11/16/2017

Questão de Vaidade (Conto), de Machado de Assis


Questão de Vaidade
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

 Questão de Vaidade (Conto), de Machado de Assis

CAPÍTULO 1

Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro paredes de uma sala; o leitor sentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa, à moda americana, eu a fio comprido em uma rede do Pará, que se balouça voluptuosamente, à moda brasileira, ambos enchendo o ar de leves e caprichosas fumaças, à moda de toda gente.

Imagine mais que é noite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do jardim, por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte.

Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água para fazer uma tintura de chá. Não sei se o leitor adora como eu a deliciosa folha da Índia. Se não, pode mandar vir café e fazer com a mesma água a bebida de sua predileção.

Não se obriga, nem se constrange ninguém nestas práticas imaginadas. Se estivéssemos na vida real, eu começaria por querer até privar-me do chá, e por sua parte o leitor dispensava o café, para ser do meu agrado. Felizmente não é assim.

Ora, como é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos ambos percorrido toda a planície do passado, apanhando a folha do arbusto que secou ou a ruína do edifício que abateu.

Do passado vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam com aquela abundância de coração própria dos moços, dos namorados e dos poetas.

Finalmente, nem o futuro nos escapa. Com o mágico pincel da imaginação traçamos e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais damos as cores de nossas esperanças e da nossa confiança.

Suponha o leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar a nossa viagem pelo tempo, é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos sono, mas cada qual de nós, avivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja estar acordado.

Então, o leitor, que é perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio a fim, descobre que eu também me entrego aos contos e novelas, e pede que lhe forje alguma coisa do gênero.

E eu para ir mais ao encontro dos desejos do leitor imaginoso, não lhe forjo nada, alinhavo alguns episódios de uma história que sei, história verdadeira, cheia de interesse e de vida. E para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta algumas cartas em papel amarelado, e antes de começar a narrativa, leio-as, para orientá-lo no que lhe contar.

O leitor arranja as suas pernas, muda de charuto, e tira da algibeira um lenço para o caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E, feito isto, ouve as minhas cartas e a minha narrativa.

Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que vai ler como uma conversa à noite, sem pretensão nem desejo de publicidade.


CAPÍTULO 2

EDUARDO AO SEU AMIGO PEDRO ELOY

“Meu amigo,

Acendo duas velas para escrever-te. É como se eu confiasse diante de um altar as minhas penas e as minhas felicidades. Tens sido para mim o santo milagroso por excelência; nada desejo que por influxo teu não seja cumprido. E mais ainda: nas minhas atribulações é a tua palavra que me sustenta, como a voz da verdade e da justiça. Não te admires, pois, da precaução que tomei de iluminar este papel como o faria à pedra de um altar.

Ora, ainda assim não é tanto ao santo, como ao filósofo, que eu me dirijo desta vez. Talvez amanhã te vá pedir consolações, mas agora o que desejo é a solução de um fenômeno moral.

Sabes do meu amor por Maria Luíza, a interessante viuvinha que eu encontrei há dois meses e a quem parece que inspirei algum amor. Pouco falta para que este amor seja coroado de um feliz sucesso, substituindo eu o finado marido, que, seja dito neste papel, parece que era suficientemente prosaico.

Quando te comuniquei esta paixão mandaste-me bons conselhos de prudência que eu li com a maior veneração. Dizias que me não fosse enganar e tomar por amor aquilo que não passava de capricho. Acrescentavas que a tua dúvida nascia dos termos de minha carta.

Pesei as tuas palavras e gravei-as na memória. O resultado foi que estavas em puro engano. Eu amava deveras Maria Luíza.

Mas vamos ao fenômeno. Antes de entrar em outros pormenores, insisto em dizer que amava e amo a viúva. Já te disse qual a força deste amor e o que me havia inspirado. Não quero fazer repetições inúteis, mas insisto nesta observação.

Ouve agora o que me acaba de acontecer há oito dias.

Tinha eu ido passar uma noite em São Domingos em casa de dois amigos. No dia seguinte, seriam cinco horas, acordei sobressaltado com os preparativos que se faziam em casa para ir aos banhos de mar. Os meus hóspedes ficaram pesarosos de me terem acordado tão cedo; mas eu, que já de longa data tenho a minha aurora às onze horas da manhã, não fiquei descontente de poder fazer exceção à regra.

Vesti-me, como eles, e fui com eles à praia das Flechas, lugar usual dos banhos.

Diversas barracas se levantavam na praia, contra a qual se quebrava o mar agitado.

Algumas moças já andavam à flor das águas, enfronhadas nas suas camisolas do costume. Outras iam saindo, de quando em quando, do interior das barracas e tomando o caminho do mar.

Um ou outro grito, soltado no meio do susto produzido por uma vaga mais alta ou mais violenta, unia-se ao sussurro do mar.

Os maridos, pais e irmãos, que não tomavam banho, ou conversavam, ou liam, ou olhavam o ar, enquanto as graças humanas brincavam com o elemento a que Shakespeare as comparou.

Armou-se a nossa barraca e prepararam-se os meus companheiros para o banho. Eu de mim, confesso, preferia ver as damas banharem-se e rir do susto pueril que elas tivessem. Demais, apesar de estarmos no verão, fazia nesse dia um tal frio que me arredava da água cinquenta léguas.

Os meus companheiros apresentavam-me o exemplo das damas que tão destemidamente afrontavam o tempo e o mar. Mas eu, depois de citar Shakespeare no que tocava à identidade das mulheres e do mar, citei-me a mim próprio, acrescentando que a maioria das senhoras que se banhavam o faziam por moda ou por bom tom.

Enfim, consegui não ir à água. Enquanto os outros se banhavam fui sentar-me em uma pedra que ali estava perto. Estive contemplando as banhistas alguns minutos. Mas, como sempre acontece, os meus olhos, depois de correr todo o grupo voltavam aos primeiros, e assim via eu duas ou três vezes as mesmas caras, graciosas ou assustadiças, arrecearem-se ou brincarem com a água revolta.

Ora, uma dessas figuras, a terceira vez que passou sob o meu olhar, deteve-o alguns minutos. Estávamos a certa distância que me não permitia distinguir-lhe as feições, mas havia na temeridade, na graça, no recato com que ela se banhava, uma tal diferença das outras, que eu não pude deixar de examiná-la com mais interesse.

Não podendo distinguir-lhe, como disse, as feições, esperei que ela estivesse em terra para procurar admirá-la ou correr-me de uma ilusão.

Nisto estava, quando a moça, que parecia nada temer e arredava-se da praia mais do que era conveniente, foi engolida por uma vaga. Só flutuavam à flor d’água os longos cabelos negros.

Houve um grito, um só, mas de todos quantos se achavam na praia e presenciavam o fato.

Alguns dos banhistas dirigiam-se para o lugar do desastre. Mas estavam um pouco longe. Eu vi que a demora era fatal. Correndo pela praia, atirei fora o paletó e lancei-me à água.

Não te conto todas as peripécias desta cena. Na praia, a família da pobre moça ajoelhara-se involuntariamente e todos pareciam depender de mim.

Ao cabo de algum tempo e de alguns esforços salvei a moça.

Avalia como fui recebido pela família. Afagavam-na com abraços e beijos.

Voltando a si do desmaio que tivera, a moça foi conduzida para casa dentro de um carro.

O que motivara a catástrofe não foi a violência com que a onda se arremessara, foi ter a pobre moça desmaiado. Uma vez desmaiada, caiu e não soube mais de si.

O pai da moça obrigou-me a ir à casa dele. Não tive remédio. Avisei os meus companheiros e parti.

Trataram-me muito bem. Pediram-me que voltasse lá algumas vezes. A moça não tirou as minhas mãos de entre as suas nem os seus olhos dos meus, dizendo-me que a mim devia a vida e que eu era o seu salvador.

Voltei lá algumas vezes. Trataram-me sempre muito bem. Mas que pensas tu que me aconteceu? Aquela franca alegria, aquela gratidão tão claramente manifestada pela moça, tudo isso fez-me apaixonado!

Mas o fenômeno? perguntas tu. O fenômeno é que, se amo a esta, não esqueci a viúva. Amo a viúva como antes: o fenômeno é que amo as duas do mesmo modo, com o mesmo ardor. Explica-me isto.

Estou de tal modo, que não posso pensar em uma só, hei de pensar em ambas; sei o que sofro, encolerizo-me comigo mesmo.

Que será isto? Escreve-me depressa, dá-me a luz e o bálsamo de que necessita o teu amigo.

Eduardo T.B.”

A resposta desta carta, escrita dois dias depois, é assim concebida:

PEDRO ELOY AO SEU AMIGO EDUARDO

“Meu amigo,

Recebi a tua carta, e desde o dia em que a li até hoje não tenho feito mais do que pensar no teu fenômeno.

Não é que eu esteja convencido, como tu, de que é verdadeiramente um fenômeno. Pelo contrário, vejo que o que sentes é uma coisa muito natural.

Insistes em dizer que amas a viúva. Eu insisto em dizer que não a amas. E a prova está nesta dualidade de amor, falsa e impossível, verdadeiro erro de um espírito enfermo e de um coração indiscreto.

Queres tu saber o que existe na verdade? Existe um simples desejo, uma aspiração toda sensual, comum nos rapazes da tua idade e de tua educação, mas imprópria de quem quer que compreenda a elevação e castidade dos sentimentos.

Pensas que cortas toda a dificuldade pronunciando a palavra fenômeno? Repara, meu Eduardo, onde vai dar a ampliação deste sofisma. Deste modo, todos os vícios se legitimam, todos os desvios se aceitam.

É engraçada a história do banho e do desmaio no mar. Afigura-se-te que depois deste episódio romanesco só se pode sentir amor, e concluis que estás apaixonado. E como uma insaciável volúpia reúne em teu pensamento as duas mulheres em questão, concluis que estás apaixonado por ambas.

Ora, sério. Admites em toda a sua pureza moral a reunião de dois amores? Pois o amor, isto é, a mais completa fusão de duas almas, pode ter por objeto dois objetos?

Reflete, entra em ti mesmo, envergonha-te do erro em que estás. Vê bem que não amas nem a viúva, nem a donzela. Amas a uma só criatura, és tu mesmo. É o amor dos sentimentos que se pode dividir, que se divide, que se prostitui, que se desvaira.

Se queres uma explicação aí a tens; se queres um conselho, não perturbes a constância dessas duas mulheres, a menos que não queiras a todo o transe ser ator principal em um drama perigoso. — Adeus. Desculpa a franqueza; é a minha. Cá fico para explicar-te quantos fenômenos te apareçam e varrer-te da cabeça quantas ideias más o vento da maldade aí depuser. Adeus”.


CAPÍTULO 3

Eduardo leu esta carta com avidez, e releu-a para compreendê-la melhor, visto ser a primeira leitura demasiado rápida.

Quinze minutos gastou nesta operação, e outros quinze em meditar as palavras do amigo Pedro Eloy. No fim de meia hora, fechou a carta e guardou-a na gaveta da secretária. Não estava convencido, estava abalado.

— Ora, por fim de contas, pensava ele, Pedro Eloy não é um papa; pode enganar-se. É talvez certo que se engane. Sou eu uma criança ou um ignorante? Não sinto eu o contrário do que ele me escreve?

Fazendo estas reflexões e outras no mesmo sentido, Eduardo vestiu-se e saiu.

Esquecia-me dizer que Eduardo residia no Rio de janeiro e Pedro Eloy em Petrópolis.

Eduardo era um dos moços mais elegantes da sociedade fluminense. Era ao mesmo tempo um roué de primeira força. Faltava-lhe o calção, o sapato raso e os mil enfeites do tempo de Luís XV. Durante os primeiros anos das suas correrias amatórias foi sempre remisso aos sentimentos de ordem elevada. Era vaidoso como um tolo e tolo como um vaidoso. Acreditava todas as mulheres mortas por ele, e algumas tiveram a desgraça de o confirmarem nessa ideia.

