Supremo adeus
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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À senhorita
Elvira Remédios Monteiro
Desde que
pisara o paneiro do bote, que a devia conduzir ao steamer fumegante que esperava lá embaixo na barra, Sofia
Prevalsky, sentada à popa, ao lado de seu pai, velho conde da alta nobreza
polaca, não cessara um instante de fitar mudamente a linha afastada do cais,
onde o bando das amigas queridas ficara a olhar tristemente, agitando os lenços
claros.
Vivera ali
oito anos de bela e doce tranquilidade, numa risonha vivenda campestre, naquela
florida cidade da América Meridional, no seio da terra catarinense, sob o
encanto do céu azul, neste Brasil bem-amado. E fora tal a afeição que a cercara
nesse exílio suave, que o pai voluntariamente escolhera, que, apenas uma ou
outra vez, vagamente, sentira gemer o coração na nostalgia da pátria. Depois,
fora ali igualmente que a sua meninice enflorara, desabrochando em corolas de
beleza que eram a magnificência de sua mocidade. Franzina e triste que viera,
sob o luto lacrimoso de uma desolada orfandade de mãe, trazendo n’alma infantil a impressão aterradora das cenas sangrentas
dessa revolução temerosa que os arrojara àquelas plagas — voltava agora forte e moça, no esplendor dos seus vinte
anos dourados.
Por isso,
abatida e soluçante, sob a vela branca enfunada, descendo as águas mansas do
rio cercado de altas ervagens, fixava ainda vivamente, e pela vez derradeira, a
curva larga do cais, cumulada de telhados vermelhos e torres alvas faiscantes,
marcando além, com tristeza, entre renques de eucaliptos verdes, a fugidia
cidade.
Mas, em
pouco, os telhados e torres desapareceram para sempre na espessura das árvores.
Pelas faces de Sofia as lágrimas corriam, fluindo seguidamente de seus olhos
azulados; e só cessaram um momento, quando a embarcação, ajudada pelo vento da
tarde, caiu no imenso estuário que ia dar ao oceano, cujas ilhas rendilhadas
começaram a destacar, graciosas na sua cinta de espuma, sobre a planície
ondulada.
O panorama
da baía, no entanto, não conseguiu dissipar-lhe os pesares: o novo fluxo de
pranto tomou-a, fazendo-a sofrer mais fortemente, agora, abraçada ao velho pai.
E Sofia soluçava como nunca, porque, nesse instante, seu espírito se voltava
totalmente para a sua paixão, abalando-a e torturando-a como numa desgraça.
Amava, mas amava loucamente, com todo o ardor dos seus vinte anos, a um desses
rapazes vigorosos do sul, de tez queimada e suave, os olhos negros e lânguidos,
os cabelos anelados, cujas linhas esculturais e cuja virilidade soberba fazem a
atração e o encanto dessas louras raparigas do norte, filhas das raças fortes
do Báltico.
Ele
idolatrava-a também com fervor, num afeto austero e másculo. E desde o primeiro
encontro que tiveram, numa igreja católica, jamais a deixara, seguindo-a sempre
devotadamente, e com fidelidade amorosa, quando os vagares da sua vida marítima
lhe permitiam errar docemente pela terra natal. Um embaraço surgira, porém,
entre ambos: a oposição do velho emigrado polaco, que, havia dois anos, ao
perceber aquela grande paixão, entrara a retrair-se com a filha, ameaçando a
todo o momento regressar à Polônia —
agora que o tzar Alexandre os anistiara.
Apesar
disso, o velho não partia e lá ia gozando alegremente, no sul, as delícias do
seu chalé entre árvores, quando a morte de um irmão, rico industrial na
Alemanha, o levara de repente à viagem. E como estava a chegar a São Francisco
um paquete da linha de Hamburgo, preparara tudo, e, fretada uma embarcação,
depois de longas despedidas, nas vésperas, embarcara com a filha, nessa manhã
radiosa.
