Um Erradio
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
A porta abriu-se... Deixa-me contar a história à laia de novela, disse Tosta à mulher, um mês depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa velha fotografia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e sério, moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rapé, que os rapazes chamavam opa.
— Aí vem a opa do Elisiário.
— Entre a opa só.
— Não, a opa não pode; entre só o Elisiário,
mas, primeiro há de glosar um mote. Quem dá o mote?
Ninguém dava o mote. A casa era uma simples
sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a família; Rua do
Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos rapazes. Não
podes ter ideia da sala e da vida. Imagina um município do país da Boêmia, tudo
desordenado e confuso; além dos poucos móveis pobres, que eram do alfaiate,
havia duas redes, uma canastra, um cabide, um baú de folha-de-flandres, livros,
chapéus, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas apareciam outros, e todos eram
tudo, estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava
tempo para redigir uma folha política e literária, publicada aos sábados. Que
longas palestras que tínhamos! Solapávamos as bases da sociedade, descobríamos
mundos novos, constelações novas, liberdades novas. Tudo era o novíssimo.
— Lá vai mote, disse afinal um dos rapazes, e
recitou:
Podia
embrulhar o mundo
A opa do
Elisiário.
Parado à porta, o homem cerrou os olhos por
alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na
mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu,
que não tinha ideia do que era improviso, cuidei a princípio que a composição
era velha e a cena um logro para mim. Elisiário despiu a sobrecasaca,
levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triunfal, e
foi pendurá-la a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapéu
ao teto, apanhou-o entre as mãos, e foi pô-lo em cima do aparador.
— Lugar para um! disse finalmente.
Dei-me pressa em ceder-lhe o sofá; ele
deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia.
— Que o jantar é duvidoso, respondeu o redator
principal do Cenáculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assinatura. Se
arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Você já jantou?
— Já e bem, respondeu Elisiário, jantei numa
casa de comércio. Mas vocês por que é que não vendem o Chico? é um bonito
crioulo. É livre, não há dúvida, mas por isso mesmo compreenderá que,
deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados...
Dois mil-réis chegam? Romeu, vê ali no bolso da sobrecasaca. Há de haver uns
dois mil-réis.
Havia só mil e quinhentos, mas não foram
precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um tabuleiro com o
jantar e o resto da assinatura de um semestre.
— Não é possível! bradou Elisiário. Uma
assinatura! Vem cá, Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo?
Não é possível que fosse baixo; a ação é tão sublime que nenhum homem baixo
podia praticá-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia
altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimarães? Rapazes, vamos perpetuar
este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe deste recibo, Chico.
— Dei, sim, senhor.
— Recibo! Mas a um assinante que paga não se
dá recibo, para que ele pague outra vez; não se matam esperanças, Chico.
Tudo isto, dito por ele, tinha muito mais
graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não
ria, um riso único, sem alterar a face, nem mostrar os dentes. Essa feição era
a menos simpática; mas tudo o mais, a fala, as ideias, e principalmente a
imaginação fecunda e moça, que se desfazia em ditos, anedotas, epigramas,
versos, descrições, ora sério, quase sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas
sempre original, tudo atraía e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabelo à
escovinha; a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado,
parecia estar pensando. Voltava-se a miúdo no sofá, erguia-se, sentava-se,
tornava a deitar-se. Lá o deixei, quando saí, às nove horas da noite.
Comecei a frequentar a casa da Rua do
Lavradio, mas durante os primeiros dias não apareceu o Elisiário. Disseram-me
que era muito incerto. Tinha temporadas. Às vezes, ia todos os dias;
repentinamente, falhava uma, duas, três semanas seguidas, e mais. Era professor
de latim e explicador de matemáticas. Não era formado em coisa nenhuma, posto
estudasse engenharia, medicina e direito deixando em todas as faculdades fama
de grande talento sem aplicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever
vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, não escrevia os versos, os
outros é que os ouviam e transladavam ao papel, dando-lhe cópias, muitas das
quais perdia. Não tinha família; tinha um protetor, o Dr. Lousada, operador de
algum nome, que devera obséquios ao pai de Elisiário, e quis pagá-los ao filho.
Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-próprio que não tolerava a
menor picada. Naquela casa era bonachão. Trinta e cinco anos; o mais velho dos
rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade entre ele e os outros era
como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de
liberdade.
No fim de uma semana, apareceu Elisiário na
Rua do Lavradio. Vinha com a ideia de escrever um drama, e queria ditá-lo.
Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta colaboração mental e manual
durou duas noites e meia. Escreveu-se um ato e as primeiras cenas de outro;
Elisiário não quis absolutamente acabar a peça. A princípio disse que depois,
mais tarde, estava indisposto, e falava de outras coisas; afinal, declarou-nos
que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos
excelente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e
demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia coisa
nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós contestávamos; eu principalmente
achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo — achava um crime
não acabar o drama, que era de primeira ordem.
— Não vale nada, dizia ele sorrindo para mim
com simpatia. Menino, você quantos anos tem?
— Dezoito.
— Tudo é sublime aos dezoito anos. Cresça e
apareça. O drama não presta; mas,
deixe estar que havemos de escrever outro
daqui a dias. Ando com uma ideia.
— Sim?
— Uma boa ideia, continuou ele com os olhos
vagos; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco atos; talvez faça em verso. O
assunto presta-se...
Nunca mais falou em tal ideia; mas o drama
começado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou
amor-próprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a interrupção e
condenação do trabalho fui eu, — ou qualquer outra causa que não achei nem vale
a pena buscar, Elisiário entrou a distinguir-me entre os outros. Quis saber
quem eram meus pais e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe; meu pai era
lavrador em Baturité, eu estudava preparatórios, intercalando-os com versos, e
andava com ideias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha já uma lista
de subscritores para os versos. Parece que, de envolta com as notícias
literárias, alguma coisa lhe disse ou ele percebeu acerca dos meus sentimentos
de moço. Propôs-se a ajudar-me nos estudos com o seu próprio ensino, latim,
francês, inglês, história... Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade,
proferi algumas palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente:
— Quero fazer de você um homem.
Estávamos sós; eu nada contei aos outros,
para os não molestar, nem sei se eles perceberam daí em diante alguma diferença
no trato do Elisiário, em relação a mim. É certo, porém, que a diferença não
era grande, nem o plano de "fazer-me um homem" foi além da simpatia e
da benevolência. Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia lições, e eu
raramente as pedia. Queria só ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo até não acabar. Não
imaginas a eloquência desse homem, cálida e forte, mansa e doce, as imagens que
lhe brotavam no discurso, as ideias arrojadas, as formas novas e graciosas.
Muita vez ficávamos os dois sós na Rua do Lavradio, ele falando, eu ouvindo.
Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados da Gamboa, mas nunca me
convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era.
Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada
faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e, se falava, eram
poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço quase
sem prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a
andar. Ia a toda parte; era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos
outros, Botafogo, São Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se
na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.
— Eu sou um erradio. No dia em que parar de
vez, jurem que estou morto.
Um dia encontrei-o na Rua de São José.
Disse-lhe que ia ao Castelo ver a igreja dos Jesuítas, que nunca vira.
— Pois vamos, disse ele.
Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e
entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos
o espetáculo era ele só, um espetáculo vivo, como se tudo renascera tal qual
era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida
monástica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes. Quando saímos, e
fomos até à muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiário fez-me
viver dois séculos atrás. Vi a expedição dos franceses, como se a houvesse
comandado ou combatido. Respirei o ar da colônia, contemplei as figuras velhas
e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar
vida às coisas extintas e realidade às inventadas.
Mas não era só do passado local que ele
sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquela estatuazinha que ali tenho na
parede? Sabes que é uma redução da Vênus de Milo. Uma vez, abrindo-se a
exposição das belas-artes, fui visitá-la; achei lá o meu Elisiário, passeando
grave, com a sua imensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura,
dei com os olhos na cópia desta Vênus. Era a primeira vez que a via. Soube que
era ela pela falta dos braços.
— Oh! admirável! exclamei.
Elisiário entrou a comentar a bela obra
anônima, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de
coisas me disse a propósito da Vênus de Milo, e da Vênus em si mesma! Falou da
posição dos braços, que gesto fariam, que atitude dariam à figura, formulando
uma porção de hipóteses graciosas e naturais. Falou da estética, dos grandes
artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro
grego, que ali me aparecia e transportava de uma rua estreita para diante do
Pártenon. A opa do Elisiário transformou-se em clâmide, a língua devia ser a da
Hélade, conquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas
era feiticeiro o diabo do homem.
