
Sales
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ao certo, não se pode saber em que data teve
Sales a sua primeira ideia. Sabe-se que, aos dezenove anos, em 1854, planeou
transferir a capital do Brasil para o interior, e formulou alguma coisa a tal
respeito; mas não se pode afirmar, com segurança, que tal fosse a primeira nem
a segunda ideia do nosso homem. Atribuíram-lhe meia dúzia antes dessa, algumas
evidentemente apócrifas, por desmentirem dos anos em flor, mas outras possíveis
e engenhosas. Geralmente eram concepções vastas, brilhantes, inopináveis ou só
complicadas. Cortava largo, sem poupar pano nem tesoura; e, quaisquer que
fossem as objeções práticas, a imaginação estendia-lhe sempre um véu magnífico
sobre o áspero e o aspérrimo. Ousaria tudo: pegaria de uma enxada ou de um
cetro, se preciso fosse, para pôr qualquer ideia a caminho. Não digo cumpri-la,
que é outra coisa.
Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a
filha de um senhor de engenho de Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça
ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro genro certo plano de produção de açúcar,
por meio de uma união de engenhos e de um mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro
de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu expor os lineamentos principais
da ideia.
— Havemos de falar nisso outra vez, disse
Melchior; por que não vai ao nosso engenho?
Sales foi ao engenho, conversou, escreveu,
calculou, fascinou o homem. Uma vez acordados na ideia, saiu o moço a
propagá-la por toda a comarca; achou tímidos, achou recalcitrantes, mas foi
animando a uns e persuadindo a outros. Estudou a produção da zona, comparou a
real à provável, e mostrou a diferença. Vivia no meio de mapas, cotações de
preços, estatísticas, livros, cartas, muitas cartas. Ao cabo de quatro meses,
adoeceu; o médico achou que a moléstia era filha do excesso de trabalho
cerebral, e prescreveu-lhe grandes cautelas.
Foi por esse tempo que a filha do senhor do
engenho e uma irmã deste regressaram da Europa, aonde tinham ido nos meados de
1858. Es liegen einige gute Ideen in
diesen Rock, dizia uma vez o alfaiate de Heine, mirando-lhe a sobrecasaca.
Sales não desceria a achar semelhantes coisas numa sobrecasaca; mas, numa linda
moça, por que não? Há nesta pequena
algumas ideias boas, pensou ele olhando para Olegária, — ou Legazinha, como
se dizia no engenho. A moça era baixota, delgada, rosto alegre e bom. A
influição foi recíproca e súbita. Melchior, não menos namorado do rapaz que a
filha, não hesitou em casá-los; ligá-lo à família era assegurar a persistência
de Sales na execução do plano.
O casamento fez-se em agosto, indo os noivos
passar a lua-de-mel no Recife. No fim de dois meses, não voltando eles ao
engenho, e acumulando-se ali uma infinidade de respostas ao questionário que
Sales organizara, e muitos outros papéis e opúsculos, Melchior escreveu ao
genro que viesse; Sales respondeu que sim, mas que antes disso precisava dar
uma chegadinha ao Rio de Janeiro, coisa de poucas semanas, dois meses, no
máximo. Melchior correu ao Recife para impedir a viagem; em último caso,
prometeu que, se esperassem até maio, ele viria também. Tudo foi inútil; Sales
não podia esperar; tinha isto, tinha aquilo, era indispensável.
— Se houver necessidade de apressar a volta,
escreva-me; mas descanse, a boa semente frutificará. Caiu em boa terra,
concluiu enfaticamente.
Ênfase não exclui sinceridade. Sales era
sincero, mas uma coisa é sê-lo de espírito, outra de vontade. A vontade estava
agora na jovem consorte. Entrando no mar, esqueceu-lhe a terra; descendo à terra,
olvidou as águas. A ocupação única do seu ser era amar esta moça, que ele nem
sabia que existisse, quando foi para o engenho do sogro cuidar do açúcar.
Meteram-se na Tijuca, em casa que era juntamente ninho e fortaleza; — ninho
para eles, fortaleza para os estranhos, aliás inimigos. Vinham abaixo algumas
vezes, — ou a passeio, ou ao teatro; visitas raras e de cartão. Durou essa
reclusão oito meses. Melchior escrevia ao genro que voltasse, que era tempo;
ele respondia que sim, e ia ficando; começou a responder tarde, e acabou
falando de outras coisas. Um dia, o sogro mandou-lhe dizer que todos os
apalavrados tinham desistido da empresa. Sales leu a carta ao pé de Legazinha,
e ficou longo tempo a olhar para ela.
