11/13/2017

To be or not to be (Conto), de Machado de Assis


To be or not to be
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

---

CAPÍTULO 1

André Soares contava vinte e sete anos, não era magro nem gordo, alto nem baixo; na alma, como no corpo, conservava uma escassa e honrada mediania. Era um desses homens que não aumentam a humanidade quando nascem nem a diminuem quando morrem.

Poupando ao leitor a narração dos acontecimentos principais da vida de André Soares, limito-me a dizer que no dia 18 de março de 1871 — justamente no dia em que rebentava em Paris a revolução da Comuna — achava-se o nosso herói no Rio de janeiro na situação que passo a descrever.

Gozava de um emprego que lhe dava cento e vinte mil-réis por mês e estava nele havia já cinco anos, tendo o natural desejo de subir a outro que lhe desse pelo menos duzentos mil-réis. Não recusaria se lhe oferecessem trezentos; com quatrocentos, é de crer que não se zangasse, e atrevo-me a dizer que chamaria todas as bênçãos do céu sobre quem lhe desse quinhentos.

A verdade, porém, é que apenas tinha cento e vinte, e que apesar de não ter família e morar numa hospedaria barata, clamava André Soares contra o destino ou pedia a todos os santos do céu que lhe aumentassem o ordenado.

Dois meses antes do dia em que esta narração começa, metera André Soares alguns empenhos para obter um lugar que lhe dava justamente duzentos mil-réis, e de onde poderia subir mais facilmente a maiores alturas.

André Soares tinha o sestro de acreditar que os seus sonhos eram realidades, bem como o de ver catástrofes onde muita vez há apenas ligeiros infortúnios e às vezes nem isso.

Apenas metera empenho para o emprego entrou a fazer mil castelos no ar e a fantasiar coisas espantosas. Não lhe chegava decerto o dinheiro, os míseros duzentos mil-réis, numa cidade em que tudo (diz o príncipe Aléxis numa carta que acabo de ler) é mais caro do que nos Estados Unidos e na Havana. Mas, a um sonhador como André Soares, nada é obstáculo. Ele sonhava com passeios de carro, teatros, bons charutos, luvas de pelica, além das despesas usuais, e para tanto não é de crer que dessem os duzentos mil-réis. Sonhava, e bastava o sonho para o fazer feliz.

Já daqui pode o leitor avaliar o pasmo e a dor de André Soares quando recebeu uma carta do personagem que lhe servira de empenho, carta de que basta citar este último trecho:

“... Assim, pois, meu caro Sr. André Soares, sinto não ter podido servi-lo como desejava e devia. Tenha paciência, e mais tarde...”

Nem André Soares nem nenhuma outra pessoa leu nunca o resto da carta, porque ao chegar à última palavra acima transcrita, o pretendente rasgou a epístola em mil pedaços, bateu com as mãos fechadas na testa, rasgou a camisa e atirou-se desesperado a uma cadeira.

Não se sabe com certeza que tempo gastou André Soares na posição em que o deixei no período anterior; o que se sabe é que, depois de estar calado e pasmado, monologou do seguinte modo:

— Haverá no mundo maior desgraça do que a minha? Há empregos graúdos para tanta gente, só não há para um mísero que tem lutado com a sorte durante longos anos? Posso eu viver mais sobre a terra? Há esperanças de me levantar desta abjeção?

— Não, não há, continuou ele. Estou decidido; acabemos de uma vez com esta vida de tribulações; não quero arrastar tamanha miséria até aos 80 anos.

E dizendo isto, o nosso André Soares vestiu camisa nova, meteu-se num paletó,
pôs o chapéu na cabeça e meditou no gênero de morte que devia escolher.

Escolheu afogar-se.

Tinha um cartão de barca na algibeira; dirigiu-se para a ponte das barcas de Niterói. Mais de um olhou para ele; ninguém podia ter ideia de que ali estava um homem em véspera de morrer.

