
Teoria do Medalhão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Diálogo
— Estás com sono?
— Não, senhor.
— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a
janela. Que horas são?
— Onze.
— Saiu o último conviva do nosso modesto
jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um
anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás
homem, longos bigodes, alguns namoros...
— Papai...
— Não te ponhas com denguices, e falemos como
dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes.
Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes
entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria,
no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti.
Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino.
Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um
anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te
faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da
obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos,
os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as
esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar
as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir
por diante.
— Sim, senhor.
— Entretanto, assim como é de boa economia
guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar
um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem
suficientemente o esforço da nossa ambição.
É isto o que te aconselho hoje, dia da tua
maioridade.
— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não
me dirá?
— Nenhum me parece mais útil e cabido que o
de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as
instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral,
além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me
e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da
idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos
possas entrar francamente no regímen do aprumo e do compasso. O sábio que
disse: “a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão.
Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é
um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo,
um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco
anos...
— É verdade, por que quarenta e cinco anos?
— Não é, como podes supor, um limite
arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o
verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e
cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se deem entre os cinquenta e cinco e
os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais
precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo
dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
— Entendo.
— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na
carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso
alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás
bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode,
por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era
muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com
violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum,
nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
— Mas quem lhe diz que eu...
— Tu, meu filho, se me não engano, pareces
dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me
refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa
esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias,
ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto
correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou
antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger
ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança. No
entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias
próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza
espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se.
Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o
medalhão completo do medalhão incompleto.
— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo
é invencível.
— Não é; há um meio; é lançar mão de um
regímen debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O
voltarete, o dominó e o whist são
remédios aprovados. O whist tem até a
rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da
circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora
elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar,
restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
— Como assim, se também é um exercício
corporal?
— Não digo que não, mas há coisas em que a
observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é
porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos
habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas,
mormente nas de recreio e parada é utilíssimo, com a condição de não andares
desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si
mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e
disposto a ir comigo?
— Não faz mal; tens o valente recurso de
mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As
livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que
me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande
conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas
às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar
do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um
cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os
leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis
cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente
saudável. Com este regímen, durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois
anos, — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à
disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está
subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio,
apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...
— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo,
de quando em quando...
— Podes; podes empregar umas quantas figuras
expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das
Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas
empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos,
versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo
para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant,
consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns
costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova,
original e bela, mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as
graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero
adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas
consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas
fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as
relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá
ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à
utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei,
executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode
aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma
coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis,
causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito
reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da
aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e
desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes
simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! — E esta frase sintética,
transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o
problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.
— Vejo por aí que vosmecê condena toda e
qualquer aplicação de processos modernos.
— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a
denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves
decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de
deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser
medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou
elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas:
no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a
coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De oitiva, com o
tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa
terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da
ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz
o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia
em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias
provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a
costureira — esperta e afreguesada, — que, segundo um poeta clássico,
Quanto
mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos
monte alardeia de retalhos;
e este fenômeno, tratando-se de um medalhão,
é que não seria científico.
— Upa! que a profissão é difícil.
— E ainda não chegamos ao cabo.
— Vamos a ele.
— Não te falei ainda dos benefícios da
publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves
requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas,
que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que
D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heroicas ou custosas é um
sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra
política. Longe de inventar um Tratado
Científico da Criação dos Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos
sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus
concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome
ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um
benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e
associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os
sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto
que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro
dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em
si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições
gerais. Percebeste?
— Percebi.
— Essa é publicidade constante, barata,
fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é
fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima
pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada
obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade
dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da
mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado
impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o
nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso
(suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na
compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do
progresso” e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No
caso de que uma comissão te leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe o
obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d’água: é uso antigo,
razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for
possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de
glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa
aos repórteres dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os
retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a
notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável,
não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele,
incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é
nada fácil.
— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come
tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a
entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas
os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao
som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse
dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo.
Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão
ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu
serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero
das flores, o anilado dos céus, o
prestimoso dos cidadãos, o noticioso
e suculento dos relatórios. E ser
isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção
idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo
do vocabulário.
— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas
um sobressalente para os déficits da vida?
— Decerto; não fica excluída nenhuma outra
atividade.
— Nem política?
— Nem política. Toda a questão é não
infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido,
liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de
não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a
utilidade do scibboleth bíblico.
— Se for ao parlamento, posso ocupar a
tribuna?
— Podes e deves; é um modo de convocar a
atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: — ou os
negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios
miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria
de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; — é mais fácil e
mais atraente. Supõe que deseja saber por que motivo a 7ª companhia de
infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente
pelo Ministro da Guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato.
Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona
naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois
não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está
achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.
Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
— Nenhuma; antes faze correr o boato de que
um tal dom é ínfimo.
— Nenhuma filosofia?
— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma,
na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que
deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões
que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a
reflexão, originalidade, etc., etc.
— Também ao riso?
— Como ao riso?
— Ficar sério, muito sério...
— Conforme. Tens um gênio folgazão,
prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma
vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de
expansão alegre. Somente, — e este ponto é melindroso...
— Diga.
— Somente não deves empregar a ironia, esse
movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da
decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição
própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa
chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete
pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e
arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
— Meia-noite.
— Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois
anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde.
Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta
noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.
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