— Que mais? perguntou Legazinha.
Sales afirmou a vista; acabava de
descobrir-lhe um cabelinho branco. Cãs aos vinte anos! Inclinou-se, e deu no
cabelo um beijo de boas-vindas. Não cuidou de outra coisa em todo o dia.
Chamava-lhe "minha velha". Falava em comprar uma medalhinha de prata
para guardar o cabelo, com a data, e só a abririam quando fizessem vinte e
cinco anos de casados. Era uma ideia nova esse cabelo. Bem dizia ele que a moça
tinha em si algumas ideias boas, como a sobrecasaca de Heine; não só as tinha
boas, mas inesperadas.
Um dia, reparou Legazinha que os olhos do
marido andavam dispersos no ar, ou recolhidos em si. Nos dias seguintes
observou a mesma coisa. Note-se que não eram olhos de qualquer. Tinham a cor
indefinível, entre castanho e ouro; — grandes, luminosos e até quentes. Viviam
em geral como os de toda a gente; e, para ela, como os de nenhuma pessoa, mas o
fenômeno daqueles dias era novo e singular. Iam da profunda imobilidade à
mobilidade súbita e quase demente. Legazinha falava-lhe, sem que ele a ouvisse;
pegava-lhe dos ombros ou das mãos, e ele acordava.
— Hein? que foi?
Legazinha a princípio ria-se.
— Este meu marido! Este meu marido! Onde anda
você?
Sales ria também, levantava-se, acendia um
charuto, e entrava a andar e a pensar; daí a pouco mergulhava outra vez em si.
O fenômeno foi-se agravando. Sales passou a escrever horas e horas; às vezes,
deixava a cama, alta noite, para ir tomar alguma nota. Legazinha supôs que era
o negócio dos engenhos, e disse-lho, pendurando-se graciosamente do ombro:
— Os engenhos? repetiu ele. E voltando a si:
— Ah! os engenhos...
Legazinha temia algum transtorno mental, e
procurava distraí-lo. Já saíam a visitas, recebiam outras; Sales consentiu em
ir a um baile, na Praia do Flamengo. Foi aí que ele teve um princípio de
reputação epigramática, por uma resposta que deu distraidamente:
— Que idade terá aquela feiosa, que vai
casar? perguntou-lhe uma senhora com malignidade.
— Perto de duzentos contos, respondeu Sales.
Era um cálculo que estava fazendo; mas o dito
foi tomado à má parte, andou de boca em boca, e muita gente redobrou os
carinhos com um homem capaz de dizer coisas tão perversas.
Um dia, o estado dos olhos foi cedendo
inteiramente da imobilidade para a mobilidade; entraram a rir, a
derramarem-se-lhe pelo corpo todo, e a boca ria, as mãos riam, todo ele ria a
espáduas despregadas. Não tardou, porém, o equilíbrio: Sales voltou ao ponto
central, mas — ai dela! — trazia uma ideia nova.
Consistia esta em obter de cada habitante da
capital uma contribuição de quarenta réis por mês, — ou, anualmente,
quatrocentos e oitenta réis. Em troca desta pensão tão módica, receberia o
contribuinte durante a Semana Santa uma coisa que não posso dizer sem grandes
refolhos de linguagem. Que como ele há pessoas neste mundo que acham mais delicado
comer peixe cozido, que lê-lo impresso. Pois era o pescado necessário à
abstinência, que cada contribuinte receberia em casa durante a semana santa, a
troco de quatrocentos e oitenta réis por ano. O corretor, a quem Sales confiou
o plano, não o entendeu logo; mas o inventor explicou-lho.
— Nem todos pagarão só os quarenta réis; uma
terça parte, para receber maior porção e melhor peixe, pagará cem réis. Quantos
habitantes haverá no Rio de Janeiro? Descontando os judeus, os protestantes, os
mendigos, os vagabundos, etc., contemos trezentos mil. Dois terços, ou duzentos
mil, a quarenta réis, são noventa e seis contos anuais. Os cem mil restantes, a
cem réis, dão cento e vinte. Total: duzentos e dezesseis contos de réis.
Compreendeu agora?
— Sim, mas...