Aproximou-se a barca, entraram os passageiros, e com eles André Soares, que foi sentar-se primeiro num dos bancos interiores, à espera que a barca chegasse ao meio da baía; então procuraria a popa ou a proa e atirar-se-ia ao mar.

A barca seguiu caminho; os passageiros conhecidos conversavam, os desconhecidos aborreciam-se, e neste número incluo André Soares (compreende-se) e uma moça que lhe ficava a dois palmos de distância no mesmo banco.

Não se podia ver se era bonita, porque trazia um espesso véu sobre o rosto; mas o que se podia sentir era um olhar literalmente de fogo. Mais de um passageiro voltava de quando em quando o rosto para a moça de véu, que aliás olhava para o chão, para o mar, para o teto e nunca para ninguém.

Trajava essa desconhecida um vestido de seda escura que lhe ficava muito elegante no corpo. Tinha luvas de pelica de cor igual à do vestido, e da mesma cor calçava uma botina, aliás duas, que lhe ficavam a matar.

Esta última descoberta não a fez nenhum passageiro, mas André Soares que, estando com os olhos pregados no chão a rememorar os seus infortúnios, deu com os olhos num dos pés da velada desconhecida.

Estremeceu.

André Soares resistia a tudo neste mundo, a uns olhos brilhantes, a um rosto adorável, a uma cintura de anel; não resistia a um pé elegante. Dizem até as crônicas que entre alguns versos que outrora compusera como quase todos os rapazes, o que não quer dizer que fosse poeta, figurava esta quadrinha conceituosa e denunciadora dos seus instintos filópedes (relevem-me o neologismo):

Se queres dar-me esperança,
Se queres que eu tenha fé,
Mostra-me, por caridade,
O teu pequenino pé.

Com a desconhecida da barca niteroiense não era preciso recitar esta quadra suplicante; ela estendia o pé com ares de quem queria que André Soares lho visse, e falo assim porque no fim de dez minutos deixou a moça de olhar para o teto, para o mar, para o chão, e entrou a olhar unicamente para ele.

André Soares estava na antessala da morte; nem por isso deixou de sustentar o olhar da moça, dividindo a sua atenção entre o seu rosto e o seu pé. Refletia ele que ir para a sepultura com uma doce recordação da vida não era absolutamente prejudicial à alma. Aqueles minutos em que ainda respirava, aproveitava-os ele na contemplação da moça, e tanto os aproveitou que quando deu acordo de si chegara a barca a São Domingos.

André Soares fez um gesto de despeito; mas não teve tempo de resolver alguma coisa, porque a moça levantou-se para sair lançando-lhe um último olhar, e ele maquinalmente deixou-se ir atrás dela e saiu da barca.

Estava adiado o suicídio, pelo menos por algumas horas, porque o nosso André Soares quando reparou que ainda se não tinha matado, murmurou estas palavras consigo:

— Na volta.

E foi seguindo atrás da bela desconhecida. Bela é talvez pouco; André Soares achou-a fascinadora, quando na ponte uma rajada de vento levantou um pouco o véu da moça.

Ao mesmo tempo, tendo deixado ir a moça adiante, André Soares pôde apreciar os pezinhos e a graça com que ela os movia — nem tão apressada como as francesas, nem tão lenta como as nossas patrícias, mas um meio-termo que permitia ser acompanhada sem desconfiança dos estranhos.

No fim de duzentos passos, André Soares estava namorado quase de todo, sobretudo porque a desconhecida duas ou três vezes voltara o rosto e passara ao infeliz um novo cabo de reboque. Cabo de reboque é uma metáfora que o leitor compreenderá bem e a leitora ainda melhor. Em duas palavras, quando a desconhecida entrou em uma casa, André Soares estava definitivamente resolvido a tentar a aventura, e a adiar, para tempos melhores, o suicídio.


CAPÍTULO 2

Logo nesse dia, voltou o nosso herói para casa tão contente como se houvera tirado a sorte grande. O mar contava um hóspede menos; mas a fortuna coroara mais um de seus escolhidos.

