11/08/2017

Só (Conto), de Machado de Assis


Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Bonifácio, depois de fechar a porta, guardou a chave, atravessou o jardim e meteu-se em casa. Estava só, finalmente só. A frente da casa dava para uma rua pouco frequentada e quase sem moradores. A um dos lados da chácara corria outra rua. Creio que tudo isso era para os lados de Andaraí.

Um grande escritor, Edgar Poe, relata, em um de seus admiráveis contos, a corrida noturna de um desconhecido pelas ruas de Londres, à medida que se despovoam, com o visível intento de nunca ficar só. "Esse homem, conclui ele, é o tipo e o gênio do crime profundo; é o homem das multidões." Bonifácio não era capaz de crimes, nem ia agora atrás de lugares povoados, tanto que vinha recolher-se a uma casa vazia. Posto que os seus quarenta e cinco anos não fossem tais que tornassem inverossímil uma fantasia de mulher, não era amor que o trazia à reclusão. Vamos à verdade: ele queria descansar da companhia dos outros. Quem lhe meteu isso na cabeça, — sem o querer nem saber, — foi um esquisitão desse tempo, dizem que filósofo, um tal Tobias que morava para os lados do Jardim Botânico. Filósofo ou não, era homem de cara seca e comprida, nariz grande e óculos de tartaruga. Paulista de nascimento, estudara em Coimbra, no tempo do rei e vivera muitos anos na Europa, gastando o que possuía, até que, não tendo mais que alguns restos, arrepiou carreira. Veio para o Rio de Janeiro, com o plano de passar a São Paulo; mas foi ficando e aqui morreu. Costumava ele desaparecer da cidade durante um ou dois meses; metia-se em casa, com o único preto que possuía, e a quem dava ordem de lhe não dizer nada. Esta circunstância fê-lo crer maluco, e tal era a opinião entre os rapazes; não faltava, porém, quem lhe atribuísse grande instrução e rara inteligência, ambas inutilizadas por um ceticismo sem remédio. Bonifácio, um dos seus poucos familiares, perguntou-lhe um dia que prazer achava naquelas reclusões tão longas e absolutas; Tobias respondeu, que era o maior regalo do mundo.

— Mas, sozinho! tanto tempo assim, metido entre quatro paredes, sem ninguém!

— Sem ninguém, não.

— Ora, um escravo, que nem sequer lhe pode tomar a bênção!

— Não, senhor. Trago um certo número de ideias; e, logo que fico só, divirto-me em conversar com elas. Algumas vêm já grávidas de outras, e dão à luz cinco, dez, vinte e todo esse povo salta, brinca, desce, sobe, às vezes lutam umas com outras, ferem-se e algumas morrem; e quando dou acordo de mim, lá se vão muitas semanas.

Foi pouco depois dessa conversação que vagou uma casa de Bonifácio. Ele, que andava aborrecido e cansado da vida social, quis imitar o velho Tobias; disse em casa, na loja do Bernardo e a alguns amigos, que ia estar uns dias em Iguaçu, e recolheu-se a Andaraí. Uma vez que a variedade enfarava, era possível achar sabor da monotonia. Viver só, duas semanas inteiras, no mesmo espaço, com as mesmas coisas, sem andar de casa em casa e de rua em rua, não seria um deleite novo e raro? Em verdade, pouca gente gostará da música monótona; Bonaparte, entretanto, lambia-se por ela, e sacava dali uma teoria curiosa, a saber, que as impressões que se repetem são as únicas que verdadeiramente se apossam de nós. Na chácara de Andaraí a impressão era uma e única.

Vimo-lo entrar. Vamos vê-lo percorrer tudo, salas e alcovas, jardim e chácara. A primeira impressão dele, quando ali se achou, espécie de Robinson, foi um pouco estranha, mas agradável. Em todo o resto da tarde não foi mais que proprietário; examinou tudo, com paciência minuciosidade, paredes, tetos, portas, vidraças, árvores, o tanque, a cerca de espinhos. Notou que os degraus que iam da cozinha para a chácara, estavam lascados, aparecendo o tijolo. O fogão tinha grandes estragos. Das janelas da cozinha, que eram duas, só uma fechava bem; a outra era atada com um pedaço de corda. Buracos de rato, rasgões no papel da parede, pregos deixados, golpes de canivete no peitoril de algumas janelas, tudo descobriu, e contra tudo tempestuou com uma certa cólera postiça e eficaz na ocasião.