Sales explicou o resto. O juro do capital, o
preço das ações da companhia, porque era uma companhia anônima, número das
ações, entradas dividendo provável, fundo de reserva, tudo estava calculado,
somado. Os algarismos caíam-lhe da boca, lúcidos e grossos, como uma chuva de
diamantes; outros saltavam-lhe dos olhos, à guisa de lágrimas, mas lágrimas de
gozo único. Eram centenas de contos, que ele sacolejava nas algibeiras, passava
às mãos e atirava ao teto. Contos sobre contos; dava com eles na cara do corretor,
em cheio; repelia-os de si, a pontapés; depois recolhia-os com amor. Já não
eram lágrimas nem diamantes, mas uma ventania de algarismos, que torcia todas
as ideias do corretor, por mais rijas e arraigadas que estivessem.
— E as despesas? disse este.
Estavam previstas as despesas. As do primeiro
ano é que seriam grandes. A companhia teria virtualmente o privilégio da
pescaria, com pessoal seu, canoas suas, estações de paróquias, carroças de
distribuição, impressos, licenças, escritório, diretoria, tudo. Deduzia as
despesas, e mostrava lucro positivo, claro, numeroso. Vasto negócio, vasto e
humano; arrancava a população aos preços fabulosos daqueles dias de preceito.
Trataram do negócio; apalavraram algumas
pessoas. Sales não olhava a despesa para pôr a ideia a caminho. Não tinha mais
que o dote da mulher, uns oitenta contos, já muito cerceados; mas não olhava a
nada. São despesas produtivas, dizia a si mesmo. Era preciso escritório; alugou
casa na Rua da Alfândega, dando grossas luvas, e meteu lá um empregado de
escrita e um porteiro fardado. Os botões da farda do porteiro eram de metal
branco, e tinham, em relevo, um anzol e uma rede, emblema da companhia; na
frente do boné via-se o mesmo emblema, feito de galão de prata. Essa
particularidade, tão estranha ao comércio, causou algum pasmo, e recolheu boa
soma de acionistas.
— Lá vai o negócio a caminho! dizia ele à
mulher, esfregando as mãos.
Legazinha padecia calada. A orelha da
necessidade começava a aparecer por trás da porta; não tardaria a ver-lhe o
carão chupado e lívido, e o corpo em frangalhos. O dote, capital único, ia-se
indo com o necessário e o hipotético. Sales, entretanto, não parava, acudia a
tudo, à praça e à imprensa, onde escreveu alguns artigos longos, muito longos,
pecuniariamente longos, recheados de Cobden e Bastiat, para demonstrar que a
companhia trazia nas mãos "o lábaro da liberdade".
A doença de um conselheiro de Estado fez
demorar os estatutos. Sales, impaciente nos primeiros dias, entrou a
conformar-se com as circunstâncias, e até a sair menos. Às vezes vestia-se para
dar uma vista ao escritório; mas, apertado o colete, ruminava outra coisa e
deixava-se ficar. Crendice do amor, a mulher também esperava os estatutos;
rezava uma ave-maria, todas as
noites, para que eles viessem, que se não demorassem muito. Vieram; ela leu, um
dia de manhã, o despacho de indeferimento. Correu atônita ao marido.
— Não entendem disto, respondeu Sales,
tranquilamente. Descansa; não me abato assim com duas razões.
Legazinha enxugou os olhos.
— Vais requerer outra vez? perguntou-lhe.
— Qual requerer!
Sales atirou a folha ao chão, levantou-se da
rede em que estava, e foi à mulher; pegou-lhe nas mãos, disse-lhe que nem cem
governos o fariam desfalecer. A mulher, abanando a cabeça:
— Você não acaba nada. Cansa-se à toa... No
princípio tudo são prodígios; depois... Olha o negócio dos engenhos que papai
me contou...
— Mas fui eu que me indeferi?
— Não foi; mas há que tempos anda você
pensando em outra coisa!
— Pois sim, e digo-te...
— Não digas nada, não quero saber nada,
atalhou ela.
Sales, rindo, disse-lhe que ainda havia de
arrepender-se, mas que ele lhe daria um perdão "de rendas", nova
espécie de perdão, mais eficaz que nenhum outro. Desfez-se do escritório e dos
empregados, sem tristeza; chegou a esquecer-se de pedir luvas ao novo inquilino
da casa. Pensava em coisa diferente. Cálculos passados, esperanças ainda
recentes, eram coisas em que parecia não haver cuidado nunca. Debruçava-se-lhe
do olho luminoso uma ideia nova. Uma noite, estando em passeio com a mulher,
confiou-lhe que era indispensável ir à Europa, viagem de seis meses apenas.