André estava fora de si; amava, não era mal recebido o seu amor, cujo objeto, de mais a mais, era um anjo, um nume, uma criatura mais do céu que da terra, como ele mesmo diria em verso, se ainda cultivasse a poesia.

Os mesmos gestos complacentes que a moça fizera antes de entrar na casa em São Domingos, fizera-os depois de sair, e na barca e na cidade, até chegar à Rua dos Inválidos, onde morava.

Nunca mais terrível devia ser ao nosso André Soares a ideia dos cento e vinte mil-réis mensais, nem mais saudosa a ideia dos duzentos. A verdade, porém, é que não pensou em nada disso; estava mordido deveras. A moça, depois de entrar em casa, não chegou à janela como ele esperava; mas em todo o caso dera-lhe todos os sinais de que não era indiferente a seus afetos, e esta certeza fez do desgraçado daquela manhã o mais venturoso de todos os mortais.

Há de parecer singular a mais de uma leitora que, não lhe tendo dito a desconhecida onde morava, André Soares adivinhasse que era justamente na casa da Rua dos Inválidos onde a vira entrar.

Mas a explicação é facílima.

André Soares pertencia à classe ingênua dos namorados que fazem indagações no armarinho da esquina ou na padaria ao pé. Depois de esperar um razoável tempo a ver se a bela dama aparecia à janela, André dirigiu os passos a uma padaria que ficava perto, e fez as interrogações precisas a um caixeiro que ali encontrou. Veio a saber que a moça era viúva, que se chamava Cláudia, que vivia com um irmão empregado em Niterói, onde tinha alguns parentes.

André Soares arriscou algumas perguntas a respeito da interessante viúva e soube que era exemplar, notícia que o informador lhe deu com muitos comentários a respeito das vantagens da virtude e o apêndice de alguns casos de pessoas que ele conhecera e que desonraram as barbas dos seus avós.

Além destas notícias soube ainda André Soares que a moça possuía cerca de vinte apólices e uma preta velha, que eram toda a riqueza do defunto marido.

— É um bom princípio para quem casar com ela, acrescentou o caixeiro com ar malicioso.

— Decerto, disse André Soares brincando com a corrente do relógio e fitando um olhar perscrutador no caixeiro, que brincava com a tampa de uma barrica vazia.

— Não é muito, mas é um bom princípio, repetiu este.

— E há já algum farejador? arriscou o namorado.

— Nenhum.

— Admira!

— Há muita gente que passa e olha, mas ela não se importa com ninguém.

André Soares estava mais contente do que se lhe viessem trazer o decreto da nomeação malograda. Tinha a moça todas as condições que ele podia exigir naquelas circunstâncias. Sobretudo achava-se ele livre de concorrentes. Se fosse três meses antes...

— Três meses antes, disse o informante, andou aqui um moço que não era mal aceito; mas desapareceu.

André Soares saiu dali contentíssimo.

— Foi um anjo que o céu me enviou, pensava ele, para me salvar da morte e ao mesmo tempo trazer-me a felicidade. E digam lá que não há Providência ou sorte, ou o que quer que seja que vela pelos homens! A pequena é uma formosura, e o pé é o mais gentil que até hoje tenho visto. Que pé! Não é um pé, é um milagre. E os olhos? e o andar?

Fez o namorado assim o inventário das belezas da formosa Cláudia, foi jantar alegremente e logo de tarde deu o seu passeio pela Rua dos Inválidos, tão embebido em olhar para a janela onde estava a moça que não reparou no caixeiro da padaria que se arrimara à porta para assistir ao romance.


CAPÍTULO 3

Era claro que a viúva Cláudia gostava do rapaz; trocou com ele um longo e expressivo olhar e dignou-se responder com um sorriso ao sorriso que André Soares lhe enviou.