A tarde passou depressa. Só reparou bem que estava só, quando lhe entraram em casa as ave-marias, com o seu ar de viúvas recentes; foi a primeira vez na vida que ele sentiu a melancolia de tais hóspedes. Essa hora eloquente e profunda, que ninguém mais cantará como o divino Dante, ele só a conhecia pelo gás do jantar, pelo aspecto das viandas, ao tinir dos pratos, ao reluzir dos copos, ao burburinho da conversação, se jantava com outras pessoas, ou pensando nelas, se jantava só. Era a primeira vez que lhe sentia prestígio, e não há dúvida que ficou acabrunhado. Correu a acender luzes e cuidou de jantar.

Jantou menos mal, ainda que sem sopa; tomou café, preparado por ele mesmo, na máquina que levara, e encheu o resto da noite como pôde. Às oito horas, indo dar corda ao relógio, resolveu deixá-lo parar, a fim de tornar mais completa a solidão; leu algumas páginas de uma novela, bocejou, fumou e dormiu.

De manhã, ao voltar do tanque e tomado o café, procurou os jornais do dia, e só então advertiu que, de propósito, os não mandara vir. Estava tão acostumado a lê-los, entre o café e o almoço, que não pôde achar compensação em nada.

— Pateta! exclamou. Que tinha que os jornais viessem?

Para matar o tempo, foi abrir e examinar as gavetas da mesa — uma velha mesa, que lhe não servia há muito, e estava ao canto do gabinete, na outra casa. Achou bilhetes de amigos, notas, flores, cartas de jogar, pedaços de barbante, de lacre, penas, contas antigas, etc. Releu os bilhetes e as notas. Algumas destas falavam de coisas e pessoas dispersas ou extintas: "Lembrar ao cabeleireiro para ir à casa de D. Amélia". — "Comprar um cavalinho de pau para o filho do Vasconcelos". — "Cumprimentar o Ministro da Marinha". — "Não esquecer de copiar as charadas que D. Antônia me pediu". — "Ver o número da casa dos suspensórios". — "Pedir ao secretário da Câmara um bilhete de tribuna para o dia da interpelação". E assim outras algumas tão concisas, que ele mesmo não chegava a entender, como estas, por exemplo: — "Soares, prendas, a cavalo". — "Ouro e pé de mesa".

No fundo da gaveta, deu com uma caixinha de tartaruga, e dentro um molhozinho de cabelos, e este papel: "Cortados ontem, 5 de novembro, de manhã". Bonifácio estremeceu...

— Carlota! exclamou.

Compreende-se a comoção. As outras notas eram pedaços da vida social. Solteiro, e sem parentes, Bonifácio fez da sociedade uma família. Contava numerosas relações, e não poucas íntimas. Vivia da convivência, era o elemento obrigado de todas as funções, parceiro infalível, confidente discreto e cordial servidor, principalmente de senhoras. Nas confidências, como era pacífico e sem opinião, adotava os sentimentos de cada um, e tratava sinceramente de os combinar, de restaurar os edifícios que, ou o tempo, ou as tempestades da vida, iam gastando. Foi uma dessas confidências, que o levou ao amor expresso naquele molhozinho de cabelos, cortados ontem, 5 de novembro; e esse amor foi a grande data memorável da vida dele.

— Carlota! repetiu ainda.

Reclinado na cadeira, contemplava os cabelos, como se fossem a própria pessoa; releu o bilhete, depois fechou os olhos, para recordar melhor. Pode-se dizer que ficou um pouco triste, mas de uma tristeza que a fatuidade tingia de alguns tons alegres. Reviveu o amor e a carruagem — a carruagem dela —, os ombros soberbos e as joias magníficas — os dedos e os anéis, a ternura da amada e a admiração pública...

— Carlota!

Nem almoçando, perdeu a preocupação. E, contudo, o almoço era o melhor que se podia desejar em tais circunstâncias, mormente se contarmos o excelente Borgonha que o acompanhou, presente de um diplomata; mas nem assim.

Fenômeno interessante: — almoçado, e acendendo um charuto, Bonifácio pensou na boa fortuna, que seria, se ela lhe aparecesse, ainda agora, a despeito dos quarenta e quatro anos. Podia ser; morava para os lados da Tijuca. Uma vez que isto lhe pareceu possível, Bonifácio abriu as janelas todas da frente e desceu à chácara, para ir até à cerca que dava para a outra rua. Tinha esse gênero de imaginação que a esperança dá a todos os homens; figurou na cabeça a passagem de Carlota, a entrada, o assombro e o reconhecimento. Supôs até que lhe ouvia a voz; mas era o que lhe acontecia desde manhã, a respeito de outras. De quando em quando, chegavam-lhe ao ouvido uns retalhos de frases:

— Mas, Sr. Bonifácio...