Saímos; fomos até o Campo da Aclamação, que
ainda não possuía o parque de hoje, nem tinha outra polícia além da natureza,
que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa
defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiário, ao lado dele, que
levava a cabeça baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho:
— Adeus, Ioiô!
Era uma quitandeira de doces, uma crioula
baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha
da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiário respondeu à saudação:
— Adeus, Zeferina.
Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e,
depois de alguns segundos:
— Não se espante, menino. Há muitas espécies
de Vênus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando
para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta
e alva da camisa.
Eu, de vexado, não achei resposta.
Não contei esse episódio na Rua do Lavradio;
podiam meter à bulha o Elisiário, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe
não sei que veneração particular que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos
a jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe
custava no teatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas
pessoas, com gente adiante e atrás de si. Nas noites de enchente, em que eram
precisas travessas na plateia, ficava aflito com a ideia de não poder sair no
meio de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o terceiro ato (a peça tinha cinco), disse-me que não
podia mais e que ia embora.
Fomos tomar chá ao botequim próximo, e
deixei-me estar, esquecido do espetáculo. Ficamos até o fechar das portas.
Tínhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do sertão cearense, ele ouviu
e projetou mil jornadas ao sertão do Brasil inteiro, por serras, campos e rios,
de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou
a vida do caipira, falou de Enéias, citou Virgílio e Camões, com grande espanto
dos criados, que paravam boquiabertos.
— Você era capaz de ir daqui a pé, até São
Cristóvão, agora? perguntou-me na rua.
— Pode ser.
— Não, você está cansado.
— Não estou, vamos.
— Está cansado, adeus; até depois, concluiu.
Realmente, estava fatigado, precisava dormir.
Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, àquela
hora, e deu-me vontade de acompanhá-lo de longe, até certo ponto. Ainda o
apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as
mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação,
enfiou pela Rua de São Pedro e meteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quis
voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio
não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei desta reflexão, e quis
punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor às
pernas. Fui andando atrás do Elisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado,
enfiamos por ela, desembocamos na Rua de São Cristóvão. Ele algumas vezes
parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra
patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim
chegamos ao cais da Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o
dia, conduziam gente para o Saco do Alferes. Maré frouxa, apenas o ressonar
manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo
caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e
propôs-lhes levá-lo à cidade. Não sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma
relutância, aceitaram a proposta.
Elisiário entrou no bote, que se afastou
logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor
de latim e explicador de matemáticas. Também eu me achei perdido, longe da
cidade e exausto. Valeu-me um tílburi, que atravessava o Campo de São Cristóvão,
tão cansado como eu, mas piedoso e necessitado.
— Você não quis ir comigo anteontem a São
Cristóvão? Não sabe o que perdeu; a noite estava linda, o passeio foi muito
agradável. Chegando ao cais da Igrejinha, meti-me num bote e vim desembarcar no
Saco do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei numa hospedaria do Campo
de Sant'Ana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por dois na Rua
de São Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um
justo. E você que fez?
— Eu?
Não querendo mentir, se ele me tivesse
pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi sumariamente:
— Eu? Eu também dormi como um justo.
— Justus,
justa, justum.
Estávamos na casa da Rua do Lavradio.
Elisiário trazia no peito da camisa um botão de coral, objeto de grande espanto
e aclamação da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com joias. Maior,
porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes saíram. Tendo ouvido que me
faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisiário sacou o botão de coral e disse
que me fosse calçar com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceitá-lo à
força. Não o vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado
ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que chegasse o
paquete do Norte, para restituir o botão ao Elisiário. Se visses a cara de
desconsolo com que o recebeu!
— Mas o senhor não disse outro dia que lhe
tinham dado este botão de presente? repliquei à proposta que me fez de ficar
com a joia.
— Sim, disse e é verdade; mas para que me
servem joias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como é presente,
posso guardar o botão. Deveras, não o quer para si?
— Não, senhor; um presente...
