Um sonho e outro sonho
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Crês em sonhos? Há pessoas que os aceitam
como a palavra do destino e da verdade. Outros há que os desprezam. Uma
terceira classe explica-os, atribuindo-os a causas naturais. Entre tantas
opiniões não quero saber da tua, leitora, que me lês, principalmente se és
viúva, porque a pessoa a quem aconteceu o que vou dizer era viúva, e o assunto
pode interessar mais particularmente às que perderam os maridos. Não te peço
opinião, mas atenção.
Genoveva, vinte e quatro anos, bonita e rica,
tal era a minha viúva. Três anos de viuvez, um de véu longo, dois de simples
vestidos pretos, chapéus pretos, e olhos pretos, que vinham do consórcio e do
berço. A diferença é que agora olhavam para o chão, e, se olhavam para alguma
coisa ou alguém, eram sempre tristes, como os que já não têm consolação na
terra nem provavelmente no céu. Morava em uma casa escondida, para os lados do
Engenho Velho, com a mãe e os criados. Nenhum filho. Um que lhe devia nascer,
foi absorvido pelo nada; tinha cinco meses de gestação.
O retrato do marido, bacharel Marcondes, ou
Nhonhô, pelo nome familiar, vivia no quarto dela, pendente da parede, moldura
de ouro, coberta de crepe. Todas as noites, Genoveva, depois de rezar a Nossa
Senhora, não se deitava sem lançar o último olhar ao retrato, que parecia olhar
para ela. De manhã o primeiro olhar era para ele. Quando o tempo veio
amortecendo o efeito da dor, esses gestos diminuíram naturalmente e acabaram;
mas a imagem vivia no coração. As mostras externas não diminuíam a saudade.
Rica? Não, não era rica, mas tinha alguma
coisa; tinha o bastante para viver com a mãe, à larga. Era, conseguintemente,
um bom negócio para qualquer moço ativo, ainda que não tivesse nada de seu;
melhor ainda para quem possuísse alguma coisa, porque as duas bolsas fariam uma
grande bolsa, e a beleza da viúva seria a mais valiosa moeda do pecúlio. Não
lhe faltavam pretendentes de toda a espécie, mas todos perdiam o tempo e o
trabalho. Carlos, Roberto, Lucas, Casimiro e outros muitos nomes inscreviam-se
no livro dos passageiros, e iam-se embora sem esperanças. Alguns nem levavam
saudades. Muitos as levavam em grande cópia e das mais tristes. Genoveva não se
deixou prender de ninguém.
Um daqueles candidatos, Lucas, pôde saber da
mãe de Genoveva algumas circunstâncias da vida e da morte do finado genro.
Lucas tinha ido pedir licença à boa senhora para solicitar a mão da filha. Não
havia necessidade, pois que a viúva dispunha de si; mas a incerteza de ser
aceito sugeriu-lhe esse alvitre, a fim de ver se ganhava a boa vontade e
intercessão da mãe.
— Não lhe dou tal conselho, respondeu esta.
— De pedi-la em casamento?
— Sim; ela deu-lhe alguma esperança?
Lucas hesitou.
— Vejo que não lhe deu nenhuma.
— Devo ser verdadeiro. Esperanças, não tenho;
não sei se D. Genoveva me perdoa, ao menos, a afeição que me inspirou.
— Pois não lhe peça nada.
— Parece-lhe que...
— Que perderá o tempo. Genoveva não casará
nunca mais. Até hoje tem a imagem do marido diante de si, vive da lembrança
dele, chora por ele, e nunca se unirá a outro.
— Amaram-se muito?
