11/12/2017

Sabina (Conto), de Artur Azevedo


Sabina
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Havia três anos que o Bacharel Figueiredo era o amante da viúva Fontes. E marido seria se ela quisesse; mas Sabina — Sabina era o seu nome — dera-se mal com o casamento, e não queria experimentá-lo de novo.
Um mês depois do seu primeiro encontro com o Bacharel Figueiredo, este dizia-lhe:
— Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre és: casemo-nos!
— Não! respondia ela, não! não! não!...
— Por quê, meu amor?
— Porque esse fogo, esse ímpeto, esse entusiasmo que te lançou nos meus braços, tudo isso desapareceria desde que eu fosse tua mulher!
— Mas a sociedade...
— Ora a sociedade! Sou bastante independente para me não importar com ela.
— Tua filhinha...
— Tem apenas quatro anos! está na idade em que se olha sem ver. Demais, não quero dar-lhe um padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o pretor.
II
Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante da lei, mas nem por isso o bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos, agradecendo aos céus o haver a viúva recusado o casamento que ele lhe propusera num momento de verdadeira alucinação.
Havia muitos meses já que o moço ruminava um plano de separação definitiva, mas não sabia de que pretexto lançar mão para chegar a esse resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos, parecia guardar-lhe absoluta fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa.
Nestas condições lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos, que o honrava com a sua amizade.
III
O velho Matos era um solteirão rico e viajado, que na sua tempestuosa mocidade tivera um número considerável de aventuras galantes, e era ainda considerado um oráculo em questões de amor. Muitos mancebos inexperientes recorriam aos seus conselhos, e tais e tão discretos eram estes, que eles alcançavam quanto pretendiam.
O Bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chácara da Gávea, onde o avisado conselheiro vivia das suas recordações e de alguns prédios e apólices milagrosamente salvos do naufrágio dos seus haveres.
O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preâmbulos expôs a situação:
— Há três anos sou o amante de uma senhora viúva, distinta e bem educada; quero acabar com essa ligação; que devo fazer?
— Antes de mais nada, é preciso que eu saiba o motivo que o desgostou. Tem ciúmes dela?
— Ciúme... — Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice, fidelidade e constância!
— Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?... quero dizer: uma enfermidade... — um defeito físico... o mau hálito, por exemplo?
— Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa.
— Então, é feia?
— Feia?! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro!
— Tem mau gênio?
— Uma pombinha sem fel!
— Então é tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada, asneirona?...
— Nada disso! é uma mulher de espírito, instruída e perfeitamente educada.
— É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a rezar diante de um oratório?...
— Apenas vai ouvir missa aos domingos.
— Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar...
— Não canta; toca piano, mas não abusa. Digo-lhe mais: interpreta admiravelmente Chopin.
— Você gosta de outra mulher?
— Juro-lhe que não.
— Bom; sei o que isso é; você aborreceu-se dela porque nunca lhe descobriu defeitos. É boa demais.
— Talvez. O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que devia, e urge acabar com ela. A Sabina tem uma filha que está crescendo a olhos vistos, e não é conveniente fazer com que essa criança algum dia a obrigue a corar... Depois, eu sou moço... tenho um grande horizonte diante de mim... enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligação pode prejudicar seriamente o meu futuro — não acha?
O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou:
— Quer então você separar-se dessa mulher ideal?
— Quero.
— A sua resolução é inabalável?
— Inabalável.
— Só há um meio de o conseguir.
— Qual?
— Desapareça.
— Ela irá procurar-me onde quer que eu esteja.
— Boa dúvida, mas faça-se invisível, vá para a roça, e volte ao cabo de oito dias. Naturalmente ela aparece, e pergunta em termos ásperos, ou sentidos, o motivo do seu procedimento. Muna-se então de um pouco de coragem, e responda-lhe o seguinte: "À vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós. Não me peça explicações: meta a mão na consciência, e meça a extensão do meu ressentimento!"
— Mas que fato? Pois eu já não lhe disse que a Sabina e um modelo de...
— Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, não há mulher, por mais amante, por mais dedicada, por mais virtuosa que seja, que não tenha alguma coisa de que a acuse a consciência. A sua Sabina, em que pese às aparências, não deve, não pode escapar à lei comum; desde que você se refira positivamente a um fato, embora não declare que fato é, ela ficará persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se passou, e que a pobrezinha supunha coberta pelo véu de impenetrável mistério.
— Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciência (eu juro-lhe que o não tem!) com certeza há de protestar energicamente e exigir que eu ponha os pontos nos ii; há de querer que eu diga francamente a que fato aludo, e... — e vamos lá! como acusá-la sem consentir que ela se defenda?
— Ah! meu amigo! se você pretende aplicar razões jurídicas ao caso, não arranja nada. A jurisprudência do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se, e não entre em explicações. Afianço-lhe que o êxito é seguro.