— Presente de anos, continuou mirando a pedra
com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; não tardo em
pedir reforma e ir morrer em algum buraco.
Tinha acabado de repor o botão na camisa.
— Fez anos, e não me disse.
— Para quê? Para visitar-me? Não recebo nesse
dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que também faz o seu
versinho, às vezes, e outro dia brindou-me com um soneto impresso em papel azul...
Lá o tenho em casa; não é mau.
— Foi ele que lhe deu o botão...
— Não, foi a filha... O soneto tem um verso
muito parecido, com outro de Camões; o meu velho Lousada possui as suas letras
clássicas, além de ser excelente médico... Mas o melhor dele é a alma...
Quiseram fazê-lo deputado. Ouvi que dois
amigos dele, homens políticos, entenderam que o Elisiário daria um bom orador
parlamentar. Não se opôs, pediu apenas aos inventores do projeto que lhe
emprestassem algumas ideias políticas; riram-se, e o projeto não foi adiante.
Quero crer que lhe não faltassem ideias,
talvez as tivesse de sobra, mas tão contrárias umas às outras que não chegariam
a formar uma opinião. Pensava segundo a disposição do dia, liberal exaltado ou
conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de
obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de câmara. Se houvesse
liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de
madrugada, ao acaso da frequência, sem ordem do dia, com direito de discutir o
anel de Saturno ou os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisiário aceitaria o
cargo, contanto que não fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe
chegasse a vez.
Aí tens o que era esse homem fotografado em
1862. Em suma, boa criatura, muito talento, excelente conversador, alma
inquieta e doce, desconfiada e irritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades
nem ambições, um erradio. Senão quando... Mas é muito falar sem fumar um
charuto... Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse retrato,
descontando-lhe os olhos, que não saíram bem; parecem olhos de gato e
inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a consciência. Não eram
isso; olhavam mais para dentro que para fora, e quando olhavam para fora
derramavam-se por toda a parte.
Senão quando, uma tarde, já escuro, por volta
das sete horas, apareceu-me na casa de pensão o meu amigo Elisiário. Havia três
semanas que o não via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo
metido em casa, não me admirei da ausência nem cuidei dela. Demais, já me
acostumara aos seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de
apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiário apareceu à porta.
Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé dele, perguntei-lhe por onde
andara. Elisiário abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer
nada; abracei-o também, ele enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia
fechado na mão, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente,
porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado,
esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal murmurei:
— Que é? que foi?
— Tosta, casei-me sábado...
Cada vez mais espantado, não tive tempo de
lhe pedir outra explicação, porque o Elisiário continuou logo, dizendo que era
um casamento de gratidão, não de amor, uma desgraça. Não sabia que respondesse
à confidência, não acabava de crer na notícia, e principalmente, não entendia o
abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisiário, qual a recompus depois,
não me aparecia por esse tempo com a significação verdadeira. Cheguei a supor
alguma coisa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou
tísica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente?
"Uma desgraça! repetia baixinho, falando
para si, uma desgraça!"
Como eu me levantasse dizendo que ia acender
uma vela, Elisiário reteve-me pela aba do fraque.
— Não acenda, não me vexe, o escuro é melhor,
para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que
ela me não ame; ao contrário, morria por mim há sete anos. Tem vinte e cinco...
Boa criatura! Uma desgraça!
A palavra desgraça
era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quase não
respirava; mas não ouvi grande coisa, pois o homem, depois de algumas palavras
descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher era filha
do Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o botão de coral.
Elisiário calou-se de repente, e depois de alguns instantes como arrependido ou
vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquela cena dele comigo.
— O senhor deve conhecer-me...
— Conheço, e porque o conheço é que vim aqui.
Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe
digo mais nada, não vale a pena. Você é moço, Tosta; se não tiver vocação para
o casamento, não se case nunca, nem por gratidão, nem por interesse. Há de ser
um suplício. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas não me
procure.
Abraçou-me e saiu. Fiquei à porta do quarto. Quando
me lembrei de acompanhá-lo até escada, era tarde; ia descendo os últimos
degraus. O lampião de azeite alumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa,
apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste.
Só dez meses depois tornei a ver o Elisiário.