Quando ele de todo desapareceu, Cláudia entrou e foi tocar piano. Não escolheu um trecho alegre adequado à situação; preferiu uma melodia triste que parecia dizer com a sua alma, ou ao menos que ela queria que se parecesse com ela. O certo é que, voltando daí a pouco André Soares e ouvindo-a tocar coisas tão melancólicas, sentiu acordar-lhe dentro d’alma um som poético da sua adolescência, e logo nesta noite expectorou uma elegia tão triste que não trazia um verso certo.

A primeira carta não se fez demorar, e a resposta foi imediatamente às mãos do namorado. Não era carta apaixonada a da moça, mas André Soares compreendeu que ela usara de certa reserva que lhe parecia necessária. Replicou o pretendente, treplicou a dama, e os autos de coração foram-se avolumando progressivamente, até que André Soares entendeu que era conveniente frequentar a casa e aproveitou uma apresentação que lhe ofereceram.

A primeira vez que se falaram os dois foi visível para o Sr. Justino Magalhães, irmão de Cláudia, que eles se amavam.

Justino Magalhães tinha um programa na vida: agradar aos pretendentes da irmã, a fim de poder continuar a viver economicamente, isto é, a ter casa e mesa sem despender um real. Fiel a estas ideias, tratou de captar a boa vontade de André Soares, que por sua parte se atirou de corpo e alma aos braços do futuro cunhado.

Cláudia era ainda mais bela de perto que de longe; o namorado verificou logo essa diferença quando começou a frequentar a casa. A moça era sobretudo de uma meiguice incomparável. André Soares ficava encantado quando falavam algum tempo a sós, e ela podia expandir-se com ele.

— Mas por que motivo me distinguiu logo naquele dia na barca? perguntara André uma noite à moça.

— Ora, por quê? Porque o céu nos destinava um para o outro.

— E se soubesse!...

— O quê?

— Não lhe digo.

— Receia?...

— Nada; tenho vergonha. Naquele fatal dia...

— Fatal... repetiu a moça com um ar de doce ressentimento.

— Perdão; fatal por outro motivo, que eu só mais tarde lhe explicarei... Sim, há anjos que velam por nós.

— Há! suspirou a moça.


A conversa foi interrompida por Justino, que se aproximou para dizer que no dia seguinte havia um bonito espetáculo no teatro São Luís.

André Soares recebera justamente nesse dia o ordenado; era ocasião de fazer um convite.

— Tenho justamente camarote para amanhã, disse ele; se quiserem dar-me a honra de aceitar...

— Mas... ia ela dizendo.

— Com muito gosto, atalhou Justino.

O camarote foi aceito.

Mas a curiosidade da moça trabalhava. Que mistério seria esse de que lhe falara André Soares? Insistiu com ele dali a algum tempo, e no dia seguinte, e alguns dias depois, até que o namorado francamente confessou que um motivo grave o levara a cometer um crime.

— Um crime?

— A minha própria morte.

A moça ficou séria.

— Alguma paixão, disse ela com tristeza.

— Oh! não!

— Não compreendo...

— Que quer? disse ele. Nem só de pão vive o homem; achava-me numa situação pecuniária desagradável e... mas para que falarmos de coisas mesquinhas?...

André Soares calou-se e entrou a refletir; pareceu-lhe que fora expansivo demais e que acabava de dar à namorada a ideia de pinga. Igualmente lhe pareceu que um pinga só é poético nos livros, mas que na vida real toda a gente o despreza. E refletiu, enfim, que, apresentando-se candidato à mão da viúva, cumpria-lhe
mostrar que não ia só atrás das suas apólices...

O resultado de todas estas reflexões produziu esta observação:

— Felizmente, lá vai esse tempo: foi uma crise que passou. Agora...

— Não desejo saber isso, disse a moça; por que não falaremos só do nosso coração?

— É apenas um parênteses necessário, disse André Soares, é-me preciso explicar-lhe a razão por que até hoje não pedi oficialmente a sua mão.

A moça fez um gesto.