Iriam ambos, com economia... Legazinha ficou fulminada. Em casa respondeu-lhe,
que nem ela iria, nem consentiria que ele fosse. Para quê? Algum novo sonho. Sales
afirmou-lhe que era uma simples viagem de estudo, França, Inglaterra, Bélgica,
a indústria das rendas. Uma grande fábrica de rendas; o Brasil dando malinas e
bruxelas.
Não houve força que o detivesse, nem
súplicas, nem lágrimas, nem ameaças de separação. As ameaças eram de boca.
Melchior estava, desde muito, brigado com ambos; ela não abandonaria o marido.
Sales embarcou, e não sem custo, porque amava deveras a mulher; mas era
preciso, e embarcou. Em vez de seis meses, demorou-se sete; mas, em compensação,
quando chegou, trazia o olhar seguro e radiante. A saudade, grande
misericordiosa, fez com que a mulher esquecesse tantas desconsolações, e lhe
perdoasse — tudo.
Poucos dias depois alcançou ele uma audiência
do Ministro do Império. Levou-lhe um plano soberbo, nada menos que arrasar os
prédios do Campo da Aclamação e substituí-los por edifícios públicos, de
mármore. Onde está o quartel, ficaria o palácio da Assembleia Geral; na face
oposta, em toda a extensão, o palácio do imperador. David cum Sibyla. Nas outras duas faces laterais ficariam os
palácios dos sete ministérios, um para a Câmara Municipal e outro para o
Diocesano.
— Repare vossa excelência que é toda a
Constituição reunida, dizia ele rindo, para fazer rir o ministro; falta só o
Ato Adicional. As províncias que façam o mesmo.
Mas o ministro não se ria. Olhava para os
planos desenrolados na mesa, feitos por um engenheiro belga, pedia explicações
para dizer alguma coisa, e mais nada. Afinal disse-lhe que o governo não tinha
recursos para obras tão gigantescas.
— Nem eu lhos peço, acudiu Sales. Não preciso
mais que de algumas concessões importantes. E o que não concederá o governo
para ver executar este primor?
Durou seis meses esta ideia. Veio outra, que
durou oito; foi um colégio, em que pôs à prova certo plano de estudos. Depois
vieram outras, mais outras... Em todas elas gastava alguma coisa, e o dote da
mulher desapareceu. Legazinha suportou com alma as necessidades; fazia balas e
compotas para manter a casa. Entre duas ideias, Sales comovia-se, pedia perdão
à consorte, e tentava ajudá-la na indústria doméstica. Chegou a arranjar um
emprego ínfimo, no comércio; mas a imaginação vinha muita vez arrancá-lo ao
solo triste e nu para as regiões magníficas, ao som dos guizos de algarismos e
do tambor da celebridade.
Assim correram os primeiros seis anos de
casamento. Começando o sétimo, foi o nosso amigo acometido de uma lesão
cardíaca e de uma ideia. Cuidou logo desta, que era uma máquina de guerra para
destruir Humaitá; mas a doença, máquina eterna, destruiu-o primeiro a ele.
Sales caiu de cama, a morte veio vindo; a mulher, desenganada, tratou de o
persuadir a que se sacramentasse.
— Faço o que quiseres, respondeu ele
ofegante.
Confessou-se, recebeu o viático e foi ungido.
Para o fim, o aparelho eclesiástico, as cerimônias, as pessoas ajoelhadas,
ainda lhe deram rebate à imaginação. A ideia de fundar uma igreja, quando
sarasse, encheu-lhe o semblante de uma luz extraordinária. Os olhos reviveram.
Vagamente, inventou um culto, sacerdote, milhares de fiéis. Teve reminiscências
de Robespierre; faria um culto deísta, com cerimônias e festas originais,
risonhas como o nosso céu... Murmurava palavras pias.
— Que é? dizia Legazinha, ao pé da cama, com
uma das mãos dele presa entre as suas, exausta de trabalho.
Sales não via nem ouvia a mulher. Via um
campo vastíssimo, um grande altar ao longe, de mármore, coberto de folhagens e
flores. O sol batia em cheio na congregação religiosa. Ao pé do altar via-se a
si mesmo, magno sacerdote, com uma túnica de linho e cabeção de púrpura. Diante
dele, ajoelhadas, milhares e milhares de criaturas humanas, com os braços
erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia...
distribuir...
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