Um dia, levantou-se da cama com a crença original de estar apaixonado. Tinha conversado na véspera com a viúva Maria Luíza, e no dia seguinte, como tivesse sonhado com ela, julgou-se influenciado pelo deus do amor.

Feita a descoberta, correu a todos os amigos para dar-lhes conta da novidade. Receberam-na a gargalhadas. Foi esse o aguilhão maior para o espírito do nosso namorado. Declarou-se irremissivelmente apaixonado e jurou por Júpiter, como faria Alcibíades, que se havia de casar com Maria Luíza.

Depois de muitos dias de uma corte continuada e crescente, conseguiu Eduardo fazer-se amado. Mas fez-se deveras. Maria Luíza entregou-se toda àquele amor que a procurava na viuvez e achou da parte de sua velha mãe o beneplácito necessário.

Estavam as coisas neste pé quando se deu o episódio dos banhos de São Domingos. Já havia dois dias que Eduardo não via Maria Luíza, e nos dez dias que se seguiram ao referido episódio apenas lá foi uma vez.

Saindo à rua, lembrou-se Eduardo de que devia visitar a viúva, não se dispensando de visitar a donzela. A primeira residia na Corte, devia ter a preferência. Eduardo encaminhou-se para a Rua do Lavradio, onde morava Maria Luísa.

No Rocio, encontrou dois amigos.

— Por onde andas tu? perguntou um deles.

— Eu sei!

— Ora, este simulado Antony não nos anda a fazer crer que se apaixonou pela tal viúva? acrescentou o outro amigo. É supor que comemos araras. Aquilo naturalmente é alguma destas uniões morganáticas que costumas contrair. Adeus, sê feliz!

— Zombem! zombem! exclamou Eduardo. O que fariam se soubessem de outras coisas! Há um fenômeno.

— Há dois, acudiu o primeiro que falara; é a paciência de cada um de nós em ouvir-te essas patranhas. Vai, vai!

Eduardo despediu-se dos amigos e foi caminho. Estava contente de si. Produzia o efeito que desejava. Era em não ser acreditado que estava a originalidade. Não é que ele estivesse absolutamente fingindo. À força de dizer que amava, convenceu-se disso. Mas, a convicção não era o amor.

Maria Luíza estava em casa com sua mãe. Estavam ambas na sala. Maria Luíza tocava e cantava ao piano. Ao subir os degraus do primeiro lanço da escada, chegaram aos ouvidos de Eduardo as palavras daquela ária deliciosa da Favorita: Ó mio Fernando...

A vaidade do rapaz era mais forte que o amor. Subindo as escadas dizia ele mentalmente: — Aquele mio Fernando quer dizer mio Eduardo.

Não quis bater palmas. A porta estava entreaberta. Adiantou a cabeça e deu com os olhos na viúva e na velha. A primeira não podia vê-lo. À velha, que logo o viu, fez Eduardo um sinal para que se calasse. Quando Maria Luíza terminou a ária, Eduardo bateu palmas e deu um bravo. Ela voltou-se e correu a recebê-lo.

Maria Luíza era realmente digna de um grande amor, mas da parte de outro homem que não fosse Eduardo. Amava-se nela tudo, até o amor que se lhe entornava dos olhos como bálsamo de um vaso demasiado cheio. Adivinhava-se que o primeiro marido não conhecera nunca o tesouro que possuíra e tomara aquela mulher pela razão que fez Abraão tomar a escrava Agar.

Era de estatura mediana. O rosto, antes cheio que magro, tinha a expressão dessas almas enérgicas e violentas que não transigem nem se sujeitam senão com a condição de se lhes dar em troca a felicidade e o bem. Os olhos eram castanhos como os cabelos. Tinha o nariz ligeiramente aquilino. A boca era das mais corretas e graciosas. Quanto ao resto do corpo, adivinhavam-se, através de um vestido de seda cor de pérola, as formas mais perfeitas que jamais sonhara Praxíteles.

Se Eduardo não estivesse tão atento a ver o efeito que produzia, poderia enxergar, quando Maria Luíza se levantou do piano, o mais delicado pé depois do da Cendrilon, meio escondido em um sapatinho raso de cetim.

Concebe-se que Maria Luíza, tal como a esbocei, inspirasse a Eduardo, não o amor, em que só ele acreditava, mas os desejos de que falava Pedro Eloy. Para os espíritos medíocres é fácil confundir uma e outra coisa. Diante de Maria Luíza, Eduardo perguntava a si mesmo se não era realmente amor o que sentia pela viúva. Já sabemos qual era a resposta que ele mesmo dava a esta íntima interrogação.

A mãe de Maria Luíza era desses tipos de velhice respeitável e afável a um tempo, com quem, sem perder a devida veneração, pode-se usar da mais franca familiaridade.

A recepção de Eduardo foi a melhor possível. A velha cumprimentou-o como se fora seu filho. Maria Luíza, com uma alegria a que se misturava certa dose de censura, disse-lhe:

— Graças a Deus! Estivemos ansiosas por vê-lo. Mamãe dizia que já se havia esquecido de nós; mas eu, não querendo acreditar isso, acreditei a verdade: melhores distrações que a nossa companhia o detiveram de certo.

— Não há tal, disse Eduardo aceitando a cadeira que a mãe de Maria Luíza lhe oferecia, e sentando-se defronte desta. Estive meio adoentado. Quis sair, apesar de tudo, mas o médico proibiu-me expressamente.

Uma mentira desta natureza e neste sentido, mesmo que se conheça, é ouvida com agrado. A humanidade é feita deste modo. Dispensa a verdade, uma vez que lhe preguem uma mentira lisonjeira.

Em honra de Maria Luíza, devo dizer que ela aceitou as palavras de Eduardo como se foram textos evangélicos.

Eduardo, tendo feito passar a invenção da moléstia, indagou da saúde e do bem estar das duas senhoras. A conversa demorou-se meia hora sobre assuntos indiferentes ao nosso. Finalmente, como viessem chamar a mãe de Maria Luíza, esta pôde ficar uns quinze minutos a sós com Eduardo.

Houve um instante de silêncio. Da parte de Maria Luíza era natural enleio. Da parte de Eduardo, não era natural, mas era enleio; provinha da paixão que ele acreditava em si.

A bela viúva rompeu o silêncio:

— Sabe que lamentei a sua falta?

— Chorou?

— Não acredita, mas chorei.

— Devo crer tamanha felicidade?

— Por que não?

— Não posso. Quando me lembro, em meus sonhos de ambição, que a Providência podia dar-me a mais invejável das felicidades, ocorre-me sempre que era preciso merecê-la; e eu não mereço, desta a que aludo, nem a décima parte.

Trocou-se entre ambos um olhar. Maria Luíza levantou-se. Eduardo seguiu-a com os olhos. Ela foi a uma jarra e tirou duas pequenas rosas brancas.

— Quer uma? perguntou a Eduardo, encaminhando-se para ele.

Eduardo estendeu a mão para aceitar a flor. Tocaram-se os dedos, e nesse contato Maria Luíza estremeceu. Eduardo segurou a mão da viúva e levou-a à boca. Maria Luíza, abandonando a mão a Eduardo, inclinou a cabeça e deixou-se possuir da felicidade que aquele beijo, dado tão ardentemente, lhe fazia entrar no coração.

Depois, passado o primeiro enlevo, a viúva retirou a mão, foi para o piano, e começou a cantar com mais viva expressão a ária da Favorita.

Eduardo levantou-se e foi encostar-se ao piano.

Tinham ambos os olhos confundidos, e nesse enlevo cantou Maria Luíza e Eduardo ouviu.

Às últimas notas, entrou na sala a dona da casa.

— É uma singular predileção a tua por esta ária, minha filha.

— É realmente deliciosa, disse Eduardo.

— De poucas coisas gosto tanto como disto, acrescentou Maria Luíza.

Eduardo, depois de algumas palavras mais, declarou que ia sair.

— Já! disse a viúva.

— É verdade, tenho uma visita para fazer.

— Não janta conosco?

— Desculpe, não posso.

— Ao menos, virá tomar chá, não?

— Venho.

— Com certeza?

— Com certeza.

— Olhe, não falte, acrescentou a velha, olhando com certa inteligência para a filha.

— Não falto.

Eduardo apertou a mão à velha e a Maria Luíza. Esta tinha os olhos rasos de lágrimas de felicidade, de saudade, de amor, de tudo. Eduardo olhou para ela a última vez e disse, procurando a expressão mais terna de sua voz:

— Até logo!

— Até logo! respondeu a moça.

Eduardo saiu.

Maria Luíza foi à janela vê-lo ainda. Depois, voltando para dentro, deitou-se aos braços de sua mãe.

— Amas, não, minha filha?

— Oh! muito! muito!

— Pois eu creio que ele também te ama. Juro-te que hão de ser felizes. Ele é só. Tu podias ter obstáculo em mim, mas eu só desejo a tua felicidade.


CAPÍTULO 4

Deixando a casa de Maria Luíza, Eduardo tomou um tílburi e mandou tocar para a ponte das barcas de São Domingos.

Dentro de dez minutos estava lá.

Apeou, pagou o tílburi e entrou na estação. Ali esperou a primeira barca que devia partir e que era a das duas e meia horas. Entre os passageiros que esperavam houve um que mereceu desde logo a atenção e os cumprimentos de Eduardo.

Era um homem de quarenta e cinco anos, baixo, meio gordo, fisionomia insinuante, destas que, mesmo sérias, trazem impresso inconstante sorriso.

Eduardo dirigiu-se para ele e cumprimentou-o afetuosamente, dizendo:

— O Sr. Almeida dá-me um grande prazer. Não contava desde já o prazer de cumprimentá-lo.

— Por quê? perguntou o indivíduo, dando a Eduardo lugar ao pé de si.

— Porque só daqui a três quartos de hora contava estar em sua casa.

— Ah! tanto melhor! tanto melhor!

— Toda a família está boa?

— Tudo vai indo, obrigado. Há quantos dias não vai lá?

— Creio que há dois.

— Ainda ontem Sara falou em seu nome. Ontem não, creio que foi hoje de manhã.

— Deveras? perguntou Eduardo sem dissimular a alegria que lhe dava esta notícia.

Neste momento chegava a barca, os dois tomaram passagem, e daí a três quartos de hora estavam à porta da chácara de Almeida.

Sara, a filha deste, o objeto do segundo amor de Eduardo, veio recebê-los à porta. Mais atrás vieram o filho e o irmão de Almeida. Eduardo foi recebido por todos com verdadeiro regozijo.

Em duas palavras apresento a família de Almeida ao leitor.

Almeida, na época em que se passam estes acontecimentos, vivia do que ganhara durante uma vida laboriosa de longos anos. Não vivia com parcimônia, mas também não era pródigo. Tinha a ciência da economia doméstica, mediante a qual sabia despender utilmente, sem faltas nem sobras.

Era viúvo. No fim de oito anos de casado, morrera-lhe a mulher, deixando dois filhos, um rapaz e uma menina.

A menina era mais velha que o rapaz; contava este seis e aquela sete anos quando morreu a mulher de Almeida.

Almeida completou por si a educação tão zelosamente começada por sua mulher. Sara cresceu sob os melhores auspícios. Aumentou em beleza e conservou até à idade de dezessete anos a inocência e a graça da infância. Era um bom coração em toda a pureza da palavra. Nenhuma nuvem negra perturbara o céu sempre claro do seu espírito.