André continuou:

— Não lhe pedi a sua mão porque espero obter um novo lugar que me coloque em situação melhor do que atualmente me acho. Não é ela má! lembro-lhe, porém, que sou solteiro; casado, seria insuficiente. Peço-lhe desculpa de entrar nestes pormenores; é uma senhora de juízo; e há de aceitá-los como cabidos e necessários.

— Nem cabidos nem necessários, disse a moça; eu pouco tenho, mas tenho alguma coisa...

— Perdão...

— Ouça...

— Desejo observar...

— Ouça. O seu pouco com o meu pouco farão o necessário para a nossa existência. Duas criaturas que se amam são naturalmente econômicas das coisas da vida.

André Soares teve ímpeto de cair aos pés da moça e ir dali com ela para a igreja.

Conteve-se do primeiro movimento.

O segundo era impossível.

— O que me acaba de dizer é a expressão elevada e nobre de seu coração, disse ele. Eu, porém, não tenho o direito de falar a mesma linguagem; a sociedade exige mais de mim. Peço-lhe só alguns dias de espera.

André Soares pedira efetivamente um novo emprego, e desta vez se não havia mais probabilidade que da outra, havia mais esperanças no fácil espírito do pretendente.

Justino soube, pela irmã, das razões dadas por André Soares, e achou que eram de cavalheiro.

— É um rapaz muito simpático, disse Justino; é um homem como há poucos.

Esta opinião de Justino não devia produzir impressão no ânimo de Cláudia, porque ele não tinha outra a respeito de todos os pretendentes da irmã.

Todavia entusiasmou-a.

E a razão é clara.

Cláudia gostava realmente do rapaz; e o seu coração não se lembrava ou não reparava na opinião uniforme de Justino a respeito de outras pessoas que a pretendessem mas a quem ela nunca dera atenção.

Justino, porém, insistiu na opinião que formara de André Soares, e tão cavalheiro o achou que não teve dúvida de lhe pedir vinte mil-réis no dia seguinte.

Não era a primeira vez que Justino recorria à bolsa de André Soares, e porque isso, e outras necessidades que agora lhe acresciam, aumentavam as despesas de André Soares, ia este sendo obrigado a recorrer à bolsa de outros, e a criar assim uma dívida externa assaz vasta.

E tão triste é esta situação que eu não tenho ânimo de continuar o capítulo. Veremos no capítulo seguinte o que aconteceu ao nosso herói.


CAPÍTULO 4

São passados cinco meses depois da conversa em que André Soares expôs à sua amada qual era a situação de sua vida e quais os seus projetos.

Os dias foram passando sem vir o emprego; André Soares passava já uma vida assaz triste e lastimosa. A moça por sua parte, conquanto desejasse repetir-lhe o que uma vez lhe dissera, não se atrevia a fazê-lo a fim de conservar a reserva que a sua posição lhe impunha.

Redobrava entretanto de carinhos e afeto com o mísero namorado, o que de algum modo lhe suavizava as penas do coração.

— Que anjo! dizia ele todas as noites ao retirar-se para casa. Que anjo!

Se o emprego não vinha, em compensação chegavam as dívidas, e o passivo de
André Soares ia tomando um aspecto assustador.

Ao mesmo tempo o amor do pobre rapaz, se era possível, crescia mais, o que estava longe de ser um lenitivo naquela situação. A ideia de não poder casar com a bela viúva, ou de casar nas condições em que ele se achava, atormentava o espírito do pobre moço.

Imagine-se o que sofreria o coração do pobre rapaz e calcule-se em que circunstâncias, e com que cara ouviu ele um dia, ao passar pela padaria de que falei no segundo capítulo, as seguintes palavras do caixeiro a um vizinho:

— Este é uma das duas amarras da viuvinha.

André ficou sem pinga de sangue. Naturalmente ia voltar o rosto, mas a tempo deteve o movimento e continuou a andar até entrar na casa da viúva Cláudia.

Parou, entretanto, no corredor antes de subir as escadas.