— Jogue; a vaza é minha...

— Jantou com o desembargador?

Eram ecos da memória. A voz da dona dos cabelos era também um eco. A diferença é que esta lhe pareceu mais perto, e ele cuidou que, realmente, ia ver a pessoa. Chegou a crer que o fato extraordinário da reclusão se prendesse ao encontro com a dama, único modo de a explicar. Como? Segredo do destino. Pela cerca, espiou disfarçadamente para a rua, como se quisesse embaçar a si mesmo, e não viu nem ouviu nada mais que uns cinco ou seis cães que perseguiam a outro, latindo em coro. Começou a chuviscar; apertando a chuva, correu a meter-se em casa; entrando, ouviu distintamente dizer:

— Meu bem!

Estremeceu; mas era ilusão. Chegou à janela, para ver a chuva, e lembrou-se que um de seus prazeres, em tais ocasiões, era estar à porta do Bernardo ou do Farani, vendo passar a gente, uns para baixo, outros para cima, numa contradança de guarda-chuvas... A impressão do silêncio, principalmente, afligia mais que a da solidão. Ouvia alguns pios de passarinho, cigarras, — às vezes um rodar de carro, ao longe, — alguma voz humana, ralhos, cantigas, uma risada, tudo fraco, vago e remoto, e como que destinado só a agravar o silêncio. Quis ler e não pôde; foi reler as cartas e examinar as contas velhas. Estava impaciente, zangado, nervoso. A chuva, posto que não forte, prometia durar muitas horas, e talvez dias. Outra cainçada aos fundos, e desta vez trouxe-lhe à memória um dito do velho Tobias. Estava em casa dele, ambos à janela, e viram passar na rua um cão, fugindo de dois, que ladravam; outros cães, porém, saindo das lojas e das esquinas, entravam a ladrar também, com igual ardor e raiva, e todos corriam atrás do perseguido. Entre eles ia o do próprio Tobias, um que o dono supunha ser descendente de algum cão feudal, companheiro das antigas castelãs. Bonifácio riu-se, e perguntou-lhe se um animal tão nobre era para andar nos tumultos de rua.

— Você fala assim, respondeu Tobias, porque não conhece a máxima social dos cães. Viu que nenhum deles perguntou aos outros o que é que o perseguido tinha feito; todos entraram no coro e perseguiram também, levados desta máxima universal entre eles: — Quem persegue ou morde, tem sempre razão, — ou, em relação à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do perseguido. Já reparou? Repare e verá.

Não se lembrava do resto, e, aliás, a ideia do Tobias pareceu-lhe ininteligível, ou, quando menos, obscura. Os cães tinham cessado de latir. Só continuava a chuva. Bonifácio andou, voltou, foi de um lado para outro, começava a achar-se ridículo. Que horas seriam? Não lhe restava o recurso de calcular o tempo pelo sol. Sabia que era segunda-feira, dia em que costumava jantar na Rua dos Beneditinos, com um comissário de café. Pensou nisso; pensou na reunião do conselheiro***, que conhecera em Petrópolis; pensou em Petrópolis, no whist; era mais feliz no whist que ao voltarete, e ainda agora recordava todas as circunstâncias de uma certa mão, em que ele pedira licença, com quatro trunfos, rei, manilha, basto, dama... E reproduzia tudo, as cartas dele com as de cada um dos parceiros, as cartas compradas, a ordem e a composição das vazas.

Era assim que as lembranças de fora, coisas e pessoas, vinham de tropel agitando-se em volta dele, falando, rindo, fazendo-lhe companhia. Bonifácio recompunha toda a vida exterior, figuras e incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas, uma conversação, um enredo, um boato. Cansou, e tentou ler; a princípio, o espírito saltava fora da página, atrás de uma notícia qualquer, um projeto de casamento; depois caiu numa sonolência teimosa. Espertava, lia cinco ou seis linhas, e dormia. Afinal, levantou-se, deixou o livro e chegou à janela para ver a chuva, que era a mesma, sem parar nem crescer, nem diminuir, sempre a mesma cortina d’água despenhando-se de um céu amontoado de nuvens grossas e eternas.