Quanto à beleza física, imagine o leitor o que podia fazer contraste com a beleza da viúva Maria Luíza. Esta, como disse já, acusava em suas feições uma alma dada à violência das paixões, uma rara energia moral. Sara não era assim! Parecia uma criatura de outro mundo, caída por engano no mundo dos Eduardos. Era um alfenim, uma delicadeza que não parecia natural. Delgada e um tanto alta, olhos negros, cabelos alourados, porte senhoril sem altivez, elegante sem artifício, graciosa sem afetação: tal era Sara.

Se a compararmos à viúva, teremos, conforme a respectiva presença, a disposição do gênio de cada uma. Maria Luíza amava como as italianas: era ardente, apaixonada, violenta. Sara amava como as alemãs: era meiga, resignada, sentimental.

Estas duas mulheres diversas na índole, no gênio, talvez no coração, ligavam-se em um ponto: no amor por Eduardo, em quem viam, cada uma pelo prisma do seu espírito, o ideal sonhado em suas doces aspirações.

Disse acima que, após Sara, tinham ido receber Eduardo um irmão e um filho de Almeida. Não têm estas duas figuras máxima importância na nossa história, mas devo designá-las como partes integrantes da família de uma das heroínas.

O tio de Sara tinha por nome Silvério. Era um aposentado da atividade. Em moço, e até certa idade madura, fora incansável trabalhador. Agora descansava à sombra da fortuna e da amizade fraterna do pai de Sara.

Tinha sido solicitador de causas, e deste emprego, exercido por longos anos, trouxera até à velhice um espírito chicaneiro e discutidor. Era, além disso, uma inteligência acanhadíssima, frívola, tola, rasteira. Dava-se à apreciação de quantas anedotas e ditérios ouvia ou lia. Fazia a autópsia das necessidades escritas em jornais com o mesmo espírito com que outrora redigia um embargo ou uma assinação de dez dias.

Era aturado, estimado mesmo, em virtude de sua velhice, de seu grau de parentesco e de algumas virtudes que tinha.

Um espírito daquela natureza não podia fugir às seduções do jogo do xadrez, do qual dizia, creio eu a divina Staël, que para jogo era demasiado sério, e para negócio demasiado frívolo. Cito de memória.

Era, com efeito, um grande jogador de xadrez o tio Silvério. Por desgraça, Eduardo não o era menos, de modo que mal se anunciou a visita deste, correu Silvério para a porta com os braços abertos.

O filho de Almeida era um rapaz de dezesseis anos. Estudava direito em São Paulo. Durante os acontecimentos que estou narrando estava ele em férias no Rio de Janeiro.

A família Almeida recebeu Eduardo, como disse, com o mais cordial acolhimento.

Parecia um filho que chegava de longa viagem.

E para aquela gente, que estremecia tanto a formosa Sara, não era um filho aquele que a salvara da morte?

Enquanto Eduardo e Almeida descansavam do pequeno caminho que tinham feito, tratou-se dos preparativos do jantar. Sara ia e vinha com uma graça encantadora. Dizia duas palavras a Eduardo, uma ao tio Silvério, duas a seu pai, sempre com aquele recato e modéstia que tanto agradam quando são verdadeiros e tanto enjoam quando são artificiais.

Na sala, sobre a mesa, estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era; levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia. Um lenço marcado com a firma de Sara, atirado sobre as folhas abertas, para marcar a página, indicava quem estivera lendo a obra-prima de Saint— Pierre.

Eduardo pegou no livro e no lenço e foi sentar-se junto de uma janela. Sua vaidade impava de contente. Tinha diante de si um coração virgem, completamente virgem; um coração que ainda podia ler Paulo e Virgínia. Amar, conquistar, possuir esta menina, era surpreender a flor no botão; era ensinar o catecismo do amor, soletrar o credo do coração, a uma ignorante, a uma pura, a uma ingênua. Que mais podia ambicionar o caprichoso namorado?

Se alguma das pessoas da família tivesse olhar mais perspicaz poderia decerto descobrir no olhar e no sorriso com que Eduardo folheou o volume toda a satisfação de sua alma egoísta.

Pedro Eloy, esse com certeza adivinharia tudo e diria tudo quanto pensasse. De longe, Eduardo podia desdenhar os conselhos prudentes do amigo, a quem chamava filósofo e santo milagroso; mas, de perto, não seria assim. Pedro Eloy tinha, de fato, certo ascendente sobre Eduardo, ao qual seria de maior proveito se lhes fosse possível conviver.

Depois de alguma espera, Sara mandou anunciar que o jantar se achava na mesa, e foi ela mesma buscar Eduardo, o pai e o tio.

— Que está lendo aí? perguntou ela a Eduardo, entrando na sala.

— Ah! perdão! respondeu este. Foi uma ousadia de que me arrependo; mas este livro aberto por suas mãos, lido por seus olhos, devia ter adquirido uma virtude nova e eu quis aspirar-lha antes que outro o fizesse. Perdoa-me?

Almeida sorriu-se ouvindo estas palavras de Eduardo; Sara tomou-lhe o livro docemente, tocando com os seus dedos nos dele, e lançando-lhe um olhar da mais franca e pura satisfação; Silvério contentou-se em tomar uma pitada dizendo:

— E contudo este moço joga bem o xadrez!

A palavra xadrez fez estremecer Eduardo. Era o sinal de um perigo iminente. Todavia, como fino cavalheiro que era, ofereceu o braço a Sara, e seguiu acompanhado de todos para a mesa do jantar.

Até aquela hora um só minuto não pudera falar a sós com Sara. Durante o jantar era impossível. O jantar foi demorado, mais que de costume. Aproximou-se a noite. Finalmente levantaram-se todos e foram dar um passeio pelo jardim.

Aí, graças à circunstância de dar o braço a Sara, pôde Eduardo falar-lhe mais livremente, apressando ou demorando o passo, conforme as necessidades.

— Soube que tem pensado em mim, disse Eduardo a Sara, caminhando ao longo de uma cerca de roseiras. É verdade?

— Não sei, respondeu a moça.

— Vejo que é uma confirmação.

— Quem foi o indiscreto?

— Foi seu pai, mas é verdade?

— É sim; creio que não faz mal.

— Mal? Oh! nenhum! Fez a minha felicidade.

— Só em pensar?

— Pensar é interessar-se, interessar-se é... sabe o que é?

— Não sei, respondeu Sara corando.

Eduardo queria que a confissão viesse da moça. Esta, para disfarçar a sua perturbação, voltou-se e falou ao pai acerca de algumas necessidades do jardim.

Daí a cinco minutos a conversação entre Eduardo e Sara continuou.

— Sara...

A moça estremeceu ouvindo este modo de falar.

Depois, erguendo os olhos para Eduardo, pareceu dizer-lhe naturalmente: continue!

— Sara, continuou Eduardo, não posso, não quero, não devo ocultar-lhe por mais tempo o sentimento que a sua beleza me inspirou. Amo-a, Sara. Amo-a muito, muito. Desde que eu tive a ventura de salvá-la das ondas, senti que tinha achado o objeto dos meus sonhos. O ideal da minha imaginação. Para ser completamente feliz, basta que o seu coração responda aos sentimentos do meu; basta, para dizer-me desgraçado, a sua recusa ou a sua indiferença. Diga, Sara, ama-me também?

A moça estava embriagada ouvindo esta linguagem. Houve um silêncio em que ela se deleitava com a música das palavras de Eduardo.

Este repetiu a pergunta.

— Sim, respondeu a moça, sim!

As duas mãos se procuraram. Pararam um instante; tinham os olhos embebidos. Assim se passou algum tempo, até que Silvério os foi chamar.

— Então, que é isso? É o jogo do sério?

Os dois voltaram à vida.

Caindo a noite, voltaram todos para a casa. Eduardo ia despedir-se, quando lhe surgiu, armado de um tabuleiro de xadrez, o tio Silvério. Não havia meio de recusar, não já porque o exigisse a delicadeza, mas ainda porque Silvério era dos tais que, em pedindo qualquer coisa, punha a gente num suplício.

Eduardo viu-se obrigado a aceitar a partida de xadrez.

Para a filha de Almeida era isto uma grande felicidade. A conversa do jardim decidira-lhe o coração. O que podia haver de incerto naquela natureza fraca, indecisa, naquele espírito simples e ingênuo, desaparecia diante dos sentimentos que as palavras de Eduardo despertaram. Até então, a moça sentia alguma coisa que a arrastava para aquele homem, mas nem o dizia, nem mesmo interrogava a si própria a razão do novo estado.

Agora, tinha-se-lhe clareado o horizonte. Era amor, que sentia, e amor aqueles que só as almas elevadas são capazes de sentir. O admirável instinto de mulher dera-lhe o resto do que não pudera interpretar das palavras de Eduardo.

Quando Eduardo declarou aceitar a partida de xadrez a moça sentiu que o coração lhe palpitava com mais força. Ela própria foi dispor o necessário para o jogo, não sem levantar muitas vezes os olhos para Eduardo, cujo olhar, pregado nela, exercia uma como fascinação.

Adivinha-se o resto. Entre a paixão do jogo, dominante em Silvério, e os olhares instantes de Sara, viu Eduardo correr as horas sem arredar pé. O jogo deu-se por terminado à meia-noite. Apenas tinham jogado duas partidas, em que Silvério ganhou sempre. Isto, porque ele não estava apaixonado, e Eduardo, se não o estava, acreditava estar, o que não deixa de produzir algum efeito, como a moléstia imaginária fazia Órgon conservar-se na cama.

Silvério apertou afetuosamente a mão de Eduardo, prometendo-lhe ficar pronto para dar-lhe a desforra.

À despedida, Sara, em quem já dominava mais o amor que a ingenuidade infantil, colheu no jardim uma flor das roseiras loucas, ao pé das quais tivera a conversa com Eduardo, e ofereceu-a.

Eduardo aceitou, sorrindo a um remoque paternal do velho Almeida, que ainda não calculava o estado do coração de sua filha.

Mas como fosse saindo sem nada dizer, Sara fê-lo parar, e disse-lhe em voz alta, visto não poder ser de outro modo:

— Eu cuidava que me devia retribuir a dádiva com outra... com essa flor que traz aí no peito.

Eduardo olhou a casa do paletó, viu a rosa que lhe fora dada por Maria Luíza. Tirou a flor e deu-lha.

Depois saiu.

Na rua ocorreu-lhe a lembrança que tinha prometido ir tomar chá com Maria Luíza. Lembrara-se dela algumas vezes em casa de Almeida, mas a promessa do chá varrera-se-lhe inteiramente da memória.


CAPÍTULO 5

Nas cenas que até aqui tenho esboçado, tentei mostrar a leviandade e a vaidade de um homem que fazia jogo com as paixões e os sentimentos ingênuos de duas criaturas. Não há inverossimilhança nos fatos, todos concordarão, mas também não há inverossimilhança nos sentimentos de Eduardo, atendendo-se a que era um espírito para o qual nada havia fora do culto da própria personalidade.

Acreditando-se sinceramente apaixonado e não podendo distinguir a natureza do amor e a natureza dos desejos, Eduardo servia de algum modo aquele culto, armava à incredulidade; mas o assombro da novidade, os comentários, a fé que começaria a entrar nos espíritos e que se robusteceria quando ele pudesse passar do estado de solteiro para o de casado, tudo isto eram os aguilhões com o que o seu amor-próprio se sentia brioso e compelido a prosseguir na conquista.

Sara veio complicar as coisas no que dizia respeito ao casamento de Eduardo; e por esse lado afastou-o do alvo a que pretendia chegar; mas se o afastou, não foi senão para dar lugar a nova e maior extravagância, essa do amor por duas mulheres, a donzela e a viúva, na mesma intensidade e no mesmo grau.

