Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor
da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido
Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente
dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e
após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste
mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves
viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia
correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências
do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho,
sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico
explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos
entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava
fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu
depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a
casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica,
ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem
mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa
do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas,
verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o
coração.
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