— Muito. Imagine uma união que apenas durou
três anos. Nhonhô, quando morreu, quase que a levou consigo. Viveram como dois
noivos; o casamento foi até romanesco. Tinham lido não sei que romance, e
aconteceu que a mesma linha da mesma página os impressionou igualmente; ele
soube disso lendo uma carta que ela escrevera a uma amiga. A amiga atestou a
verdade, porque ouvira a confissão de Nhonhô, antes de lhe mostrar a carta. Não
sei que palavras foram, nem que romance era. Nunca me dei a essas leituras. Mas
naturalmente eram palavras ternas. Fosse o que fosse, apaixonaram-se um pelo
outro, como raras vezes vi, e casaram-se para ser felizes por longos anos.
Nhonhô morreu de uma febre perniciosa. Não pode imaginar como Genoveva sofreu.
Quis ir com o cadáver, agarrou-se ao caixão, perdeu os sentidos, e esteve fora
de si quase uma semana. O tempo e os meus cuidados, além do médico, é que
puderam vencer a crise. Não chegou a ir à missa; mandamos dizer uma, três meses
depois.
A mãe exagerava no ponto de dizer que foi a
frase do romance que ligou a filha ao marido; eles tinham naturalmente
inclinação. A frase não fez mais que falar por eles. Nem por isso tira o
romanesco de Genoveva e do finado Marcondes, que fizera versos aos dezoito
anos, e, aos vinte, um romance, A bela do
Sepulcro, cuja heroína era uma moça que, havendo perdido o esposo, ia
passar os dias no cemitério, ao pé da sepultura dele. Um moço, que ia passar as
tardes no mesmo cemitério, ao pé da sepultura da noiva, viu-a e admirou aquela
constância póstuma, tão irmã da sua; ela o viu também, e a identidade da
situação os fez amados um do outro. A viúva, porém, quando ele a pediu em
casamento, negou-se e morreu oito dias depois.
Genoveva tinha presente este romance do
marido. Havia-o lido mais de vinte vezes, e nada achava tão patético nem mais
natural. Mandou fazer uma edição especial, e distribuiu exemplares a todos os
amigos e conhecidos da família. A piedade conjugal desculpava esse obséquio
pesado, ainda que gratuito. A bela do
sepulcro era ilegível. Mas não se conclua daí que o autor, como homem
espirituoso, era inferior às saudades da viúva. Inteligente e culto, cometera
aquele pecado literário, que, nem por ser grande, o teria levado ao purgatório.
Três anos depois de viúva, apareceu-lhe um
pretendente. Era bacharel, como o marido, tinha trinta anos, e advogava com
tanta felicidade e real talento que contava já um bom pecúlio. Chamava-se
Oliveira. Um dia, a mãe de Genoveva foi demandada por um parente que pretendia
haver duas casas dela, por transações feitas com o marido. Querendo saber de um
bom advogado, inculcaram-lhe Oliveira, que em pouco tempo venceu a demanda.
Durante o correr desta, Oliveira foi duas vezes à casa de Genoveva, e só a viu
da segunda; mas foi quanto bastou para achá-la interessantíssima, com os seus
vestidos pretos, tez muito clara e olhos muito grandes. Vencida a demanda, a
constituinte meteu-se em um carro e foi ao escritório de Oliveira, para duas
coisas, agradecer-lhe e remunerá-lo.
— Duas pagas? retorquiu ele rindo. Eu só recebo
uma — agradecimentos ou honorários. Já tenho os agradecimentos.
— Mas...
— Perdoe-me isto, mas a sua causa era tão
simples, correu tão depressa, deu-me tão pouco trabalho, que seria injustiça
pedir-lhe mais do que a sua estima. Dá-me a sua estima?
— Seguramente, respondeu ela.
Quis ainda falar, mas não achava palavras, e
saiu convencida de que era chegado o reino de Deus. Entretanto, querendo fazer
uma fineza ao generoso advogado, resolveu dar-lhe um jantar, para o qual
convidou algumas famílias íntimas. Oliveira recebeu o convite com alacridade.
Não gostava de perfumes nem adornos; mas nesse dia borrifou o lenço com Jockey Club e pôs ao peito uma rosa
amarela.