Perguntará o leitor como é que um homem de tão bom senso como Pedro Eloy parecia tão amigo de Eduardo. A resposta está contida nas duas cartas que eu já li. Pedro Eloy, com um olhar de filósofo, via que não era impossível trazer Eduardo ao bom caminho. Os defeitos morais podem levar a consequências grandes, mas com a austeridade da lição e da prática são suscetíveis de desaparecer e tornar-se melhor o espírito em que eles existem. Pedro Eloy tentava isto de longa data; e, como vemos, era um santo e um filósofo. Tinha conseguido tudo quanto desejara? A este respeito o procedimento de Eduardo desmente a submissão afetada da carta. Que alguma coisa tivesse feito, acredita-se; mas não fez tudo, nem muito. Vejamos agora como continuaram os dois episódios amorosos que Eduardo entretinha com tanto cuidado.

Em casa de Maria Luíza, no dia seguinte, foi Eduardo mal recebido. A viúva mostrava uma frieza e uma indiferença que não eram mais do que os véus com que se cobriam o despeito contido e a dor sufocada.

A promessa não cumprida ligava-se a outras faltas de Eduardo, e para um coração amante, sobretudo para um coração como o de Maria Luíza, não eram essas faltas facilmente desculpáveis.

Maria Luíza sentia naquilo um desdém, um sintoma de resfriamento do amor, e pressentia não sei que más novas para o futuro.

Eduardo explicou-se como pôde. Alegou a doença de um amigo, acrescentando que pouco lhe importaria perder o amigo por amor dela, mas que, instado por dois outros em tom imperativo, tivera de ceder-lhes.

Maria Luíza acreditou ou fingiu acreditar na desculpa. De um ou outro modo, é certo que ainda derramou algumas lágrimas. Não sei que haja alguém que possa resistir às lágrimas de uma mulher. Falo das lágrimas sinceras. É o que há mais poderoso para desarmar a cólera ou comover o egoísmo. É como que um protesto de fraqueza; e resistir-lhes não é de alma nobre, nem de consciência elevada.

As lágrimas tiveram efeito, mas um efeito excepcional; faltavam a Eduardo as qualidades delicadas para apreciar o valor de uma lágrima sincera. Era o amor-próprio que se comprazia em ver chorar aqueles olhos e comover-se aquela alma. Seguiram-se protestos descarados, velhos respeitos, sem sentimento nem valor.

Dizia Maria Luíza, enxugando os olhos:

— Vejo que me não ama; vejo que me não compreende. Ah! se me compreendesse e amasse...

A isto respondeu Eduardo:

— O quê?... Não a amo? Eu?! Não diga isso! mais que a vida... etc.

O leitor conhece o resto.

Enfim, a tempestade serenou. Despontou um sorriso nos lábios de Maria Luíza, como um sinal de aliança. Eduardo mostrou-se satisfeito com o desenlace e disse:

— Vê? A dor de a ver em lágrimas retinha as minhas próprias. A alegria é mais expansiva; agora, que a vejo alegre e me perdoa, sou eu quem chora!

Este rasgo tinha suas dificuldades; a maior era que chorar sem lágrimas não convencia, e Eduardo tinha os olhos secos como os do leitor, que ainda não teve, nesta história, motivo de chorar. Por isso tirou da algibeira um lenço e levou aos olhos, conservando-se algum tempo nessa posição.

Foi despertado por um pequeno grito de exclamação de Maria Luíza. Tirou, ou antes, foi-lhe tirado o lenço da mão. Maria Luíza, depois de olhar para o lenço, fitou os olhos em Eduardo, e perguntou-lhe:

— Quem é esta Sara?

Eduardo estremeceu, olhou para o lenço, depois para Maria Luíza, depois para o teto.

— É uma prima.

— Nunca me falou nela, disse Maria Luíza.

— Isso que prova? É de uma prima. Fui ontem visitá-la e trouxe este lenço. Está com ciúmes?

— Não, respondeu a viúva.

E entregou-lhe o lenço.

Como o leitor adivinha, era o lenço de Sara, que marcava a página de Paulo e Virgínia.

Houve um silêncio entre ambos.

Maria Luíza refletia: — É bem possível que o lenço seja da prima; por que não? Realmente, sou exigente demais. Ele não parece mentir. Por que havia de mentir?

Depois levantou-se e disse sorrindo a Eduardo:

— Vou tocar piano!

Eduardo levantou-se e foi sentar-se ao pé do piano. Ela começou a preludiar e depois a cantar aquela canção francesa tão conhecida e que parecia adequada à situação.

J’ai peur de croire en toi.
Pourtant, malgré moi-même,
Ah! je le sens, je t’aime,
Toi, toi,
Toi, le seul bien pour moi!
J’ai peur, car dans mon coeur
Mon amère souffrance,
Toujours dans ton absence,
Vient flétrir mon bonheur!
Etc. etc.

Deixo ao leitor calcular quanta paixão a bela viúva empregou na execução do canto. O próprio Eduardo pareceu um tanto convencido.

Enfim, o dia passou-se sem maior novidade no céu de amor de Maria Luíza. Dissipadas as primeiras dúvidas, Maria Luíza sentia-se feliz como dantes. Eduardo estava contente de si.


CAPÍTULO 6

Três meses decorreram depois dos fatos que acabo de contar. Durante esse tempo houve a reprodução das mesmas visitas, alternadamente a Maria Luíza e a Sara.

Nem uma nem outra suspeitou nunca a felicidade de Eduardo. O episódio do lenço foi esquecido pela viúva, em cujo coração o amor crescia tanto como no de Sara, sem que entretanto o espírito de Eduardo se apercebesse de que uma tal bigamia moral podia levar a sérias consequências.

Duas vezes, no espaço dos três meses, Maria Luíza, em conversa com Eduardo, procurou encetar o assunto do casamento. O silêncio de Eduardo parecia-lhe timidez e a coitadinha cuidava adiantar alguma coisa iniciando uma conversação a esse respeito.

Enganara-se.

Eduardo, mal pressentia que o espírito de Maria Luíza se voltava para a igreja, mudava de assunto com tão rara habilidade que a própria moça não percebia a trama.

Das apreensões às incertezas, das incertezas ao desânimo, Maria Luíza não podia atinar, nem com a natureza do amor de Eduardo, nem com os fins de sua paixão.

Quanto a Sara, sentia-se feliz e nada ousava indagar nem saber. Aquele amor eram as primícias do seu coração. Julgava-se uma Virgínia e pensava ter encontrado o seu Paulo! A pobre menina não tinha nem o tato nem o contato do mundo; o tato para conhecer o espírito de Eduardo, o contato para saber da opinião que faziam dele. Vivia isolada, no meio de sua família, julgando o resto do mundo pela vida que levava e pelos afagos sinceros que recebia.

No fim do tempo de que acima falei, em uma quinta-feira, preparava-se Eduardo para um baile que dava o conselheiro C... Não sei por que motivo ou por que pretexto, Sara devia ir, e Eduardo, cuja fome de amor por Maria Luíza já era conhecida, queria, coram populo, mostrar a nova paixão ou, antes, a paixão concorrente da menina Sara.

Preparava-se, disse eu, mas não era bem isso, visto que eram apenas dez horas da manhã. Preparava-se para saborear as delícias que a admiração e a inveja lhe haviam de fornecer.

— Não há dúvida, pensava ele, sou amado por aquelas duas mulheres. Ambas me querem; adoram-me ambas. Mas por que motivo, eu, a quem tantas fortunas coube em sorte, estarei tão orgulhoso com o amor destas mulheres? É que as amo? Não há dúvida, amo-as; estremeço-as do mesmo modo. Diga lá o filósofo o que quiser, este duplo amor não é impossível; tanto não é, que existe. Oh! se existe...

Eduardo fazia estas reflexões contemplando os novelos de fumaça de um charuto havana. Tinha almoçado bem e fazia o quilo com aquele descanso dos homens que não têm cuidado no que há de ser a refeição seguinte. Estava em uma completa embriaguez dos sentidos.

Naquelas e em outras reflexões estava, quando o criado lhe trouxe uma carta que o correio acabava de entregar.

Abriu-a e leu-a rapidamente. Era de Pedro Eloy. Dizia o filósofo de Petrópolis:

“Meu caro Eduardo,

Resolvi mandar-te novas minhas, já que não me mandas as tuas. Esperei o que podia esperar. De duas uma: ou esqueceste o velho amigo, ou continuas embriagado nessa fatal paixão dos sentidos, dupla, segundo dizes e eu acredito.

Em qualquer caso, interessa-me escrever-te.

Ah! Quem me dera ter-te agora no meu chalé, preso, atado, amordaçado, vendado, inofensivo, para descanso da humanidade e para a felicidade do meu coração!

Estou certo que os meus conselhos, o meu exemplo e até o meu olhar bastariam para dar-te aquela regra de conduta, própria dos homens que aspiram e têm o direito de aspirar.

Mas, enfim, deixemos lamúrias e falemos, conciso e preciso, do que importa saber.

Vou apostar que as tuas duas paixões estão extintas, como já estão extintas as fogueiras que arderam no último São João. Há de ser assim. É de natureza desses assomos sensuais irem tão súbito como aparecem.

Se não é assim, deixa que te considere o mais infeliz dos homens. Dirás que não é assim que te parece. Com efeito, aos espíritos jovens, mais ou menos gastos, o futuro é nada, o presente é tudo. Não lhes falem do que pode ser consequência dos atos de hoje. O que desejam é a satisfação dos prazeres, a realização dos caprichos, sem cuidar no desenlace das coisas, nem na lógica forçada do crime.

Escrevi a palavra crime, e não foi por engano. É preciso dizer-te a verdade nua e crua. Ocultá-la, é ser de algum modo cúmplice nos teus atos, e eu não quero para mim semelhante papel.

Dizes que amas a essas duas mulheres. Acreditem ou não acreditem, é certo que lhes fazes compreender a tua paixão. Supõe que elas te acreditem, e, por tuas maneiras e graças, consegues convencê-las, e mais, fazeres-te amado.

O que resulta daqui? Resulta não uma iludida, mas duas; porque, não amando nenhuma, e tendo a tua paixão mui estreito limite, ambas se acham despojadas das ilusões do futuro e da fé que as alimentava.

Que acontecerá? Qual será a consequência desse desencanto? Sabes tu a profundeza das duas almas, a quem iludes? Sabes de que serão capazes? Pressentes o fogo em que vais queimando as mãos?

Falo-te uma linguagem em vez de outra; mas é a única que podes ouvir agora. A que eu devera falar era a linguagem do dever; em vez de indicar-te as consequências dos teus atos, eu devera dizer simplesmente que os teus atos eram criminosos diante da moral eterna. Mas far-me-ia ouvir?

Se, em vez dos magníficos cabelos pretos que me adornam a cabeça, e dos olhos vivíssimos com que neste momento olho para este papel, eu tivesse honradas cãs e olhos moribundos, sei o que dirias ao ler esta carta. Sou moço, como tu; sou apto, como tu, para as paixões; mas há uma diferença: eu as domino, porque as paixões não são invencíveis, e só uma moral interesseira e egoísta pode dá-las como tais. Tenho, portanto, além do meu conselho, o meu exemplo.

Olha, por que não vens passar uns dias comigo? Eu te prometo que começarei a cura do modo mais suave.

Se não vieres, sou eu que vou, mas conforme a tua resposta. E repara bem: comigo é inútil o disfarce. Falta-te o talento de iludir a homens experimentados. Se mentires, eu cá sei como te hei de ler.

Em qualquer caso, escreve-me: terei ao menos o prazer de ver letras de um amigo.

Ah! se compreendesses bem o valor desta palavra!

Adeus. Sê prudente. O Espírito Santo te ilumine.

Pedro Eloy.”

O tom decisivo, a linguagem nua desta carta não convenceram Eduardo. Não direi que o não abalassem. Custou-lhe engolir algumas expressões duras de Pedro Eloy. Mas o que era aquilo senão o que ele próprio pedira?