Mas Sofia,
alguns dias antes, sem que o pai sequer de leve suspeitasse, e auxiliada pelas
amigas, passara um telegrama ao noivo, então comandante de um pequeno cruzador,
estacionado em Santos. O rapaz não mandara resposta, e ela, acreditando-se já
abandonada, caíra numa grande tristeza. E ali, sobre o bote, na planura radiante,
desfazia-se em lágrimas, o coração despedaçado, só entregue ao seu amor e
àquele desamparo...
Entretanto,
quando o escaler ia atracar ao vapor, no meio da balbúrdia de muitas
embarcações, a adorável rapariga polaca teve um doce grito de júbilo, ao descobrir,
de repente, na água azul cheia de sol, o pequeno cutter de Afonso, o noivo querido, que demandava o steamer, velejando a todo o pano.
Momentos
após, num enleio, sob o toldo fresco de popa, no vasto convés asseado do Golden Kaiser se encontraram os dois
amantes — o coração aos saltos, os olhos
úmidos de emoção, numa dessas horas de alada mas contraditória ventura, em
que a alegria da boa vinda é ao mesmo tempo empanada pela amargura do adeus!
Longo tempo
então, num recanto isolado da borda, se fizeram confidências, desfiando
tristemente recordações e saudades, onde doces cenas passadas reviviam
vagamente de envolta à irradiação inolvidável dos dias felizes em que se tinham
dado. E a voz de ambos, fugindo em murmúrio nas azas do vento do mar, nessa
funda expansão íntima — talvez a
última que trocavam — tornava, por
vezes, uma inflexão ansiosa, como sob um peso de lágrimas...
O velho
conde, no entanto, magro e alto, no seu luto perpétuo de viúvo e de conjurado,
com as bastas suíças alvíssimas moldurando-lhe o rosto fidalgo, de nobres
linhas augustas, onde se desenhava firmemente o cunho superior de uma raça — vigilante e severo, não cessava de os olhar fixamente com os
seus vivos olhos septuagenários, que pareciam dois miosótis inquietos, na sua
face de pergaminho rosado.
Mas a hora
da partida chegava. Por todo o vapor, no convés, passageiros afamados cruzavam,
por entre grandes rumas de caixotes e malas, que marinheiros hercúleos e
louros, os largos peitos descobertos pela aberta da camisa azulada, moviam de um
para outro bordo com enorme atividade.
Na baía, em
redor, coalhava já a superfície cerúlea a imensa frota graciosa dos escaleres
do tráfego, rumando, numa alvura de velas, em direção à cidade.
Subitamente,
nesse instante, um silvo grosso de basso rasgou
o ar, para a proa, a bordo do Golden
Kaiser. As raras embarcações retardadas, que ainda cercavam o costado,
largaram logo, às remadas. E os primeiros movimentos das hélices bateram a
água, fazendo trepidar o colosso e retesando as amarras.
Afonso então
apressou-se. Correu para o velho conde polaco e deu-lhe um forte shake-hands. Depois, voltando-se para
Sofia, que chorava já loucamente, quase desfalecida contra a balaustrada, o
rosto afogado no seu lenço branco lavorado, onde buscava abafar os soluços — tomou-lhe as mãos, muito pálido, cobriu-as de beijos ardentes,
e, com os olhos marejados de lágrimas, abraçou-a longamente, sem uma palavra.
Em seguida,
deixando-a quase desmaiada entre os braços carinhosos do pai, dirigiu-se para a
escada, em demanda do cutter, que já
arfava lá embaixo, nas ondas, preso aos croques reluzentes, o alto latino
caçado.
O
transatlântico poderoso entrou então a virar, barrando de giz a baía buscando
as vagas da barra.
E como a
marcha era lenta pelo extenso canal, que altos bancos ladeavam, o jovem oficial
de marinha resolveu acompanhar o paquete, no seu cutter velejante, até a linha do mar alto. Emparelhou-se com o steamer e começou a voar ao seu lado à
aragem fresca do largo, enquanto a amada querida, debruçada tristemente à borda
do Golden Kaiser, agitava para ele,
em adeuses repetidos, o seu lenço de cambraia.
Seguiu assim
muito tempo, e só volveu para terra, quando o enorme casco fumegante se sumiu
pela proa, perdido na noite densa e nos grandes balanços do mar alto mar...
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