Jantou mal, e, para consolar-se, bebeu muito Borgonha. De noite, fumado o segundo charuto, lembrou-se das cartas, foi a elas, baralhou-as e sentou-se a jogar a paciência. Era um recurso: pôde assim escapar às recordações que o afligiam, se eram más, ou que o empuxavam para fora, se eram boas. Dormiu ao som da chuva, e teve um pesadelo. Sonhou que subia à presença de Deus, e que lhe ouvia a resolução de fazer chover, por todos os séculos restantes do mundo.

— Quantos mais? perguntou ele.

— A cabeça humana é inferior às matemáticas divinas, respondeu o Senhor; mas posso dar-te uma ideia remota e vaga: — multiplica as estrelas do céu por todos os grãos de areia do mar, e terás uma partícula dos séculos...

— Onde irá tanta água, Senhor?

— Não choverá só água, mas também Borgonha e cabelos de mulheres bonitas...

Bonifácio agradeceu este favor. Olhando para o ar, viu que efetivamente chovia muito cabelo e muito vinho, além da água, que se acumulava no fundo de um abismo. Inclinou-se e descobriu embaixo, lutando com a água e os tufões, a deliciosa Carlota; e querendo descer para salvá-la, levantou os olhos e fitou o Senhor. Já o não viu então, mas somente a figura do Tobias, olhando por cima dos óculos, com um fino sorriso sardônico e as mãos nas algibeiras. Bonifácio soltou um grito e acordou.

De manhã, ao levantar-se, viu que continuava a chover. Nada de jornais: parecia-lhe já um século que estava separado da cidade. Podia ter-lhe morrido algum amigo, ter caído o ministério, ele não sabia de nada. O almoço foi ainda pior que o jantar da véspera. A chuva continuava, farfalhando nas árvores, nem mais nem menos. Vento nenhum. Qualquer bafagem, movendo as folhas, quebraria um pouco a uniformidade da chuva; mas tudo estava calado e quieto, só a chuva caía sem interrupção nem alteração, de maneira que, ao cabo de algum tempo, dava ela própria a sensação da imobilidade, e não sei até se a do silêncio.

As horas eram cada vez mais intermináveis. Nem havia horas; o tempo ia sem as divisões que lhe dá o relógio, como um livro sem capítulos. Bonifácio lutou ainda, fumando e jogando; lembrou-se até de escrever algumas cartas, mas apenas pôde acabar uma. Não podia ler, não podia estar, ia de um lado para outro, sonolento, cansado, resmungando um trecho de ópera: Di quella pira... Ou então: In mia mano alfin tu sei... Planeava outras obras na casa, agitava-se e não dominava nada. A solidão, como paredes de um cárcere misterioso, ia-se-lhe apertando em derredor, e não tardaria a esmagá-lo. Já o amor-próprio o não retinha; ele desdobrava-se em dois homens, um dos quais provava ao outro que estava fazendo uma tolice.

Eram três horas da tarde, quando ele resolveu deixar o refúgio. Que alegria, quando chegou à Rua do Ouvidor! Era tão insólita que fez desconfiar algumas pessoas; ele, porém, não contou nada a ninguém, e explicou Iguaçu como pôde.

No dia seguinte foi à casa do Tobias, mas não lhe pôde falar; achou-o justamente recluso. Só duas semanas depois, indo a entrar na barca de Niterói, viu adiante de si a grande estatura do esquisitão, e reconheceu-o pela sobrecasaca cor de rapé, comprida e larga. Na barca, falou-lhe:

— O senhor pregou-me um logro...

— Eu? perguntou Tobias, sentando-se ao lado dele.

— Sem querer, é verdade, mas sempre fiquei logrado.

Contou-lhe tudo; confessou-lhe que, por estar um pouco fatigado dos amigos, tivera a ideia de recolher-se por alguns dias, mas não conseguiu ir além de dois, e, ainda assim, com dificuldade. Tobias ouviu-o calado, com muita atenção; depois, interrogou-o minuciosamente, pediu-lhe todas as sensações, ainda as mais íntimas, e o outro não lhe negou nenhuma, nem as que teve com os cabelos achados na gaveta. No fim, olhando por cima dos óculos, tal qual como no pesadelo, disse-lhe com um sorriso copiado do diabo:

— Quer saber? Você esqueceu-se de levar o principal da matalotagem, que são justamente as ideias...

Bonifácio achou-lhe graça, e riu.

Tobias, rindo também, deu-lhe um piparote na testa. Em seguida, pediu-lhe notícias, e o outro deu-lhas de vária espécie, grandes e pequenas, fatos e boatos, isto e aquilo, que o velho Tobias ouviu, com olhos meio cerrados, pensando em outra coisa.

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