Eduardo pensou na resposta. Devia negar ou dizer a verdade? A prevenção de Pedro Eloy quanto à veracidade dos fatos indicara claramente que era inútil a mentira. Não havia senão isto: ou dizer a verdade ou não escrever. Eduardo refletiu alguns minutos; resolveu escrever dizendo a verdade, porém mais tarde.

Deitou a carta na secretária, e ia sair quando lhe foi anunciada a visita de Silvério.

Mandou entrar e daí a pouco o valente jogador de xadrez aparecia à porta, com ar risonho e gesto afetuoso.

Era a primeira vez que Silvério visitava Eduardo. Por isso, levou longos minutos a examinar e admirar a casa e a mobília, não se escondendo para dizer o que achava de mais gosto ou de mais delicado.

— Isto é propriamente uma casa de solteiro, dizia ele; mas, ainda casando, não sei que haja muita mudança a fazer. Basta substituir estes quadros...

— Que quadros? perguntou Eduardo.

— Estes, respondeu Silvério apontando para umas gravuras que pendiam na parede, representando cópias de várias estátuas célebres.

— Não me dirá por que, Sr. Silvério? perguntou Eduardo, atirando-se a uma cadeira de junco.

— Não são próprias, respondeu modestamente o antigo solicitador.

— Mas sabe o que representam esses quadros?

— Pois não estou vendo?

Eduardo contentou-se em sorrir.

— Substituídos os quadros, creio que não há mais nada, continuou Silvério. Ah!... sim, ainda há. É retirar esta caixa de fumo, estes cachimbos, estes charutos, enfim tudo quanto diz respeito ao vício de fumar.

— Isto é, se eu casar devo renunciar às obras-primas da arte e às obras-primas da indústria.

— Eu lhe digo. Sara não gosta de fumo...

— Sara! disse Eduardo, levantando-se da cadeira.

— Ah! lá pronunciei o nome... Não precisa vexar-se, maganão; já sabemos das suas artes... Fez-se amado!... Oh! e muito! Pois é assim! Ela não gosta de fumo, não gosta nada, mesmo nada, nada!

Eduardo estava espantado com as palavras de Silvério. Não atinava ainda com o fim daquilo. Viria sondá-lo? Viria repreendê-lo? Na dúvida, sentou-se vagarosamente na mesma cadeira e esperou que o ex-solicitador continuasse.

Silvério puxou outra cadeira e sentou-se defronte de Eduardo.

— Pois, meu caro Eduardo, é como lhe digo. Estão sabidas as suas travessuras. Sei que se amam com fervor e creio que só um receio pueril e inexplicável tem retardado, de sua parte, um pedido que só pode ser aceito com o maior alvoroço.

Eduardo, ouvindo estas palavras, calculou o pior; calculou que Silvério era comissário do pai de Sara. Em tal caso, cumpria-lhe responder de modo que nada sacrificasse. Ia falar, mas Silvério continuou:

— Não cuide, disse ele, que venho aqui por inspiração de terceiro. Venho por minha própria resolução. Mal soube do fato, corri a procurá-lo.

— E como soube? perguntou Eduardo.

— Muito simplesmente, por boca de Sara.

— Ah! ela contou...

— Contou tudo a mim e ao pai. Oh! é um anjo aquela menina. Se visse a simplicidade com que ela referiu os episódios do namoro, a franqueza com que se exprimiu no que tocava à paixão de que estava dominada, finalmente a sinceridade com que acreditava no seu amor! Era de fazer verter lágrimas... Oh! é um anjo... Ora diga-me; ter uma sobrinha assim não é uma ventura? E ter, além disso, um sobrinho como o senhor, não é uma bem-aventurança? Que belos dias não passaremos! Ela reclinada em seu ombro, e nós dois, em face um do outro, lutando palmo a palmo, peão a peão, uma daquelas partidas que de um simples paisano se faz um general consumado!

Eduardo sorriu-se a estas palavras de Silvério. Depois, procurando dar à sua voz alguma comoção, respondeu:

— É verdade que eu amo sua sobrinha. Era impossível vê-la sem amá-la. Contudo, foi-me difícil declarar-lhe a minha paixão. Poderia parecer a exigência de uma paga de um serviço que eu fiz como faria a outra qualquer pessoa.

— Oh!... interrompeu Silvério.

Eduardo continuou:

— Amo-a, sim, e toda a minha ventura seria poder chamá-la minha mulher.

— Mas isso é o que há de mais fácil.

— Sei. Se até agora não tenho dado um passo para isto, é porque espero que se ultimem certos negócios...

— Mas que negócios?

— Certos negócios... Não está longe, posso afiançar-lhe, e nem eu deixaria passar uma hora, apenas, sem munir-me do competente consentimento dela, e do pai. Creio que já tenho o seu.

— Tem o de todos, disse Silvério em voz de Estentor.

— Muito bem! Vejo que a minha felicidade é completa!

— Pois, senhor, não sei que negócios sejam esses, mas creio que se não dependesse disso a decisão, já há muito estaria a menina pedida e concluído o casamento.

— Ah! com certeza!

— Não sabe que mulher leva...

— Sei.

— É um serafim em alma e corpo.

Aqui começou uma ode à beleza e à candura de Sara, perfeitamente dividida em estrofes, antístrofes e epodos. Meia hora depois, Silvério saia de casa de Eduardo, depois de abraçá-lo e instar com ele para que não deixasse passar a ocasião de uma fortuna.

E mal saía o ex-solicitador, entrava um moleque de Maria Luíza com uma cartinha para Eduardo. Dizia a cartinha:

“Eduardo, — vou ao baile do conselheiro C... Disseste-me que estavas convidado. Não faltes...

Tua Maria Luíza”

Eduardo ficou alguns momentos sem pensar coisa alguma. Depois, relendo o bilhete, pôde refletir sobre o caso. As duas mulheres iam achar-se em presença. Poderiam não saber nada uma da outra, mas era possível que um nada lhes derramasse a luz no espírito. Como evitá-lo?

Eduardo pensou em não ir ao baile; mas, além do resultado que isso trazia, ocorreu-lhe que sua presença era até necessária, visto ser já conhecido o seu amor por Maria Luíza e por Sara.

Não comparecer ao baile era fazer supor que a afeição por aquelas duas mulheres, descendo à condição dos afetos comuns, tinha acabado como acabam os afetos comuns.

E depois, se alguma coisa pudesse acontecer, não era melhor que ele lá estivesse para desfazer uma impressão má ou desmentir uma suspeita?

Tais razões e outras mais decidiram Eduardo a afrontar as consequências de um encontro entre as duas mulheres debaixo do mesmo teto.

Em consequência, preparou-se para ir ao baile.

Às nove horas da noite entrava ele nos salões do conselheiro C... meio receoso, meio tranquilo, em todo caso orgulhoso com a circunstância especial de achar-se diante das duas mulheres que se tinham apaixonado por ele.

Depois de fazer os cumprimentos devidos aos donos da casa, indagou Eduardo se as duas tinham já chegado ao baile. Disseram-lhe que não.

Com efeito, correu toda a casa sem encontrar vestígios de nenhuma pessoa das duas famílias.

Em uma das viagens que fazia em busca de Sara e Maria Luíza, Eduardo encontrou os dois amigos que tinham aparecido no Rocio, no dia em que, acompanhado por mim e pelo leitor, fizera uma visita à viúva da Rua do Lavradio.

— Oh! tu por aqui! disse um deles. É a primeira vez que apareces depois de tamanha ausência... Bem-vindo sejas!... Mas aposto que a viúva está por cá?

— Não, respondeu secamente Eduardo.

— Não? Então é que há de vir. Muito bem... Estão mesmo uma corda e uma caçamba.

— Disseram-me no outro dia, disse o segundo moço, brincando com a corrente do relógio, — que tinhas uma segunda namorada. Não quis crer...

— Por que não quiseste crer? perguntou Eduardo.

— Ora, porque de duas uma: ou não amas deveras, e então não terás duas, terás cem; ou amas deveras, e então amar a duas é absurdo.

— Absurdo! disse Eduardo.

— Pois não!

— Não achas? perguntou o primeiro.

— Não acho. É coisa muito possível.

— Aposto que amas realmente as duas e deveras?

— Deixemos o terreno dos fatos. Teoricamente, posso provar...

— Teoricamente, prova-se muita coisa...

— Por exemplo...

— Por exemplo, prova-se que estás corrigido, que mudaste de sistema de vida, enfim que és quase um santo; ora, não há maior falsidade...

— Por quê? perguntou Eduardo meio sério.

— Porque essa aparência de vida modesta e honesta desculpa a dureza do coração. És o mesmo. Estás mudando o ponto de vista e os meios de ação.

Eduardo sorriu-se e perguntou, pondo a mão no ombro de ambos:

— Dar-se-á caso que vocês também se tornassem filósofos?

— Filósofos como Epicuro. Somos o que éramos dantes; somente, somos e dizemos que o somos. Tu és e dizes que não és. Eis toda a diferença.

— Deveras? disse Eduardo.

— É certo. Anda tomar um copo de Xerez. Dizem que o conselheiro oferece desse vinho delicioso aos seus convidados conhecedores. Olha que é Xerez; é o vinho de Francisco I, o conhecedor de mulheres como tu, lembras-te? Souvent femme varie...

— Salta gaiato! disse alegremente Eduardo apartando-se dos dois amigos.

— Anda cá, disse um deles. Olha!

Apontando com a mão para a escadaria que ficava próxima, chamou a atenção de Eduardo para duas senhoras que entravam. Eram Maria Luíza e a mãe.

— Ah! disse Eduardo.

E voltando-se para os amigos:

— Adeus, até logo!

Os dois rapazes afastaram-se rindo. Eduardo foi ao encontro das duas senhoras.

Maria Luíza estava radiante. Tinha na verdade um porte de grandeza natural, e quando os seus olhos se voltaram em roda dos que a cercavam parecia uma castelã antiga contemplando os cavaleiros preparados para as justas. Trazia um vestido de seda cor de violeta com enfeites da mesma cor. Os cabelos, penteados à Stuart, moda então muito em voga, faziam realçar um fio de pérolas, cujo fecho de brilhantes em forma de estrela ficava-lhe no meio da cabeça. Trazia na mão um ramalhete de violetas. Quando Maria Luíza entrou no salão, onde as mais belas toilettes chamavam a atenção dos olhos masculinos e seus apêndices, — as lunetas, — houve uma espécie de rumor admirativo.

Todas as belezas foram um momento esquecidas por aquela que entrava vestida com tanta simplicidade e tão bom gosto. Maria Luíza, com aquele instinto admirável das mulheres, reparou no efeito que produzia e não deixou de gozar amplamente o prazer que lhe dava a geral admiração.

Os que a não conheciam indagavam do seu nome e os que a conheciam respondiam aos interpelantes, repetindo-se às vezes o nome de Eduardo como o senhor e possuidor daquele coração viúvo.

Eduardo, orgulhoso e radiante, olhava para todos do alto de seus olhos e da sua felicidade, com certo arzinho de quem mofava dos outros por serem menos venturosos ou menos lestos.

Enfim, a vida do baile começou. Anunciou-se uma valsa. Eduardo e Maria Luíza tomaram lugar entre os valsistas. Dentro de poucos minutos, pares retiravam-se para dar lugar à valsa doida, entusiasta do moço e da viúva.

Conversava eu um dia com um dos meus amigos poetas, que a morte levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos conheceram.

— Não sei, dizia-me Casimiro de Abreu, como se pode inventar a valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão diante de cem olhos. A valsa é realmente a mais graciosa, a mais natural, a mais bela das danças, mas nenhum olho humano deve presenciá-la. Então, os dois valsantes, que se amam, que vivem um pelo outro, podem embriagar-se na valsa, viver, não a vida do mundo, mas a vida dos anjos, a vida dos sonhos, a vida do céu!