E refletiu:

— Que será aquilo? Iludir-me-á esta mulher? Serei eu a fábula da rua? Terei eu um rival mais venturoso?

Estas e outras interrogações fê-las o nosso herói com o desespero na alma e no rosto.

Sentiu depois uma dor aguda no peito e teve uma vertigem.

O desgraçado padecia deveras, amava deveras.

Enfim subiu.

Cláudia recebeu-o com o modo do costume, o qual modo havia já vinte dias que não era o mesmo modo anterior. O mísero namorado, entretanto, não dera por isso até então.

Naquele dia, porém, como já tinha a pulga atrás da orelha, notou uma grande diferença, irritou-se com ela, disse algumas palavras secas à moça e saiu. Calcula-se facilmente qual seria a noite do pobre rapaz. No dia seguinte enviou uma lacrimosa epístola à sua dama, dizendo-lhe:

“Cláudia:

Uma terrível revelação me foi feita ontem. Ainda assim quero crer em ti. Preciso, porém, que me jures se realmente me amas ou se eu já não mereço da tua parte o afeto com que me honraste outrora.”

Dois dias esperou a resposta desta carta. No terceiro apareceu-lhe em casa Justino. Vinha alegre. Trocaram algumas palavras banais, e enfim:

— Sei que você escreveu uma carta a minha mana, disse o irmão da viúva.

— É verdade.

— Cláudia riu-se quando a leu.

— Riu-se?

— É verdade: riu-se. E não devia fazer outra coisa... Dê cá um charuto... Não devia fazer outra coisa, porque no ponto em que se acham as coisas entre ambos, exigir agora uma explicação daquela ordem... é singular.

Justino concluía estas palavras e recebia das mãos de André Soares o charuto que pedira.

André Soares não cabia em si de contente.

— Então, ela?

— Você é um visionário, um crédulo, um rapazola sem juízo. Pois então uma senhora em vésperas de casar com você... Que bom charuto!

— Leve mais estes.

— Obrigado. Como ia dizendo uma senhora em vésperas de casar por livre vontade, há de lá... Você é um doido!...

André Soares concordou facilmente com tudo o que lhe dizia Justino, e prometeu que nessa mesma noite lá iria à casa deles. Recusou entretanto dizer de onde lhe viera a revelação a que aludira na carta.

Justino conversou largo tempo com o futuro cunhado, de quem se despediu para ir embora.

— Já!

— Já! Vou pagar uma dívida. Vejamos se me chega o dinheiro.

E meteu a mão no bolso do paletó com a confiança de um homem que traz a carteira. Errada confiança, porque a carteira ficara em casa.

— Não seja essa dúvida, disse André Soares; eu empresto-lhe o que for preciso, se não orçar por muito!

— Trinta e cinco mil e quinhentos, disse Justino.

— Tome lá, acudiu André Soares entregando-lhe trinta e dois mil-réis. Não tenho mais.

— Não faz mal. Para tapar a boca ao credor, cuido que é bastante.

Justino saiu alegremente depois de muitas amabilidades ao futuro cunhado que não menos alegre ficou.

A cena que precede deve ter explicação.

Cláudia não mostrou a carta de André Soares ao irmão. Viu-a este sobre uma mesa, perguntou à viúva o que era, e esta disse então um tanto zangada que eram ciúmes do noivo.

— Posso ler?

— Lê.

Leu a carta Justino e ofereceu-se para ir entender-se com André Soares, coisa que a viúva nem aprovou nem reprovou; limitou-se a encolher os ombros.

André não era homem que descobrisse na missão de Justino a necessidade de trinta e cinco mil-réis, e a dívida, que podia existir, mas que, em todo caso, não ia ser paga, pareceu-lhe tão autêntica, que iria pedir emprestado se não tivesse dinheiro, para favorecer o amigo.

Ao chegar à casa da noiva ia André Soares todo trêmulo de comoção. A moça, entretanto, pareceu-lhe ainda mais fria que da última vez. Atribuiu isso ao ressentimento que lhe deixara a carta.