Genoveva recebeu o advogado como recebia
outros homens; a diferença, porém, entre ele e os outros é que estes
apresentavam logo no primeiro dia as credenciais, e Oliveira não pedia sequer
audiência. Entrou como um estrangeiro de passagem, curioso, afável,
interessante, tratando as coisas e pessoas como os passageiros em trânsito
pelas cidades de escala. Genoveva teve excelente impressão do homem; a mãe
estava encantadíssima.
— Enganei-me, pensou Genoveva, recolhendo-se
ao quarto. Cuidei que era outro pedido, entretanto... Mas, por que motivo fez o
que fez, e aceitou o jantar de mamãe?
Chegou a suspeitar que a mãe e o advogado
estavam de acordo, que ela não fizera mais que buscar ocasião de os apresentar
um ao outro, e travar relações. A suspeita cresceu quando, dias depois, a mãe
falou em visitar a mãe de Oliveira, com quem este vivia; mas a prontidão com
que aceitou as suas razões de negativa tornou a moça perplexa. Genoveva
examinou o caso e reconheceu que atribuía à mãe um papel menos próprio;
varreu-se-lhe a suposição. Demais (e isto valia por muito), as maneiras do
homem estavam em desacordo com quaisquer projetos.
Travadas as relações, bem depressa as duas
famílias se visitavam, e a miúdo. Oliveira residia longe; mas achou casa perto
e mudou-se. As duas mães achavam-se reciprocamente encantadoras, e tanto a de
Genoveva gostava de Oliveira, como a de Oliveira gostava de Genoveva. Tudo isto
vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente coisas
que se passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo.
Quanto menos, falta-me tempo... A verdade é que as duas matronas se amavam e
trabalhavam para fazer os filhos encontradiços.
Um, dois, três meses correram, sem que
Oliveira revelasse a menor inclinação à viuvinha. Entretanto, as horas passadas
com ele, em qualquer das casas, não podiam ser mais deleitosas. Ninguém sabia
encher o tempo tão bem, falando a cada uma das pessoas a sua própria linguagem.
Durante esse prazo teve Genoveva ainda um pretendente, que não recebeu melhor
agasalho; parece até que tratou a este com uma sombra de despeito e irritação
inexplicáveis, não só para ele, como para ela própria.
— Realmente, o pobre diabo não tem culpa que
eu seja viúva, disse ela consigo.
“Que eu seja bonita”, é o que ela devia
dizer, e pode ser que tal ideia chegasse a bater as asas, para atravessar-lhe o
cérebro; mas, há certa modéstia inconsciente, que faz evitar confissões, não
digo presumidas, mas orgulhosas. Seja o que for, Genoveva chegou a ter pena do
pretendente.
— Por que não se portou ele como o Oliveira,
que me respeita? continuou consigo.
Entrara o quarto mês das relações, e o
respeito do advogado não diminuiu. Jantaram juntos algumas vezes, e chegaram a
ir juntos ao teatro. Oliveira abriu até um capítulo de confidências com ela,
não amorosas, é claro, mas de sensações, de impressões, de cogitações. Um dia,
disse-lhe que, em pequeno, tivera desejo de ser frade; mas levado ao teatro, e
assistindo à comédia do Pena, O Noviço,
o espetáculo do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar: eu
quero ser frade! eu quero ser frade! fez-lhe perder todo o gosto da profissão.
— Achei que não podia vestir um hábito assim
profanado.
— Profanado, como? O hábito não tinha culpa.
— Não tinha culpa, é verdade; mas eu era
criança, não podia vencer essa impressão infantil. E parece que foi bom.
— Quer dizer que não seria bom frade?
— Podia ser que fosse sofrível; mas eu
quisera sê-lo excelente.
— Quem sabe?
— Não; dei-me tão bem com a vida do foro, com
esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação contemplativa
tão perfeita como quisera. Há só um caso em que eu acabaria num convento.
— Qual?
Oliveira hesitou um instante.
— Se enviuvasse, respondeu.