— Casimiro, objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão não é isolamento? E quando um par se atira à sala, aos primeiros compassos de uma valsa, não lhes desaparece tudo, não ficam eles sós, ermos, confundidos?

Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das Primaveras que traz este título.

A minha objeção, no caso de Eduardo e Maria Luíza, tinha meia aplicação ao fato: a viúva corria nos braços de Eduardo, e no meio dos cem olhos que os acompanhavam, como se estivesse em um deserto. Esqueceu-lhe tudo por Eduardo. Mas este não. Lembrou-se, e muito, que estava entre gente; calculava, adivinhava, redigia consigo mesmo os ditos, as observações, os olhares invejosos de toda aquela multidão.

Foi exatamente no fim da valsa que chegou a família de Almeida. Os rumores que sucederam à valsa de Eduardo e Maria Luíza foram dobrados com a presença de Sara.

Com efeito, se Maria Luíza tinha direito a excitar a admiração geral, não menos tinha a filha de Almeida.

Vestia de um modo simples e elegante. Um vestido de seda cinzento-pérola ocultava-lhe o corpo flexível e delgado. Os cabelos, penteados em ondas, não tinham outro enfeite mais que uma rosa branca, presa do lado esquerdo. No seio, que ondulava pelo cansaço e pela comoção, fulgurava uma simples cruzinha de ouro, enfeite que Sara usava em todas as solenidades, por ter-lhe sido dado por sua mãe.

Graças à vida retirada da família de Sara, ninguém ou muito pouca gente a conhecia. A dona da casa encarregou-se das necessárias apresentações.

Foram as duas proclamadas as rainhas do baile. Os cavalheiros dividiram-se em partidos, uns preferiam Maria Luíza, em quem viam a expressão mais completa da mulher; outros davam a palma a Sara, cuja beleza virginal e angélica inspirava ideias puramente do céu. Para uns, Maria Luíza era a estátua descida do pedestal; para outros, Sara era um anjo foragido da habitação divina.

No meio de tão divididas opiniões, Eduardo era o único que as admitia ambas, e por ambas se bateria se necessário fosse. Eduardo foi procurar Almeida, de cuja demora indagou com o maior interesse, ouvindo aliás as razões dadas por aquele com a maior indiferença. Eduardo pôde falar a Sara, fê-lo com todo o interesse de um amante saudoso. A moça parecia triste. Vinha imaginando encontrar Eduardo aflito com a sua ausência e achou-o no turbilhão de uma valsa, tão alegre ou mais que os outros. Mas este ressentimento no coração da moça era passageiro. Nem ela procurava indagar mais nada. Sabia ela acaso que Eduardo pudesse valsar com outra com a mesma efusão com que valsaria com ela? A pobre menina notava o fato, mas não tirava dele nenhum corolário. E depois, as maneiras de Eduardo convenciam tanto! No fim de dez minutos de conversação, Sara esquecera tudo, e estava feliz. Como Maria Luíza, na valsa, deixou-se ir na embriaguez da conversação e só se lembrou de que estava diante do homem que era escolhido pelo seu coração. Tinha uma singeleza adorável que Eduardo não sabia admirar, nem como amante, nem como poeta.

Não ocuparei o espírito do leitor com a narração do que se passou durante a noite do baile, e corro já ao melhor episódio, ao que importa saber em nossa história. Bem depressa se espalhou que as duas raparigas amavam Eduardo e que este parecia amá-las do mesmo modo. Aos que o interrogavam Eduardo respondia com o ar de homem que nega aquilo de que deseja convencer a todos.

Chegou a passear com ambas, uma em cada braço, conversando simbolicamente com ambas sem que elas se apercebessem de nada. Enfim, seria uma hora da noite, já o baile chegara ao ponto culminante, em que as cerimônias, sem desaparecerem de todo, dão lugar a uma respeitosa intimidade.

Sara e Maria Luíza, ou por simpatia, ou por força da fatalidade, davam-se já como duas amigas. O conselheiro convidou Sara para cantar alguma coisa. Sara estava cansada e pediu um quarto de hora. Durante este tempo retirou-se para o gabinete que servia de toilette das senhoras. Maria Luíza acompanhou-a.

— Precisava bem de um momento de descanso, disse Maria Luíza. Como está fatigada, meu Deus!

— A falta de hábito, respondeu Sara. Vivo sempre metida dentro de casa...

— Pois faz mal... As flores fizeram-se para o ar livre.

Sara sorriu.

— Diga-me. Isto é entre moças, pode dizer-se. De quantos rapazes tem visto hoje, nenhum lhe faz palpitar o coração?

A moça olhou para Maria Luíza e respondeu:

— Oh! sim! Um!

— Ainda bem!

— Por que se alegrou tanto?

— Por nada...

— Oh!

— Porque, se já começa a amar, deve compreender-me... Também eu amo e muito!...

— Amar é tão bom, não é? disse Sara, com uma adorável singeleza.

— Oh! se é! suspirou Maria Luíza.

Calaram-se ambas. No fim de alguns minutos de contemplação recíproca, as duas deitavam-se nos braços uma da outra.

— É o mais belo, mais gentil de quantos homens estão hoje nesta sala... Oh! eu excetuo o outro...

Dizendo estas palavras Maria Luíza deu um beijo em Sara.

Sara respondeu.

— Não sei se este é o mais belo e o mais gentil, sei que o amo. Se o não amasse, devia estimá-lo, porque me salvou a vida vai para quatro meses...

— Ah! temos romance?

— Não é romance, é realidade.

— E casam-se?

— Não sei, mas não penso nisso. Eu só faço o que ele quiser. Meu amor é um amor que não manda, nem eu creio que haja outros.

Maria Luíza estava pensativa.

Sara continuou:

— Estará na sala?

— Quem? O meu?

— Sim.

— Está, creio eu.

E Maria Luíza foi à porta. Abriu uma fresta entre as cortinas e procurou Eduardo com os olhos.

— Lá está ele... Olhe!

— Onde está? perguntou Sara.

— Ali encostado ao piano, do lado de lá, brinca com a luneta. Vê?

Sara, com os olhos colados à fresta, acompanhava a indicação de Maria Luíza.

Repentinamente deram as duas um grito.

Sara tinha reconhecido Eduardo; Maria Luíza viu na mão de Sara um lenço igual, com igual firma, ao que surpreendera na mão de Eduardo. As duas mulheres olharam-se, mudas, alguns segundos. Sara levou a mão ao peito. Parecia que se lhe quebrava o coração. Maria Luíza, com o lenço nos olhos, foi cair sobre o sofá, dizendo:

— Oh! que fatalidade!

Sara, depois de alguns segundos, foi procurar uma cadeira e sentou-se. Não pôde conter-se; as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos. Houve um grande silêncio entre ambas. Fora batiam palmas ao pianista que acabava de entusiasmar o auditório tocando um coro de D. Juan, de Mozart.

Maria Luíza foi a primeira que se levantou e falou a Sara.

— Faz bem em chorar, disse ela. Era inocente, acreditou no amor dele. Sei quanto sofre pelo que eu mesma sofro. Foi uma fatalidade. Ambas púnhamos nele a nossa esperança com a nossa alma, ele enganava as coitadas de nós!

Sara não respondeu. Estava pálida como a morte. Maria Luíza pensou que fosse desmaiar. Foi buscar água-de-colônia e prestou-lhe os mais fraternais cuidados.

— Obrigada, não é nada, passou, disse Sara.

Depois, enxugou os olhos e levantou-se.

Na sala, procurava-se a filha de Almeida para cantar. A dona da casa dirigiu-se ao gabinete.

— Aí vem gente, disse Maria Luíza, vêm procurá-la para cantar. Deve ir. Devemos sair juntas, para que nada desconfiem.

Abriram-se as cortinas e viu-se saírem as duas moças, pálidas como duas estátuas, com os olhos vermelhos. Sara mal podia ter-se em pé. Obrigada a cumprir a promessa, Sara cantou. Mas que canto! Não eram notas, eram palavras d’alma que saíam da menina desiludida e infeliz.

Quando acabou, corriam-lhe as lágrimas.

Ao pé dela, Maria Luíza a acompanhava no sentimento e nas lágrimas silenciosas.

As duas infelizes saíram da sala no meio de aplausos comovidos.


CAPÍTULO 7

Passaram-se quinze dias depois das cenas que acabo de contar.

No dia seguinte ao do baile, Eduardo foi visitar Maria Luíza; encontrou-a na sala com a mãe. Eduardo, como sempre, entrou com o sorriso nos lábios. Maria Luíza estava magra e tinha os olhos pisados. Ia perguntar o motivo daquele abatimento, quando a viúva, dizendo-se incomodada, pediu licença e retirou-se.

Eduardo esteve meia hora na sala conversando com a mãe de Maria Luíza, que lhe respondia por monossílabos. Finalmente, despediu-se e saiu.

Estava humilhado.

— Que aconteceria? perguntava ele. Ontem saíram do baile sem me falarem. Hoje tratam-me deste modo. Que haverá?

De reflexão em reflexão, de recordação em recordação, Eduardo pôde atinar com o motivo do desdém que recebera em casa de Maria Luíza.

Lembrou-se de ter visto a viúva e a donzela saírem do toilette, lívidas e abatidas. Lembrou-se das lágrimas derramadas durante o canto no piano. Descobriu tudo.

— Que diabo! pensava ele. Como hei de desenlaçar esta meada? Convencê-las é impossível; o melhor é iludir a questão. Mas como? Irei a Sara... Mas terei lá a mesma recepção? Oh! É demais! Não! isso não! Maria Luíza não pode recusar uma carta minha. É isto. Escrevo-lhe. No papel posso dizer mais facilmente aquilo que convier; tenho a faculdade de rabiscar, alterar, adoçar, enfeitar, como me parecer, as palavras...

Eduardo entrou em casa disposto a escrever três cartas. Uma à mãe da viúva, endereçando-lhe outra para a filha, de cujo amor ela estava ciente. A terceira carta era a Pedro Eloy, contando-lhe a ocorrência e pedindo-lhe um conselho. Ao mesmo tempo respondia à carta anterior.

O conteúdo das duas primeiras era uma série de frases ocas, habilmente grupadas, em que Eduardo protestava o mais respeitoso amor por Maria Luíza; quanto ao episódio do baile e ao amor de Sara, foi o mais sucinto que pôde, dando uma desastrada explicação ao sentimento alegado pela filha de Almeida.

Era, dizia ele, um serviço que prestava a uma menina, cujo coração inexperiente se deixara apaixonar por ele. Não queria desenganá-la; entretinha, por sua aquiescência, um amor sem alcance.

Mandou as cartas, mas nenhuma resposta obteve nesse dia nem nos dias seguintes. Desesperou. Passava muitas vezes em frente da casa de Maria Luíza; mas não via ninguém; as janelas estavam, as mais das vezes, cerradas.

Quanto a Sara, Eduardo com o receio de sofrer a mesma recepção, não foi lá, esperando uma visita do pai ou do tio Silvério. Embalde esperou. Era demasiado o desdém para que um coração vaidoso como o de Eduardo se resignasse. Doía-lhe o desdém, ardiam-lhe desejos de vingança. A vaidade, que até ali se empavesara com o amor das duas mulheres, doía-se, agora, ressentia-se, pedia desforra. Ora, a vaidade quando domina o coração do homem (e na maioria dos homens acontece assim) não deixa atender a nenhum sentimento mais, a nenhuma razão de justiça.

Era, assim, atado a esta fogueira interior, como Eurico atado ao próprio cadáver, que Eduardo passava os dias e as horas, sem ver nem procurar ninguém.