A primeira ausência foi minha; tinha ido ao Ceará, ver meu pai, durante as
férias. Quando voltei, soube que ele fora ao Rio Grande do Sul. Um dia,
almoçando, li nos jornais que chegara na véspera, e corri a buscá-lo. Achei-o em
Santa Teresa, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ela.
Elisiário abraçou-me com alvoroço; falamos de coisas passadas; perguntei-lhe
pelos versos.
— Publiquei um volume em Porto Alegre. Não
foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma
os copiou. Tem alguns erros; hei de fazer aqui uma segunda edição.
Elisiário deu-me um exemplar do livro, mas
não consentiu que lesse ali nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o
sogro, que lhe deixara alguma coisa, e ia continuar a lecionar, para ver se
achava as impressões de outrora. Onde estavam os rapazes da Rua do Lavradio?
Recordava cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam
lembrando coisas análogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando
me despedi, pegou-me para jantar.
— Você ainda não viu minha mulher, disse ele.
E indo à porta que dava para dentro: — Cintinha!
— Lá vou! respondeu uma voz doce.
D. Jacinta chegou logo depois, com os seus
vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e
séria, grande quietação de maneiras. Quando ele lhe disse o meu nome, olhou
para mim espantada.
— Não é um bonito rapaz?
Ela confirmou a opinião inclinando
modestamente a cabeça. Elisiário disse-lhe que eu jantava com eles; a moça
retirou-se da sala.
— Boa criatura, disse-me ele; dedicada,
serviçal. Parece que me adora. Já me não faltam botões nos paletós que trago...
Pena! melhor que eles eram os botões que faltavam. A sobrecasaca de outrora,
lembra-se?
Podia embrulhar
o mundo
A opa do
Elisiário.
— Lembra-me.
— Creio que me durou cinco anos. Onde vai
ela! Hei de fazer-lhe um epicédio, com uma epígrafe de Horácio...
Jantamos alegremente. D. Jacinta falou pouco;
deixou que eu e o marido gastássemos o tempo em relembrar o passado.
Naturalmente, o marido tinha surtos de eloquência, como outrora; a mulher era
pouca para ouvi-lo. Elisiário esquecia-se de nós, ela de si, e eu achava a
mesma nota antiga, tão viva e tão forte. Era costume dele concluir um discurso
desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer?
Continuava a mesma ordem de ideias? Deixava-se ir ainda pela música da palavra?
Não sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas
ocasiões a mulher calava-se também, a olhar para ele, não cheia de pensamento,
mas de admiração. Sucedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita.
Elisiário disse-me, ao café, que viria comigo
abaixo.
— Você deixa, Cintinha?
D. Jacinta sorriu para mim, como se dissesse
que o pedido era desnecessário. Também ela falou no livro de versos do marido.
— Elisiário é preguiçoso; o senhor há de
ajudar-me a fazer com que ele trabalhe.
Meia hora depois descíamos a ladeira.
Elisiário confessou-me que, desde que casara, não tivera ocasião de relembrar a
vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iríamos ao teatro.
— Mas você não avisou em casa...
— Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não
se zanga por isso. Que teatro há de ser?
Não foi nenhum; falamos de outras coisas, e
às nove horas tornou para casa. Voltei a Santa Teresa poucos dias depois, não o
achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria.
— Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse
ela; há de gostar muito de o ver.
Enquanto falava, ia fechando dissimuladamente
um livro, e foi pô-lo em uma mesa, a um canto. Tratamos do marido; ela pediu-me
que lhe dissesse o que pensava dele, se era um grande espírito, um grande
poeta, um grande orador, um grande homem, em suma. As palavras não seriam propriamente
essas, mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o sentimento,
e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que
empreguei para dar à minha opinião a mesma ênfase.
— Faz bem em ser amigo dele, concluiu; ele sempre
me falou bem do senhor; dizia que era um menino muito sério.
O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola
com passarinho. Tudo em ordem, cada coisa em seu lugar, obra visível da mulher.
Daí a pouco entrou Elisiário, com a gravata no pescoço, o laço na frente, a
barba rapada, correto e em flor. Só então notei a diferença entre este
Elisiário e o outro. A incoerência dos gestos era já menor, ou estava prestes a
acabar inteiramente. A inquietação desaparecera. Logo que ele entrou, a mulher
deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de
agulha.