Genoveva, que sorria, aguardando a resposta,
fez-se rapidamente séria, e não retorquiu. Oliveira não acrescentou nada, e a
conversa naquele dia acabou menos expressiva que das outras vezes. Posto que
tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao contrário,
ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada.
Na manhã seguinte, a primeira coisa em que
pensou foi justamente na conversação da véspera, isto é, naquela última palavra
de Oliveira. Que havia nela? Aparentemente, pouco; e pode ser que, na
realidade, ainda menos. Era um sentimento de homem que não admitia o mundo,
depois de roto o consórcio; e iria refugiar-se na solidão e na religião.
Confessemos que não basta para explicar a preocupação da nossa viúva. A viúva,
entretanto, não viveu de outra coisa, durante esse dia, salvo o almoço e o
jantar, que ainda assim foram quase silenciosos.
— Estou com dor de cabeça, respondeu à mãe,
para explicar as suas poucas palavras.
— Toma antipirina.
— Não, isto passa.
E não passava. “Se enviuvasse, ele ia
meter-se em um convento”, pensava Genoveva; logo, era uma censura a ela, por
não ter feito o mesmo. Mas que razão havia para desejá-la recolhida a um
mosteiro? Pergunta torta; parece que a pergunta direita seria outra: “Que razão
haveria para não desejá-la recolhida a um mosteiro?” Mas se não era direita,
era natural, e o natural é muitas vezes torto. Pode ser até que, bem exprimidas
as primeiras palavras, deixem o sentido das segundas; mas, eu não faço aqui
psicologia, narro apenas.
Atrás daquele pensamento, veio outro mui
diverso. Talvez que ele tivesse tido alguma paixão, tão forte, que, se casasse
e enviuvasse... E por que não a teria ainda agora? Pode ser que amasse a
alguém, que pretendesse casar, e que, se acaso perdesse a mulher amada, fugisse
ao mundo para sempre. Confessara-lhe isto, como usava fazer a outros respeitos,
como lhe confessava opiniões, que dizia não repetir a ninguém mais. Essa
explicação, posto que natural, atordoou Genoveva ainda mais que a primeira.
— Afinal, que tenho eu com isto? Faz muito
bem.
Passou mal a noite. No dia seguinte foi com a
mãe fazer compras à Rua do Ouvidor, demorando-se muito, sem saber porquê, e
olhando para todos os lados, sempre que saía de uma loja. Passando por um grupo
estremeceu e olhou para as pessoas que falavam, mas não conheceu nenhuma. Tinha
ouvido, entretanto, a voz de Oliveira. Há vozes parecidas com outras, que
enganam muito, ainda quando a gente vai distraída. Há também ouvidos mal
educados.
A declaração de Oliveira de que entraria para
um convento, se chegasse a enviuvar, não saía da cabeça de Genoveva.
Passaram-se alguns dias sem ver o advogado. Uma noite, depois de cuidar no
caso, Genoveva olhou para o retrato do marido antes de deitar-se; repetiu a
ação no dia seguinte, e o costume dos primeiros tempos da viuvez tornou a ser o
de todas as noites. De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário.
Apareceu-lhe o marido, vestido de preto, como
se enterrara, e pôs-lhe a mão na cabeça. Estavam em um lugar que não era bem
sala nem bem rua, uma coisa intermédia, vaga, sem contornos definidos. O
principal do sonho era o finado, cara pálida, mãos pálidas, olhos vivos, é
certo, mas de uma tristeza de morte.
— Genoveva! disse-lhe ele.
— Nhonhô! murmurou ela.
— Para que me perturbas a vida da morte, o
sono da eternidade?
— Como assim?
— Genoveva, tu esqueceste-me.
— Eu?
— Tu amas a outro.
Genoveva negou com a mão.
— Nem ousas falar, observou o defunto.
— Não, não amo, acudiu ela.
Nhonhô afastou-se um pouco, olhou para a
antiga esposa, abanou a cabeça incredulamente, e cruzou os braços. Genoveva não
podia fitá-lo.