Quanto à carta escrita a Pedro Eloy, resume-se em pouco. Ei-la:

“Meu amigo,

Turba-se o horizonte. Aconteceu o que previas e eu não previa. As duas sabem hoje do meu amor por ambas. Zangaram-se! Era bom se fosse só isso. Creio que adoeceram. Tamanho desencanto não as podia conservar no estado normal.

E isto tudo por um diabo, como eu. Diabo, sim; não digo brincando; mas um diabo compassivo que ainda as estima e deplora.

Que queres? Sou feito assim. Tenho um coração evangélico; e não posso ver sofrer, e sobretudo sofrer por minha causa.

Foi o caso. Não sei que fatalidade as levou ambas ao baile do conselheiro C... Aí, deram-se, comunicaram uma à outra os seus sentimentos e naturalmente foram além do que deviam ir, descobrindo a coroa. A coroa sou eu. E demitiram-se os meus ministros...

Falemos sério; penalizam-me estas ocorrências.

São duas mulheres dignas do respeito e do amor que eu lhes votava. Tenho a culpa de que as adorasse do mesmo modo e no mesmo grau? Se há culpa nisto, é da natureza.

O que é certo é que não me querem receber e curvam-se a uma dor que me lisonjeia, mas que me entristece.

Que devo fazer? Como reconciliar estes dois sentimentos e o meu orgulho, porque enfim eu não quero esquecer, no meio de tais fatalidades, que recebi do berço um dever de zelar a minha própria dignidade.

Aconselha-me e acredita-me.

Teu Eduardo”.

Esta carta, como as outras, não teve resposta.

Vejamos agora o que se passou nas duas mulheres a quem Eduardo bafejara com o hálito da desgraça.

Maria Luíza chorou muito durante o resto da noite do baile.

E quando a manhã rompeu, Maria Luíza estava à janela, chorando ainda em silêncio. Sentia-se duas vezes viúva; legal e moralmente. Os sonhos do futuro, as esperanças de sua felicidade sem igual, fora tudo um castelo de cartas que desabou ao sopro de uma criança.

Era dia claro. Maria Luíza julgou dever curtir a sua dor e mostrou-se alegre.

Não queria magoar a mãe. Banhou os olhos o mais que pôde e deixou o quarto. Sua mãe a esperava para almoçar. Vendo-a triste, perguntou-lhe se estava doente. Respondeu que se sentia fatigada. A mãe não insistiu. Durante o almoço, a boa velha, para alegrar a filha, e distraí-la dos incômodos que dizia ter, falou-lhe de Eduardo, das comoções que ambos deviam ter tido na noite anterior, dos projetos do futuro.

O assunto não era próprio para alegrar Maria Luíza. Respondendo por monossílabos, e interrompendo a conversa com assuntos diferentes, Maria Luíza procurava desviar o espírito de sua mãe. Enfim, algumas vezes não podia deixar de enxugar furtivamente uma lágrima. A velha reparou e perguntou-lhe por que chorava.

— Por nada, respondeu a viúva.

— Não é possível.

— Por nada, afirmo-lhe.

— Não é possível. Ah! não estás cansada, estás triste; tens alguma coisa que te faz sofrer. Dize o que é... Não sou tua mãe?

— Minha mãe!

E Maria Luíza escondeu o rosto no seio da velha.

— Vamos lá! disse esta. O que é?

— Ah! tenho vergonha...

— Vergonha de quê?

— Eduardo não me ama!

— Ah!

— Não me ama, porque ama a outra.

— Quem?

— Sara, aquela que cantou ontem, ao pé de mim, e que a todos comoveu. Ambas nos confessamos.

Maria Luíza repetiu tudo quanto acontecera no baile. A pobre mãe estava comovida, triste, desesperada, ouvindo a narração que Maria Luíza lhe fazia entre lágrimas de desespero e de dor.

Mas, que podia fazer a mãe da pobre moça? Uma só coisa: dar-lhe uma consolação maternal e auxiliá-la em esquecer o ingrato. Quando veio a carta de Eduardo achou ela que devia responder, sobretudo porque nos termos da carta parecia estar provada a inocência de Eduardo. Maria Luíza foi inflexível; disse que não se devia dar resposta alguma. Ah! É que naquele coração, ao lado de um grande amor e de um grande desespero, havia um grande orgulho!

Quanto a Sara, eis o que passara. Não temos necessidade de ir até à casa de Almeida; o tio Silvério nos instruirá de tudo.

Um dia, de tarde, justamente quinze dias depois do baile, Eduardo estava à janela de sua casa quando viu passar o tio de Sara.

Chamou-o e fê-lo subir, apesar dos protestos de ir apressado.

— Ora tinha que ver! disse Eduardo indo receber Silvério. Não vê que o deixava passar sem dar dois dedos de conversa!...

— Mas é que tenho pressa.

— Qual pressa! Sente-se um pouco. Em descansando, ganha novas forças, e ei-lo que aí vai mais lesto ao seu destino.

— Vou para casa, disse Silvério aceitando a cadeira que Eduardo lhe oferecia, e fazendo uma careta à parte como homem contrariado.

— Toda a família está boa?

— Está.

— É o que se quer. Vai então tudo bem?...

— Tudo, não é exato...

— Pois há alguém doente?

— Há.

— Quem é?

— Minha sobrinha...

— Deveras?

— É verdade.

— Que doença?

— Eu sei! Adoeceu no dia seguinte ao do baile; veio um médico e a primeira coisa que fez foi obrigá-la a conservar-se de cama.

— Depois?

— Depois, examinou-a e deu não sei que nome à moléstia, mas afirmou que não era aquela a principal.

— Então há outra?

— Há.

— Qual é?

— Diz o médico que é uma doença moral. Lá levaram tempo imenso a consultá-lo. Ela nada disse, isto é, não sei; não sei; não sei; só sei que aquilo é a nossa desgraça, porque, se ela nos morre, é como se nos fosse a vida, a alegria da casa... Adeus, Sr. Eduardo, não posso demorar.

Eduardo ouvira estas palavras com certa comoção. Quando Silvério se levantou e se preparava para sair, Eduardo balbuciou algumas palavras. Era um anjo que o inspirava; ia talvez sanar tudo com uma promessa.

Em um instante viu ele que se constituía o remédio supremo para a enfermidade moral de Sara. Mas, enfim, o ente gredin, que, como diz A. Karr, todo o homem tem em si, desfez a obra do ente honesto, Eduardo estendeu a mão a Silvério e pediu que o recomendasse à família.

Silvério desceu cabisbaixo e triste as escadas da casa de Eduardo. Quando se viu só, Eduardo refletiu na situação em que se achava. Das duas mulheres que ele requestara tão seriamente e cujas esperanças honestas alimentara com tanta perseverança, uma tinha morta a alma, a outra tinha morta a alma e o corpo. Em seu coração, travou-se uma grande luta, entre o remorso e a vaidade. O dever dizia-lhe que reparasse o maior mal, se não podia reparar todos os males, mas um sentimento de amor-próprio, vão, cruel, imoral, retinha-lhe os sentimentos bons e os impulsos generosos.

Nesta luta esteve toda a noite. Quis dormir, não pôde; mal fechava os olhos surgia-lhe o espectro de Sara pedindo contas do coração que iludira e da vida que estrangulara.

Enfim, sobre a madrugada pôde conciliar o sono. Eram nove horas, quando se levantou. Quem olhasse para ele, daí a meia hora, reconheceria que o sentimento do dever triunfara, ao menos momentaneamente.

Eduardo vestiu-se e saiu. Tomou um tílburi e dirigiu-se para a ponte das barcas.

Destinava-se a São Domingos. Ia decidido a falar à moça, mesmo à custa do seu amor-próprio.

A demora do vapor o contrariou. Tardava-lhe ver-se junto do leito da moribunda para dizer-lhe:

— Vive!

Ora, a moribunda estava realmente moribunda.

Mas quem a visse não suporia que a morte se avizinhava tanto dela. Tinha o rosto e os olhos serenos. Sorria mesmo ao pai, ao irmão e ao tio, mas com o sorriso de quem entrevê as glórias eternas e já as compara às glórias perecíveis desta vida.

O cortinado branco do leito parecia que amparava da luz um ente que chegava ao mundo e não um ente que se ia dele, desgostoso e desiludido.

Em uma pequena mesa ao pé da cama havia um copo d’água, uma cruz de ouro, a do baile, e uma rosa branca seca. Esta rosa era a que Eduardo dera a Sara em troca de outra à porta do jardim. Sara, de tempos em tempos, voltava os olhos para a flor, ficava muda e entrava a contemplá-la. Nessas ocasiões, o pai da doente procurava distraí-la com algum outro objeto, temendo que na contemplação da flor se lhe avivassem as lembranças do amor que a matava.

Foi em uma dessas ocasiões, que Almeida se lembrou de uma notícia e disse a Sara:

— Minha filha, vais ter uma visita.

— Quem é?

— Adivinha...

— Não sei, disse Sara sorrindo.

— D. Maria Luíza.

Este nome fez estremecer Sara. O pai dava-lhe maior sofrimento procurando tirar-lhe outro menor. Com efeito, a flor lembrava a Sara o tempo feliz dos seus amores; o nome de Maria Luíza lembrava-lhe a traição de Eduardo. Reconhecendo o que fizera, Almeida procurou diminuir o efeito.

— Verás como ela soube resignar-se... Espero que o exemplo te sirva, e que das suas palavras colhas uma lição e um conforto, e finalmente que vivas... Ouviste? que vivas!

Sara sorriu-se.

Houve um silêncio.

Depois, passando a mão pela cabeça, pediu água.

Deram-lha.

— Estás melhor, não, Sara? perguntou Almeida. Olha, é preciso, é preciso; fazes anos amanhã. Quero que presidas à mesa... sim?

— Estou melhor, estou, meu pai. Mas, diga-me, como sabe da visita de Maria Luíza?

— Passei ontem lá e subi. Não sabia ainda que estavas doente. Quando lho disse, ficou muito pesarosa. Depois, disse-me que viria cá fazer-te uma visita.

O resto do dia passou-se sem novidade. Sara não saía daquela serenidade, mas realmente não era para a vida, era para a morte que caminhava.

Enfim, no dia seguinte, isto é, no dia em que Eduardo resolvera ir salvar a moça, aparecem, à porta de Almeida, Maria Luíza com sua mãe.

Sara recebeu a sua rival, ou antes a sua co-mártir, como se fora uma irmã querida, por quem se espera para morrer. Maria Luíza chorou muito; e, por uma inversão dolorosa dos papéis, era Sara quem consolava a viúva.

— Mas é por ti que eu choro, meu anjo! dizia Maria Luíza.

— Por mim?

— Sim, por ti, que não tens coragem, que te quebraste ao primeiro embate da vida...

— Não digas isso... Eu estou boa... Nada tenho... Sofri, é certo; mas passou... Olha, faço hoje anos... Hás de jantar comigo... Vou levantar-me logo... Verás... Verás... Senta-te...

Maria Luíza olhou com olhos rasos de lágrimas para a pobre moça.

— Ainda bem, minha filha, disse Almeida procurando sorrir, ainda bem que te mostras assim. Isso é que eu quero. Não te importes com os males da vida; todos sofrem; mas faze como fazem muitos: fica sobranceira a tudo.

— Dezessete anos! murmurava a viúva... É a aurora da vida...

As duas conversaram largamente. A mãe de Maria Luíza e o pai de Sara deixaram o quarto; as duas podiam folgadamente falar do que as tornara infelizes. Era assim mais fácil a Maria Luíza inspirar a Sara os sentimentos de coragem e sobranceria a que ela própria devera não ter sucumbido. Chegou mesmo a aventurar uma ideia de vingança com satisfação do coração ofendido.

Mas aqueles dois corações, que concordavam em um ponto, não se entendiam naquele.