— Não, senhora, vamos primeiro ao latim,
bradou o marido.
D. Jacinta corou extraordinariamente, mas
obedeceu ao marido e foi buscar o livro que estava lendo quando eu cheguei.
— Tosta é de confiança, continuou Elisário,
não vai dizer nada a ninguém.
E voltando-se para mim:
— Não pense que sou eu que lhe imponho isto;
ela mesma é que quis aprender.
Não crendo o que ele me dizia, quis poupar à
moça a lição de latim, mas foi ela própria que me dispensou o auxílio, indo
buscar alegremente a gramática do Padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a
lição, como um simples aluno. Ouvia com atenção, articulava com prazer, e
mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quis passar à lição de
história; mas foi ela, dessa vez, que recusou obedecer, para me não roubá-lo a
mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tão fora de propósito
aquela escola de latim conjugal, que não alcançava explicação, nem ousava
pedi-la.
Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas
vezes. Ao domingo ia só almoçar. D. Jacinta era um primor. Não imaginas a graça
que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a
gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mãos, apesar do latim e da
história que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabelos
lisos e não trazia joia alguma; podia ser afetação, mas tal era a sinceridade
que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto.
Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava
o Elisiário à minha espera, à porta, ansioso que eu chegasse. A mulher estava
acabando de arranjar as flores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Além
disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas
poéticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar,
eles não eram ricos, nem nós tão comilões; entravam as que podiam. Era ao
almoço que Elisiário, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma
coisa. Improvisava décimas, — ele preferia essa estrofe a qualquer outra; mais
tarde, foi diminuindo o número delas, e para diante não passava de duas ou de
uma. D. Jacinta pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu
copiávamos logo, a lápis, com retificações que ele fazia, rindo: — "Para
que querem vocês isso?" Afinal perdeu o costume, com grande mágoa da
mulher, e minha também. Os versos eram bons, a inspiração fácil; faltava-lhes
só o calor antigo.
Um dia perguntei a Elisiário por que não
reimprimia o livro de versos, que ele dizia ter saído com incorreções; eu
ajudaria a ler as provas. D. Jacinta apoiou com entusiasmo a proposta.
— Pois, sim, disse ele, um dia destes;
começaremos domingo.
No domingo, D. Jacinta, estando a sós comigo,
um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão do livro.
— Não, senhora, deixe estar.
— Não enfraqueça, se ele quiser adiar o
trabalho, continuou a moça; é provável que ele fale em guardar para outra vez,
mas teime sempre, diga que não, que se zanga, que não volta cá...
Apertou-me a mão com tanta força, que me
deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o
que disse, ela ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que ele se
dispusesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que esperássemos, ia buscar o livro.
— Desta vez, vencemos, disse eu.
D. Jacinta fez com a boca um gesto de
desconfiança, e passou da alegria ao abatimento.
— Elisiário está preguiçoso. Há de ver que
não acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão à força de muito
pedido, e poucos? Podia escrever também, quando mais não fosse alguns daqueles
discursos que costuma improvisar, mas os próprios discursos são raros e curtos.
Tenho-me oferecido tantas vezes para escrever o que ele mandar... Chego a
preparar o papel, pego na pena e espero; ele ri, disfarça, diz um gracejo, e
responde que não está disposto.
— Nem sempre estará.
— Pois sim; mas então declaro que estou
pronta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca.
Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo.
Entretanto, o livro que ele imprimiu em Porto Alegre foi bem recebido, podia
animá-lo.
— Animá-lo? Mas ele não precisa de animações;
basta-lhe o grande talento que tem.
— Não é verdade? disse ela chegando-se a mim,
com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! tanto talento perdido!
— Nós o acharemos; hei de tratá-lo como se
ele fosse mais moço que eu. O mau foi deixá-lo cair na ociosidade...
Elisiário tornou com um exemplar do livro.
Não trazia tinta nem pena; ela foi buscá-las. Começamos o trabalho da revisão;
o plano era emendar, não só os erros de imprensa, mas o próprio texto. A
novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas
horas. Verdade é que a maior parte do tempo era interrompido com a história das
poesias, a notícia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das
composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente fizemos
pouco: não passamos de vinte páginas. Elisiário confessou que estava com sono,
adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nele.