— Levanta os olhos, Genoveva.
Genoveva obedeceu.
— Ainda me amas?
— Oh! ainda! exclamou Genoveva.
— Apesar de morto, esquecido dos homens,
hóspede dos vermes?
— Apesar de tudo!
— Bem, Genoveva; não te quero forçar a nada,
mas se é verdade que ainda me amas, não conspurques o teu amor com as carícias
de outro homem.
— Sim.
— Juras?
— Juro.
O finado estendeu-lhe as mãos, e pegou nas
dela; depois, enlaçando-a pela cintura, começou uma valsa rápida e lúgubre,
giro de loucos, em que Genoveva não podia fitar nada. O espaço já não era sala,
nem rua, nem sequer praça; era um campo que se alargava a cada giro dos dois,
por modo que, quando estes pararam, Genoveva achou-se em uma vasta planície,
semelhante a um mar sem praias; circulou os olhos, a terra pegava com o céu por
todos os lados. Quis gritar; mas sentiu na boca a mão fria do marido que lhe
dizia:
— Juras ainda?
— Juro, respondeu Genoveva.
Nhonhô tornou a pegar-lhe da cintura, a valsa
recomeçou, com a mesma vertigem de giros, mas com o fenômeno contrário, em
relação ao espaço. O horizonte estreitou-se a mais e mais, até que eles se
acharam numa simples sala, com este apêndice: uma eça e um caixão aberto. O
defunto parou, trepou ao caixão, meteu-se nele, e fechou-o; antes de fechado,
Genoveva viu a mão do defunto, que lhe dizia adeus. Soltou um grito e acordou.
Parece que, antes do grito final, soltara
outros de angústia, porque quando acordou, viu já ao pé da cama uma preta da
casa.
— Que foi, Nhanhã?
— Um pesadelo. Eu disse alguma coisa? falei?
gritei?
— Nhanhã gritou duas vezes, e agora outra
vez,
— Mas foram palavras?
— Não, senhora; gritou só.
Genoveva não pôde dormir o resto da noite.
Sobre a manhã chegou a conciliar o sono, mas este foi interrompido e curto.
Não referiu à mãe os pormenores do sonho;
disse só que tivera um pesadelo. De si para si, aceitou aquela visão do marido
e as suas palavras, como determinativas do seu proceder. Ao demais, jurara, e
este vínculo era indestrutível. Examinando a consciência, reconheceu que estava
prestes a amar a Oliveira, e que a notícia desta afeição, ainda mal expressa,
tinha chegado ao mundo onde vivia o marido. Ela cria em sonhos; tinha para si
que eles eram avisos, consolações e castigos. Havia-os sem valor, sonhos de
brincadeira; e ainda esses podiam ter alguma significação. Estava dito;
acabaria com aquele princípio de qualquer coisa que Oliveira conseguira
inspirar-lhe e tendia a crescer.
Na seguinte noite, Genoveva despediu-se do
retrato do marido, rezou por ele, e meteu-se na cama com receio. Custou-lhe
dormir, mas afinal o sono fechou-lhe os lindos olhos e a alma acordou sem ter
sonhado nada, nem mal nem bem; acordou com a luz do sol que lhe entrava pelas
portas das janelas.
Oliveira deixara de ir ali uma semana.
Genoveva espantou-se da ausência; a mãe quis ir à casa dele saber se era alguma
doença, mas a filha tirou-lhe a ideia da cabeça. No princípio da outra semana,
apareceu ele com a mãe, tinha tido um resfriamento que o reteve na cama três
dias.
— Eu não disse? acudiu a mãe de Genoveva. Eu
disse que havia de ser negócio de doença, porque o doutor não deixa de vir
tanto tempo...
— E a senhora não acreditou? perguntou
Oliveira à linda viúva.
— Confesso que não.
— Pensa, como minha mãe, que sou
invulnerável.