IV
Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o Bacharel Figueiredo. Retirou-se durante alguns dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar satisfações a viúva.
Imagine-se o desespero dela. Quando soube que o seu amante voltara dessa misteriosa viagem, foi — e era a primeira vez que lá ia — foi à casa de pensão em que ele morava e entrou como uma doida no seu quarto.
— Então? que quer isto dizer?... exclamou a mísera caindo numa cadeira, a soluçar desesperadamente.
Ele até então nunca a tinha visto chorar. A viúva apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho; parecia-lhe agora mais apetitosa.
Entretanto, fazendo um esforço violento sobre si mesmo, o bacharel franziu os sobrolhos e repetiu as palavras do velho Matos:
— à vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós!...
Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou:
— Não me peça explicações; eu não lhas daria! Meta a mão na consciência, e compreenda o meu eterno ressentimento...
Dizendo isto, saiu do quarto batendo com estrondo a porta, e deixando a pobre Sabina aparvalhada.
V
No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:
Figueiredo — Tens razão: nada mais pode haver de comum entre nós; aprecio e respeito a delicadeza dos teus sentimentos.
"Eu vivia na ilusão de que tudo ignorarias, de que jamais virias ao conhecimento de uma fraqueza que tão desgraçada me faz neste instante. Vejo que o miserável não guardou segredo, e fez chegar aos teus ouvidos a história de uma vergonhosa aventura a que fui arrastada num momento de desvario e de que logo me arrependi amargamente.
Não me perdoes, porque o teu perdão seria um atestado de péssimo caráter, mas ao menos sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento, o pouco caso com que então começavas a tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei e que tantas lágrimas me tem custado.
Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda como sempre te amou, mas não procures tornar a vê-la, porque ela é a primeira a confessar que não é digna de ti. Console-te a certeza de que a minha vida vai ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades. Adeus para sempre... — Sabina.
VI
Essa carta produziu terrível efeito no espírito do Bacharel Figueiredo.
Era então certo?... ela pertencera a outro homem?...
E o seu amor extinto despertou mais violento, mais impetuoso que nunca. Passavam-lhe rapidamente pela memória, num turbilhão demoníaco, todos os deliciosos momentos que lhe proporcionara a meiga viúva, e o ciúme, um ciúme implacável, que o aniquilava e embrutecia, excitava-o tiranicamente.
Ele correu à casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas e janelas. Informou-o um vizinho de que a viúva se retirara na véspera, com a menina e as criadas, levando malas e embrulhos.
Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado pela insônia, pelos ciúmes, pelas saudades, correu à casa dela: tudo fechado!...
Ninguém lhe dava notícias de Sabina! Aonde iria ela?... — onde estava?...
Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido, tal qual Sabina entrara na casa de pensão. Encontrou-a no seu quarto, e, sem dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe sofregamente a boca, os olhos, o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido, atirou-a brutalmente sobre o leito, sequioso por entrar de novo na posse daquele corpo e daquele sangue.
Mas a viúva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e pôs-se de pé, gritando:
— Não! não! não, Figueiredo!... Tudo acabou entre nós! Eu não sou digna de ti!...
— Não digas isso pelo amor de Deus! Eu perdoo-te! Eu amo-te! Eu adoro-te!...
— Se realmente me amas, se me adoras, então és tu que não és digno de mim!
Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se julgou a coberto das perseguições do bacharel. Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando convulsivamente.
VII
Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal restabeleceram-se as pazes.
Sabina cedeu sob duas condições: primeira, — o bacharel só entraria no quarto dela com escala pela pretoria e pela igreja: segunda, — jamais lhe pediria explicações sobre o fato que determinara a crise.
VIII
Três meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara íntimo da casa, achando-se a sós com Sabina, contou-lhe a história do conselho dado ao bacharel, conselho que foi a causa imediata de tão extraordinários acontecimentos, e que tão negativo efeito produzira.
— Mas o que o senhor não sabe, disse ela, é que eu nunca tive outro amante senão o Figueiredo.
— Que me diz, minha senhora?
— Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade.
— Mas valha-me Deus! o pobre rapaz está convencido de...
— Deixá-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os outros homens. Confessei-lhe uma culpa que não tinha, porque adivinhei que só assim poderia reconquistá-lo.
— Mas agora estão casados e muito bem casados; é preciso dissuadi-lo.
— Não; ainda é cedo; mais tarde... Esse homem que ele não sabe quem é... essa aventura misteriosa... essa ignóbil mentira é a garantia da minha felicidade. Enquanto ele supuser que não fui dele só, será só meu.
— Parabéns, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho Matos.
— Ora, o velho Matos! Quem é o velho Matos? Quem é o senhor? Algum psicólogo? Saiba que uma mulher inteligente é capaz de embrulhar Paul Bourget...
— Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o próprio Balzac! Repito: parabéns, minha senhora!

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