D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos
deixasse a nós a tarefa de emendar o livro; ele veria depois o texto emendado e
pronto. Elisiário respondeu que não, que ele mesmo faria tudo, que esperássemos,
não havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro
improvisava, e, como não tinha paciência para compor escrevendo, os versos iam
escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quisemos ainda
assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e antes de o propor,
tratamos de compilá-lo. O todo precisava de revisão; Elisiário consentiu em
fazê-la, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os próprios
discursos iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos nós
falamos; não era já nem sombra daquela catadupa de ideias, de imagens, de
frases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia
sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido.
Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha
no marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspiração nem calor. Ela
própria foi mudando também. Não instava já pela composição de versos novos, nem
pela correção dos velhos. Ficou tão desinteressada como ele. Os jantares e os
almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de letras. D. Jacinta
buscava não tocar em tal assunto que era penoso ao marido e a ela; eu
imitava-os. Quando me formei, Elisiário compôs um soneto em honra minha; mas já
lhe custou muito, e, a falar verdade, não era do mesmo homem de outro tempo.
D. Jacinta vivia então, não direi triste, mas
desencantada. A razão não se compreenderá bem, senão sabendo as origens da
afeição que a levara ao casamento.
Pelo que pude colher e observar, nunca essa
moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiário acreditou que sim,
e o disse, porque o pai dela pensava que era deveras um amor como os outros. A
verdade, porém, é que o sentimento de D. Jacinta era pura admiração. Tinha uma
paixão intelectual por esse homem, nada mais, e nos primeiros anos não pensou
em casar com ele. Quando Elisiário ia à casa do Dr. Lousada, D. Jacinta vivia
as melhores horas da vida, escutando-lhe os versos, novos ou velhos, — os que
trazia de cor e os que improvisava ali mesmo. Possuía boa cópia deles. Mas,
ainda que não fossem versos, contentava-se em ouvi-lo para admirá-lo.
Elisiário, que a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irmã mais moça.
Depois viu que era inteligente, mais do que o comum das mulheres, e que havia
nela um sentimento de poesia e de arte que a faziam superior. O apreço em que a
tinha era grande, mas não passava disso.
Assim se passaram anos. D. Jacinta começou a
pensar em um ato de pura dedicação. Conhecia a vida de Elisiário, os dias
perdidos, as noitadas, a incoerência e o desarranjo de uma existência que
ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estímulo, nenhuma ambição de futuro. D.
Jacinta acreditava no gênio de Elisiário. Muitos eram os admiradores; nenhum
tinha a fé viva, a devoção calada e profunda daquela moça. O projeto era
desposá-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambição que não tinha, o estímulo,
o hábito do trabalho regular, metódico, e naturalmente abundante. Em vez de
perder o tempo e a inspiração em coisas fúteis ou conversas ociosas, comporia
obras de fôlego, nas boas horas e para ele quase todas as horas eram
excelentes. O grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, não
lhe foi difícil obter a colaboração do pai, sem todavia confessar-lhe o motivo
secreto da ação; seria dizer que se casava sem amor. O que ela disse foi que o
amava deveras.
Que haja nisso uma nota romanesca, é verdade;
mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração,
e podia ser um sacrifício. Talvez mais de um tentasse casar com ela. D. Jacinta
não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a ideia generosa de seduzir o poeta.
Já sabes que este casou por obediência.
O resultado foi inteiramente oposto às
esperanças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça,
e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia já
obras de arte. D. Jacinta padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se
não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquela língua sublime em que cuidou
falar às ambições de um grande espírito. A conclusão a que chegou foi ainda um
desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma inspiração que só
tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não
achar as doçuras do casamento na união com Elisiário, perdeu a única vantagem a
que se propusera no sacrifício.
Errava naturalmente. Para mim Elisiário era o
mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de
pouca dura; tinha de acabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe
tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com ele que tanto tinha de
agitado, como de solitário; mas a quietação e o método não dariam cabo do
poeta, se a poesia nele não fosse uma grande febre da mocidade... Em mim é que
não passou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu amor, que o
terás; não me peças versos, que desaprendi há muito, concluiu Tosta, beijando a
mulher.
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