— Mas então não perdoa? perguntou ele.

— O quê?

— A carta.

Cláudia levantou os ombros.

— Foi uma imprudência, confesso, disse ele; mas que quer? Eu amo-a.

— Nada.

— Aproveito a ocasião para lhe dizer que daqui a um mês será o nosso casamento, disse André Soares, se acaso a ele se não opõe.

Cláudia ficou um pouco surpreendida com a notícia, continuou entretanto a ficar calada.

André Soares saiu vendendo azeite às canadas.

— Há alguma coisa, por força, pensava ele, mas eu hei de descobrir tudo!


CAPÍTULO 5

André Soares começou então uma vida de pesquisas e de cuidados, cuidados e pesquisas tais que o obrigaram a ir faltando à repartição, faltando-lhe igualmente a paz e o sono. Fazia ronda de tarde e de noite, passava horas e horas em casa da noiva sem todavia alcançar nada.

Uma vez apenas reparou que, ouvindo bater cinco horas, a moça interrompera a conversa para ir à janela. Ficou aflito na cadeira em que se achava, receoso e desejoso de ir também àquela. Afinal foi, mas não viu nada, porque a moça saiu logo.

Nesta atribulada vida andava André Soares, quando, num domingo, entrando em casa de Cláudia, deu com os olhos num sujeito da sua mesma idade, alto, bonito, vestido regularmente e muito respeitoso para com a interessante viúva.

Justino apresentou os dois estranhos um ao outro, donde veio André Soares a saber que o outro chamava-se Horácio.

Eu creio que a leitora é perspicaz e que já está a desconfiar de que este Horácio é o mesmo moço que o caixeiro da padaria dissera a André Soares ter andado há algum tempo a namorar a viúva, e não ser mal aceito dela.

Não o soube logo André Soares; mas a simples presença de um estranho, as maneiras com que tratava a moça, e a benevolência e gosto com que esta o ouvia e lhe respondia, tudo isso era razão para que o pobre namorado recebesse logo um imenso golpe.

As torturas por que passou nessa tarde foram indescritíveis.

No dia seguinte ainda foi pior. Oito dias depois tinha André Soares toda a certeza de que a bela passara com armas e bagagens ao campo inimigo.

Algumas coisas fortes lhe disse, a que ela respondeu com o silêncio; foi para casa e escreveu uma longa, indignada, lacrimejada e fulminante carta, a que a moça não respondeu.

Seu desespero já não tinha limites.

— Por que fatal acaso encontrei eu aquela mulher? perguntava ele a passear sozinho na sua sala. Parecia então que nada pior me podia acontecer. Erro! Havia pior; essa víbora que zombou de mim.

E logo:

— Mas eu hei de tirar vingança! Não se dirá que fui ludibriado por ambos, ou antes por todos três, porque o Justino também contribuiu para iludir-me. Venha ainda alguma vez pedir-me alguma coisa...

Aqui claudicava a perspicácia do namorado.

Justino nada mais lhe pedira desde o dia dos trinta e dois mil-réis.

Era então a carteira de Horácio que se incumbira de corrigir as lacunas que às vezes havia na sua. Justino o mais que fazia era pedir uma ou outra vez algum charuto ao André Soares.

Nada mais.

André Soares entendeu que lhe cumpria pedir satisfações a Horácio. Refletiu depois e preferiu ocultar o que entre ele e ela havia; não dispensou, porém, brigar com o rival.

Para isto bastava um pretexto.

Mas que pretexto seria?

— Ora, adeus! pensou ele consigo. A ocasião me dará o pretexto.

Logo no dia seguinte entrando numa casa de charutos, encontrou Horácio, a quem ligeiramente cumprimentou.

Horácio pareceu não fazer caso dele.

André Soares foi às nuvens.


Depois de um silêncio:

— Vai hoje à Rua dos Inválidos?

— Sim, senhor, respondeu secamente Horácio.