Sucederam-se as visitas entre as duas casas,
mas nenhum incidente veio perturbar a resolução em que estava Genoveva de
cortar inteiramente quaisquer esperanças que pudesse haver dado ao advogado.
Oliveira era ainda o mesmo homem respeitoso. Passaram-se algumas semanas. Um
dia, Genoveva ouviu dizer que Oliveira ia casar.
— Não é possível, disse ela à amiga que lhe
deu a notícia.
— Não é possível, por quê? acudiu a outra.
Vai casar com a filha de um comerciante inglês, um Stanley. Todos sabem disto.
— Enfim, como eu pouco saio...
Justifiquemos a viúva. Não lhe parecia
possível, porque ele visitava-as com tal frequência, que não se podia crer em
casamento tratado. Quando visitaria a noiva? Apesar da razão, Genoveva sentia
que podia ser assim mesmo. Talvez o futuro sogro fosse algum esquisitão, que
não admitisse a visita de todas as noites. Notou que, a par disto, Oliveira era
desigual com ela; tinha dias e dias de indiferença, depois lá vinha um olhar,
uma palavra, um dito, um aperto de mão... Os apertos de mão eram o sinal mais
frequente: tanto que ela sentia alguma falta no dia em que ele era frouxo, e
esperava o dia seguinte para ver se era mais forte. Lançava estas curiosidades
à conta da vaidade. Vaidade de mulher bonita, dizia a si mesma.
Daquela vez, porém, esperou-o com certa
ânsia, e fez-lhe bem o aperto de mão com que ele a saudou na sala.
Arrependera-se de não ter contado à mãe a notícia do casamento, para que esta
perguntasse ao advogado; e, não se podendo ter, falou ela mesma.
— Eu, minha senhora?
Genoveva continuou sorrindo.
— Sim, senhor.
— Há de ser outro Oliveira, também advogado,
que está realmente para casar este mês. Eu não me casarei nunca.
Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se olhou
ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu,
com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos.
Que poderá haver entre uma viúva que promete
ao finado esposo, em sonhos, não contrair segundas núpcias, e um advogado que
declara, em conversação, que jamais se casará? Parece que nada ou muito; mas é
que o leitor não sabe ainda que este Oliveira tem por plano não saltar o
barranco sem que ela lhe estenda as duas mãos, posto que a adore, como dizem
todos os enamorados. A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por
modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito
produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a
ponta dos dedos... Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.
Notem bem que eu não tenho culpa destas
histórias enfadonhas de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras
meio inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de um e das
promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo dia tinha pegado em ambos,
ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: casem-se. E passava a contar outras
histórias menos monótonas. Mas, as pessoas são estas; é preciso aceitá-las
assim mesmo.
Passaram-se dias, uma, duas, três semanas,
sem incidente maior. Oliveira parecia deixar a estratégia de Fabio Cunctator.
Um dia declarou francamente à viúva que a amava; era um sábado, em casa dela,
antes de jantar, enquanto as duas mães os tinham deixado sós. Genoveva abria as
folhas de um romance francês que Oliveira lhe trouxera. Ele fitava pela
centésima vez uma aquarela, pendurada no trecho da parede que ficava entre duas
janelas. Bem ouvia a faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro, e o
silêncio deixado pelas duas senhoras que tinham deixado a sala; mas não voltava
a cabeça nem baixava os olhos. Baixou-os de repente, e voltou-os para a viúva.
Ela sentia-os, e, para dizer alguma coisa:
— Sabe se é bonito o romance? perguntou,
parando de rasgar as folhas.
— Dizem-me que sim.