Sara não era feita para resistir a uma comoção como a que a prostrara. Ouvia sorrindo Maria Luíza, mas abanava a cabeça a tudo. E quando a viúva, para decidi-la mais, lembrava-lhe que poderia sucumbir deveras, Sara respondia que estava perfeitamente boa e não podia inspirar cuidados a ninguém. Esta resistência aos que a chamavam à vida comovia ainda mais. Só havia um meio, talvez, de salvar Sara: era a presença e o amor de Eduardo.

Esta ideia passou rápida pelo espírito de Maria Luíza. A nobre mulher não discutiu consigo nem o ato, nem as consequências, nem o seu coração. Adotou o pensamento como se fora inspiração do céu.

Maria Luíza amava realmente Eduardo. Desiludida, sofreu muito, e só deveu ao orgulho e à energia do seu coração não ter, como Sara, sucumbido ao desespero. Mas os grandes sentimentos do seu coração não eram só o do amor e o do ciúme. O ato que ia praticar era de uma alma nobre, educada no culto do dever e do sacrifício. Naquele instante, ela via diante de si uma pobre menina que sofria, e morria por aquele mesmo que a fizera sofrer. Compreendia bem a medida desse sofrimento. A viúva procurou sondar o espírito da enferma:

— Ora, dize-me, se visses Eduardo, o que farias?

— Se o visse? É impossível.

— Impossível, por quê?

— É impossível.

— Ora, não digas isso. Mas se o visses, se ele viesse agora, hoje, e te dissesse: Vive?

— Não vem e não diz...

— Por quê?

— Por que não me ama.

— Quem sabe?

— Oh! Nem me ama, nem te ama.

— Só por isso?

— E também porque nós o amamos.

— Eu não.

— Não?

— Não.

A moça abanou a cabeça murmurando:

— É inútil.

Maria Luíza procurou meio de escrever a Eduardo; e conseguiu traçar à pressa, em um quarto de papel, as seguintes palavras:

Quer o perdão que me pede? Sara está às portas da morte; venha, diga-lhe que a ama, peça-a e case daqui a um mês. Está perdoado.

Maria Luíza.”

O portador que levou este bilhete encontrou Eduardo na ponte das barcas da corte.

Eduardo, ao ler o bilhete da viúva, sentiu-se humilhado. Enganara duas mulheres; uma morria de pesar, outra pedia-lhe que a salvasse, sacrificando-se; entre aquelas nobres almas, a alma de Eduardo sentia-se abatida. Não se deteve mais; tomou a barca, que partiu dali a cinco minutos.

Logo depois de partir o portador do bilhete, entrou o médico na casa da doente. Achou-a muito pior, e disse-o francamente à família.

Que fazer? Tudo o que foi preciso, fez-se. Maria Luíza, ajoelhada diante de um oratório, pedia a Deus duas coisas: que prolongasse a vida de Sara por algumas horas e apressasse a chegada de Eduardo.

Foi inútil. Sobreveio uma crise à enferma, e após a crise o médico desesperou.

Entretanto, Sara, com o sorriso nos lábios e o olhar sereno, dizia alguma palavra em voz já muito fraca, mas com a segurança de quem está certa de ir para uma morada melhor.

Maria Luíza pedia-lhe que vivesse; dizia-lhe que Eduardo não tardaria; o pai a um canto não tinha forças para ver, para pedir, nem chorar; estava atônito.

— Não, dizia ela, ele não vem. E que venha, sei que não me ama, e sem me amar não o quero.

O médico fez vir o sacerdote.

Quando este chegou, Sara, com os olhos fitos, como que vendo já abrir-se-lhe o céu, pediu a Maria Luíza que lhe desse a rosa seca que estava sobre a mesa.

Maria Luíza deu-lha.

— Desejo esta flor, porque me lembra o amor que eu supunha ter achado; é o homem de ontem que eu choro! é por ele que morro; o de hoje não é senão a sepultura do de outrora, que morreu.

Houve um silêncio.

Almeida chegou-se à filha, a fim de prepará-la para a confissão.

Sara estremeceu.

Depois, voltando-se para Almeida, disse:

— Meu pai, abençoe-me. E tu também, minha irmã.

Depois, estava no céu.


CAPÍTULO 8

Meia hora depois entrava Eduardo à porta de Almeida. Viu tudo fechado; correu-lhe um calafrio por todo o corpo. Será tarde? perguntava ele. Vacilou; entraria ou não? Se entrasse e achasse tudo perdido? Enfim, fazendo um esforço, Eduardo passou o portão que se achava perto. Atravessou a alameda das roseiras, onde pela primeira vez falara de amor à pobre Sara. O remorso começou então a aguilhoá-lo. Aquele silêncio, aquele ar fúnebre, que a casa e o jardim respiravam, incutiam-lhe certo terror. Chegou à porta e bateu.

Veio abri-la o pai de Sara.

— Sara? perguntou ele.

— Sara morreu!

O moço tornou-se lívido. Sentiu uma vertigem; os olhos se lhe escureceram, ia cair. Segurou-se a uma cadeira.

O pai de Sara olhava fixo para Eduardo. Este não podia suportar-lhe o olhar, e baixava os olhos. Naquele momento, o pai de Sara era o remorso vivo.

Depois de um pequeno silêncio, Almeida falou:

— Era inútil tê-la salvado do mar há quatro meses, para matá-la agora. Se tal devia ser o desenlace destas coisas, melhor fora que a minha pobre filha tivesse sucumbido à primeira vez; iria assim para o outro mundo sem conhecer as misérias deste...

— Oh! basta! interrompeu Eduardo. Sei quanto sou culpado, não aumente a minha angústia com as suas exprobrações, aliás justas.

O velho sorriu-se tristemente, como quem ouvia duvidoso as palavras do outro.

Depois:

— Vem dar-me os pêsames, não é? continuou ele; muito obrigado. E foi sentar se no sofá, derramando silenciosas lágrimas.

Eduardo esteve alguns momentos contemplando aquela dor muda e respeitável. Depois, dirigiu os olhos para a porta do quarto mortuário. Ouviu que partiam de dentro soluços abafados. Dirigiu-se para a porta.

Maria Luíza, ajoelhada aos pés da cama, contemplava, chorando, o cadáver de Sara. A morta parecia sorrir ainda: dissera-se que sonhava um sonho cor-de-rosa.

Eduardo sentiu rebentarem-lhe dos olhos as lágrimas. Ajoelhou-se silenciosamente ao pé da porta e olhou para Maria Luíza.

Não lhe viu o rosto, mas conheceu-a.

Durou muitos minutos esta cena muda. Finalmente, Eduardo levantou-se e dirigiu-se para o leito da finada. Aí, com os olhos rasos de lágrimas, disse para o cadáver:

— Perdoa-me! Adeus!

E saiu da casa, louco, desesperado.


CAPÍTULO 9

Eduardo andou muitas horas sem saber de si. Acompanhava-o o espectro de Sara. Ouvia-lhe as palavras; parecia vê-la morrer esperando embalde por ele.

De um triste jogo, em que a sua vaidade entrara por muito, resultaram tão funestas consequências. Sua dor era sincera; seu terror verdadeiro. Até ali, de seus caprichos dom-juanescos só resultaram, quando muito, desgostos passageiros que o tempo ou outras circunstâncias atenuavam e faziam desaparecer. Mas no dia em que se deitara a amar deveras, ou antes, no dia em que desejou amar, as vítimas do seu capricho sucumbiram. Via-se autor de uma morte; e os espíritos da ordem de Eduardo podem cometer todas as ações covardes, mas não resistem a um espetáculo destes. Fazer perder-se uma donzela ou separar um casal, é uma façanha mais ou menos celebrada, mais ou menos aceita; mas impelir para a sepultura um ente a quem se enganou, eis o que faz estremecer os audazes. Eduardo, preso de remorso, apreciava toda a extensão do abismo em que caíra.

Os sentimentos vivos da dor e do remorso, as ideias tumultuárias e cruéis, encheram por longo tempo o espírito e o coração de Eduardo. Ora parecia-lhe dever fugir à vida e ir alcançar a donzela no caminho da eternidade, para pedir-lhe perdão. Ora julgava que devia ficar neste mundo, para purgar em longo sofrimento o crime que cometera.

Nesta incerteza, neste suplício moral, andou até que se achou diante do mar. Sentou-se pensativo em uma pedra. Era quase noite. Muita gente que o viu supô-lo doido.

Estava ali, havia já alguns longos minutos, quando um homem parou e procurou descobrir-lhe as feições. Eduardo tinha o rosto fechado nas mãos. Depois de alguns instantes o homem exclamou:

— Eduardo!

— Que é? disse o moço, estremecendo.

Voltou e reconheceu o interlocutor:

— Pedro Eloy!

Eduardo caiu-lhe nos braços.

Depois de alguns momentos, Pedro Eloy perguntou:

— Que há?

— Sara morreu!

— A donzela?

— Sim!

— Desgraçado! É obra tua!

— Ah! não aumentes a minha dor e o meu terror, bem sei o que fiz; vejo a enormidade do meu crime.

E o moço derramava sinceras lágrimas.

Pedro Eloy continuou:

— Se tivesses atendido aos meus conselhos, tinhas poupado este desgosto e este remorso. Bem te dizia eu que não iriam a bons resultados as tuas paixões simuladas. Não quiseste crer, ou antes a tua vaidade recusou-se a crer. Enfim, vê se eu tinha razão!

Houve um silêncio entre ambos.

— Está acabado tudo; agora só resta uma coisa; é seres o carrasco de ti mesmo, como aquele pai do teatro latino. Eia! se alguma coisa pode agora levantar-te aos olhos do mundo e aos teus é a volta aos deveres morais. Sirva-te a morte de Sara, tua vítima, como ponto de partida para a tua regeneração.

E dizendo isto, Pedro Eloy arrastou Eduardo.

Pedro Eloy, recebendo em Petrópolis a carta de Eduardo, receou pelos resultados dos acontecimentos narrados nesta carta. Logo que pôde pôs-se a caminho para ver se ainda podia fazer alguma coisa. Chegando à cidade foi procurar Eduardo; disseram lhe que partira para São Domingos.

Como saberia ele a casa de Sara? Ninguém podia dizer-lhe em casa de Eduardo. Apesar de tudo, tomou o caminho da barca de São Domingos e dirigiu-se para lá. Foi quando encontrou Eduardo.

No sétimo dia ao da morte de Sara, Pedro Eloy conseguiu levar Eduardo para Petrópolis. Eduardo não quis deixar de ir orar pela vítima, a um canto da igreja, na missa do sétimo dia. Todos viram o moço ajoelhado, com o resto coberto; foi o primeiro que entrou e o último que saiu.


CAPÍTULO 10

A obra de Pedro Eloy teve feliz resultado. Eduardo converteu-se ao dever, depois de um longo suplício.

Maria Luíza, cuja alma também morrera, refugiou-se no mais completo isolamento.

Quanto à família de Sara, nunca mais teve um momento das alegrias puras que a presença da querida menina lhe dava.

Eduardo, inteiramente outro do homem que fora antes, pôde desligar-se da companhia do amigo Pedro Eloy sem perigo para si.

De oito em oito dias fazia uma peregrinação ao cemitério de Maruí, onde repousavam os restos daquela que o amara até à morte.

Impôs-se esta visita, não só como dever, mas até para ter sempre à memória a tragédia doméstica em que fora protagonista.

De quando em quando, os dois amigos visitavam-se, mas comunicavam-se sempre por cartas, em que um mostrava toda a sua satisfação em ter convertido um homem e o outro a maior saudade do bem que pudera ter e a esperança de que a sua conversão teria em paga na eternidade a vista eterna da alma bem-aventurada de Sara.


CONCLUSÃO

Depois de contar esta história, o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou café, e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.

Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as ideias, porventura melancólicas, que a minha narrativa tenha feito nascer.

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