— Há muito tempo já que conhece aquela família?

Horácio olhou para ele sem dignar-se responder.

— Não me ouviu, creio eu.

— Estou a recordar-me do tempo, disse Horácio depois de alguns instantes. Creio que conheço aquela família desde o tempo em que a casa não era frequentada por tolos.

André Soares ficou vermelho como um lacre; todavia era preciso responder.

— Então não há muito tempo, disse ele; creio que entraram juntos lá os tolos e o senhor.

Horácio foi sacudido com esta resposta. As palavras trocadas em voz alta chamaram a atenção do dono da casa. A tragédia estava iminente.

Horácio tinha dois caminhos.

O primeiro era ir-se embora.

O segundo era ir-lhe às orelhas.

Preferiu o segundo.

Encaminhou-se para André Soares; alçou delicadamente as mãos às orelhas dele; agarrou-lhas, sacudiu-lhe a cabeça e, antes que o infeliz tivesse tempo de se defender, saiu pela porta fora.

André Soares ainda saiu à rua, mas fosse medo, vergonha, ou qualquer outra causa, não se atreveu a ir brigar com ele em público; limitou-se a tomar os nomes do dono da casa e do caixeiro para o caso de dar queixa contra o agressor, e saiu dali para casa.
Em caminho, porém, teve ideia de ir à casa da viúva.

— É claro que eles se amam, pensou ele; mas eu preciso antes de abater as armas mostrar o que sou e o que valho. Hei de dizer a essa pérfida aquilo que ela não pensa ouvir.

Estava André Soares em plena regateirice; nem eu o dou por frequentador de salões aristocráticos. Demais, o amor faz perder o juízo.

André Soares caminhou direito à casa da viuvinha.

Bateu palmas.

Nada.

Repetiu as palmas.

A mesma coisa.

— Que será? Estará fora? pensou ele.

Enfim vieram ver quem era. André Soares disse que desejava falar à dona da casa.

— Está incomodada.

— Mas... diga-lhe que sou eu.

— Não recebe ninguém.

André Soares saiu dali ainda mais furioso. Mil ideias negras lhe transtornavam o espírito; só via diante de si mortes, sangue, cadafalso.

Ao chegar à casa achou duas cartas.

Uma era de Cláudia.

Dizia assim:

“Nunca chegamos a nenhum acordo acerca de casamento; mas, sabendo que nutre ideias a esse respeito, declaro-lhe que desista delas.”

— Despedido! exclamava o mísero André Soares. Despedido como um lacaio!... Insultado por ele e por ela. Oh! minha sina! Oh! minha triste sina!

Assim falando, o infeliz namorado torcia-se todo, puxava os cabelos, rangia os dentes, e chorava de dor, de desespero e de ódio.

No meio dessa crise, lembrou-lhe o criado que ainda havia outra carta.

Abriu-a.

Era do chefe da repartição.

Participava-lhe que, não comparecendo ele com a assiduidade de costume, antes fugindo absolutamente do trabalho, resolvera o ministro demiti-lo.

André Soares caiu sem sentidos no chão.

Um mês depois, estando a almoçar pacificamente no Carceller, graças ao crédito que obtivera de um amigo e antigo companheiro de casa, viu passar Horácio e a viúva de braço dado.

Estavam casados.

— Miseráveis! grunhiu André Soares.

MORALIDADE

Mas onde está a moralidade do conto? pergunta a leitora espantada com ver esta série de acontecimentos descosidos e vulgares.

A moralidade está nisso.

Tendo perdido a esperança de obter um emprego de duzentos mil-réis, quando apenas desfrutava um de cento e vinte, assentou André Soares de dar cabo da vida.

No dia, porém, em que perdeu a noiva e o emprego de cento e vinte mil-réis, com um insulto físico de quebra, não se matou, nem tentou matar-se, nem se lembrou de o fazer.

Tanto é certo que o suicídio depende mais das impressões e disposições do momento, que da gravidade do mal.

Disse. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...