Oliveira foi sentar-se em um pufe, que estava
ao pé do sofá, e fitou as mãos de Genoveva, pousadas sobre o livro aberto, mas
as mãos continuaram o seu ofício para escapar à admiração do homem, como, se
cortando as folhas, fossem menos admiráveis que paradas. Alongou-se o silêncio,
um silêncio constrangido — que Genoveva quisera romper, sem achar modo nem
ocasião. Pela sua parte, Oliveira tinha ímpetos de lhe dizer subitamente o
resto do que ela devia saber pelos últimos dias; mas não cedia aos ímpetos, e
acabou trivialmente elogiando-lhe as mãos. Não valia a pena tanto trabalho para
acabar assim. Ele, porém, vexado da situação, pôs toda a alma na boca e
perguntou à viúva se desejava ser sua esposa.
Desta vez, as mãos pararam sem plano.
Genoveva, confusa, pregou os olhos no livro, e o silêncio entre os dois fez-se
mais longo e profundo. Oliveira olhava para ela; via-lhe as pálpebras caídas e
a respiração curta. Que palavra estaria dentro dela? Hesitava pelo vexame de
dizer que sim? ou pelo aborrecimento de dizer que não? Oliveira tinha razões
para crer na primeira hipótese. Os últimos dias foram de acordo tácito, de
consentimento prévio. Entretanto, a palavra não saía; e a memória do sonho veio
complicar a situação. Genoveva recordou-se da penosa e triste valsa, da
promessa e do féretro, e empalideceu. Nisto foram interrompidos pelas duas
senhoras, que voltaram à sala.
O jantar foi menos animado que de costume. De
noite, vieram algumas pessoas, e a situação piorou. Separaram-se sem resposta.
A manhã seguinte foi cheia de tédio para Genoveva, um tédio temperado com
alegria que bem fazia adivinhar o estado da alma da moça. Oliveira não apareceu
nesse dia; mas, veio no outro, à noite. A resposta que ela deu não podia ser
mais decisiva, ainda que trêmula e murmurada.
Há aqui um repertório de pequenas coisas
infinitas, que não pode entrar em um simples conto nem ainda em longo romance;
não teria graça escrito. Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um noivo até
o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga,
dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.
Desde duas semanas antes da pergunta de Oliveira,
a viúva deitava-se sem olhar para o retrato do finado marido. Logo depois da
resposta, olhava-o algumas vezes, de soslaio, até que tornou ao anterior
costume. Ora, uma noite, quatro dias antes de casar, como houvesse pensado no
sonho da valsa e na promessa não cumprida, deitou-se com medo e só dormiu sobre
a madrugada. Nada lhe sucedeu; mas, na segunda noite, teve um sonho
extraordinário.
Não era a valsa do outro sonho, posto que, ao
longe, na penumbra, via uns contornos cinzentos de vultos que andavam à roda.
Viu, porém, o marido, a princípio severo, depois triste, perguntando-lhe como é
que esquecera a promessa. Genoveva não respondeu nada; tinha a boca tapada por
um carrasco, que era não menos que Oliveira.
— Responde, Genoveva!
— Ah! Ah!
— Tu esqueceste tudo. Estás condenada ao
inferno!
Uma língua de fogo lambeu a parte do céu, que
se conservava azul, porque todo o resto era um amontoado de nuvens carregadas
de tempestade. Do meio delas saiu um vento furioso, que pegou da moça, do
defunto marido e do noivo e os levou por uma estrada fora, estreita, lamacenta,
cheia de cobras.
— O inferno! sim! o inferno!
E o carrasco tapava-lhe a boca, e ela mal
podia gemer uns gritos abafados.
— Ah! ah!
Parou o vento, as cobras ergueram-se do chão
e dispersaram-se no ar, entrando cada uma pelo céu dentro; algumas ficaram com
a cauda de fora. Genoveva sentiu-se livre; desaparecera o carrasco, e o defunto
esposo, de pé, pôs-lhe a mão na cabeça, e disse com voz profética:
— Morrerás se casares!
Desapareceu tudo; Genoveva acordou; era dia.
Ergueu-se trêmula; o susto foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia
consigo: “São sonhos”. Casou e não morreu.
----
Imagem:
Revista Alterosa. Edição nº 117 - Ano: 1950. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...